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A “sensação de segurança” é um engodo

O penúltimo texto tratava de um dos aspectos mais cansativos e artificiais da forma marqueteira que assumiu a política de uns tempos para cá. (Quanto tempo? Dez, vinte anos? Difícil estabelecer um início preciso para um processo tão paulatino…) Embora o tema a perpasse sem descanso, não me refiro à política enquanto disputa de poder, embora esse aspecto tenha recoberto o termo quase inteiramente no debate público, mas ao verdadeiro quotidiano político, o esforço constante de viver em comunidade. Trata-se da questão da segurança, martelada em todos os telejornais, muitos filmes, conversas no barbeiro e no táxi, e repetida inclementemente por candidatos a qualquer coisa em seus discursos temerários.

Poderia ser uma particularidade brasileira. Afinal, nossas maiores cidades são território livre para assaltos, sequestros-relâmpago e o diabo a quatro, quando não estão em franca guerra civil, sem contar os acordos de bastidores entre governos e grupos criminosos para que estes últimos “peguem leve”. Mas não. A julgar pela prioridade que o tema recebe, o mundo inteiro deve estar à beira de centenas de guerras civis entre criminosos satânicos e os pobrezinhos dos cidadãos de bem, sempre acuados em seus cantos, tentando levar suas vidas sem serem esquartejados por bandos criminosos. Sem contar os terroristas, claro. Porque, afinal de contas, eles existem. E se existem, só podem estar por toda parte, certo? O raciocínio parece tortuoso, mas tem dado sucesso a seus proponentes em eleições mundo afora.

Muitos meses atrás, comentei aqui sobre a violência policial, comparando maio de 68 e todos os meses de 2008, na França como no mundo. Só de confrontar fotografias antigas com recentes, ficou claro que a tropa de choque (CRS na França) que trocaram cascudos com estudantes diante da Sorbonne em 68 mais parece uma fileira de guardas de trânsito, comparada à tropa de hoje. Aqueles policiais tinham capacetes, escudos e espingardas (não usaram), por certo; os de hoje parecem robôs de filmes de ficção científica, com suas armaduras, máscaras e coturnos à la Kiss. A polícia de hoje é bem mais ameaçadora. Tem um visual que intimida enormemente. Mesmo as patrulhas simples, pelo menos na França (e pelo que vi, no Rio também), vestem-se com blusas negras que lhes dão um ar de muito mais fortes, além de rasparem a cabeça como recrutas do exército. Não consegui explicar isso à época, então retomo a pergunta: por que a polícia deste início de século precisa causar tanto terror?

Para responder, volto ao penúltimo texto: a estação ferroviária, a cerveja, os soldados em uniforme camuflado exibindo suas boinas negras e seus fuzis semi-automáticos, desses que disparam sei lá quantas centenas de projéteis por segundo. Também coturnos, também cabeças raspadas, uma forma de olhar que, sem a menor fagulha de sucesso, buscava passar a impressão de investigar qualquer coisa. Um quarteto que se arrastava entre malas e bilhetes, simbolizando o mesmo programa anti-terrorismo que eliminou os bagageiros das estações de trem. Imagino o alto comando do exército a formular sua política de combate aos homens-bomba: colocar alguns rapazes sobre as plataformas, prontos para metralhar o primeiro zé-mané que pareça ter uma banana de dinamite por baixo da bata ou do turbante (sim, porque gente de paletó está acima de qualquer suspeita).

A segurança é a prioridade número um da maioria dos governos ao redor do mundo. Economia, saúde, educação, meio-ambiente, tudo isso é obrigado a disputar o segundo lugar, onde ainda sobram eventuais migalhas de atenção midiática. Talvez haja duas exceções. Uma é nosso bom e velho Lula, porque também não tem muito como competir com os políticos estaduais Brasil afora, que ainda enchem as PMs de carros enquanto a criminalidade teima em não ceder. A outra é o celebérrimo Obama, que, não é nada, não é nada, prossegue com duas guerras do outro lado do mundo, uma delas justamente contra o terrorismo. Fora esses aí, há anos ouvimos falar, e vemos na prática, em aumento do efetivo policial, tolerância zero, combate à delinqüência, câmeras espalhadas pelas cidades, monitoramento de lan-häuser, atenção particular para os “subúrbios sensíveis”. O público, já apavorado, porque já escutou esses discursos todos e já viu cenas de jovens em confronto com a tropa de choque, adere. Vota, esquece todos os outros problemas, fecha os olhos para a má gestão da estrutura pública… essa ladainha, todos conhecemos.

