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O repouso do general

Quando soube que estariam todos fora – demônios, reis, colombinas, palhaços –, concebeu o mal-estar, dramatizou a doença, conquistou a solidão. Livres as paredes para o silêncio, os salões entregues à vibração do tempo baldio, fremiu e suspirou de alívio e apreensão.

Estacou por instantes sem volume. Quando o sangue voltou aos dedos, entregou-se à tarefa solene de desabotoar a farda, pendurá-la no cabide, encerrá-la na escuridão do guarda-roupa. Puxou dos ombros os galardões cheios de estrelas, apertou-os na palma da mão e os depositou na gaveta. Fora de vista, mas não de alcance. Para o caso de precisar buscá-los às pressas.

Seria lá o repouso do general. Nada de respostas, nada de comandos e decisões. A camisa de algodão lhe caía esquisita, mas agradável. Como trocar de pele.

Respiração caprichada, caminhou a passos arrastados até a poltrona. E se instalou, rijo, como numa sala de interrogatório. Conforme o previsto.

Só então ousou um lançar de olhos para o volume que trazia entre as mãos. O objeto grande, pesado e viscoso, coberto por um pano branco tão limpo, liso, fragrante – por que não dizer: imaculado. Tantos anos à espera do momento de encarar a carga, tantos anos, pareciam uma vida inteira. A exemplo da vida, não tinham começo na memória. Que esforço, que heroísmo, dar a crer aos outros que aquilo, aquela coisa, era natural. Que sabia o que fazia. Que vagava pela casa carregando um pacote branco com algum propósito. Missão misteriosa, mas incontornável.

Agora que estavam todos fora – demônios, reis, colombinas, palhaços –, era o momento de esclarecer tudo de uma vez por todas. Teve orgulho da coragem com que fitava o volume fantasmagórico. As mãos, porém, suavam. O cotovelo empurrava os dedos para o pano, o ombro os retinha. Homem e objeto, como conjunto, entravam em sintonia com o tempo paralisado.

Sentiu-se ameaçado, espantou-se, puxou por reflexo o lençol, violento. O tecido voou como espectro e pousou como pomba. Ficou espalhado sobre o assoalho, inerte.

Diante de seus olhos, o volume descoberto. Como antes, não sabia o que era. Não podia descrever a forma. Irregular e perfeitamente simétrico. Opaco ao extremo. Difuso, fora de questão. Solidez opressiva que se esvaía rumo ao chão. Por hábito, desandou a dar nomes: é o mundo, é minha alma, é o passado.

De súbito, faltou fôlego. Cessou a confusão do batismo cego. Poderia decidir-se por qualquer daqueles nomes, ou qualquer outro; subsistiria o mais terrível dos atributos, sempre. O que trazia nas mãos, nelas teria de seguir. Deixasse cair, é certo que espatifaria. O ar seria tomado de imediato pelo vapor venenoso do mundo, da alma, do passado.

Sufocaria. Pereceria. E não conseguia escolher entre o sacrifício sumário, mas horrendo, e a tortura vitalícia de carregar ainda, diante de todos – demônios, reis, colombinas, palhaços –, o volume abjeto, a massa amorfa, coberta pelo mesmo pano branco outrora imaculado, agora encardido com a poeira das cidades.

Na fúria da indecisão, lembrou-se das insígnias ocultas. Esticou-se com cuidado reverente. Não foi à gaveta, mas ao lençol, ainda enrugado a seus pés. A decisão estava tomada sem que alguém a tomasse.

Mesmo para a alma perturbada, à beira do escapismo, era patente. Sublinhavam-no as lágrimas, ao romper o portal. O peito se ergueu em revolta, soluçava e recusava o ar. Debaixo da mortalha, o objeto estremeceu. Poderia deslizar a qualquer instante. Mas não havia controle para os espasmos do corpo entregue.

De uma porta que se cria inexistente, entrou a desconhecida. O susto invocou o sangue das faces e ressuscitou o general. As estrelas das divisas tinham aparência ridícula sobre o algodão dos ombros, mas expunham uma imposição de respeito.

Só não se entregava à deferência o rosto ainda afogueado. A desconhecida flutuava através do salão. Encarou-o e, com expressão indiferente, perguntou o porquê das lágrimas. A resposta saiu refletida, viril como cumpre replicar:

— Não sei… Não sei.

Com isso, ergueu-se e se pôs em marcha, carregando seu fardo, até a escrivaninha do quotidiano.

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A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

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O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

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Se um estoura, estouram todos (ou O Sapo de La Fontaine)

Sapo gordo prestes a estourar (La Fontaine)
É feio dizer “eu avisei” ou “eu já sabia”; mas acontece que, bem, eu avisei. E eu já sabia. Com as ferramentas rudimentares do raciocínio econômico que tinha aprendido a manusear ao final de uma formação quase involuntária, consegui provar por A+B que, não importa em que direção aponte o gráfico de crescimento do PIB brasileiro, a cidade de São Paulo caminhava com destino certo para o colapso definitivo. Isso, perdoe reiterar, é o que eu dizia há coisa de cinco anos. Mas só hoje, ao tentar discutir soluções para o problema do trânsito, a sociedade e seus governantes percebem o óbvio.

Bem que tento conter o impulso de me vangloriar. Mas lembro dos fins-de-tarde nos botecos da Augusta, contemplando a guerra entre carros, motos e ônibus, tomando cerveja gelada enquanto os afoitos profissionais derretiam na tentativa de voltar a casa; lembro dos amigos a rir, já altos, da exposição detalhada de minha teoria. Lembro que eles consideravam impossível duas tendências opostas darem o mesmo resultado. Enfim, só quero lembrar a eles que estava tudo previsto.

