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Aí está o século que previmos

Ao que parece, o século XXI começa agora. É o que leva a crer a leitura de tantas análises desta pandemia e tantas reflexões sobre suas consequências sociais e econômicas. E isto, venham de onde vierem: epidemiologistas, estatísticos, antropólogos, filósofos, historiadores, até mesmo economistas. Ou seja, o mundo não será o mesmo depois de meses com populações trancadas em casa, empresas e autônomos indo à falência, cadeias de valor rompidas, pacotes de estímulo governamentais, vigilância total (fundindo a tradicional vigilância sanitária com formas menos bem-intencionadas).

Talvez seja cedo para decretar algo tão drástico como a inauguração de uma era. A rigor, nada impede que o trauma acabe sendo curto, ao menos no campo da saúde (no econômico é um pouco mais difícil), e continuemos a operar como nas últimas, digamos, duas décadas. Mas isto seria só um outro adiamento: mais cedo ou mais tarde, o século XXI vai começar. Mesmo que – vamos supor – do dia para a noite as infecções e mortes mundo afora começassem a diminuir e desaparecessem, como parece ter sido o caso com outros vírus do passado. Então vale a pena simplesmente postular que esta pandemia é o marco inicial do século e explorar o que isto quer dizer.

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HxB: 110.9 x 156.4 cm; Öl auf Leinwand; Inv. 1055

Mas que século XXI? Esta é mesmo a primeira pergunta: o que quer dizer uma passagem histórica, o início de um século, como tantos estão – estamos – prevendo? O que quer dizer isto que coloquei acima: “o mundo não será o mesmo”? E talvez ainda possamos ampliar a pergunta, deixá-la mais interessante e difícil de explorar: é mesmo o século XXI que está começando, por oposição a “século XX” ou “século XIX”, ou é algum outro tipo de período, talvez mais extenso, talvez mais restrito?

Temos o hábito de tratar 1914 como o início do século XX, porque foi quando Gavrilo Princip matou o arquiduque austríaco em Sarajevo e, na reação em cadeia, a ordem mundial pós-napoleônica, eurocêntrica e imperialista foi a pique. Essa é a cronologia famosa de Hobsbawm e ajuda muito a pensar em termos de transições súbitas e traumáticas. Mas é importante frisar que não foi só uma transição geopolítica. O Século XX começa com a Primeira Guerra Mundial também por ser o gesto inaugural dos fenômenos de massa – uma matança em massa! –, que se rebate nas funções e tipologias das técnicas e das instituições características do tempo que começava.

É claro que não dá para comparar uma doença que se espalha pelo planeta durante alguns meses, como tantas outras já fizeram, a uma guerra de mais de quatro anos que mata milhões, derruba impérios e força uma transformação profunda nas mentalidades. Mas essa é exatamente a comparação que estamos sendo forçados a fazer, então nada nos resta senão explorá-la. Que tipo de fenomenologia, que tipo de tecnologia, que geopolítica etc., estão em jogo se admitimos que o século XXI começa agora?

O cerne do problema está no seguinte ponto: o que se espera para o século XXI? E aqui é que chegamos ao que há de realmente desconfortável, aquilo que explica por que estamos entrando num mundo novo e incerto. E talvez explique também por que estamos tão impacientes para declará-lo inaugurado. Agora é a hora de encarar a evidência de que as perspectivas para as próximas décadas, na boca de quase todo mundo, por todo lado, são bastante sombrias. É assim no campo do clima, da agricultura, da economia, da política e também da saúde.

Seja qual for a atitude que temos no dia-a-dia em relação a todos esses campos, sugiro tomarmos como ponto de partida uma postura otimista. Por motivos puramente metodológicos: mesmo que você seja catastrofista e acredite que a humanidade (como espécie) ou a civilização (como forma de organização) não vão chegar até 2100, peço que deixe de lado por um momento essa filosofia e considere que, sim, vamos desenvolver tecnologias, sabedorias e práticas que nos ajudarão a contornar desafios como a mudança climática (e, se quiser, os exércitos de robôs superinteligentes e psicopatas), chegando saudáveis e prósperos ao próximo século.

Pois bem. Mesmo adotando essa perspectiva, o que se espera para o século XXI é que seja um período duro, eivado de catástrofes – ondas de calor, quebras de safra, pandemias, cidades inundadas, territórios ressecados, migrações forçadas, pragas, guerras por água e terra arável. Por um lado, sabemos que a lógica que orientou o grosso da atividade humana nos últimos séculos é incompatível com os sistemas naturais dos quais essa mesma lógica depende. Por outro, não temos ideia de como transitar para uma lógica compatível, embora alguns grupos tenham muitas, muitíssimas ideias para modos de vida diferentes. Acontece que a viabilidade da transição segue mais do que incerta.

Antes de avançar, podemos chegar a uma primeira resposta. Dizer que o século XXI começa com a pandemia do Sars-CoV-2, com uma doença de nome tão pouco impactante (Covid-19, uma porcaria duma sigla!), é dizer que estamos pela primeira vez encarando uma situação que, já esperávamos, será típica do nosso século. Estamos vendo, concretamente, nas nossas cidades, nos nossos bolsos e, para alguns, na própria carne, o que significa um mundo de desastres amplificados, multidimensionais, rapidamente disseminados em escala global, que inviabilizam a vida normal por períodos indeterminados.

Discutimos sobre estratégias de mitigação com um horizonte de possibilidades cada vez mais exíguo; preparamos formas de adaptação cada vez mais drásticas. Mas dificilmente conseguimos incluir no cômputo dessas atitudes todo o escopo das transformações necessárias, porque, no fim das contas, os piores cenários são praticamente inconcebíveis para nós. Pelo menos, porém, enquanto tentamos enfiar na cabeça a seriedade do que será o século XXI, podemos nos dedicar a alguns exercícios de pensamento.

I – A moldura moribunda

A primeira consequência de reconhecer a próxima etapa histórica como uma etapa de adaptação – conflituosa ou harmoniosa, tanto faz – a condições duras, já podemos ver, é que está ficando claro como as instituições montadas no século XX, ou mesmo nestas duas primeiras décadas de século XXI (no sentido cronológico estrito) são insuficientes para dar conta dos problemas que temos adiante. Mas me parece que o problema vai além do institucional. Estamos atados a um campo conceitual e mesmo categorial que não dá mais conta de recobrir nosso mundo com sentido.

Provavelmente nossa maior falha, como geração, tenha sido o parco aprendizado que tiramos de episódios como a crise financeira de 2008, as secas, inundações, queimadas e pragas, as milhares de mortes de refugiados no Mediterrâneo etc. No mínimo, o que essas catástrofes expõem é uma certa tendência inata nossa de fazer todo o possível para manter intactos os arranjos institucionais, modos de existir, formas de organização da vida em comum (chame como quiser) com que estamos acostumados. Mesmo quando já é patente que se tornaram obsoletos, inviáveis, até mesmo suicidas. Talvez isso aconteça porque o discurso e o próprio pensamento fluem e aportam em categorias moribundas.

Algumas pistas dessa morte anunciada: a chamada “ascensão do populismo” encarnada em Trump, Orbán e outros (que nem merecem menção) é muito mais a conclusão lógica desse esforço de manter os arranjos (ou as aparências) do que uma ruptura, como gostamos de pensar – ou mesmo um sintoma, já que ela não sinaliza o problema, ela dá sequência ao problema. Pensar que se trata de uma ruptura, isso sim é um sintoma: revela a crença voluntariamente ingênua de que “isto vai passar”, ou seja: de que vamos voltar aos arranjos civilizacionais em seu estado, por assim dizer, puro.

“Ascensão do populismo”, “volta do nacionalismo”, tudo isso são expressões anêmicas, eufemismos neuróticos, para a recusa em reconhecer as máquinas de guerra que estão se montando nas esferas de poder. Essas figuras todas professam um discurso negacionista do clima, mas na prática são menos negacionistas do que quem pensa que tem volta, que o mundo dos anos 2020 será um mundo de Clintons, Blairs, Merkels, Fernandos Henriques. Os poderes que orbitam em torno dos “líderes populistas” estão se preparando e armando para manter o acesso a recursos que, já está previsto, se tornarão cada vez mais escassos, enquanto o resto do mundo cai em pedaços. Exatamente como os “survivalists” ou “preppers” americanos que constróem bunkers, os enchem de enlatados e os cercam de metralhadoras. (Não por acaso, essas pessoas, em geral, dão apoio a esses líderes…)

Mas é isso que conduz ao seguinte problema: se 2020 inaugura o século XXI como um período de pessimismo e catástrofes em série, então o que se encerra com o século XX, ou esse intervalo que foram as últimas décadas (talvez desde a queda da União Soviética, se formos continuar seguindo a cronologia de Hobsbawm), é um período de grande otimismo. Se for assim, então a página a ser virada não é a de um século, mas de algo muito mais extenso, correspondente a toda a era de espírito expansivo, de crença na prosperidade e no progresso contínuos, material e espiritualmente. É um período que remete, pelo menos, ao século XVIII, era do Iluminismo, da industrialização, das revoluções na França, no Haiti e nas 13 colônias americanas.

É dessa era que herdamos o principal das nossas categorias de pensamento e parâmetros de ação; e, consequentemente, nossos arranjos institucionais na política, na economia e em tantos outros campos. Quase tudo que se disse, fez e pensou nesse período considerava que, dali por diante, as condições de vida só melhorariam – para os humanos, claro –, e com elas a humanidade como um todo, espiritualmente – ou melhor, a humanidade que subscrevesse às categorias de vida e pensamento disseminadas a partir da Europa. Estávamos “aprendendo a caminhar com as próprias pernas”, sem a tutela de autoridades espirituais ou seculares, pensava Kant. O saber se tornaria enciclopédico e acessível a todos, pensava Voltaire. A miséria seria eliminada, a democracia se tornaria dominante, a tecnologia avançaria tanto que a subsistência estaria garantida com 15 horas de trabalho por semana, chegou a pensar Keynes. Na década de 1990, além da ideia de “fim da história” que ficou marcada na testa de Francis Fukuyama para sempre, os economistas acreditaram, com um espírito que faz pensar nos delírios dos alquimistas, ter desenvolvido a fórmula da “grande moderação” – e, portanto, as recessões estavam superadas para sempre.

Vale dizer que o subtexto dos movimentos revolucionários de todo esse período, pelo menos a grande maioria deles, também era o da plena realização dos potenciais criativos da humanidade. A tomada dos meios de produção pelos trabalhadores não chegou a ser, na prática, uma ruptura com o passo faustiano da modernização. Ao contrário, desde Fourrier, Owen e Saint-Simon, sempre se colocou como decorrência dessa mesma modernização, necessária e conceitualmente demonstrada, para Marx (embora ele tivesse, assim como Engels, uma visão mais elaborada do que viria a ser a questão ecológica). Não é outro o espírito de Lênin quando fala do socialismo como “eletricidade e sovietes”, para dar um exemplo sonoro.

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Evoquei todos esses nomes para dar estofo a um único argumento: estamos nos iludindo, um pouco como já nos iludimos depois de 2008, ao acreditar que a crise do coronavírus é um ponto de partida para a volta de políticas sociais, seguridade pública, uma nova era do Estado de Bem-Estar, uma espécie de keynesianismo-fordismo sem as amarras da produção fordista, ou seja, só com a conciliação de classes de inspiração keynesiana. Dizer que “o neoliberalismo morreu” porque os Estados Unidos, a Europa e vários países asiáticos estão dispostos a despejar trilhões de dólares no mercado, não apenas com afrouxamento monetário, mas com políticas fiscais e transferências diretas a trabalhadores e pequenos empresários, é um enorme exagero. Quem talvez vá parar na UTI é a globalização, ainda mais depois que os americanos saltaram para absorver toda a oferta de material hospitalar, numa demonstração de ausência de cooperação entre nações. Mas essa seria só uma decorrência pontual.

Podemos até esperar que alguns mecanismos emergenciais sejam perenizados, para fazer frente a outras situações de crise súbita, mas dificilmente passará disso. A resistência dos poderosos a responder à epidemia, seja com o isolamento social, seja com os pacotes de estímulo, é mais instrutiva do que o açodamento com que depois tiveram de correr atrás do prejuízo. As máquinas de mentiras que sustentaram medidas suicidas em várias partes, mas sobretudo nos Estados Unidos e ainda mais no Brasil, são instrumentos característicos de nosso tempo e isso não vai mudar tão facilmente.

Por sinal, as medidas de vigilância, para não dizer espionagem, usadas na Coreia do Sul e, em seguida, Israel, com a finalidade momentânea de traçar as linhas de transmissão do vírus, estarão disponíveis na condição de laboratório em tempo real, assim que o momento mais agudo da crise passar, para aperfeiçoamento e generalização por esses mesmos governos, e outros. A propósito, vale dizer que, no caso de Israel, o laboratório em tempo real já estava funcionando antes, ele foi apenas expandido para ficar de olho também na população israelense. Este é um ponto sensível, porque sabemos que todos os esforços da última década para denunciar os gigantescos esquemas de vigilância digital, envolvendo multinacionais e governos, foram fragorosamente derrotados: os “whistleblowers” da última década ou bem estão presos, como Julian Assange e Chelsea Manning, ou exilados, como Edward Snowden, ou mortos, como Aaron Swartz.

É tão absurdo imaginar que, depois da pandemia, vamos recuperar o papel socioeconômico dos governos ou a solidariedade entre cidadãos quanto crer, como coloquei acima, que a onda dos políticos xenófobos e estúpidos vai passar para dar lugar a novos anos 90. Trata-se de uma ingenuidade escolhida, porque a alternativa, pelo menos no curto prazo, é terrível. Pode-se analisar o fracasso de Corbyn e mesmo a perda de impulso de Sanders a partir dos erros que cometeram ou das conjunturas eleitorais de seus países, mas o fato é que seu papel histórico parece ser o de anteparos a forças terríveis, e os anteparos, por natureza, não vão muito longe.

Infelizmente, há um descompasso muito grande entre os incentivos para mudar a lógica da atividade humana – nem sequer se sabe ainda, ao certo, de que maneira – e os incentivos para recrudescer os esforços para encastelar-se (aqueles que podem) nos restos possíveis do século XX, adiando, contornando e terceirizando os grandes riscos e as grandes crises, reprimindo e, quando necessário, exterminando os focos de revolta e perturbação – o que inclui os migrantes. Por enquanto, ainda é muito fácil identificar perturbações e aniquilá-las (o termo da moda é “neutralizar”) antes que causem maiores danos, ou então lançá-las às costas de países e populações com menos capacidade de se defender. Por sinal, Saskia Sassen se refere a esse procedimento como “expulsões”, em livro de título homônimo.

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FRIEDRICH, Caspar David_Barco de pesca entre dos rocas en una playa del Mar Báltico, c. 1830-1835_(CTB.1994.15)

Em geral, os analistas da geopolítica têm apostado que um resultado de toda essa crise será o recrudescimento do nacionalismo, do controle sobre as populações e das mensagens ditas “populistas”, contra a aparente volta da confiança na ciência, da solidariedade e das redes de proteção social. Ou seja, quem vai dar a letra são os Orban, Netanyahu e quejandos deste mundo. E nesse sentido, a recusa dos europeus em criar os tais “coronabonds” é péssimo sinal.