Mas, ora, que coisa estranha: nenhuma dessas políticas de segurança tem surtido um grande efeito duradouro. A não ser, talvez, o programa de Rudolph Giuliani em Nova York, o “tolerância zero”. Mas não é a mesma coisa, porque o que se fez na Big Apple foi deixar de fechar o olho para as pequenas infrações, como avançar o sinal vermelho e encher as calçadas de cadeiras. Isso, mais um policiamento ostensivo em nada diferente do que fazem os tradicionais guardas londrinos, conseguiu um nível de paz e tranqüilidade urbana muito maior do que a paranóia policialesca que, por exemplo, levou ao assassinato de Jean Charles.

A reação do público, no entanto, parece não reverberar a contradição. Nas pesquisas, as pessoas, aquelas normais, trabalhadoras, de bem (e assim por diante), continuam manifestando um medo enorme, diante de um mundo que lhes aparece como cada vez mais perigoso, instável e coalhado de bandidos, desde criminosos comuns até terroristas religiosos. Mesmo assim, elas declaram, diante da reação governamental, isto é, diante da presença massiva de gente com uniforme futurista, cacetete, fuzil, boina, cabeça raspada, escudo, capacete, óculos de visão noturna e gás lacrimogêneo, que experimentam uma maior “sensação de segurança”.

Ora, direi, sensação de segurança! Mas se dizíeis estar a vos cagar de medo! Como é possível?

Diante de tamanho paradoxo, refleti sobre o assunto e cheguei à conclusão que segue: essa tal “sensação de segurança” é um engodo. Ela não existe. Quando alguém acredita experimentar uma “sensação de segurança”, está enganada, não porque não esteja sentindo nada, mas porque aquilo que ela toma por uma “sensação de segurança” é, na verdade, outra coisa. Logo veremos o quê. Primeiro, preciso mostrar que não faz sentido falar em “sensação de segurança”. Ora, “sensação de segurança”…

Imagine você, em sua casa, deitado em seu sofá numa tarde de sábado, depois daquela feijoada, vendo pela televisão seu time ser esculachado em rede nacional. Você está seguro? Até certo ponto, sim. Pode cair um meteoro em sua casa, claro, mas afora essas hipóteses mirabolantes, você corre pouco risco de ser vítima de algum evento traumático ou perigoso. E que sensação você tem nesse momento? Sonolência, provavelmente. Raiva do juiz, talvez. Preocupação com o aluguel, eventualmente. Azia, posso arriscar. Mas “sensação de segurança”? Duvido.

Outra situação: você está dirigindo numa estrada escura. É noite. Chove a cântaros (é uma chuva das antigas). De repente, uma enorme vaca ruminando a um palmo dos faróis. Você entra em pânico. Solta um berro de pavor. Mas não há tempo para faniquitos: no último instante, você dá uma guinada com o volante, afunda o pé no freio, depois no acelerador, e consegue se safar. Seu coração ainda está disparado, você continua sem fôlego, suas mãos tremem. Mas o medo já passou. O que você sente? Alívio, certamente. Ódio da péssima iluminação da estrada, sem dúvida. Pena da vaca que talvez não escape ao próximo carro, nem ele a ela. Mas “sensação de segurança”? Necas…

Talvez eu esteja querendo brigar com os fatos, admito. Se as pessoas garantem que têm essa tal sensação, se elas insistem que é uma experiência verdadeira, quem sou eu para contradizê-las? Mas antes que me lapidem: eu nunca disse que elas não sentem nada. Eu disse simplesmente que essa sensação não é de segurança. Então, direis, é de quê? Tentarei responder.