Aqueles meus cálculos contemplavam duas possibilidades, ou seja, um Brasil em franco crescimento econômico, digamos, quase um novo milagre; ou um Brasil estagnado, irremediavelmente estagnado, pior ainda do que foi nos anos 80 e 90. Em ambos os casos, a própria concentração pantagruélica de riqueza na terra que um dia teve garoa se encarregaria de sufocá-la. Vejamos, em primeiro lugar, o que aconteceria se o país não conseguisse retomar o crescimento:

À primeira vista, a idéia não parece má para a vida paulistana. Sem crescimento econômico, vendem-se menos carros, constroem-se menos arranha-céus, menos pessoas se espremem nas plataformas do metrô, menos aviões chegam e partem de Congonhas. Olhando assim, não parece terrível, para a cidade de São Paulo, que o país siga estagnado. Acontece que, como de hábito, a coisa não é tão simples. Mesmo estagnado, o país produz novas pessoas; é gente que precisa encontrar trabalho e, como já se viu durante décadas em nosso país, vai atrás dele onde ele está. Conseqüência: o fluxo de gente em desespero, fugindo da miséria, que chegaria em São Paulo em busca de emprego não deixaria de aumentar. A cidade ficaria ainda mais apinhada, mais favelizada, mais desigual e, bem provavelmente, mais violenta. Em duas palavras, ela sufocaria.

E se o país enriquecesse, (sem redistribuir a economia pelo território)? Nesse caso, o crescimento dos investimentos, o aumento da renda, a queda do desemprego, a pressão por novos empreendimentos – em resumo, tudo que acompanha o crescimento econômico vigoroso – tornaria a cidade intransitável em dois segundos. E irrespirável, naturalmente. O horizonte sumiria de vez, as aeronaves se chocariam, tentando pousar no meio da cidade, o barulho de helicópteros ficaria insuportável; no metrô, um grito de “fogo”, “rato” ou “tarado” causaria uma onda de choque que atiraria os cidadãos mais próximos da linha sobre os trilhos eletrificados (já é assim). O caos, que estava evidente para qualquer um com o mínimo senso de civilização, ficaria patente.

Na última semana, li diversos comentários sobre os recordes de engarrafamento em São Paulo. 180 quilômetros, 190, 200, 220. O metrô teria sido uma solução, mas é tarde, não dá tempo. Tampouco bastaria a proposta de pedágio urbano: por falta de opções, os carros pagariam, mas continuariam circulando quase tanto quanto hoje. Há mais de dez anos, li que o prejuízo com o trânsito, só em São Paulo, passava da casa do bilhão e meio de dólares por ano. Hoje, deve ser o triplo disso. Já era uma cidade em que eu não conseguia trabalhar direito, porque já chegava “no serviço” (como se diz) esgotado. Hoje, tremo de lembrar.

A única solução para São Paulo e, de maneira geral, para o Brasil e suas metrópoles, é repensar nossa lógica econômica. Precisamos tomar consciência de nossa dificuldade em romper com a tradição do Convênio de Taubaté. Eis o ponto-chave nefasto de nossa história, que escancarou, em papel passado, nossa escolha pelo latifúndio. Passamos dos cafeicultores aos industriais, depois aos bancos, mas ainda somos os mesmos. Queremos concentrar a lavoura (em sentido metafórico), queremos crescer com a energia que sugamos dos vizinhos, e ainda acreditamos demais em superlativos: de que vale termos o maior estádio, a segunda maior frota de automóveis e terceira de helicópteros, a maior sala de concertos, as maiores cidades? Do outro lado, o país ainda produz miséria, ignorância e barbárie em profusão. Voltando à realidade de São Paulo, temos uma Berrini que vai se verticalizando, enquanto, ao nível do solo, a vida é, há tempos, insuportável. Má escolha.

Sem desconcentrar a economia, integrar o país e desenvolver as regiões, ou seja, o território como um todo, o país e sua maior cidade estão condenados. É o anátema da cobiça. Mas isso é apenas o evidente. São Paulo, primeiro, cresceu como centro industrial e era um modelo para o resto do país; locomotiva, dizia-se. No meio do caminho, o maquinista parece ter exagerado no carvão; achacado pelo espírito do Convênio de Taubaté, depenou das tábuas os demais vagões, para continuar acelerando. A cidade se pôs a concentrar o setor financeiro, o cultural, o varejista, o esportivo, o editorial, o aéreo…

Faz lembrar o sapo da fábula de La Fontaine, que queria ficar do tamanho de um boi. Foi se enchendo de ar, cresceu, cresceu, até que estourou. No caso de Sampa, o maior problema é que tem um país em volta. Se um sapo estoura, estouram todos. Parece que a barriga do bicho já apresenta algumas rachaduras preocupantes. E as perspectivas de crescimento para o PIB brasileiro em 2008 vão além dos 5% de 2007. Não tem metrô, pedágio ou rodízio que sirva de esparadrapo para um sapo tão inchado.

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O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do olvido da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos:

Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai!

Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar da mulher que acantoa uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo “simplesmente” no meio de seu poema (sim, asseguro que é um poema), o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: “as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca”. Se, no lugar do “simplesmente”, o autor cometesse algo como “inversamente”, “ao contrário” ou “em vez disso”, a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é.

Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

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Um repórter, finalmente!

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Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.

Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

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