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45 minutos de um início de século

Decido esticar um pouco mais o motor, abusar da energia que resta ao fim de uma jornada já intensa, aproveitar que os olhos e os neurônios ainda estão embalados para trabalhar até a pane no sistema nervoso. Um erro, nem preciso dizer: não bastasse a epopéia de encontrar uma porta aberta para deixar o edifício, é subúrbio, é noite, e em meio de semana há menos trens. Um quarto de hora na plataforma, à espera da composição, acompanhando o vapor que minha respiração lança no ar, dificilmente constitui um prazer. São nove horas.

Já a meio caminho ouço à distância – na verdade, não tão longe – o buzinaço. Cinco para as nove, provavelmente. Sigo meu caminho. De imediato, imagino que seja o trânsito na via expressa, agravado por um acidente, quem sabe. Mas essa interpretação é tola e logo se dissipa: não buzinas, buzinaço. Coisa muito diferente. Só pode ser futebol, percebo, corrigindo-me. Lembro de uma notícia lida pela manhã: é noite de jogo da França e os autóctones estão exasperados, temerosos de ficar fora da Copa. Está esclarecido o mistério, julgo, e me engano novamente. Prossegue a barulheira. Estremeço como Proust (com o perdão do paralelo) estremeceu ao sentir o pavimento irregular da rua e ser atirado em memórias de Veneza e Balbec. Quanto a mim, é como se estivesse diante de uma UERJ da vida. Em noite de gala.

Por um momento, me perco da realidade. Faltando dois para as nove, sou despertado por um berro agudo. Percebo que já subo a rampa da estação e uma motoca com dois molecotes vem descendo bem rápido e em ziguezague. O berro é da buzina, desagradável mas ridícula, descontado o risco de atropelamento. Salto de lado, desejando secretamente esticar a pasta para causar um acidente. Deve ser o mesmo desejo secreto da pequena senhora que, poucos passos atrás de mim, também dá um pulo e dirige à motoca um palavrão. Já vão longe os meninos, empunhando uma bandeira que, no escuro, não consigo divisar.

Uma tela azul informa que o próximo trem só chega às nove e quinze. Suspiros meus e de quem mais tenha visto a informação. Desço as escadas e conto, por falta do que fazer, os gatos-pingados que esperam sob a luz tíbia das lâmpadas parcas. São 21; mas sou mais um, não posso esquecer de contar a mim mesmo: somos 22. Segue o buzinaço. Os franceses, imagino, vão animados para o Stade de France . Nove e cinco.

Além do alambrado, escuto mais berros. Posso enxergar uma pequena multidão à distância e logo concluo que é mais gente a caminho do estádio. Surpreende-me, porém, o mantra entoado: nada de “Allez les bleus!”, mas algo diferente. Impossível decifrar, com a concorrência de um trem que passa vazio. Passa ao meu lado um menino, doze anos talvez, vestindo uma camiseta branca, com um escudo verde. Reconheço a bandeira da Argélia. Apuro o ouvido e consigo distinguir as palavras do canto: One, two, three! Vive l’Algérie! Uma rima bilíngüe, coisas da globalização, e de autoria de um povo que fala ainda um terceiro idioma. Nove e dez, o frio já trinca a minha mandíbula, o barulho dos torcedores embandeirados vai se aproximando. Seria então um França x Argélia? Seria no Stade de France? Nesse caso, que coragem demonstram os magrebinos. Vão atravessar a cidade torcendo contra o mandante! Ali no subúrbio, onde os conjuntos habitacionais escondem e contêm os tons de pele e as línguas menos estimados no país, eles estão seguros, diria mesmo que estão em casa. Mas no centro da capital, sabem os deuses o que pode suceder.

São nove e dez. O garoto uniformizado está mais uma vez por perto. Peço licença e pergunto com quem a Argélia vai jogar. Ele me encara como se eu viesse de cair da lua. Em poucas palavras, ele explica: já jogou, já ganhou, está na Copa e nós vamos comemorar em Saint Michel. Eu também me sinto como um alienígena. Parabenizo o rapaz e desejo sorte no Mundial. Meu inconsciente, enquanto isso, divide-se em duas ponderações. O menino fala um francês perfeito. Ele é francês. Certamente nasceu por aqui. Mas está identificado é com o país de seus ancestrais, como toda aquela multidão que vai se aproximando da estação, cada vez mais barulhenta.