Metade da resposta, acredito, está nas explicações dos pesquisados. Elas sentem medo e o associam de alguma maneira à “sensação de segurança”. Essa associação é muito freqüente para ser coincidência. De fato, tudo aponta para a noção de que a “sensação de segurança” corresponde à constatação (talvez inconsciente) de uma ausência de ameaça ou, melhor ainda, da ameaça contida, afastada, superada. É o que vimos nos exemplos acima, de maneira rudimentar, mas válida. Portanto, é impossível conceber a “sensação de segurança” sem uma sensação mais fundamental e mais evidente de medo, pavor, terror, ameaça, risco, decadência, desordem, chame como quiser – escolha, por exemplo, uma palavra do repertório de analistas políticos ligados a qualquer governo ao redor do mundo.

Seguimos no campo do paradoxo: como é possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre o medo, se o medo é o oposto da segurança? Estranho, não? Falta alguma coisa nessa nossa definição…

Então voltemos aos dois textos que mencionei nos primeiros parágrafos. O que encontramos? Policiais saídos de algum videogame, desses baseados em Robocop ou Exterminador do Futuro. O temor (mal dirigido) do terrorismo islâmico, que põe soldados armados até os dentes em todas as estações de trem da França (e muitos pontos turísticos), como se aqueles rapazes recém-saídos do treinamento fossem capazes de evitar a detonação de uma bomba. As tropas de choque que, e isso eu vi com meus próprios olhos, precisam de dois ou três batalhões, camburões e jatos d’água para desbloquear escolas onde garotos e garotas de 16, 17 anos fazem seu mui ameaçador piquete.

Para que serve tudo isso? Quem está mais seguro graças a esses bravos profissionais da violência estatal? A população? A gente de bem? O nobre e honrado cidadão? Alguém realmente acredita nisso? Sim, alguém acredita nisso. Basta ver, também alguns parágrafos acima, a reação habitual dos já mencionados cidadãos. Mortos de medo, mas ainda eleitores dos Sarkozys, Berlusconis e Serras da vida, graças a essa formidável “sensação de segurança”.

Devem então ser esses os componentes da magia paradoxal de nosso tempo. Primeiro, o medo; depois, o belicismo encarnado em policiais e soldados. Mas por que o belicismo? O que ele representa, quer dizer, o que ele provoca em quem o presencia? Traduzindo, como é que ele contribui para a “sensação de segurança”? Afinal de contas, guerras são tão opostas a qualquer noção de segurança quando o próprio medo, aliá seu correlato. Será possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre duas coisas que se opõem tão perfeitamente a qualquer idéia de estar seguro?

Sim, é possível. E talvez exatamente como conseqüência da contradição, da mesma forma como a multiplicação de dois números negativos produz um positivo. O belicismo dos assustadores soldados faz sentido quando entendemos a impressão que ele esconde: uma percepção de força, ou seja, uma demonstração de poder. Talvez o conforto implícito de que é possível agredir de volta, ou até agredir antes. De que qualquer ameaça será contrabalançada por um efeito punitivo e multiplicador. Que sei? Só posso afirmar que essa projeção de virilidade primitiva é o segundo componente da tal “sensação de segurança”.

Com isso, acho que já temos um quadro da nossa vítima. A “sensação de segurança” nada mais é senão um núcleo de medo recoberto por uma couraça de poder. Como o medo exige alguma forma de força e a força só é necessária quando temos medo, um anula e alimenta o outro. Desse estranho equilíbrio, dessa tensão delicada e perigosa, nasce essa tal “sensação de segurança” que tanta gente afirma sentir. Ou seja, é um engodo e um engodo arriscado.

Digo arriscado porque a “sensação de segurança” só pode aumentar de duas maneiras: ou cresce o medo e, em seguida, a demonstração de força como reação que restabelece o equilíbrio, ou aumentam, forçando um pouco a barra, as demonstrações de força, que por sua vez reverberam até multiplicar também o medo original. Não é difícil perceber que estamos diante de uma bola de neve. Só lembrando que o destino de toda bola de neve é a avalanche.

Até onde conseguimos levar o discurso e a estrutura reticular que sustentam a “sensação de segurança” tão fundamental a essa política mané de nossos tempos? De onde mais podem vir as ameaças que justifiquem tropas de choque e soldados com fuzis desfilando pelas ruas e estações de trem? Que outras medidas podem ser tomadas para, como é mesmo que se diz?, garantir a tranqüilidade dos cidadãos? Respostas nos comentários, por favor.