Nada de luz no fim do túnel, portanto? Acho que não é bem assim. O subtexto desse pessimismo é que a humanidade vai entrar no século XXI trabalhando com as mesmas categorias de interpretação de seu mundo e de orientação de sua ação com que atravessou os períodos anteriores, mas numa era em que as condições concretas do planeta são amplamente desfavoráveis a esses modos de proceder.

No curto prazo, essas análises parecem ter razão, já que a intenção de desenvolver novas categorias e formas de vida parece quase nula, restrita a nichos com pouquíssima reverberação. Mas é claro que estamos falando apenas do começo do século, ou do começo de uma época, podemos dizer; nada está escrito na pedra e a dissonância entre a estratégia de poder que passou do tempo e as pressões da realidade pode acabar se mostrando excessiva. Resta ver quanto tempo isso vai levar.

Ainda por cima, as projeções de uma perda maior de liberdade e de influência da sociedade civil ressoam com preocupações que já se ouviam, não só em relação às ações dos líderes mais retrógrados, tentando forçar a barra para manter ao máximo o equilíbrio de poder parecido com o anterior, mas também ao que poderiam fazer governos mais alinhados com os desafios do século. É o que leva André Gorz, por exemplo, a falar em “ecofascismo”, temendo que as restrições impostas por esses governos, num mundo que deixa de se expandir, exigissem chegar ao ponto do uso reiterado da força, em suma, ao autoritarismo, para pôr em prática as medidas necessárias de adaptação.

Em todo caso, todas essas previsões trabalham com a perspectiva de que as categorias tradicionais da economia, da política e da diplomacia se manterão intactas. Todo o problema reside aí. Também reside aí o alcance daquele exercício que sugeri no início: para poder ser otimista quanto ao estado em que estaremos no fim do século, vai ser preciso um trabalho cuidadoso sobre essas categorias, em todas as áreas da vida.

2 – O óbvio e o absurdo

Não faltarão referências para dizer que, apesar de algumas indicações pontuais em sentido contrário, a humanidade nunca viveu período melhor. É o que lemos, por exemplo, no livro de divulgação do badalado economista Angus Deaton, que faz uma ode da modernidade industrial e capitalista por meio da comparação com o mundo que veio antes, pré-industrial e pré-capitalista.

Sempre me pareceram estranhas essas defesas do capitalismo – que se apresentam, de fato, como defesas contra seus detratores – que o contrapõem à vida como era até o século XVIII. A estranheza vem do fato de que muito pouca gente estaria disposta a assumir uma postura de defesa da vida material tal como era, digamos, entre os séculos XV e XVIII, o que faz a apologia da modernidade soar como se ecoasse no vácuo. Além disso, não estamos na era clássica ou pré-moderna, de modo que nossos problemas e nossas escolhas nada têm a ver com o que foram naquele momento. Pouco importa o que a humanidade conseguiu fazer no tempo da máquina a vapor. Temos que enfrentar o que nos aflige hoje. Agora.

Deaton, em particular, faz a curiosa escolha de comparar o desenvolvimento econômico ao filme “The Great Escape” (Fugindo do Inferno), que narra a tentativa de fuga de prisioneiros de guerra americanos de um campo nazista. Escolha curiosa, mas ilustrativa: para o economista, ao inventar a produção industrial, as finanças modernas e tudo que vem junto, a humanidade teria escapado das amarras de uma natureza hostil. Posso até entender que se queira comparar o mundo sujeito aos rigores da natureza a uma prisão (nazista?!), mas se escapamos… escapamos para onde? Estaríamos então num mundo de puro espírito, descolado de qualquer determinante material? Ou será que simplesmente assumimos, nós mesmos, o papel de natureza hostil, encarnada numa monstruosidade que acreditou estar liberta da própria carne (e foi assim que se tornou monstruosa)? Sempre me surpreende que pessoas tão qualificadas possam repetir tanto uma argumentação tão pueril.

Mas não é preciso adotar esse simplismo apologético para reconhecer que a modernidade, naquilo que ela se propôs a fazer (sem querer antropomorfizá-la), foi muito bem-sucedida. Basta entrar nos indicadores da Agenda 2030, da ONU, para ver que a proporção de indivíduos passando fome no mundo nunca foi tão baixa, centenas de milhões de pessoas foram alçadas para fora das condições de miséria, doenças transmissíveis matam muito menos do que há um século, o analfabetismo está em baixa no mundo e assim por diante. Deixando de lado a constatação de que esses mesmos indicadores apontam um ligeiro retrocesso a partir de 2015, pode-se perfeitamente aceitar como verdadeira a avaliação otimista e, mesmo assim, manter-se pessimista quanto ao futuro. O primeiro motivo é evidente: todos esses indicadores falam sobre o passado e só dão sustentação ao espírito esperançoso da modernidade pós-Iluminismo. O segundo motivo é que justamente esses dados tão encorajadores podem estar na raiz de muitos dos problemas que esperamos enfrentar em breve – ou melhor, já estamos enfrentando, ainda que sem perceber. (E se a pandemia tivesse coincidido com a seca de 2014-2015?)

É neste segundo motivo que temos que nos concentrar. Assim como não é o caso de louvar os ganhos técnicos, econômicos, sociais e mesmo políticos dos últimos séculos, como se ainda estivéssemos enredados nos mesmos problemas, tampouco é o caso de deplorar as escolhas do passado, como se quem as fez estivesse mergulhado nos nossos problemas atuais. É importante não distorcer o passado, isto é, o caminho que nos trouxe até aqui, que é o que aconteceria se fôssemos julgá-lo com um olhar contaminado por tudo que estamos vivendo agora – ou, se preferir, por tudo que sabemos agora. Os excessos, as falhas, as crises daquilo que se encerra com esta eclosão do século XXI são precisamente aquilo que nos revela os desafios vindouros, porque as mudanças pelas quais nós passamos, e conosco nosso mundo, são as próprias fontes dos problemas que mudam e, com eles, as questões e, por fim, os conhecimentos.

Cabe ainda acrescentar uma outra pequena pergunta: não seriam os próprios indicadores dependentes de categorias cujos prazos de validade já começam a expirar? São, afinal, recortes do mundo que surgiram e se desenvolveram na era da modernidade otimista, ou seja, pertencem a ela. Neste caso, o problema estaria na insistência em tentar entender os desafios à frente com a lógica adequada a problemas e condições que ficaram para trás.

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O que quer dizer, então, uma mudança de categorias? Pensemos nas palavras que mais usamos para entender ou avaliar o mundo em que vivemos; coisas como “eficiência”, “crescimento”, “desenvolvimento”, que associamos à economia; mas também palavras que usamos em outros contextos, como o par “democracia”/”ditadura”, “opinião pública”, “liberdade”, no ambiente político; e algumas noções mais híbridas, como “emprego”, “família”, “nação”; dá mesmo para entrar em mais detalhes, como “setor privado/público”, “exportação”, “aposentadoria”, “civilização”, “modernidade”, “produção”. E nem mencionei termos mais técnicos, como PIB, déficit público, inflação.

Sem usar palavras como essas, dificilmente conseguimos entender o que nos cerca, tomar decisões que afetam as nossas vidas e as dos outros, dialogar com quem quer que seja. É graças a essas noções que podemos diferenciar a mentalidade moderna como sendo “contratualista” e “individualista”, em vez de “comunitária” ou “hierárquica”. Isso mostra que não dá para separar o que entendemos por “nosso mundo” da linguagem que desenvolvemos para organizar nossa relação com ele – o que não quer dizer que a linguagem seja o ponto de partida do mundo ou sua fronteira, porque ela mesma vai tomando forma na medida dos problemas que aparecem na relação que constitui o mundo. A linguagem pode ser performativa, mas é ao mesmo tempo parte de individuações que a ultrapassam.

Daí a importância disso que estou chamando de “as categorias” – ou seja, ideias, ou melhor, conceitos – pelos quais é preciso passar para pensar de maneira estruturada nosso mundo e parametrar nossa ação nele. Elas são fundamentais e são razoavelmente rígidas, mas não totalmente. Basta ver como “democracia” deixou de ter o sentido de bagunça política (ainda empregado, por exemplo, pelos fundadores da democracia americana) e se tornou o nome de um sistema muito bem estruturado, termo carregado de valor altamente positivo, mesmo quando o exercício de um determinado regime com seu nome não lhe faça jus (i.e. sempre). A noção do “direito divino dos reis”, por exemplo, foi praticamente extinta, embora haja desvairados tentando ressuscitá-la, ou algo parecido com ela. A noção aristocrática de “honra” perdeu quase todo o peso que tinha no edifício das virtudes, enquanto as categorias econômicas de eficiência e produtividade se tornaram excelências, e por aí vai.

Agora, o que está sendo posto em questão são essas mesmas categorias que triunfaram sobre as mais ultrapassadas, como “honra”, “glória” e “direito divino dos reis”, mas também uma série de princípios feudais e eclesiásticos que hoje nem sequer fazem sentido para nós. Também vale lembrar que esses esquemas de pensamento suplantam outros, anteriores, mas às vezes recuperam ou retrabalham alguns de seus princípios. Quando a eficiência, o profissionalismo e outras noções semelhantes se tornam os alicerces da virtude, tomam o lugar de noções como justiça, temperança e bem-viver (eudaimonia, às vezes traduzida também simplesmente como “felicidade”), marcas de um mundo tão diferente que se tornou quase incompreensível.

Por que estou dizendo isso? Porque a força das categorias é parecerem óbvias, o que envolve tornar outros esquemas categoriais incompreensíveis e aparentemente absurdos. Pois bem, com o século XXI chega o momento de explorar alguns campos que nos soam absurdos, porque é o óbvio que está se tornando inconcebível.

Algo dessas mudanças já vem tomando corpo, sobretudo na maneira como o próprio conceito de civilização vem sendo posto em questão: em muitos meios, não carrega mais automaticamente um valor de incremento do espírito humano ou algo assim, passando a envolver boas doses de violência, um certo caráter ilusório, uma desmesura dos povos que subjugaram os demais e forçaram uma definição do curso adequado às vidas de todos. Cada vez mais, a noção de civilização carrega um subtexto de colonialismo, quando associada à história dos últimos quinhentos anos – e o próprio termo “colonialismo” passou a ter conotações negativas que, há um século, não tinha. Por sinal, ainda hoje é possível ouvir gente formada nas escolas de décadas atrás (muitas décadas) repetindo que as potências coloniais “levaram a civilização” a “povos atrasados”. São categorias que já se desvaneceram… e outras mais estão por fenecer.

3 – Mais do que uma economia

É sintomática, por exemplo, essa mórbida dicotomia entre “salvar a economia” e “salvar vidas”, que grassou por algumas semanas, na crítica às medidas de confinamento contra o avanço do vírus. Mas vamos deixar de lado a morbidade, por um momento, olhando só para o caráter sintomático. Pois é sintoma de quê, ao certo? De que colocamos a economia acima (ou à frente, se preferir) da vida? Ora, mas como isso foi possível, se é imediatamente evidente que só há qualquer tipo de economia se houver vida? Talvez seja mais, então, um sintoma de que perdemos a noção do que vem a ser uma economia.

Convenhamos que uma epidemia, manifestação escandalosa de uma doença, é algo inseparável da vida como um todo e, portanto, algo que precede e deve ser pressuposto por qualquer forma de organização da vida. Se uma pandemia é capaz de bloquear e comprometer o sistema dessa operação para além da duração de seus próprios surtos, então forçoso é constatar que há uma falha fundamental no mecanismo que sustenta nossas vidas em sua forma determinada corrente. Isto é evidente para além de qualquer comparação com épocas anteriores.

Falando em épocas anteriores, a experiência atual dá até vontade de voltar a pensar ao modo dos antigos fisiocratas (Turgot, Quesnay etc.), que consideravam o setor agrícola como sendo o único que gerava riqueza, de fato. Para eles, era assim porque só na agricultura se traduzia para o universo dos humanos algo do mundo natural que era a condição da vida. “Valor” designava a transferência do natural para o humano, a energia do sol e do solo concentrada no trigo e na cevada, por sua vez transubstanciados como alimento e como mercadoria. Os demais setores se limitavam a transformar esses elementos condicionantes da vida, fazendo-os circular, tornando-os mais complexos e diversos. No fundo, a tradicional teoria do valor-trabalho, sobrevivente hoje quase apenas entre marxistas, levava esse princípio adiante e o atualizava para a era industrial: valor nada mais é do que a transformação das energias do mundo, por meio dos corpos e das máquinas, em formas da vida social. Um metabolismo. Valor, no fim das contas, é uma noção poiética.

E no entanto chegamos ao ponto em que se tornou aceitável pensar que a economia é algo oposto à vida, ou pelo menos além da vida, mais ou menos como na imagem da “grande fuga” de gente como Deaton. Isto é que é enigmático. Uma adulteração lógica a examinar. Sem entrar em detalhes, parece ser o caso extremo da grande ilusão moderna apontada por Latour e Stengers, e mesmo antes, por Whitehead. Ela consiste em estabelecer uma cisão rígida (mas mediada) entre o mundo social dos humanos e o mundo natural, bruto; em termos científicos, consiste em isolar os fenômenos de toda valoração ou implicação que pudesse ser dita cósmica (nos termos de Bachelard, um obstáculo epistemológico), para revelar apenas suas relações diretas de causalidade.

Enquanto se trata apenas de método científico, vá lá; mas a atividade que dizemos econômica não é redutível à linearidade causal expressa no par produção/consumo, como quer a mentalidade moderna. Mesmo assim, ela não pensou duas vezes antes de aplicar a esse campo, equivocadamente, a mesma lógica que lhe serviu na epistemologia. Nesta última, de modo controlado, ou ao menos assim se acreditava. No mundo concreto, vivido, social, de modo brutal, cego, desmesurado.

E essa desmesura vai além, porque está na base de todo o maquinário de absorção, sujeição e aniquilamento que caracterizou a expansão colonial desde fins do século XV. Da expansão marítima ao fabuloso trabalho de engenheiros que cortavam ferrovias na selva e nas montanhas, marejando os olhos dos espíritos científicos ao mesmo tempo em que enchia os bolsos de quem financiou tamanhas aventuras, a experiência moderna sempre insistiu na cisão com o que lhe parecia ser meramente um mundo natural, para em seguida absorvê-lo como um buraco negro absorve a luz. E pensar que já Sófocles dizia não haver nada mais maravilhoso e temível quanto o ser humano…

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Sem dúvida, uma parcela da explicação para nossa incapacidade de entender o que é uma economia está na confusão entre a variedade e sofisticação do que pode ser apropriadamente chamado de econômico e o enorme dispositivo técnico que foi montado para mobilizá-lo. Trocando em miúdos, aquilo que constitui uma economia (a elaboração dos modos de vida) foi soterrado por algo que podemos chamar de um gigantesco sistema de pagamentos e compromissos/promessas de pagamento – não no sentido usual da expressão, mas como toda a arquitetura da moeda e dos instrumentos financeiros que a orbitam.