Rumo a Saint Michel, a praça apinhada de turistas onde têm lugar todas as comemorações esportivas da cidade. Como quando os bleus ganharam da Nova Zelândia no rúgbi ou, hélas, do Brasil no futebol. Esta noite, outro país fará sua celebração de vitória, no coração da antiga capital imperial, diante da fonte onde o Arcanjo degola o dragão. Sabem os deuses, ainda, o que pode acontecer. Ponho-me a especular se não haveria um certo fundo político, de cunho étnico, histórico, sei lá eu, nessa manifestação esportiva. Pode ser. Mas certamente não para o menino afogueado e imberbe que se posta à minha frente. Tento parecer simpático e explico que não acompanho muito, na verdade quase nada, do futebol europeu ou, no caso, africano. Por outro lado, e a despeito de um amortecimento em mantas e cachecóis, também estou num espírito futebolístico. Meu time joga hoje, estou apreensivo, e ainda por cima o jogo cai no meio da madrugada, em função do fuso horário. O garoto não quer saber, está provavelmente incomodado por aquele sujeito – talvez até eu lhe apareça como um velho – que puxa assunto assim, sem mais, na plataforma do trem.

Ele não está para confraternizações. Não com brasileiros, ao menos. São nove e doze, o one-two-three já desce os degraus para tomar o trem que passa em três minutos. Mais uma vez, sinto como se fosse a estação Maracanã, aquela massa humana magnificada pelo próprio número, estapeando os painéis publicitários como se fossem tambores e provocando os poucos que permanecem alheios, fingindo ignorá-los. Nada no muito é mais importante do que o destino daquela equipe, é o que crêem os argelinos, como creram e seguirão crendo todos os torcedores em todos os tempos. Reis e generais não fazem a história, mas centroavantes e arqueiros. Acho curioso como eles falam em francês entre si, sem sotaque algum, afora as gírias do subúrbio. Estranha situação, penso. Estar ligado a uma terra pelo corpo e a outra pela alma. O imperialismo deixa suas chagas, não apenas nas colônias, mas na própria metrópole. Clemenceau dificilmente terá imaginado que um dia a juventude argelina tomaria de assalto a praça de Saint Michel. Pois é o que farão, esta noite, os netos e bisnetos de um povo que, naquele tempo, nada mais era do que carne para moer na luta contra o Kaiser.

Chega a composição às nove e quinze, numa surpreendente pontualidade. Os torcedores fazem também o trem de tambor. Pá Pá Pá! Os passageiros se assustam. O canto ainda é o mesmo: one-two-three, vive l’Algérie! Não sem um certo desprezo bairrista, concluo que o brasileiro é muito mais criativo, cheio de cantos diferentes, alguns brilhantes, outros dementes, incitando uma violência tão à toa quanto um jornal esportivo. Procuro um vagão com menos bandeiras e apitos, na esperança de viajar sentado. Qual. Sou obrigado a seguir em pé e o trem ainda vai lento, suponho que por causa dos torcedores, talvez se pendurando para fora ou qualquer coisa dessas que torcedores fazem, como sabemos. Na primeira parada, nove e vinte, entra uma moça de xador e bandeirola na mão. Ela agitará seu brinquedinho timidamente. Não deve ter o hábito do futebol.

Mais alguns minutos e estamos na estação central, onde vamos nos separar. Sigo ao norte, eles ao sul, rumo ao grande objetivo estratégico, a praça Saint Michel. Consigo descer mais rápido e avanço na direção das catracas e da esteira rolante. Nove e vinte e quatro, ouço à distância a aritmética anglo-saxã dos argelinos, felizes da vida. Mas já nada tenho com eles, ou pelo menos é o que creio.