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Matei minha mãe, o filme

http://www.youtube.com/watch?v=tDa0CkKjfsk

Por recomendação de uma amiga, mas sem nenhuma expectativa, fui ver o recém-lançado J’ai tué ma mère (Matei minha mãe), filme canadense que ganhou três prêmios na Quinzena dos Diretores de Cannes em maio último. Resumindo muito, é a história de um rapaz de 17 anos que não se dá nada bem com a mãe e faz de tudo para “se libertar”. Tudo muito bem contado e filmado (volto a isso mais adiante), mas o que me deixou pasmo foi descobrir que o ator principal é também o roteirista e o diretor. Mais pasmo ainda fiquei ao saber que o rapaz, que atende pelo nome de Xavier Dolan, nasceu em 1989. Ou seja, ele tinha acabado de completar 19 anos quando deu por encerrada a montagem. O roteiro foi escrito aos 16.

Conheço uma boa meia-dúzia de jovens atores-roteiristas-cineastas, pequenos gênios todos eles e bastante competentes. Mas esse tal Dolan, pode anotar, tem tudo para ser um dos grandes de sua geração. Sem contar a atuação – algumas cenas são antológicas, mas afinal o rapaz foi ator mirim –; são dois os fatores que me levam a essa afirmação. Primeiro, a maturidade de um roteiro que expõe a aporia da vida familiar, que, após os 68 da vida, não dispõe mais de manuais e guias determinados. Depois, o diretor estreante revela uma compreensão rara do poder de uma câmera, da criação de significados através da imagem, da exploração expressiva do corpo humano: mãos, rosto, olhos, lábios.

Começo pelo enredo. O próprio Dolan admitiu que a história é profundamente autobiográfica, o que poderia facilmente ter resultado num filme tolo e unívoco. Não é o que acontece, embora a virulência de algumas discussões pareça exagerada debaixo de camadas e camadas de humor e nonsense. É notável a lucidez com que o menino transpõe para a tela o conflito de gerações tal como ele se manifesta neste início de século, despido de toda a dimensão política e moral das décadas anteriores. Nem a mãe que o protagonista (Hubert) odeia é uma mãe de antigamente, quando os pais eram fonte e garantia do comportamento de seus filhos, nem o adolescente é um contestador, um revolucionário, um alternativo. Com isso, ambos estão certos e errados em suas posições, porque não se pode mais exigir a solidez de uma mãe, nem a obediência de um filho, quanto mais adolescente. Esse impasse faz a graça da fita e, sem levá-lo em conta, é impossível apreciar o desenrolar do enredo. Ele acaba parecendo uma sucessão nervosinha de brigas tolas.

Na verdade, ele a odeia, ou pensa que odeia, porque a considera cafona, pouco inteligente e incompetente como mãe. E tem razão: ela se veste mal, gosta de programas questionáveis na televisão e tenta controlar o filho por meio de uma chantagem emocional ineficaz e ridícula. Mas a mediocridade de um indivíduo não lhe tira o direito a ser pai ou mãe e, no fundo, o adolescente sabe disso. Como conseqüência, ele é empurrado a explosões de raiva anódinas, das quais se arrepende mais tarde. Grande parte da graça do filme – é uma comédia, não sei se cheguei a mencionar – está nas idas e vindas tanto do filho quanto da mãe, perdidos na aporia de uma família que não funciona mais segundo regras milenares e rigorosas. O mistério é: como alguém de 19 anos consegue ler com tanta clareza as contradições de seu tempo e, em seguida, transcrevê-las com humor?

Agora, ao cinema propriamente dito: como é esse menino Dolan atrás da câmera? A resposta é que ele tem plena noção do que está fazendo com cada um de seus planos. Às vezes, a ideia é só fazer a história avançar; às vezes, é retratar o inconsciente de uma personagem; às vezes, apresentar o universo de seus sonhos. A cada um desses papéis, o diretor ajusta sua linguagem com o controle de um veterano. O resultado é um filme de ritmo agradável, sobretudo porque pontuado – leia-se quebrado – por seqüências com outro tempo, outro interesse, outra lógica. O diretor se declara influenciado por Godard, Gus Van Sant e Cocteau (este último, mais pela literatura). Deve vir de Godard a consciência, ou seria coragem?, de escapar à obrigação de ser “rápido e ágil” o tempo inteiro.