Podemos observar, por exemplo, que na atual crise está intacta toda a infraestrutura necessária para tocar as necessidades da vida, isto é, o sistema econômico, produção, circulação e consumo. O que não está inteiramente de pé é o uso dessa infraestrutura, o que já é suficiente para ameaçar uma ruptura do sistema econômico em níveis sem precedentes, ainda que possivelmente por um período relativamente curto. Materialmente, não há nada que impeça a retomada do sistema tão logo a população se sinta segura. Ou seja, o uso dessa infraestrutura permanece disponível, do ponto de vista material. E mesmo enquanto durar o período de contágio, não há nada, materialmente, que impeça toda a população de viver com um nível de segurança suficiente, até mesmo um certo conforto, contanto que haja coordenação suficiente para tal.

A produção de alimentos e de energia não foi interrompida, as cadeias de distribuição tampouco, a não ser como medida de precaução. Na prática, o único elemento do sistema econômico que congelou, ao ponto da ruptura, com consequências palpáveis para além do momento da epidemia, é o sistema de pagamentos (sem falar, é claro, nos sistemas de saúde, cuja saturação não é primariamente um assunto econômico, embora tenha causas e consequências econômicas).

A rigor, as medidas necessárias para manter uma estabilidade social bem acima do mínimo, aliás bem próxima do satisfatório, estão muito aquém do que países estão preparados para fazer em situações críticas, até mesmo em guerras. Esses são momentos em que pontes, fábricas e cidades são destruídas. Pense em episódios tão diferentes quanto Fukushima ou a Batalha da Inglaterra. Nada disso é o caso agora. Tanto é que as medidas que os governos estão buscando dizem respeito, todas, ao problema dos pagamentos: redução de juros, adiantamento de créditos, títulos públicos com finalidade específica, pagamentos emergenciais a trabalhadores, pequenos empresários, autônomos etc., diferimento de impostos e aluguéis… Nada disso é mirabolante e é bem menos traumático do que os boletins de racionamento típicos dos períodos de guerra, que são, por sinal, um método de distribuição com eficácia limitada, particular a determinadas circunstâncias, como todos os demais. Mas chama a atenção esse detalhe significativo: ora, a metáfora que temos ouvido por aí, a começar pelo pronunciamento de Emmanuel Macron, é justamente a da guerra!

Ora, é nesse preciso ponto que faltam os mecanismos para lidar com interrupções, já que o “sistema de pagamentos” designa tudo que tem a ver com relações monetárias: aluguéis, salários, juros, impostos, ações. São relações que marcam distinções sociais, ritmos do tempo vivido, obrigações entre empresas, bancos e governos. Não é que a economia tenha um “lado real” e um “lado monetário”; assim como tudo que a humanidade faz, o real da economia (que não é um lado) só toma forma por meio de um imaginário codificado, que vincula a ação dos corpos e coletivos a uma modalidade técnica de sentido e propósito. Mas sendo assim, essa codificação é manuseável, como vemos sempre que há uma crise. Foi por perdermos de vista o caráter técnico e sociopolítico do dinheiro que pudemos nos enredar nessa bagunça, dizendo tolices como “dinheiro não dá em árvore”, e que temos tanta dificuldade em projetar medidas que respondam a um tempo de paralisia sem traumas desnecessários. Entre economistas, quem entendeu melhor esse ponto foram os “folclóricos MMTers”.

A parte fácil é entender que não deve mais ser considerado algo tão surpreendente que o ciclo habitual da atividade econômica seja interrompido de súbito, por períodos de meses a cada vez. Isto significa que, no mínimo, será preciso estabelecer mecanismos de “ligar/desligar” para os momentos de catástrofe. Desta vez, nem vamos precisar de um profeta para sonhar com vacas magras. Mas isso, por sua vez, implica uma ruptura com a crença tão disseminada de que um sistema econômico é uma espécie de máquina que funciona por conta própria, e que tem suas próprias leis, e que elas se manifestam em indicadores aritméticos, veladamente monetários. Este é o coração do problema das categorias, no campo econômico.

Isto significa que, como sistema complexo de natureza socio-técnica, nossa economia financeirizada é nada menos do que incompatível com o que o século XXI – esse que começa agora – promete ser. Neste exato momento, instantes iniciais do século, a questão de curto prazo posta à nossa frente pode bem ser essa que estamos discutindo nas últimas semanas: se a economia consegue sobreviver quando centenas de milhares de pessoas estão hospitalizadas, outras tantas morrendo, e muitas mais sob risco de ser infectadas e sobrecarregar os hospitais. A versão empobrecida desse dilema transparece nessa dúvida sobre se restringir a circulação das cidades derruba o sistema de pagamentos.

Mas a tendência é que essa pergunta seja potencializada em proporções terríveis: se a economia pode sobreviver quando centenas de milhares estão se afogando (imagine as cidades costeiras…), outros milhares estão sufocando (pense nas queimadas), centenas de milhões de agricultores perdem suas plantações, outros tantos ficam sem água, e isso sucessivamente, ano após ano. Toda essa lista trata de episódios que já vêm acontecendo, mas até agora a coordenação do sistema econômico-financeiro global – um sistema complexo e resiliente – foi capaz de conter possíveis danos à capacidade de pagamento em nível global. A pandemia do coronavírus foi a primeira vez que essa capacidade foi amplamente posta em questão.

*

Para muitos, a resposta a essa incompatibilidade consistiria em reinstalar mecanismos de solidariedade social mediados pelo Estado, à moda do período social-democrata do pós-guerra. Mas é preciso ir muito além, já que as categorias e instituições social-democratas têm os dois pés muito bem fincados na modernidade da grande indústria, estão baseadas na relação salarial, no emprego fabril e formalizado, na pura aritmética do nível de produto (ou, mais simplesmente, o PIB), das taxas de variação, uma capacidade produtiva inabalável. Em breve, já não será mais o caso de trabalhar com essas categorias.

Para se restringir aos momentos de ruptura, como o atual: seria preciso que houvesse mecanismos de interrupção de todas essas relações estabelecidas, para que os danos de uma catástrofe ficassem contidos em suas próprias fronteiras. Seria preciso que dívidas, juros, aluguéis, impostos, pagamentos de toda ordem, se congelassem e retomassem com o retorno à, digamos, normalidade. Mecanismos emergenciais como as rendas mínimas emergenciais teriam de ser disparados automaticamente, para não chegar à possibilidade ainda um tanto controversa de que se tornassem rendas universais, perenes. Seja como for, a consideração de tudo que se entende por econômico teria de passar inteiramente ao largo de categorias como o “nível de produto” e, com ele, do crescimento.

Já isto, hoje, parece inconcebível e inteiramente fora do nosso quadro de pensamento. Uma economia cuja moldura institucional levasse em conta a certeza de eventuais interrupções?! No entanto, estou falando apenas do que seria preciso para lidar de modo um pouco menos traumático com a série de interrupções do processo econômico esperadas para as próximas décadas. Ou seja, esse é o mínimo necessário para tentar responder às ameaças dentro do esquema conceitual com que estivemos acostumados, mantendo pelo menos os princípios da vida econômica que levamos desde o século XVIII.

Mas se a idéia for passar a uma vida conforme aos problemas concretos do século XXI, mais ou menos como a industrialização e o desenvolvimento das finanças lidaram com as condições e possibilidades do século XVIII, então vai ser preciso uma capacidade inventiva muito maior. Neste caso, para ficar no âmbito do pensamento econômico, os institucionalistas são uma fonte mais interessante do que as demais escolas, já que reconhecem as condições sociais e políticas para o funcionamento de qualquer sistema econômico, particularmente a tão incensada economia de mercado. Nada garante que o arcabouço institucionalista seja suficiente, mas será preciso pensar as condições para que mercados funcionassem de modo intermitente, subordinados às condições materiais e concretas de um mundo natural que, se dependesse do próprio mercado e de seus teóricos, seria abordado apenas pelo ângulo dos seguros (o relatório Brundtland já previa o encarecimento das apólices, por sinal) e das externalidades – este, aliás, é o primeiro conceito a ser sacrificado, já que, num sistema complexo em que a atividade econômica testou os limites do planeta, o que aparece como externo é simplesmente o que há de mais interno.

Seguindo por essa linha de raciocínio, mais ainda do que os institucionalistas, seria o caso de recuperar o “substantivismo” de Polanyi, aquele que aponta a inversão característica da modernidade: considerar o social como incorporado à economia, em vez do contrário. Para garantir condições de subsistência e conforto, o mecanismo de mercado é apenas um dos caminhos (Polanyi elencou outros dois, que denominou “formas de integração”: reciprocidade e redistribuição). Há condições necessárias para que funcionem: com muita incerteza – financeira, política ou, agora, ecológica –, o sistema de pagamentos pode entrar em colapso. Em funcionando, há condições necessárias para que os mercados sejam úteis: quando alguém como o governo americano pode desviar para si todos os bens mais essenciais só porque tem condições de pagar, há um problema grave. Assim como há um problema grave quando todos os incentivos do mercado vão na direção de uma promoção insuficiente da saúde. Essas são algumas das questões que vamos ter que enfrentar.

4 – Riscos existenciais

Quando se fala nas principais fontes de catástrofes e, de modo geral, perigos no século que ora se inicia, a lista costuma incluir os seguintes pontos: mudança climática, biotecnologia, inteligência artificial, poderio nuclear. Grosso modo, são esses os nossos principais “riscos existenciais”, para usar a expressão de Nick Bostrom. É importante ter em mente que cada um deles alimenta os demais, já que são componentes de um sistema cada vez mais integrado e complexo, que é o sistema do planeta (“Earth system”), hoje tão geofísico quanto econômico, tão ecológico quanto tecnocientífico.

É real, por vários motivos, o problema da complexidade dos sistemas geo-bio-físico e tecno-financeiro-econômico, cada vez mais indistinguíveis. O primeiro está na própria recursividade dos sistemas complexos: eles tendem a aumentar o próprio nível de complexidade. No caso da vida, isto acaba significando evolução, mas, no caso de sistemas técnicos, envolve igualmente uma perda de controle – e acho que não há muita controvérsia em dizer que é preferível poder controlar os sistemas técnicos. Mas também é uma característica de sistemas complexos que sejam mais “resilientes” (anglicismo que parece já ter sido plenamente adotado em português), porém ao mesmo tempo mais vulneráveis. É assim que sistemas ecológicos se adaptam a mudanças consideráveis, climáticas ou até mesmo internas a eles mesmos, transformando-se para isso, sem maiores traumas aparentes – isto é resiliência –, mas eventualmente chegam a um ponto de virada em que não podem mais subsistir, e entram em colapso – isso é vulnerabilidade. As extinções em massa ocorreram dessa maneira: foram rápidas e súbitas.

A relação entre resiliência e vulnerabilidade pode se explicar mais ou menos assim, tomando o caso de zoonoses e outros patógenos. No noticiário sobre o atual coronavírus, lemos que laboratórios mundo afora estão correndo atrás de vacinas e que, eventualmente, dentro de um ano e meio, talvez, teremos resultados. Lemos também que bactérias estão cada vez mais resistentes a antibióticos, mas que também estão sendo desenvolvidos novas classes de medicamentos contra essas superbactérias. Com a exceção de pessoas que seguramente não estão lendo este texto, sabemos todos que as vacinas foram fundamentais para controlar doenças como pólio, sarampo e varíola, e continuam sendo fundamentais para mantê-las sob controle. Sabemos que o saneamento nos protege do cólera e da febre tifóide. Sabemos que um bom urbanismo é fundamental contra o avanço da tuberculose e outras doenças respiratórias. Metrópoles superpovoadas são espaços ideais para a transmissão em massa de vírus como esse da atual pandemia, mas também são onde melhor se previnem as doenças e mais se tem acesso a tratamentos de saúde. Sabemos que o aumento da ingestão de calorias foi um fator na melhora dos indicadores de saúde e no aumento da expectativa de vida dos últimos séculos (deixando de lado o problema da má nutrição com o avanço recente dos alimentos ultraprocessados, sobretudo nos países ricos).

Pois bem, todos esses elementos estão profundamente conectados. Uma zoonose como o ebola ou o coronavírus não apaga a humanidade da face da Terra porque os sistemas de prevenção e tratamento dão conta de evitar os maiores estragos. Isto significa que podemos continuar avançando sobre florestas, escravizando animais e ampliando manchas urbanas sem constituir nenhum risco sistêmico. Microorganismos outrora assassinos que estão presentes no nosso organismo não nos afetam mais porque temos como combatê-los ou estão enfraquecidos. Não se pode mais separar nossa saúde, individual ou coletiva, dos dispositivos técnicos no interior dos quais vivemos e que constituem boa parte do nosso mundo.

*

A coisa vai mais longe, porém. Os laboratórios que investigam curas e vacinas são ou bem públicos, ou bem privados, e seja como for, dependem de financiamento, seja por meio de impostos, investimentos ou empréstimos (contra a perspectiva de lucros). Os sistemas de distribuição dependem igualmente de financiamento, mas também de transportes, que por sua vez dependem de energia extraída, ainda hoje, majoritariamente de combustíveis fósseis. O urbanismo e o saneamento que garantem boa parte da nossa saúde dependem, além do financiamento, da disponibilidade de mão-de-obra, o que implica sistemas de educação, distribuição de alimentos e – veja a recursividade – saúde, urbanismo etc. O acompanhamento e combate de qualquer doença, praga ou catástrofe depende de redes extensas de informação e comunicação, que dependem de computadores, satélites, pesquisadores, universidades, eletricidade…

Todo esse enorme conjunto de sistemas está integrados também aos ciclos ecológicos, o que significa todo tipo de coisa: chuva, vento, rotação e translação da Terra, efeito-estufa, correntes oceânicas. Mas, como vimos com os dados da poluição na China, depois na Europa, hoje nem mesmo essas variáveis podem ser desconectadas da ação humana – ação dita econômica, essa mesma que está soterrada no sistema de pagamentos que faz as vezes de economia.

Assim sendo, já se vê que o sistema é resiliente porque é capaz de enfrentar um sem-número de crises sem romper, mesmo que precise se transformar. “Sem-número” porque, de fato, é bastante indeterminado quanta crise esse sistema todo pode enfrentar e ainda se manter quase incólume. Mas não é uma infinidade. O problema de sistemas complexos como esse que envolve o planeta e a atividade humana é que, de uma hora para outra, o que eram dispositivos de compensação (e, portanto, estabilização), se convertem sem aviso em mecanismos de reforço, provocando uma reação em cadeia que é destrutiva e muito veloz. Este é o sentido da vulnerabilidade contraposta à resiliência.

Para ficar no exemplo da saúde, uma vez que entendemos o quanto a complexidade técnica, social e econômica nos protege contra eventuais doenças, também podemos entender o quanto estamos expostos uma vez que esses sistemas entrem em colapso. Se faltar financiamento para os laboratórios, os remédios e vacinas que nos mantêm saudáveis podem desaparecer de imediato. Nesse momento, também é provável que falte financiamento para os sistemas de tratamento. É provável que também falte para a produção de energia que alimenta os sistemas de transporte e distribuição que traziam os remédios e vacinas, mas também traziam o alimento. As redes de comunicação emudecem. Também fica comprometido o saneamento e, dentro em pouco, o mesmo acontece com o urbanismo, como foi quando a manutenção dos aquedutos se tornou inviável nas cidades do Império Romano decadente. Assim, em pouco tempo, nós, que estávamos tão bem protegidos contra novas doenças – e mesmo velhas doenças –, de súbito estamos completamente expostos.

Como cada um desses sistemas – inteligência artificial, biotecnologias, clima, nuclear, mas também finança, indústria etc. – é complexo por si só e todos estão conectados de múltiplas maneiras, constituindo um super-sistema-mundo, todas as tendências da complexidade se reforçam, da acelerada complexificação à resiliência e à vulnerabilidade. Muitas pequenas rupturas podem ocorrer sem derrubar o “sistema de sistemas”, muitas vezes inclusive reforçando-o, embora acumule resíduos que podem depois se revelar fatais.

Talvez o acúmulo dessas tensões, ao aumentar o estresse do sistema, leve ao seu colapso; talvez leve a uma supersaturação que induza à completa reconfiguração do sistema como um todo, levando a uma nova lógica, novos atratores, novas categorias, novas instituições etc. Esta é a maior esperança. J.-P. Dupuy, que cunhou a expressão “catastrofismo esclarecido” para designar a postura racional e esperançosa perante uma catástrofe já encomendada e que se torna cada vez mais palpável, teme que os sistemas em tensão acabem redundando em guerras que ponham tudo a perder. Pois bem, a corrida contra o tempo pode ser posta nesses termos: invenção ou guerra. Inventar novas categorias e parâmetros para novas configurações do sistema-mundo, antes que estejamos afogados num dilúvio de ferro, fogo e sangue.

5 – Para novas categorias

Com toda essa conversa de categorias que se tornam obsoletas, resta se perguntar sobre a emergência de novas categorias – aliás, “emergência” é um péssimo termo, já que se trata de um lento trabalho de invenção e amplificação, sem que nada pule “para fora” de nada. Ou seja, se o século nascente demanda uma passagem a novos conceitos de base, de onde eles virão?

Aqui é que reside toda a beleza das possibilidades abertas, da esperança e da coragem de viver – e viver consiste em construir as maneiras como essa vida vai se constituindo, se desenvolvendo, percolando pelas nossas relações conforme se desenvolvem. Aqui aparece novamente aquela proposta do começo do texto: se queremos fazer a aposta de que vamos chegar bem ao fim do século XXI, mesmo sabendo que será um período difícil, traumático, temos que ver quais são as condições para isso. Ou seja, explorar as possibilidades, examinar com cuidado o que parecia funcionar e não funciona, apontar as limitações das categorias usuais, investigar os potenciais de categorias concorrentes, vendo onde falham e onde prosperam… e assim por diante.

Seja o que for que vai constituir o esquema de interpretação do mundo no século XXI, o que parece seguro dizer é que seus principais elementos já estão flutuando pelas margens do mundo. Algum gaiato poderia dizer que essas figuras políticas monstruosas que vêm ganhando espaço também vêm das margens dos sistemas políticos estabelecidos. E esse gaiato teria razão, até certo ponto. Quando os modelos da era anterior começam a exibir trincas e pouco a pouco se põem a ruir, quem sai na frente são essas suas formas adulteradas, teratológicas, das margens do sistema estabelecido mas ainda orbitando nele e se alimentando dele. Mas elas só têm a oferecer o esforço violento de postergar qualquer invenção propriamente de fundo, tarefa que tende a se tornar cada vez mais trabalhosa, na medida em que requer volumes cavalares de recursos e energia. Além disso, é mesmo de se esperar que haja linhas de conflito e que justamente esses nomes monstruosos sejam a linha de frente do atraso.

Mas o que imposta é investigar de onde virão as invenções, que serão capazes de esvaziar essas forças do atraso. E aqui há uma miríade de possibilidades, é claro, já que são categorias da margem e é da natureza da margem multiplicar-se, variar infinitamente, provocar múltiplas diferenciações, algumas das quais se desvanecem logo em seguida, enquanto outras prosperam. Se as energias que circulam nas margens podem ser capturadas por essas figuras monstruosas e destrutivas, seu efeito é esfriá-las. Mas também podem ressoar umas com as outras e criar formas inesperadas, cuja fecundidade é impossível prever e depende das tendências mais amplas com as quais poderá se conectar.

Isto posto, é difícil escapar à tentação de fazer um arrazoado de iniciativas que introduzem novas lógicas (ou lógicas marginais) e, com elas, o potencial de uma reconstrução de categorias. Sem procurar muito longe, basta falar em princípios como a permacultura, os laboratórios maker, os circuitos de troca, que funcionam nos interstícios das cadeias globais de valor, em canais que resistem a traumas que seriam – e são – capazes de romper os vínculos de escala maior. Ainda no plano da produção/circulação/consumo, pululam mundo afora esquemas de comércio justo (ou “equitável”), moedas complementares, bancos comunitários, que permitem um manejo muito mais adaptável e fluido da distribuição dos meios necessários à vida, bem como sistemas de pagamento mais controláveis e sujeitos ao imperativo do bem-estar ou bem-viver.

Recuando um pouco, para poder avançar melhor: em momentos como o desta pandemia, vemos como essas categorias são maleáveis, ainda que busquem se manter rígidas. De um lado, governos e outras instituições abrindo exceções em suas maiores crenças, mas a muito contragosto: auxílios aos desempregados e pequenos empresários, rendas básicas emergenciais etc. De outro, o reforço ou ressurgimento, sobretudo nas periferias, de redes de solidariedade que se acreditava terem sido soterradas ou tornadas obsoletas pela modernidade individualista, contratual. Redes como essas podem até mesmo ser capazes, no fim das contas, de evitar o cenário apocalíptico esboçado por muitos, com roubos a supermercados e famílias pobres levadas a passar fome. Não estou dizendo, valha-me Deus, que basta contar com redes de solidariedade e podemos ficar tranqüilos a respeito das categorias que organizam nosso mundo. O que estou dizendo é que podemos aprender com elas, enxergar nelas elementos de novas dinâmicas sociais, políticas e econômicas.

*

Como sabemos, o coronavírus, assim como, antes dele, o ebola, o HIV e vários tipos de influenza, é uma zoonose, ou seja, patógeno que transita dos animais para os humanos. Não deixa de oferecer uma ocasião propícia para especular sobre outras instâncias de um trânsito entre mundos que nos forçamos a pensar como separados; a zoonose, como a queimada, a praga, a inundação e, muitas vezes, o câncer, apareceria então como um mediador, um viajante, um diplomata cujas mensagens (Botschaft, diriam os alemães) são a morte, a doença ou, se for o caso, misérias de outros tipos. Naturalmente, só pode nos parecer assim porque imaginamos essa divisão absolutamente ficcional.

Não há propriamente um trânsito, se entendermos que a relação entre mundo humano e mundo animal é uma questão de mera topologia, nada mais do que os movimentos forçados que a lógica divisora da modernidade impôs às dinâmicas que a ultrapassam. Mas o mais relevante é notar que o agente dessa comunicação das doenças entre humanos, morcegos, porcos, frangos e outros bichos, esse minúsculo xamã da morbidade, é um ente microscópico, tão simples, tão estranho – um vírus! Um pedaço de código genético encapado que nem sequer conseguimos determinar como sendo vivo – ou melhor, como sendo um ser vivo de pleno direito (direito!). Um ente que só pode existir com alguma clareza nas conexões, de um corpo a outro, de uma espécie a outra, sendo parte da vida só quando salta entre os infectados.

Existe um curioso paralelismo entre o simples vírus e toda a complexidade do aparato tecnológico humano. A diferença é que o primeiro nos lembra da nossa inserção inescapável (e bem tentamos escapar!) nas dinâmicas naturais – ou cósmicas, para empregar um termo mais carregado de implicações. Enquanto isso, o aparato técnico, mesmo ao operar justamente na mediação física e psíquica com o meio associado, tem nos servido mais para esquecer de seus dinamismos necessários, patentes, inescapáveis, fazendo parecer que nos isola deles.

Na verdade, boa parte da reconstrução das categorias sociais, políticas e econômicas consistirá em refundar a lógica dos dispositivos técnicos, para que sejam os operadores da tarefa de enxergar nossa inserção nos dinamismos naturais, ampliar os modos dessa inserção, reforçar a conexão entre nosso metabolismo e os demais. Também isto existe nas margens, aparece em filigrana nas ciências do clima e do sistema-Terra mais amplamente. De um modo mais próximo ao quotidiano, aparece no esquema de Kate Raworth com os círculos concêntricos da economia possível, que ela compara a uma rosquinha (Donut Economics). Por sinal, o subtítulo do livro dela é: “pensar como um economista do século XXI”, o que só reforça a ideia de que este era um século ainda por começar.

Aparece também na paulatina reemergência de tantos saberes subordinados (expressão de Foucault), que foram suprimidos ou absorvidos pelo saber magno do “espírito científico” moderno, objetivante, isolante, triunfal ao silenciar sobre valores e vínculos cósmicos, enquanto agia tecnicamente sobre esses mesmos valores e vínculos. Pelo menos, vejo assim a retomada de interesse em pachamama, sankofa, ubuntu, motainai, candomblé.

Desnecessário dizer que este é um trabalho árduo e de longo prazo, que só pode ser levado a cabo por meio de muita reflexão, mobilização e articulação. A seguir no exercício de pensamento em que reconhecemos na pandemia do coronavírus um verdadeiro evento, um ponto de virada, ato fundador, chame como quiser, o que se apresenta diante de nós é um chamado à invenção. O mundo passou a última década, pelo menos, postergando transformações cuja necessidade estava patente. Sem reação digna de nota, assistimos à perpetuação de uma mecânica econômico-financeira fracassada, suicida, reconhecidamente alienada – isto é, desconectada de seus próprios princípios. Pasmos, mortificados, acompanhamos a ascensão irresistível de figuras políticas doentias, alimentadas por medos, vergonhas e dores indefiníveis. Uma autêntica necropolítica, engordando com a perspectiva do mortífero.

Talvez faltasse engrenar o século XXI. Talvez estivéssemos meramente na fase de transição para ele. Mas com o coronavírus, mensageiro da vida indecidível, irrompe um século em que a vida, ela mesma, é uma questão de decidir. Se for assim, encerrou-se a década do impasse, com um chamado a encerrar a agonia da modernidade. Eventualmente vamos sair de casa e lá vai estar o século XXI, esperando por nós.

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arte, cinema, comunicação, francês, humor, imagens, modernidade, opinião, reflexão, tempo, vida

Matei minha mãe, o filme

http://www.youtube.com/watch?v=tDa0CkKjfsk

Por recomendação de uma amiga, mas sem nenhuma expectativa, fui ver o recém-lançado J’ai tué ma mère (Matei minha mãe), filme canadense que ganhou três prêmios na Quinzena dos Diretores de Cannes em maio último. Resumindo muito, é a história de um rapaz de 17 anos que não se dá nada bem com a mãe e faz de tudo para “se libertar”. Tudo muito bem contado e filmado (volto a isso mais adiante), mas o que me deixou pasmo foi descobrir que o ator principal é também o roteirista e o diretor. Mais pasmo ainda fiquei ao saber que o rapaz, que atende pelo nome de Xavier Dolan, nasceu em 1989. Ou seja, ele tinha acabado de completar 19 anos quando deu por encerrada a montagem. O roteiro foi escrito aos 16.

Conheço uma boa meia-dúzia de jovens atores-roteiristas-cineastas, pequenos gênios todos eles e bastante competentes. Mas esse tal Dolan, pode anotar, tem tudo para ser um dos grandes de sua geração. Sem contar a atuação – algumas cenas são antológicas, mas afinal o rapaz foi ator mirim –; são dois os fatores que me levam a essa afirmação. Primeiro, a maturidade de um roteiro que expõe a aporia da vida familiar, que, após os 68 da vida, não dispõe mais de manuais e guias determinados. Depois, o diretor estreante revela uma compreensão rara do poder de uma câmera, da criação de significados através da imagem, da exploração expressiva do corpo humano: mãos, rosto, olhos, lábios.

Começo pelo enredo. O próprio Dolan admitiu que a história é profundamente autobiográfica, o que poderia facilmente ter resultado num filme tolo e unívoco. Não é o que acontece, embora a virulência de algumas discussões pareça exagerada debaixo de camadas e camadas de humor e nonsense. É notável a lucidez com que o menino transpõe para a tela o conflito de gerações tal como ele se manifesta neste início de século, despido de toda a dimensão política e moral das décadas anteriores. Nem a mãe que o protagonista (Hubert) odeia é uma mãe de antigamente, quando os pais eram fonte e garantia do comportamento de seus filhos, nem o adolescente é um contestador, um revolucionário, um alternativo. Com isso, ambos estão certos e errados em suas posições, porque não se pode mais exigir a solidez de uma mãe, nem a obediência de um filho, quanto mais adolescente. Esse impasse faz a graça da fita e, sem levá-lo em conta, é impossível apreciar o desenrolar do enredo. Ele acaba parecendo uma sucessão nervosinha de brigas tolas.

Na verdade, ele a odeia, ou pensa que odeia, porque a considera cafona, pouco inteligente e incompetente como mãe. E tem razão: ela se veste mal, gosta de programas questionáveis na televisão e tenta controlar o filho por meio de uma chantagem emocional ineficaz e ridícula. Mas a mediocridade de um indivíduo não lhe tira o direito a ser pai ou mãe e, no fundo, o adolescente sabe disso. Como conseqüência, ele é empurrado a explosões de raiva anódinas, das quais se arrepende mais tarde. Grande parte da graça do filme – é uma comédia, não sei se cheguei a mencionar – está nas idas e vindas tanto do filho quanto da mãe, perdidos na aporia de uma família que não funciona mais segundo regras milenares e rigorosas. O mistério é: como alguém de 19 anos consegue ler com tanta clareza as contradições de seu tempo e, em seguida, transcrevê-las com humor?

Agora, ao cinema propriamente dito: como é esse menino Dolan atrás da câmera? A resposta é que ele tem plena noção do que está fazendo com cada um de seus planos. Às vezes, a ideia é só fazer a história avançar; às vezes, é retratar o inconsciente de uma personagem; às vezes, apresentar o universo de seus sonhos. A cada um desses papéis, o diretor ajusta sua linguagem com o controle de um veterano. O resultado é um filme de ritmo agradável, sobretudo porque pontuado – leia-se quebrado – por seqüências com outro tempo, outro interesse, outra lógica. O diretor se declara influenciado por Godard, Gus Van Sant e Cocteau (este último, mais pela literatura). Deve vir de Godard a consciência, ou seria coragem?, de escapar à obrigação de ser “rápido e ágil” o tempo inteiro.