Mas o que Dolan exibe de mais capaz em seu domínio da linguagem cinematográfica é a compreensão da plasticidade da imagem. Nem tudo está nas palavras, nem tudo está nos rostos, e neste filme o diretor expressa a personalidade e a confusão interior dos personagens através de seus tiques e gestos involuntários: um alçar de ombro, um close na garganta que engole em seco. É a exploração do cinema como arte imagética, um aspecto central que os cineastas deixaram um pouco abandonado… ou esquecido. Para coroar o êxito, as tomadas em plano próximo que revelam esses detalhes parecem, a princípio, isoladas do enredo, mas a narrativa os recupera e amarra no interior de seu sentido.

Dolan prepara seu próximo filme; sabe-se lá quando vai ficar pronto, neste tempo em que é tão fácil um especulador enriquecer quebrando sua empresa, mas é tão difícil um artista praticar sua arte. Quantas promessas aparecem que não se concretizam! Por prudência – e não sei mais se essa é uma de minhas qualidades ou se é defeito –, evito fazer apostas. Mas esse Xavier parece ser mais do que uma promessa. Tem jeito de saber bem o que está fazendo. O nome está anotado.

* Leia o que escreveu sobre J’ai tué ma mère o Bruno Carmelo, cineasta e crítico.

PS: O melhor de ver um filme canadense na França é escutar a platéia rindo do sotaque…

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Os olhos são sempre irresistíveis

As armas da tirania também podem ser as armas da arte, é o que diz. Em sua guerra, ele nunca mostra o rosto e assina com iniciais: JR. Esconde os olhos debaixo do capuz, porque sua visão foi trocada por uma lente de 28 milímetros, projetada a partir da câmera que ele empunha como um fuzil. Como uma sentinela de fronteira, o fotógrafo aponta seu aparelho para o rosto da vítima, à queima-roupa. Mas, em vez de lhe estilhaçar o crânio, ele registra sua vida. E, por que não uma licença poética, duplica sua alma.

O princípio é muito simples. Não há forma tão magnética para os olhos humanos quanto outro par de olhos humanos. Corresponder a um olhar é um gesto reflexo, o mais forte de todos. O consciente pode obrigar a mão a não escapar de uma fogueira, mas é impotente contra o empuxo das pupilas atentas. Os artistas sabem disso. Já o sabia muito bem o primeiro que aprendeu a desenhar um rosto humano. Hoje, na infinita cobiça pelas almas e bolsos, os publicitários abusam do efeito arrasador do contato visual. Em seu tempo, os deuses é que foram representados com olhos imensos. O próprio sol era entendido como olho faiscante e implacável, divindade flamejante. Já a lua se lia como um olho de mãe, aquele que apascenta, tão tranqüilo que leva um mês em piscar e reabrir.

Quando dois rostos se fitam, abre-se um canal definitivo que qualquer mensagem pode atravessar. Os sinceros, os sedutores, os carismáticos, são seres que dominam a potência do próprio olhar. Os tíbios, ao contrário, só têm pupilas a oferecer. Naturalmente, a política e a propaganda compreenderam logo o canhão semiótico que tinham entre os dedos. Com as técnicas de impressão do último século, não foi difícil levar ao paroxismo o mais insidioso estratagema de comunicação. Nas ditaduras, nas democracias, nos cartazes publicitários, grandes efígies fotográficas impuseram pensamentos e concepções de mundo, sugeriram atitudes e escolhas, exigiram sacrifícios e gastos. Diante do busto gigantesco do líder e da estrela, até o espírito mais indócil baixa os olhos e se curva em assentimento. Ao risco de asfixiar a civilização.

Por outro lado, quando há cegueira, quando as palavras são incapazes de provar sua verdade e as mãos que poderiam construir só se empregam em estraçalhar, algum caminho para a trégua deve ser escavado. A qualquer custo, a visão precisa ser restabelecida, a lógica tem de assumir seu trono, os dedos devem aprender a suturar e dar consolo. Felizmente, a humanidade é a prova maior de que para cada força há uma outra, proporcional e inversa, como aprendemos com Isaac Newton. E a força mais poderosa que temos, creia-me, é a arte.