Mas o que Dolan exibe de mais capaz em seu domínio da linguagem cinematográfica é a compreensão da plasticidade da imagem. Nem tudo está nas palavras, nem tudo está nos rostos, e neste filme o diretor expressa a personalidade e a confusão interior dos personagens através de seus tiques e gestos involuntários: um alçar de ombro, um close na garganta que engole em seco. É a exploração do cinema como arte imagética, um aspecto central que os cineastas deixaram um pouco abandonado… ou esquecido. Para coroar o êxito, as tomadas em plano próximo que revelam esses detalhes parecem, a princípio, isoladas do enredo, mas a narrativa os recupera e amarra no interior de seu sentido.

Dolan prepara seu próximo filme; sabe-se lá quando vai ficar pronto, neste tempo em que é tão fácil um especulador enriquecer quebrando sua empresa, mas é tão difícil um artista praticar sua arte. Quantas promessas aparecem que não se concretizam! Por prudência – e não sei mais se essa é uma de minhas qualidades ou se é defeito –, evito fazer apostas. Mas esse Xavier parece ser mais do que uma promessa. Tem jeito de saber bem o que está fazendo. O nome está anotado.

* Leia o que escreveu sobre J’ai tué ma mère o Bruno Carmelo, cineasta e crítico.

PS: O melhor de ver um filme canadense na França é escutar a platéia rindo do sotaque…

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Amazon 451

Mais uma vez, literatura e poder. Talvez a mais antiga história de amor e ódio. Poetas e imperadores, ditadores e romancistas, jornalistas e magnatas, desde sempre, e reciprocamente, se acusaram, bajularam, subornaram, degolaram, degredaram. Stalin e Luiz Napoleão preferiam ter os gens de lettres do seu lado, isto é, alguns degraus abaixo. Se não fosse possível, Guiana ou Sibéria neles. Savonarola, que não tinha tempo a perder, queimou livros e com eles seus autores, se estivessem por perto. Adolf , síntese das maldades concebíveis, também recorria às fogueiras para o papel, mas quem empunhava a pena ia para Dachau. O monge malvado de Umberto Eco envenenava os leitores incautos, mas isso num ambiente um tanto restrito e, cabe lembrar, ficcional. Médici e Geisel asfixiavam as editoras e exilavam os autores, o que dava resultados medíocres, porque os pentelhos insistiam em continuar escrevendo, mesmo na Europa. Os exemplos, bem se vê, são intermináveis.

Mas eles têm uma coisa em comum: dava um trabalhão suprimir os livros indesejados… Todo cinéfilo que se preze sabe a temperatura em que o papel entra em combustão espontânea: Fahrenheit 451. Na distopia futurista imaginada por Ray Bradbury e filmada por Truffaut, o governo autoritário e hedonista que tomaria de assalto os EUA fazia um esforço sobre-humano para encontrar volumes escondidos e reduzi-los a cinzas. Brigadas de bombeiros, em carros que deviam parecer futuristas à beça, mas hoje têm um ar terrivelmente arcaico, cruzavam as cidades atrás de infratores. Tudo em nome da saúde mental da população, é claro.

Mas era uma tarefa ingrata. Como encontrar e suprimir todos os livros do país? Não é tão difícil esconder um volume. Tampouco é trabalhoso fazer um punhados de cópias e distribuí-las por aí. Mesmo assim,  perseguiam-se os insurretos. Porém, eis a mensagem de esperança tanto do livro quanto do filme: amantes da literatura sempre existirão, nem que precisem aprender obras inteiras de cor para resgatá-las no retorno à democracia. É uma ideia e tanto, que enche de coragem quem se opõe a tiranias (a princípio, todo mundo que não se beneficia de alguma). Acima de tudo, a moral da história reproduz uma crença não de todo falsa, em que pese uma infinidade de escritos da Antiguidade terem sido perdidos: nunca se poderá apagar toda a literatura, a poesia, a história, a filosofia, a ciência. É um patrimônio rico e volumoso demais.

Agora pulemos para 2009. Como todo mundo, não pude deixar de sorrir amarelo. A Amazon, fabulosa livraria virtual, que por sinal frequento bastante, e proprietária do Kindle, a bugiganga sensação do momento, não se entendeu com os herdeiros de George Orwell (ou com seus editores, sei lá eu). Livreiros e representantes não chegaram a um acordo quanto aos valores que cada um embolsaria. Em outras palavras, nada de Winston Smith na bugiganga da Amazon. Mas os textos já estavam sendo vendidos e, claro, comprados no mundo inteiro por fãs da boa literatura e das boas distopias. Aliás, como acontece todo ano, e isso é talvez o mais irônico da situação, professores já tinham exigido dos alunos a leitura de 1984, para despertar neles o amor à liberdade de expressão.

Pois o erro foi, de fato, da Amazon. Vendeu o que não era pra vender e isso não podia continuar assim, que os advogados já salivavam à porta. Que fez ela então? Ora, nada mais simples: à distância, apagou os livros de todos os Kindles que os tinham baixado. E lá se foram os romances sobre manipulação do passado, controle de consciência e tudo mais. Não avisaram, não pediram licença, mas pelo menos devolveram o dinheiro. Menos mal. E a piada natural, que todo mundo já fez, é: Big Brother não quer, Big Brother não deixa. Nada de ler 1984 no meu produto: ele vai sumir como se nunca tivesse existido. Quem diria, Stalin vendendo livros pela internet…

Só ficou faltando a gargalhada triunfal dos detratores da rede. Noves fora, a previsão de Orwell foi mais acertada do que a de Bradbury. Livrar-se de livros inconvenientes não exige corporações de bombeiros, nem fogo, nem polícia secreta, nada. Basta um acordo de bastidores e pimba, desapareceu o problema. Sabe aqueles livros ou discos que são o orgulho de uma meia dúzia de colecionadores apaixonados? Viraram coisa do passado. O poder não precisa mais correr de banca em banca recolhendo jornais. Basta apagá-los e é como se não existissem. Ou melhor, não existirão mesmo. Não existirão mais.

Pode parecer estranha a comparação entre histórias de governos totalitários e o caso de uma empresa que, por maior e mais importante que seja, está longe de ter o alcance de um aparelho estatal. Bom, pode até ser. Mas enfim, concorrência monopolística à parte, deveria causar um certo desconforto saber que uma corporação pode, para aplicar uma decisão judicial, rasgar e deitar fora, de uma hora para outra, centenas de páginas eletrônicas em milhões de telas, de bilhões (desculpe o exagero) de leitores, ao redor do globo. Ou será que estou sendo muito dramático?

Anúncio oficial, leia com atenção: podemos ficar tranquilos. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. É assim que devemos pensar. Sim, a Amazon apagou Orwell do Kindle. É verdade. Mas nada de comparar a ação da empresa com os livros distópicos do romancista. Não faz sentido. Não se pode pensar de outra forma. Eis o argumento. Acredite nele. Orwell falava de governos totalitários. A Amazon é uma corporação monopolista, nada mais. Diferença monumental. Eis a verdade. Podemos ficar tranquilos.

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Entrevista não de todo impossível

O que segue são as palavras de um jovem do sexo masculino, entrevistado na penumbra, para garantir o anonimato, e com a voz embaralhada eletronicamente, para evitar a identificação. É um depoimento “real”, colhido durante uma entrevista informal sobre as transformações de que a nova geração é, ao mesmo tempo, vítima e protagonista. As declarações foram tomadas em meados do último ano, mas o entrevistado, empregado numa corretora da valores da Bovespa, só hoje autorizou sua publicação, por temor de represálias que não foram especificadas.

* * *

Que jornal você anda lendo?

– Na verdade, desde que saí da casa dos meus pais, nunca assinei um jornal…

– Desculpe interromper: quando foi isso?

– Foi uns… cinco, seis anos atrás. Eu vi que já podia me sustentar, se fizesse alguns sacrifícios, mas minha renda era baixa demais, o aluguel um pouco salgado, e ainda tinha a gasolina, a cerveja… Acho que dá pra dar uma idéia. Não é que eu não gostasse de ler jornal. Ao contrário, eu adorava, lia desde criança, o Kfouri, o Nassif, o Cony, todo mundo. Mas eu precisava economizar e achava que poderia ler os jornais que chegavam no trabalho. Só que… assim…

– Não é a mesma coisa.

– Pois é. Ler em casa, tomando café… poder dobrar, separar os cadernos, sujar o papel de comida… E, no trabalho, você tem que manter uma certa postura, quer dizer… Você está lendo, não é como em casa, porque… Lá, você lê jornal e, no serviço, você lê o que está no jornal, entendeu?

– Em casa você não lê o que está no jornal?

– Não é isso, acho que me expressei mal. Em casa, o jornal é todo seu, mesmo que você divida ele com a família. E é uma coisa só, não é só um monte de notícias e colunas. É diferente, quer dizer…

– Mas as notícias são importantes também, não? Isto é, a informação. Como você fazia para se informar?

– É isso… informação, sim, claro, eu tinha. Eu via o jornal no trabalho e, para as coisas mais especializadas, do mercado, a gente recebe um clipping. Acho que o jornal em si era para saber um pouco do resto do mundo. Futebol, por exemplo.

– E a internet?

– Ah, sim, eu usava muito, claro. Mas ainda não era um substituto para o jornal, como é hoje. Quase não tinha notícia de graça, o pagamento não era seguro, aliás, continua não sendo, e os blogs não eram nada confiáveis.

– E agora…

– Ah, agora a internet é meu contato com o mundo, né? Nem TV, eu assisto mais!

– E você se considera um autêntico representante da “geração Y”?

– Nunca entendi direito o que isso quer dizer…

– A geração de pessoas sempre conectadas, que usam MSN, Orkut, Facebook, iPod…

– Não sei, acho que não. Até que eu não sou tão conectado assim. Acho que, para alguém que acorda todas as manhãs há décadas e vai buscar o jornal na porta, eu devo parecer um monstro informatizado, viciado em internet… Mas não sei, não me sinto assim. Aparece tanta coisa nova na internet, todo dia, que eu me sinto o maior dos reacionários com meu velho e-mailzinho. Nem blog eu tenho! E pior… não escrevo daquele jeito estranho, como se chama, mesmo?

– Mas é pela internet que você se informa, conversa, se diverte…

– Não é bem assim. Eu prefiro mil vezes conhecer gente no bar que na internet. Eu converso pelo Skype e pelo MSN por pura conveniência, isso não quer dizer que seja minha primeira opção…

– Você já fez amizades pela internet?

– Já, muitas! Minha namorada, aliás, eu conheci num fórum de discussão do Iron Maiden.

– Você começou nossa conversa dizendo que gostava de jornais, mas nunca assinou…

– Compro na banca, de vez em quando.

– Quando, por exemplo?

– Quando meu time ganha campeonatos, por exemplo. É uma lembrança que a gente tem que guardar. Não é a mesma coisa imprimir do site, concorda? Ou então, às vezes uma capa me seduz, tipo… quando promete uma série de textos com um tema importante. Aí eu compro como se fosse uma revista especializada.

– E como é essa experiência? Você disse que ler o jornal no trabalho “não é a mesma coisa”…

– É mesmo. Eu tinha mais coisas para dizer sobre isso. Nos fins-de-semana, eu vou almoçar com minha mãe. Família italiana, sabe como é… E então, antes do almoço, eu me sento no sofá e fico lendo o jornal que ela assina. E é nessas horas que eu sinto o quanto é diferente…

– Melhor?

– Não é por aí… é diferente. Às vezes, eu leio versões de jornal na internet que são a edição impressa escaneada. E não é a mesma coisa. Acho que eu já disse que o jornal é uma coisa só… Ele é um corpo inteiro e eu tenho a sensação de que, quando estou lendo jornais, mesmo que eu pule partes, depois volte, pare a leitura de um artigo no meio, quer dizer… o que quer que eu faça, estou com um jornal na mão… Nunca tive essa sensação com notícias que li na internet. No computador, eu sempre busco a notícia individualmente, ou o artigo de opinião, ou sei lá. Não é que seja melhor ou pior, é diferente, só isso.

– Mas você está mais acostumado com…

– O jornal, porque cresci com ele. É verdade, eu me sinto mais confortável lendo jornal, mas não é disso que estou falando. O jornal é cheio de coisas que eu não quero saber, que eu não tenho a menor vontade de ler, não me interessam, mas que estão ali… E mesmo quando eu passo por cima, não olho, enfim, não posso fazer nada contra as partes que não me interessam. Elas existem e pronto. São as partes do mundo que eu não controlo nem de longe, e nem por isso deixam de existir.

– Você se sente mais humilde, é isso?

– Acho que você está colocando palavras na minha boca [riso], mas é isso, uma lição de humildade. Só que o melhor de tudo é que às vezes eu acabo até lendo alguma dessas notícias que não me interessam e eu nunca tinha tido noção do quanto isso é diferente, quer dizer… pra mim é diferente, para os mais velhos é a coisa mais banal do mundo. Quer ver? Outro dia, meu time ganhou um campeonato importante e eu comprei o jornal. Na mesma página que dava notas aos jogadores, embaixo, tinha os resultados do turfe. Eu sempre achei essa palavra engraçada, falando nisso, quer dizer… Corrida de cavalo se chama turfe… Mas olha só que estanho… Eu não sei nada sobre aqueles cavalos, mas só de ver os resultados, números, nomes de puro-sangue, tudo aquilo, comecei a viajar. Fiquei imaginando aquelas pessoas todas, aposentados, desempregados, viciados, todo mundo nos fundos do jóquei, fazendo fila para apostar, rasgando a ficha quando perde dinheiro… E eu nem estava prestando atenção, quer dizer… puxa, entende?

– Mas a net é toda interligada, uma coisa leva à outra…

– Não sei até que ponto tudo é interligado… O que isso quer dizer, “interligado”? Sei lá, só sei que quando quero ver uma notícia, não vou ficar clicando em todas as palavras sublinhadas que aparecem. Olha, não quero parecer nostálgico, mas só vou dizer uma coisa: agora que todo mundo diz que os jornais estão morrendo, eu começo a ter arrependimentos. Se tivesse alugado o apartamento num bairro mais barato quando fui morar sozinho, poderia ter sobrado dinheiro para tomar mais cerveja e, ainda, assinar um jornal e uma revista. Agora é tarde, né? Os jornais vão acabar e, de toda forma, já ficaram tão ruins, não acha? Mas que sinto uma certa pena de não receber aquele resumo do mundo todo dia em casa, pode ter certeza.

– Mas esse resumo do mundo, como você diz, não é uma coisa meio autoritária? Alguém decidiu o que você leria e é isso que você vai ler. A internet costuma ser considerada mais democrática, porque tem a coisa da interatividade…

– Claro, claro, sem dúvida. É uma coisa totalmente diferente. Mas eu confesso que não me sinto capaz de decidir eu mesmo como vou resumir o mundo das notícias. Precisa ter uma formação muito fuderosa para saber escolher por conta própria, quer dizer… Não que isso seja muito diferente de como as coisas eram antes, com os jornais, né? Os donos do jornal escolhem como as coisas vão ser ditas e você precisa ter uma formação muito fuderosa para não cair na manipulação… autonomia não é para qualquer um, né?

– Mas na internet o jornalista não pode só dizer o que quer… O leitor responde, reage, contradiz o autor…

– Você está falando dos comentários das notícias? E dos posts? Tem alguma coisa boa aí?

– Claro que tem, tem coisa muito boa…

– Pode ser. Mas como é que eu vou saber? Entro na página do jornal, tem a notícia, e embaixo tem “dona fulana” e “seu sicrano” criticando as informações do jornalista. Que base eu tenho para julgar? E se o comentarista é muito bom, sei lá, com certeza ele só vai embaralhar mais a minha cabeça, porque ele sabe mais do que eu naquele assunto…

– Mas você não pode negar que isso te abre um campo de possibilidades. Não é só aquela voz única, senhora da razão, disseminando sua sabedoria. Do outro lado, eventuais objeções e emendas vêm à tona muito mais facilmente…

– Não estou negando. Com certeza, não estou negando. Mas continuo achando que só quem tem uma formação muito fuderosa consegue se orientar no meio de tanto debate!

– O que você quer dizer com “formação muito fuderosa”?

– Putz… sei lá. Saber tudo sobre tudo, vai! [riso]

– A possibilidade de todo mundo escrever no seu blog, comentar no blog dos outros, intervir nas notícias dos jornais, nos verbetes de dicionários, nos artigos da Wikipédia, além de poder fazer suas próprias reportagens por podcast, por vídeo à la Youtube, postar as próprias fotos, tudo isso você não acha que torna mais difícil a manipulação da opinião e da informação?

– Olha, você está falando com alguém que trabalhou a vida inteira no mercado financeiro. No meu metiê, a informação pode enriquecer ou empobrecer alguém em poucos minutos. Um telefonema pode derrubar uma empresa, uma frase no Twitter pode arruinar um banco, qualquer boato pode me levar a ter um ataque cardíaco. Eu acho o seguinte: quem tem mãos manipula. Quem tem mãos grandes manipula muito. Não é perfeitamente lógico? Dificultar a manipulação? Só se for mais difícil se afogar no meio do Pacífico que numa pia.

– Mas então nada muda?

– Como não? Sair de uma pia e cair no oceano não é uma mudança? [risos] Agora, falando sério, estou com medo de parecer um conservador renhido nessa história. Logo eu, que trabalho com dois monitores na minha frente, com a cotação de várias bolsas e commodities em tempo real. Já me aconteceu de intermediar uma operação que mudou o controle acionário de uma empresa, tudo bem que mais para pequena, mas foi via comunicação instantânea. Opa, estou na defensiva…

– É uma questão de escala, pelo que entendi…

– Não! Com certeza, não. Se fosse assim, eu acharia que ler jornais e ler o que está nos jornais é a mesma coisa, e ler notícias pela internet, idem. Lembra aquelas imagens dos operadores de bolsa fazendo gestos com a mão, empurra-empurra, segurando um telefone gigantesco no ouvido? Será que é só uma questão de escala que isso exista cada vez menos? Eu acho que não, quer dizer… Olha, se tem uma coisa que eu aprendi vendo as ações mudarem de mão é que nunca, nunca, nunca é só uma questão de escala. Se parece que é só quantitativo, é porque ainda não se chegou ao ponto de sela, quando os sinais se invertem. Sabe?

– Então você admite que é uma revolução.

– Posso perguntar aos universitários? [risos] É uma revolução, OK, mas isso significa que o mundo vai ter que aceitar ficar de ponta-cabeça [N.T.: de cabeça para baixo] por algum tempo. Vai encarar? Daqui a pouco ninguém mais vai sentir saudade daquele jornal inteirinho, cheio de coisas que a gente não queria e não esperava, porque pode conseguir exatamente o que quiser, quando quiser, na internet. Será que só eu vou ser o ultrapassado?

– Bom, toda a geração mais velha…

– Claro, claro, mas você sabe: “no longo prazo, estaremos todos mortos”. Isso, quem disse foi Keynes. Mas eu não sou keynesiano, viu?

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Como é fácil executar tarefas…

(Coloquei este vídeo porque não sabia como encabeçar este texto e porque achei incrível o quanto ele confronta o antigo e o novo. Sarkozy ainda está na era Bush e não entendeu nada sobre o futuro. Obama dá-lhe uma chinelada. Mais comparações entre os dois, pensando bem, são cabíveis e valem mesmo um texto só para si…)

Meu lado futurólogo começou a formigar, alguns dias atrás, quando vi duas notícias desconexas, em veículos que pouco ou nada têm a ver um com o outro, mas que, colocadas lado a lado, dão um diagnóstico claríssimo do impasse que rege este nosso instante curtinho da história. Acontece que tentei ser prudente. Tentei abafar meu instinto visionário. Fechei as janelas do navegador com as notícias tão logo as vi, segurando como pude a vontade de lançar minha aposta sobre o seguimento do século XXI. Com isso, agora que desisti, não encontro mais nenhuma das matérias, e só sei que uma era da BBC e a outra de uma revista eletrônica americana: Slate, Salon, algo assim (ou o CSM? Sei lá). Se as referências que darei ajudarem alguém a lembrar onde estão essas minhas fontes, peço que me avise, para que eu possa colocar aqui um raiperlinque. Senão, que baste a descrição do conteúdo.

A primeira matéria comentava a facilidade que os estudantes têm de encontrar respostas para o que procuram, contanto que tenham a enorme habilidade de digitar um punhado de palavras no Google ou, bem raramente, em algum outro buscador. Com isso, lamentava-se o jornalista, nenhum aluno precisa mais se esforçar para fazer um trabalho na escola. Basta-lhe procurar na internet a resposta para o que quer o mestre, imprimir e entregar. Não é caso de plágio; mas, por exemplo, se um professor de Física pede aos alunos para descobrir o que dizem as leis de Newton, no dia seguinte a turma inteira volta com as mesmas frases tiradas da Wikipédia.

O outro texto era ainda mais sombrio. Reclamava que o nível cultural da juventude britânica está desesperadoramente baixo. Explicação dada pelos pedagogos que o jornalista consultou: as escolas do país (e do mundo inteiro, porque certamente o Reino Unido é um dos últimos bastiões do ensino generalista) concentram-se demais no ensino da matemática e da gramática, deixando de lado as noções de história, geografia, artes e literatura, que, como sabemos, são as que fornecem ao indivíduo o potencial de reajustar sua própria forma de pensar à medida em que as circunstâncias assim lho exigirem. À parte os dramas educacionais do Brasil, muito semelhantes, guardada a proporção de escala, não é difícil perceber que a necessidade de oferecer uma educação de massa com orçamentos cada vez mais apertados, tudo isso no fito único de formar mão-de-obra, está produzindo uma gigantesca juventude de semi-autômatos de pensamento estreito e lerdo. Basta conversar com alguém de menos de 21 anos para perceber.

Pois bem, ambos os textos exprimem uma crise na educação (aliás, boa hora para reler Hannah Arendt). Um é americano, o outro inglês. Discutem problemas tópicos. Mas ouso dizer que se completam, porque descrevem duas fontes de um mesmo ruído no sistema. Por sistema, quero dizer o campo em que se deslindam as vidas, com seus projetos estruturais, suas convicções morais, políticas e econômicas, suas práticas quotidianas, enfim, a grande engrenagem que mantém o todo em funcionamento. É nisso que há uma grande rachadura. É preciso, pois, identificá-la e fazer face a ela.

Em outras palavras, o impasse que os textos sugerem, um pouco sem querer, vai muito além da educação. A forma como ensinamos e treinamos nossas crianças reflete o que esperamos delas quando se tornarem adultas. Reflete também, portanto, e serve de indicador para o que queremos dos nossos adultos de hoje, como eles devem ser e, de fato, como fazemos com que se tornem, à força de formações, processos de contratação, matérias na imprensa, conversas de bar… Resumindo, tudo no nosso dia-a-dia. É uma estrutura que se forma por conta própria, aos poucos e nunca exaustivamente, de acordo com os problemas de cada época e as necessidades que esses problemas impõem; o caso, porém, é que esses problemas e necessidades se deslocam mais rápido do que nossa capacidade de nos adaptarmos a eles. Eis a origem dos impasses.

Mas como é, afinal, que formamos nossos adultos? Essa informação crucial é que pode ser entrevista nos dois textos que citei acima. Que os estudantes encontrem respostas para as perguntas em pesquisas rápidas na internet demonstra apenas um truísmo: que os professores lhes fazem perguntas cujas soluções podem ser achadas prontas em algum canto. Paralelamente, a concentração exagerada do ensino nos rudimentos matemáticos e gramáticos só corrobora essa visão: o estudante precisa aprender a resolver problemas específicos e concretos, de cálculo puro, que aparecerão à sua frente na vida adulta, em casa e no trabalho, e precisa aprender a expressar corretamente a resposta a perguntas pontuais que lhe serão feitas em reuniões, tribunais, entrevistas de emprego e toda sorte de pequena situação.

Espera-se do adulto de hoje, portanto (e treinam-se os jovens para cumprir essa expectativa), que seja capaz de executar tarefas. Como resquício da sociedade “estritamente” industrial do século passado, formou-se uma estrutura de massa no ensino e no mercado de trabalho, de tal maneira que o profissional, mesmo em campos de atividade, em tese, profundamente intelectuais, como a edição, o jornalismo, as finanças (sim, há algo nelas de muito intelectual, além da técnica pura e simples que se adotou) e a gestão pública, pouco mais é além de um executor de tarefas, um Chaplin de Tempos Modernos mesmo quando se considera um grande administrador e líder.

Pode parecer muito estranha uma afirmação tão categórica quando, nos prospectos de recrutamento de trainees de qualquer grande corporação, consta que são procuradas pessoas que tragam novas idéias, pensem diferente, tenham espírito de equipe e assim por diante. Acontece que essas palavras são desprovidas de qualquer significado concreto, quando vêm de grandes e caros manuais (adoro a expressão anglófona, textbook) de administração, que ensinam, como se fosse uma equação ou uma dedução silogística, que são esses os valores fundamentais dentro de uma empresa saudável. Cabe sublinhar que isso não é uma inverdade… é só uma verdade bem abstrata.

Ora, poderíamos e deveríamos perguntar de onde viriam essas novas idéias e esse pensamento diferente se o paradigma da formação nas escolas e nas universidades (sobretudo nas de administração) é uma transmissão massiva e cada vez mais concentrada de instruções para a execução de tarefas especializadas? De onde brotaria a inclinação interior dos indivíduos a reestruturar suas próprias formas de pensar ou, pior ainda, (hélas!) a cultura de uma empresa inteira, se o raciocínio analítico e a potência crítica do pensar estão excluídos da preparação da força de trabalho, repito, mesmo a mais elitizada? E ainda, qual é o recrutador que, formado numa escola de psicologia que mais parece de gestão, será capaz de identificar uma pessoa com essas habilidades no meio da massa, se o próprio do pensamento diferente e da idéia inovadora é justamente de escapar a todos os parâmetros que o manual teve tanto cuidado em elencar? Ao contrário do que pode crer a mitologia de nosso tempo, as capacidades de análise, síntese, julgamento e crítica não são inatas. Muito pelo contrário: de seu natural, o ser humano tem um raciocínio bastante simplório.

Há muito, essa constituição do mundo já não é adequada às exigências que a própria tecnologia criou. Daí o sucesso, por exemplo, de cursos livres das chamadas humanidades, cujo caso de sucesso financeiro mais evidente no Brasil é provavelmente a Casa do Saber. (Mas há outros, muitos outros, entre sérios e charlatães.) Existe uma sensação de que a cultura do industrialismo replicado em todas as áreas está fazendo água. Mesmo o sujeito que se considera “altamente qualificado” não consegue mais dar conta de tanta instabilidade nas variáveis. Talvez até, se for um pouco mais sagaz, já perceba que nunca passou de um executor de tarefas.

Que a formação e as expectativas terão de mudar para fazer frente a um mundo pós-industrial que há muito já se instalou sem que o percebêssemos, isso me parece evidente. É claro que a pergunta passa a ser “como” ou, se preferir, “para onde”. Retorno, então, aos dois artigos citados. Como deve reagir o professor, perguntava-se o repórter, diante de alunos que encontram com facilidade as respostas na internet? Ora, a internet é um dos muitos exemplos de como o ser humano, pouco a pouco, vai transferindo parte das responsabilidades de seu cérebro para suportes exteriores a ele.

E isso não é nenhuma novidade: 350 anos antes de Cristo, Platão já ralhava contra a palavra escrita, acusando-a de substituir a memória das pessoas, que, em vez de conhecer seus argumentos e fomentar suas idéias, liam-nas em pergaminhos e se consideravam sábias. (Veja-se como o mundo mudou pouco). Dizia mais o velho filósofo de Atenas: a palavra escrita é estável, não se adapta à variação dos tempos, sua linguagem não se adapta aos diferentes interlocutores, com suas diferentes preconcepções e seu muito variegado nível intelectual. Pior ainda, a palavra escrita é incapaz de defender-se por conta própria quando alguém a critica ou deturpa. Os discursos, dizia ele, esculhambando com a logografia dos sofistas, devem ser escritos na alma, não no pergaminho.

Nem preciso dizer o quanto o mundo mudou desde então e o quanto o texto escrito se tornou fundamental para o desenvolvimento da civilização. O próprio Platão escreveu mais de 60 diálogos e sabe-se lá quantas cartas, mas nem por isso deveríamos dizer que ele estava enganado em suas críticas. Há diferentes maneiras de abordar o texto escrito, algumas melhores do que outras, e a humanidade, ou uma parte dela, aprendeu ao longo desses vinte e tantos séculos a comentar, criticar, responder, interpretar, decompor textos, até que a escrita se tornou uma ferramenta tão importante no conhecimento quanto a memória e o diálogo.

Já passamos por Gutemberg, Hearst, Marconi, Chacrinha, Bill Gates e Google. Cada uma dessas evoluções impôs mudanças na forma de pensar e ensinar. A internet, no caso, torna obsoleta a tarefa de buscar dados na memória ou em compêndios de papel: eles estão facilmente acessíveis a quem souber fazer uma pesquisa no Google com um mínimo de sapiência. (Isso é menos comum do que parece, como pode inferir quem usa programas de estatísticas ou lê o Rafael Galvão.) Cada vez mais, as tarefas que dependiam de executores muito bem treinados podem ser realizadas por programas que, não raro, se encontram online para baixar, e de graça. As primeiras vítimas, décadas atrás, foram as datilógrafas, mas elas certamente não estão sozinhas. Que sirvam de atestado os salários baixos e o desemprego alto.