Eis a missão que JR estipulou para si próprio, com seu fuzil fotográfico. Restabelecer a lucidez no mundo: o rapaz é ambicioso. Começou como todo artista engajado, retratava a juventude da periferia de Paris, as cités habitadas por franceses negros, morenos, asiáticos, muçulmanos, filhos de brava gente que veio para ceder sua força à economia da metrópole. E vieram de longe, em geral países que já passaram pela humilhação de ser colônias. Os retratados são uma geração que muda a cara e a tez do país.

E nada aconteceu. Que resposta ele poderia esperar? O centro conhece bem as figuras de suas periferias. Vigia-os, contrata-os, gosta até de ouvir e dançar à sua música com temas de revolta, gravadas em estúdios de última geração à beira do Sena. Fotografias de jovens suburbanos são muito valorizadas nas galerias da Rive Gauche, a cujos vernissages comparecem madames e mademoiselles encantadas pelas feições hostis, calças largas e bonés de basquete. Excelente forma de se ver reconhecido pelo circuito, mas não é provável que mude o mundo.

Até que ele entendeu o princípio. O magnetismo do olhar, a empatia do rosto, a reprodução quase infinita de imagens digitais. E, principalmente, o poder de imprimir cópias enormes, gigantescas, que interditem ao espectador a hipótese de evitar o contato. Seu museu, ou antes sua galeria, seria a rua, que ele mesmo define como “a maior do mundo”. Esse foi o estilo que o artista escolheu para trabalhar e lutar.

As primeiras ofensivas de sua objetiva de 28 milímetros tiveram lugar aqui mesmo em Paris. Os mesmos jovens já fotografados nas poses tradicionais apareceram em esgares e grimaças, registradas de uma distância que não chegava a meio palmo. Ampliadas, as imagens foram afixadas em muros, lixeiras, paredes, calçadas. A reação do público foi imediata. Casais e executivos interrompiam suas marchas diante dos olhos enormes, escancarados em preto-e-branco, em posições em geral engraçadas, muitas vezes ridículas. Olhos que não expressavam ódio, nem humilhação. Expressavam quotidiano, algo em princípio idêntico ao que todas aquelas pessoas viviam naquele mesmo instante, mas tornado diferente por alguma causa que, de repente, perdeu o sentido.

O mais curioso, e que poderia levantar um debate interminável, mas ainda assim interessante, foi a intervenção da polícia. Os zelosos protetores da ordem, fiéis a seu dever, fizeram cumprir uma lei de 1888 que proíbe qualquer fixação de cartazes nas vias públicas. Foi uma medida para evitar os manifestos políticos que se multiplicavam à época. Em qualquer parede mais propícia, lê-se o aviso de proibição, com a data e tudo. O artista, bem se vê, infringiu a lei. O que, aliás, explica o pseudônimo. Assim, em poucas horas os serviços de limpeza pública haviam esfregado dali os faces distorcidas dos adolescentes vizinhos.

Não faz mal, o recado foi ouvido. O passo seguinte foi o maior investimento do artista até então. Na companhia de um outro fotógrafo, de nome “Marco”, JR decidiu que deveria se dedicar a nada menos do que a paz entre palestinos e israelenses. Descambaram-se os dois para a Faixa de Gaza, conversaram com gente de ambos os lados, de várias profissões, todas as idades. Convenceram-nos a se deixar fotografar. De ambos os lados do muro vergonhoso que divide os povos que, no sangue, praticamente são o mesmo, fizeram colar centenas de reproduções, algumas com alguns metros de altura.

A idéia era obrigar os dois campos a encarar um ao outro. Promover a descoberta do dia-a-dia, abaixo dos helicópteros e acima dos fuzis, composto de cabeleireiros, taxistas e garis, em cada lado da parede de concreto. Revelou-se, nesse segundo laboratório, a verdade perturbadora de que é ali, nesses endereços quase idênticos, e não nos palácios, casernas e quartéis-generais, que reinam o medo, a miséria, as mortes, as famílias destruídas. Uma intenção nobre, sem dúvida, mesmo se é expressa no vídeo no mais peculiar discurso vazio francês.