Não há, portanto, muito mais saída, senão o óbvio: que se deixe aos computadores o dever de executar tarefas como “achar respostas”. Professor, seu problema passa a ser outro: proponha atividades a seus alunos que computadores simplesmente não possam fazer. Coisas como encontrar o que está por trás de um determinado argumento; deduzir conclusões de princípios que maus ou mal-intencionados autores deixaram escondidas; supor o que pode dar errado em tal e tal proposta; compreender por que um problema qualquer da física pode ser resolvido com um cálculo e não com um outro. E assim por diante. De tal maneira que o computador volte a ser a ferramenta indispensável como foi criado, em vez de muleta para a preguiça estudantil.

É claro que isso exigiria uma mudança radical nos princípios que tanto preocupam o jornalista da BBC: cálculos matemáticos e regras gramaticais não bastam mais. Desde pequena, a criança precisa ser ensinada a enxergar as proporções e entidades abstratas em que está fundada a aritmética: somar e subtrair, hoje, são muito pouco para alguém que tem uma calculadora no relógio de pulso. O mesmo vale para a língua. A questão não é o milagre de acertar todos os plurais, mas de conseguir transitar livremente entre conceitos, palavras e coisas. Isso é que é fundamental para que alguém se faça compreender, tanto por escrito quanto oralmente. E garanto que alguém que entende essa ligação fundamental – conceitos, palavras, coisas – bem raramente erra preposições, tempos verbais, pontuação. Tudo isso se torna natural e irrelevante.

Estou ciente de que seria muito custoso massificar um ensino como esse que proponho. Mas não vejo muita alternativa. Investir em alguns poucos centros de excelência me parece uma alternativa péssima, que nos atiraria de volta à aristocracia intelectual dos Eton College, Ivy League e Grandes Écoles da vida, opondo-se (verticalmente) a todo o resto da plebe ignara, que, não demoram os eleitos para diagnosticar, “só serve para atrapalhar”. Porém, mesmo sendo uma opção terrível, é o mais provável de acontecer. Uma estrutura de ensino e formação que produza centenas de milhões de pessoas capazes de raciocínio crítico soa utópico: é caro, muito caro, e dirão os maiores interessados que teria um custo proibitivo. Mas o fator preponderante é provavelmente que gente desse tipo é dura de convencer, cooptar e, claro, controlar. Esse, sim, é um custo muito elevado.

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A morada dos insumos

Tomara que eu não seja o único a se entristecer com a lembrança de algumas idéias que o último século aplaudiu longamente, como o princípio de Le Corbusier segundo o qual a casa é uma maquina de morar. Suspiro: no raciocínio do mundo ultra-industrial, o ser humano é um insumo de produzir. Você e eu, já sabemos, somos recursos humanos; o que não podemos esquecer é que, no frigir dos ovos, somos antes recursos que humanos. E podemos deixar nossa humanidade na soleira da porta ao entrar, façamos o favor.

Pois a Biblioteca Nacional da França está situada no meio de um punhado dessas máquinas de morar. Nelas, vivem centenas, talvez milhares de pequenos insumos felizes da vida, modernosos, hoje talvez menos contentes com a ameaça de verem evanescer seus empregos (nome que damos às linhas de montagem onde insumos desse tipo são utilizados). A própria biblioteca é uma máquina de sentar e ler, mas uma máquina que funciona muito mal, ou seja, é um desastre arquitetônico que merece um texto só para elencar a infinidade de seus problemas.

À noite, quando finalmente consigo vencer todas as etapas para sair da caverna de livros (já falei que é um desastre arquitetônico? Se já, peço desculpas), sou obrigado a atravessar um quarteirão enorme desses edifícios metálicos. Construídos como máquinas, lar de famílias e yuppies cuja estratégia talvez seja sentir-se em casa no escritório ou vice-versa. E me dá um desconforto, um frio na espinha, uma tristeza, como se uma epidemia de circuitos e transístores tentasse se apropriar da minha pobre carne ainda muito humana.

Tenho ganas de correr, chegar mais rápido ao buraco do metrô, ou desviar pela beira do rio. Ou ainda, tapar as orelhas e saltitar aos berros, renunciar à sanidade para guardar, ao menos, o lado biológico do que faz de mim um ser humano, seja lá o que isso for. Só fico aliviado quando estou enfim sentado ao fundo do trem na linha 14, a mais avançada da cidade, única em que a abertura das portas é automática e o condutor foi substituído por um software em funcionamento ininterrupto numa sala bem no centro da Terra. (Às vezes duvido que essa versão seja verdadeira. No centro da Terra? Uau!)

Não culpo Le Corbusier, é claro. Ele fez sua declaração nos anos 20, quando a ideia que se fazia da máquina ainda era de algo fechado numa sala, a ativar e desligar conforme as necessidades da produção, apuradas em grandes painéis estatísticos, que uma legião de especialistas controlava de um mezanino acima da fábrica, a decidir em que ritmo Carlitos teria de torcer suas porcas. Os arquitetos das gerações seguintes propuseram, e continuam propondo, suas máquinas segundo princípios de conforto e funcionalidade muito bem calculados, tão precisos que os contemporâneos de Le Corbusier não sonhariam. Nem mesmo Oscar Niemeyer, e talvez seja por isso que nosso gênio nacional desistiu da arquitetura para se tornar um grande desenhista de fachadas inverossímeis (mas eventualmente postas de pé por gente que não entendeu bem o princípio). Resultado: os prédios de apartamento de hoje são, muitas vezes, indiscerníveis dos escritórios.

Por sinal, aí está o mais curioso: não me incomodam tanto os prédios comerciais em grandes blocos de vidro, com suas torções futuristas e grandes jatos de néon, lisos e limpos, voltados para o céu, as janelas mais altas vedadas para impedir o salto dos banqueiros arruinados. Sinto-me perfeitamente confortável no meio desses espigões onde, de fato, a pessoa é um insumo, um recurso humano a ser administrado com tanto zelo quanto o suprimento de papel para as impressoras do departamento. Se vou a La Défense, uma espécie de Berrini que funciona, a oeste de Paris, a única coisa que me incomoda é o monstruoso polegar que César (o escultor, não o ditador) implantou no meio de uma praça de concreto (outra das manias contemporâneas que não compreendo). Mas essa é uma obra de arte feita com o propósito claro de me perturbar, sugerindo um titã soterrado e doido para ter sua vingança. Não creio que qualquer um dos insumos ameaçados desconfie do que o espera quando passeia em torno da escultura.

A pergunta que se impõe agora é: por que a arquitetura metida a futurista incomoda tanto na residência e tão pouco do escritório? Talvez porque a fachada e as paredes manifestem a mesma dinâmica do tempo daquilo que se passa em seu interior. O escritório, o edifício comercial, existe em função do futuro: o lucro é sempre futuro, os negócios que interessam são sempre os do futuro, o produto que importa é o que vai ser lançado no futuro. O lucro do passado não importa mais, senão como ativo para novos investimentos (no futuro); os negócios do passado caducam tão logo desaparece seu potencial de gerar receitas no futuro; o produto do passado é encalhe, vergonha, fracasso. A aparência, aliás toda a atmosfera das construções onde se passam os negócios, precisa ter um aspecto de amanhã, como se para lembrar a seus ocupantes que é para o amanhã que seus olhos têm de estar voltados. Sempre, sempre, sempre.

A residência não existe em função do futuro, mesmo se é necessário garanti-lo, migrando diariamente para o outro lado da cidade em busca da comida que se colocará na mesa. Mas isso nem chega a ser presente, porque a comida que realmente interessa é aquela que se come agora, ou no máximo enquanto ela durar na geladeira. Comparado aos grandes negócios e ganhos que se preparam nos escritórios, o futuro da vida habitacional e humana parece pálido e banal: o envelhecimento e a morte, a vinda e o crescimento das crianças. Esse futuro é tão inevitável e corriqueiro que não vale como função para a existência.

É por isso que a vida nas residências é voltada em outra direção. É ela que trata do presente. De reproduzir a vida, garantir o ciclo a partir do qual, em outro canto da cidade, uma fixação com o futuro poderá brotar, como que espontaneamente. E para quem sentiu falta do passado, calma: reproduzir a vida significa trazê-la do passado para o presente. É entregar, por exemplo, às crianças um pacote com o mundo tal como ele era antes que elas chegassem, é recuperar na memória ou no diálogo as ferramentas para lidar com a incerteza que o tempo apresenta à medida em que escorre.

Até coisa de duzentos anos atrás, isso era tudo que existia. É por isso que antigos eram tão apegados à tradição: suas vidas se fundavam na construção reiterada de um tempo passado. Depois vieram a modernidade, a indústria, a comunicação de massa. Quisemos fundar nosso mundo num olhar para o futuro. E de fato o fundamos. Mas o sistema vem com uma falha esquisita, um esquecimento, alguma coisa que falta. Só é possível manter seu funcionamento enquanto as máquinas estão ativas. Deixados à própria sorte, os insumos vivos retornam a seu estado bruto, voltados preguiçosamente para seu presente e seu passado. São saudosos, melancólicos, tacanhos, e se usados em excesso, podem acabar reacionários. Sim, o obscurantismo nada mais é do que a fadiga do material.

Para garantir o bom movimento em cada instante da existência de seus recursos, a lógica futurista precisa se assegurar de que as máquinas nunca estão desligadas. Sempre há alguma por perto. Encerrado o expediente, largadas as máquinas de produzir, toma-se a máquina de transportar, para a máquina de morar, com a máquina de divertir e a máquina de informar, antes da máquina de comer e, aos sábados, a máquina de se embebedar. Le Corbusier, quando imaginou sua singela maquininha, certamente não esperava tanto.

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crônica, frança, futebol, história, ironia, passado, prosa, Rio de Janeiro, romário, saudade, São Paulo, tempo, vida

Aderindo à indiscrição

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Cheguei a crer que os memes tivessem saído de moda, finalmente. Mas eis que aparece esse das seis coisas quase secretas (e, em geral, bastante genéricas) sobre si mesmo, e me vejo convidado a participar pelo Catatau. Ora, o Catatau é blogueiro obrigatório para qualquer internauta que tenha alguma coisa entre as orelhas. Ou seja, não sou muito de memes, mas quando vem um de alguém com a qualificação que acabo de dar, ai daquele que esnoba a convocação. Além do quê, este é um dos poucos que já recebi a deixar uma abertura para algo mais do que uma lista banal de trivialidades que, em tempos menos espetacularizados (Tutty Vasquez diria que é “evasão de privacidade”…), não teriam interesse para ninguém.

Portanto, agora que encontrei boas desculpas para fazer o de sempre, ou seja, burlar meus próprios princípios, parto para pensar nas tais seis coisas genéricas, quer dizer, secretas. Deixo só mais uma rabugice: elas bem poderiam ser cinco ou sete; a fascinação de nosso tempo pelas listas rigidamente numeradas é coisa em que penso bastante, mas não consigo entender de jeito nenhum. Se ao final deste texto só tiverem sido mencionadas quatro, ou mesmo três coisas, honorável internauta-san, não estranhe. É só para ser do contra, uma mania minha que, de secreta, nada tem.

Começo, então, com minha maior mácula. Um dado sobre mim de que eu mesmo, vez por outra, me pego duvidando. Um absurdo que não sei como foi ter lugar. Pois bem: a verdade é que eu sou diplomado em Economia. Sim, estudei taxas marginais de substituição, curvas IS-LM, caixas de Edgeworth, o ótimo de Pareto e toda aquela velha conversa fiada sobre o indivíduo racional de preferências transitivas. Entretanto, estudar é uma coisa e aprender é outra. Apesar de dois anos enfiado em econometria, não saberei o que fazer se me colocarem diante de um E-views, programinha graças ao qual o economista pensa ter as mesmas qualificações matemáticas de um engenheiro, coitado. Enfim!, economista, é como sou obrigado a preencher no campo profissional de qualquer formulário. É minha pena a pagar. Se bem que talvez o pior de tudo seja quando alguém, por intermédio de algum amigo da onça bem intencionado, descobre em que faculdade estudei e, por associação, pensa que cursei Administração de Empresas. O, la honte! Sei bem que há algo muito errado comigo, mas vamos com calma…

Agora, uma anedota futebolística. Em criança, eu vivia num bairreco chamado Vila Suzana, lá para depois do Morumbi, onde hoje os espigões fazem competição, mas vinte anos atrás não havia nada além do que as sobras da Mata Atlântica. Ou melhor, quase nada. Tinha uma escola, um condomínio e um estádio de futebol. A conseqüência é que, na infância, fui um autêntico são-paulino, quer dizer, quase autêntico, sabe como é. Enfim fui perder o interesse pelo tricolor paulista quando, aos 13 anos, fui pela primeira vez ao Maracanã. Foi um Fla-Flu daqueles, que me fez entender até que ponto o futebol pode envolver elementos telúricos e inconscientes, muito além do estéril “quem ganhou de quem”. Em campo, Romário e Sávio de um lado, Renato Gaúcho e Luiz Henrique do outro. Mas quem decidiu a parada com dois gols foi um cracaço de 45 minutos chamado Rogerinho (quem?!). Não era final de campeonato, nem nada. Aliás, a final daquele ano seria outro Fla-Flu, por sinal um dos jogos mais emocionantes de todos os tempos, mas eu não estava presente por motivo de superstição na família. Nem foi o jogo em si que determinou meu futuro de torcedor. Foram as arquibancadas. Pela primeira vez na vida, entendi que torcedor poderia fazer algo mais do que mascar amendoim e mandar o adversário “chupar”. Quem me conhece há poucos anos provavelmente nem sabe disso, mas meus primeiros colegas de faculdade (sim, em Economia) ainda podiam me ver, vezenquando, com uma velha camisa do São Paulo. Quando rasgou, não me preocupei em comprar outra.

Terceiro fato que deveria ser secreto, mas vem à tona, desta vez inspirado pelas confissões de Pierre Bayard. Admito que sou um pós-graduando em Filosofia que jamais leu 1) a Crítica da Razão Pura, de Kant; 2) a Fenomenologia do Espírito, de Hegel; 3) O Mundo Como Vontade e Representação, de Schopenhauer; 4) Ser e Tempo, de Heidegger: 5) O Ser e o Nada, de Sartre, embora tenha lido outros textos de todos os citados. Três dessas obras estão pegando poeira na minha estante, à espera de algumas férias em que eu quebre a perna ou coisa parecida. (Enquanto isso, li It de Stephen King e Esfera, de Michael Crichton.) Não que isso me impeça de ser pernóstico a ponto de concordar ou discordar das teses de todos esses grandes mitos da filosofia ocidental. E inda faço discursos, explico para “leigos” interessados, respondo a objeções e assim por diante. Quando o encadeamento de um argumento me falta e acabo gaguejando, não faz mal: ponho a culpa na necessidade de traduzir conceitos que aprendi originalmente em francês. Nessa, eu me saio como alguém muito, mas muito chique. É que uma parte do treinamento nas faculdades de filosofia consiste em aprender a fingir que entende determinados assuntos. Mais ou menos como a gente aprende na faculdade de economia, com a diferença de que o filósofo não precisa invocar números sem sentido e, mesmo assim, convence mais. Mistérios da retórica…

Aproveitando que entramos por essa senda, um outro segredo é que não terminei o curso da Sorbonne. Depois de dois anos, fiz prestarem para algo meus créditos de Economia e pulei para a pós em Nanterre. Talvez o tempo restante do curso, que perdi, fosse dedicado justamente ao estudo dos livros que mencionei no tópico anterior. Mas duvido muito. O mais provável é que os professores continuassem preocupados em formatar seus estudantes para produzir dissertações e comentários de texto na mais perfeita “méthode française”. Como eu quero mais é que esse maldito método vá pelos ares, achei melhor pular fora. Isso significa que nunca vou poder pendurar um diploma da Sorbonne na parede. Mas isso nem é tão grave, considerando meu prazer mesquinho de deixar arestas por aparar, a ponto de responder com míseros quatro tópicos a uma proposta que explicitamente exigia seis.

PS: Se eu pensar em mais alguma coisa, atualizo o texto ou adiciono na caixa de comentários.

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arte, conto, costumes, crônica, domingo, escultura, literatura, prosa, reflexão, transcendência, vida

O repouso do general

Quando soube que estariam todos fora – demônios, reis, colombinas, palhaços –, concebeu o mal-estar, dramatizou a doença, conquistou a solidão. Livres as paredes para o silêncio, os salões entregues à vibração do tempo baldio, fremiu e suspirou de alívio e apreensão.

Estacou por instantes sem volume. Quando o sangue voltou aos dedos, entregou-se à tarefa solene de desabotoar a farda, pendurá-la no cabide, encerrá-la na escuridão do guarda-roupa. Puxou dos ombros os galardões cheios de estrelas, apertou-os na palma da mão e os depositou na gaveta. Fora de vista, mas não de alcance. Para o caso de precisar buscá-los às pressas.

Seria lá o repouso do general. Nada de respostas, nada de comandos e decisões. A camisa de algodão lhe caía esquisita, mas agradável. Como trocar de pele.

Respiração caprichada, caminhou a passos arrastados até a poltrona. E se instalou, rijo, como numa sala de interrogatório. Conforme o previsto.

Só então ousou um lançar de olhos para o volume que trazia entre as mãos. O objeto grande, pesado e viscoso, coberto por um pano branco tão limpo, liso, fragrante – por que não dizer: imaculado. Tantos anos à espera do momento de encarar a carga, tantos anos, pareciam uma vida inteira. A exemplo da vida, não tinham começo na memória. Que esforço, que heroísmo, dar a crer aos outros que aquilo, aquela coisa, era natural. Que sabia o que fazia. Que vagava pela casa carregando um pacote branco com algum propósito. Missão misteriosa, mas incontornável.

Agora que estavam todos fora – demônios, reis, colombinas, palhaços –, era o momento de esclarecer tudo de uma vez por todas. Teve orgulho da coragem com que fitava o volume fantasmagórico. As mãos, porém, suavam. O cotovelo empurrava os dedos para o pano, o ombro os retinha. Homem e objeto, como conjunto, entravam em sintonia com o tempo paralisado.

Sentiu-se ameaçado, espantou-se, puxou por reflexo o lençol, violento. O tecido voou como espectro e pousou como pomba. Ficou espalhado sobre o assoalho, inerte.

Diante de seus olhos, o volume descoberto. Como antes, não sabia o que era. Não podia descrever a forma. Irregular e perfeitamente simétrico. Opaco ao extremo. Difuso, fora de questão. Solidez opressiva que se esvaía rumo ao chão. Por hábito, desandou a dar nomes: é o mundo, é minha alma, é o passado.

De súbito, faltou fôlego. Cessou a confusão do batismo cego. Poderia decidir-se por qualquer daqueles nomes, ou qualquer outro; subsistiria o mais terrível dos atributos, sempre. O que trazia nas mãos, nelas teria de seguir. Deixasse cair, é certo que espatifaria. O ar seria tomado de imediato pelo vapor venenoso do mundo, da alma, do passado.

Sufocaria. Pereceria. E não conseguia escolher entre o sacrifício sumário, mas horrendo, e a tortura vitalícia de carregar ainda, diante de todos – demônios, reis, colombinas, palhaços –, o volume abjeto, a massa amorfa, coberta pelo mesmo pano branco outrora imaculado, agora encardido com a poeira das cidades.

Na fúria da indecisão, lembrou-se das insígnias ocultas. Esticou-se com cuidado reverente. Não foi à gaveta, mas ao lençol, ainda enrugado a seus pés. A decisão estava tomada sem que alguém a tomasse.

Mesmo para a alma perturbada, à beira do escapismo, era patente. Sublinhavam-no as lágrimas, ao romper o portal. O peito se ergueu em revolta, soluçava e recusava o ar. Debaixo da mortalha, o objeto estremeceu. Poderia deslizar a qualquer instante. Mas não havia controle para os espasmos do corpo entregue.

De uma porta que se cria inexistente, entrou a desconhecida. O susto invocou o sangue das faces e ressuscitou o general. As estrelas das divisas tinham aparência ridícula sobre o algodão dos ombros, mas expunham uma imposição de respeito.

Só não se entregava à deferência o rosto ainda afogueado. A desconhecida flutuava através do salão. Encarou-o e, com expressão indiferente, perguntou o porquê das lágrimas. A resposta saiu refletida, viril como cumpre replicar:

— Não sei… Não sei.

Com isso, ergueu-se e se pôs em marcha, carregando seu fardo, até a escrivaninha do quotidiano.

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Litania para o capital

Fuçando nos arquivos mais recônditos deste HD, acabei encontrando a brincadeira que segue abaixo. Foi escrita quando eu estava na faculdade (e, aliás, este HD nem fabricado era), para provocar meus colegas corretores da Bovespa, que andavam um tanto nervosos, conseqüência de alguma dessas crises por aí.

Lembro-me particularmente de um desses meus amigos, a quem perguntei, por pura gaiatice, já sabendo a verdade, se a corda estava apertando demais o pescoço da empresa em que ele trabalhava. (A tal empresa foi absorvida por outra bem maior, poucos dias depois.)

Pois bem, a resposta do rapaz foi adorável: “Agora, só resta rezar.”

Passei o dia imaginando como rezariam os colegas do rapaz, logo antes da abertura dos negócios, à espera do retinir do sininho. Seria como uma grande celebração, engravatados de joelhos, mãos unidas, ar de introspecção. Aos poucos, vai se erguendo uma voz coletiva, um grande uníssono, para este que, em nosso século, tomou o lugar que já foi de Deus e outros deuses.

Enfim, segue abaixo um esboço do que clamariam os infelizes. Já vou avisando a Duncan Niederauer que cobrarei os direitos autorais se ele quiser adotar a nova oração nas cerimônias da NYSE.

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Litania para o capital

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Ó Vós, que permitis, divinamente,
A implosão de todo patrimônio!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que sois pai de todas as Bolsas,
idolatria de derivativos!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que distribuís as sementes
da fortuna e da fome, cegamente!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós que podeis prever o porvir
daqueles que abdicam de consumir!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Vós que negais os frutos do trabalho,
escutai as preces do investidor:

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  • Concedei-nos cobrir as perdas!
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arte, barbárie, cinema, frança, francês, imagens, ironia, modernidade, opinião, prosa, reflexão, reportagem, tempo

Houellebecq e sua ilha

Acabou de sair por aqui um filme dirigido por Michel Houellebecq. Fiquei curioso para vê-lo, embora a somatória de todos os trechos seus que li não dê um livro inteiro. E não li por birra, simplesmente. Sempre tive a impressão de que seu jeito polêmico era forçado. A antipatia é uma das estratégias de marketing mais exploradas pelos autores hodiernos, não me pergunte a razão. Temendo que minha opinião sobre o escritor contaminasse minhas impressões sobre sua obra, me abstive de abrir um volume de Houellebecq. Mas fui ver o filme, graças a uma promoção de início de outono que atirou lá para baixo o preço dos ingressos de cinema em Paris. Passamos a tarde inteira de domingo entrando e saindo de salas de exibição, numa maratona que começou com uma comédia musical americana e terminou com uma ficção científica metida a conto filosófico. Se o sentido tivesse sido o oposto, talvez tivéssemos dormido melhor, mas o fato é que fechamos a noite com as imagens desiludidas de A possibilidade de uma ilha (La possibilité d’une île).

Em poucas palavras, o que para alguns é fundamental, mas para mim não tem importância alguma: o filme é bom? Não chega a ser. A ironia amarga da prosa de Houellebecq mal dá o ar de sua graça, assim como a condensação do tempo e da identidade individual, pedra de toque do livro que deu origem ao filme. As personagens não têm carisma, ao contrário do livro, em que mesmo o grande líder religioso é um cínico desiludido. (Antes que me pergunte como sei disso, se não li o livro: folheei-o.)

Agora que estou livre da obrigação de avaliar o filme, posso entrar nos assuntos muito mais interessantes que ele pode gerar. Em primeiro lugar, fico imensamente feliz de saber que ainda é possível fazer filmes assim. Uma linguagem longe do convencional, longos planos e pausas, atores imóveis, ângulos oblíquos, cortes inesperados. Como nos bons tempos do cinema. É verdade que, apesar das entradas quase gratuitas, a pequena sala estava praticamente vazia. Não mais de oito pessoas, enquanto no tal musical americano (muito divertido, por sinal) saía gente pelo ladrão de uma sala muitas vezes maior. Mas isso não quer dizer nada. Bem ou mal, Houellebecq conseguiu dinheiro para adaptar seu próprio livro da maneira como bem entendesse, e isso é sinal de que ainda existe alguém disposto a investir nas empreitadas arriscadas. Certo dia, alguém deu uma soma considerável na mão de Fellini para ele imprimir no celulóide seus sonhos absurdos. Não sei quem foi o empresário visionário, mas garanto que ficou rico. Tampouco sei quando surgiu o consenso de que o público é formado única e exclusivamente por gente sem imaginação e dopada pelas fórmulas consagradas de Hollywood. Só sei que é uma lástima.

Mesmo não sendo o caso de Houellebecq, existe uma legião de cineastas cheios de boas idéias e muito talento, jovens, arrojados, inventivos, sedentos por uns caraminguás para rodar o primeiro longa. Esse pessoal não é invenção minha, qualquer festival de curta-metragens revela um caminhão de gente interessante. Entre eles e as obras-primas da próxima geração, o único obstáculo é o investidor, que precisa perder o medo do fracasso, para aprender a apostar no longo prazo. Foi assim que os empreendedores do passado ficaram ricos; não foi pela repetição temerosa de velhas fórmulas cansadas e disseminadas ad nauseam.

* * *

Agora, ao segundo ponto que eu gostaria de levantar. Dizem que Houellebecq tem uma personalidade desprezível. Eu não teria como avaliar. Mas é certo que uma das coisas interessantes sobre sua obra literária é a dificuldade de distinguir o que é opinião sua e o que é pensamento das personagens. Os protagonistas de seus livros costumam ser pessoas vis, baixas, rasteiras, vulgares, cínicas, inescrupulosas e por aí vai. Mas a tinta consegue, com o concurso de uma certa habilidade estilística, misturar os traços de forma tão indiscernível, que idéias e conceitos passam por entre os dedos do julgamento, como areia fina. É Houellebecq o racista, ou seu herói? Autor ou personagem, qual é o cretino? São exemplos das discussões que os literatos gostam de ter a respeito do escritor.

Pois bem, acontece que o próprio escritor resolveu colocar na tela um de seus livros. Deve ser o sonho de muitos artistas, imagino. É muito raro que um filme seja melhor do que o livro de que é adaptação, a não ser nos casos em que o texto original é um romance de quinta, e a resultante cinematográfica, uma obra-prima. É o caso de Psicose, por exemplo. No mais das vezes, vale mais a pena perder uns dias sobre o papel do que um par de horas diante da tela. Logo, o melhor é criar algo inteiramente diferente do original, que não possa ser comparado a ele, que provoque no máximo uma ligeira reminiscência.

É que, dizem, uma imagem vale por mil palavras. Eu estaria mais inclinado a considerar que uma imagem vale por uma imagem; uma palavra, por uma palavra. São linguagens que atingem campos diferentes da nossa sensibilidade. Uma cena não é o mesmo que a descrição da cena, nem é o mesmo que sua representação. Assim, alguém que assista a um filme com a cabeça de um leitor está fadado a não compreender absolutamente nada do que tem pela frente.

É nessa distinção que Houellebecq entrega o ouro. A grande vantagem do texto escrito é que, embora demore muito mais tempo para ser absorvido do que o visual, deixa sempre um espaço enorme para a imaginação. Por mais detalhada que seja uma descrição, ela não entrega pronta a figura descrita, como acontece na tela. Determinadas idiossincrasias do autor conseguem manter-se veladas, se for essa sua intenção. A imagem exige cuidados maiores. A escolha dos atores tende a reproduzir os mecanismos inconscientes de quem os escolheu, e no caso de A possibilidade de uma ilha, o diretor é o próprio escritor. Paisagens, cores, cortes, tudo isso é parte do discurso, tanto quanto vírgulas, parágrafos e capítulos no romance original. É possível ler através desses detalhes.

Não sei como explicar, para alguém que não o viu e provavelmente não o verá, o que o filme deixa revelar, provavelmente sem querer. Chego a imaginar, também, que posso ter projetado minhas próprias opiniões sobre a obra; isso não é de todo impossível. Mas, ressalvas à parte, o tom decadentista de Houellebecq parece desnudar-se inteiramente. Revela-se, como eu desconfiava, forçado. Tive a impressão de que o autor não acredita em seus próprios argumentos.

A desolação que as paisagens deveriam transmitir parecem estar só na reiteração dos horizontes calcinados, enfileirados sem sentido, incapazes de tocar o espectador. A acidez do protagonista, interpretado por Benoît Magimel (que já encarnou Luís XIV), parece vir mais de sua fisionomia peculiar do que de sua postura diante dos fatos que presencia.

A heroína silenciosa, cujo clone vagueia por terras inóspitas após o desaparecimento da humanidade, faz um esforço enorme para expressar seu desespero. Mas não é fácil, sobretudo se comparamos sua situação à do clone do protagonista, que passeia em filosofices verborrágicas por campos e vales, acompanhado de um cãozinho muito simpático. Não estou querendo corroborar a idéia de que Houellebecq seja racista por fazer cair repetidamente sua protagonista negra, seminua, ao chão de um deserto, sem lhe dar ao menos uma fala para mostrar seu trabalho de atriz, enquanto o rapaz esbelto, louro e culto paira sobre a desgraça humana com um belo terno negro e um cajado, falando sem parar. Mas é difícil entender por que tanta desigualdade, mesmo depois que acabou o sistema capitalista.

Não quero demover os amantes da literatura de uma ida ao cinema para ver A possibilidade de uma ilha. Pelo contrário, apesar de todos os defeitos que eu acreditei encontrar no filme, o fato de que ele exista é um acontecimento a ser aplaudido. Ademais, para quem gosta mesmo de livros, de Houellebecq ou não, é uma oportunidade rara ver como um autor adapta sua própria obra para a tela.

PS: Para quem lê em francês, eis uma discussão interessante sobre o filme.

E outra aqui, indicação de Bruno Carmelo.

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