Vídeo do projeto Face2Face, de JR e Marco

O êxito foi ainda maior do que a iniciativa parisiense. Não derrubou, ainda pelo menos, o muro em que os cartazes foram colados, mas atravessou fronteiras mesmo assim. Outro dia, topei com um gigantesco rabino rechonchudo e estrábico em Genebra, recostado na parede lateral de uma casa de ópera. Também sei de cartazes que foram transplantados para cidades americanas e asiáticas. Seja como for, o fotógrafo foi incentivado a prosseguir, e prosseguiu. Foi como se tivesse aberto um mapa-múndi e espetado alfinetes nos recantos da pobreza e do conflito. Não deve ser surpresa para ninguém que um dos primeiros lugares escolhidos foi o Brasil.

O artista esteve nas duas maiores cidades do país. Em São Paulo, não sei por que razão, realizou imagens bastante convencionais, embora boas, nas bocadas do centro, no alto dos arranha-céus e nas comunidades do Capão Redondo. No Rio, em compensação, ele compôs também uma obra de arte descomunal, que já figura entre as que mais me causaram impacto.

Um parêntese: tento ao máximo ler os jornais brasileiros, isto é, suas versões em linha. Tanto os do Rio quanto os de São Paulo, sendo que o JB, esse que há tempos deixou de ser ele mesmo, é o único que publica gratuitamente os fac-símiles de suas páginas do papel. São páginas, aliás, muito mal redigidas, coalhadas de erros de informação e de português, mas vou fazer o quê, é minha única maneira de ter a perspectiva de uma folha diagramada. Em resumo, posso ter passado por cima de alguma nota sobre a instalação, mas é improvável. Triste foi ter de ler sobre o assunto no blog de um filósofo americano.

As imagens dispensam comentários. Grandes pares de olhos que recobrem fachadas inteiras do morro da Providência. Figuras em preto-e-branco que espiam as centenas de milhares de pessoas a circular pela presidente Vargas, pela Central, pela Gamboa, numa poesia agressiva do contato involuntário. A uma distância que vai da avenida ao cume, aparecem as rugas, as expressões, os vincos de cansaço e dor de indivíduos anônimos e até então invisíveis. Nos poucos retratos de rostos inteiros, é fácil notar a tensão dos músculos que não sabem se podem abrir um sorriso ou se deveriam manter o siso. Centenas de moradores da Providência cederam suas casas para o fotógrafo. Dezenas cederam suas faces. Na maioria, mulheres que perderam parentes nas disputas do tráfico.

Como são belas as reproduções da paisagem, o morro tomado por barracos antigos, em geral tão opacos, cinzentos e tristes, agora salpicado de rostos humanos, olhos abertos, lábios, dentes, mãos. Uma prova intuitiva de que tudo poderia ser diferente, a cidade poderia ser uma, não existe razão para que uma metade seja invisível e a outra tente tornar-se invisível, escondida atrás das proteções estéreis. Os rancores, bem se vê, são uma tolice nossa, herdada de outros tempos. Não cabem mais numa sociedade que pretende enriquecer por inteiro e ter uma posição significativa no mundo. Há que superá-los.

Mas algo assim exigiria sacrifícios que talvez não estejamos dispostos a fazer. O trabalho de JR foi realizado no início deste mês, é provável que ainda esteja exposto, mas as poucas matérias que encontrei sobre o assunto nos jornais são retrancas secundárias das reportagens sobre o caso “Cimento Social” e a confusão que envolve Marcelo Crivella, exército e os traficantes de sempre. Posso estar enganado, mas não tenho forças para chegar a outra conclusão: mais vale comentar o mesmo de sempre; por que não fazer o mesmo de sempre!; vamos então manter o mesmo de sempre.

Enquanto isso, o anônimo e encapuzado JR segue com seu trabalho ao redor do mundo. No projeto “Mulheres são heroínas”, já passou por Serra Leoa, África do Sul (Soweto, em Johannesburg), Libéria, Sudão, Quênia. Sempre com a câmera à queima-roupa, fuzilando a sensibilidade dos passantes com a arte. E sempre, claro, rebentando a timidez no contato dos olhos humanos.

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Nos jardins, as cerejeiras

Três cerejeiras
Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora…

Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.

Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.

Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.

Se me fosse dado mudar algo no texto de “O Cerejal”, de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.

Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: “Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!” Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.

Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.

Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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Um repórter, finalmente!

%C3%A1rvores+no+inverno

Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.

Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

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