Mais veloz que eu, chega à esteira rolante uma pequena companhia de policiais. São sete. Caminham bem à minha frente. Como de hábito, ponho-me a considerar sua aparência ameaçadora. Todos grandes, fortes como colheitadeiras, com suas jaquetas e calças negras, estofadas para aumentar a impressão de musculatura. Nada que lembre os tradicionais e simpáticos uniformes da política francesa. São todos muito brancos e nenhum parece interessado na vitória da Argélia. Cabeças raspadas debaixo das boinas também negras e um cinto de utilidades à la Batman, com pistola, lanterna e um mostruário de bugigangas que não sei identificar. Com seus coturnos de sola grossa, são todos muito altos, e cada passo ribomba pelo subterrâneo. Quem passa no sentido oposto espia discretamente, com uma certa perplexidade e um grande receio de encarar diretamente aqueles agentes da, como se diz, ordem. Alguns olhares também se dirigem para mim. Esses deixam entrever uma certa pena, como se imaginassem que estou sendo detido.

Aquelas figuras, com seus cassetetes, suas luvas, suas algemas, também me incomodam. Espero poder me afastar deles assim que termine a esteira. Mas, para minha grande decepção, eles tomam o mesmo túnel que eu, sobem os mesmos degraus. Esmagam a escada rolante como se a quisessem escangalhar. Nem imagino de onde vem esse ódio. Nove e vinte e oito, estamos todos, os policiais e eu, na mesma plataforma do metrô. O que querem aqui? Para onde vão? E por que sete, cáspite?

A resposta aparece espontaneamente às nove e meia em ponto. Do outro lado, uma vibração abafada parece vir do túnel. Ela cresce e se transforma num som conhecido: one-two-three, vive l’Algérie. Em poucos instantes, a plataforma oposta está inundada de jovens em verde e branco, empunhando as bandeiras com o crescente – uma delas enorme –, pulando como crianças e fazendo desta vez as máquinas de refrigerante de tambores, que denunciam a falta de ritmo. (Nisso os brasileiros também somos melhores.) Notável, me dizem meus botões, como as torcidas se parecem no mundo inteiro.

Ao mesmo tempo, minha visão periférica capta um movimento rápido. São os policiais, que afastam os viajantes sem grande gentileza e se perfilam diante dos trilhos, olhos petrificados e fixos na pequena multidão festiva. Espinhas retesadas, todos. Alguns cruzam os braços, outros apóiam os punhos na cintura. O que para mim era uma torcida, para eles é um bando de baderneiros, pelo visto. Mas os baderneiros não dão bola para a posição de ataque dos predadores, separados da enorme presa por uma vala eletrificada. A festa continua, a cantoria, a barulheira. O poder de dissuasão dos mamutes públicos é nula diante do contentamento magrebino.

É nove e trinta e três quando chega o metrô para os torcedores e demais passageiros na direção contrária à minha. Eles embarcam sem conceder um mínimo olhar às hostes da repressão e da ordem, aos sete bravos touros que não deixam de encará-los, mesmo quando as portas se fecham. Não há contato, não há comunicação. A disparidade das emoções e intenções é tão radical que encerra os dois grupos em universos isolados. Ainda bem, concluo. Provocações de parte a parte não poderiam terminar bem.

Restabelecido o silêncio na estação, penso que os policiais vão retomar sua conversa ali mesmo. Qual nada. Mal partiu o trem, nove e trinta e cinco, o mais velho e provavelmente mais graduado dá um tapa ligeiro no ombro de um outro e sentencia: “pronto, podemos ir”. Como se abrissem uma comporta, todos relaxam. Os rostos de pedra se tornam milagrosamente humanos. Contando piadas e trocando receitas, eles viram as costas e partem, de volta para casa ou para o quartel – ou ambos, por que não? Eles estavam ali com o fito único de se revelar em ameaça diante da multidão de argelinos. Nada mais. Exercida a pressão, missão cumprida. Todos os presentes vão se lembrar de que, afinal de contas, não estamos seguros coisa nenhuma.

Finalmente, tudo está tranqüilo. Sem tambores, sem rimas bilíngües, sem tropa de choque. Reflexivo e algo entristecido, tomo o metrô às nove e trinta e seis. Às nove e quarenta, estou caminhando para casa. Não me encontro mais no subúrbio, mas ainda muitos carros passam na avenida como bandeiras alviverdes, crescentes, buzinaços, one-two-three e Yallah, yallah. Esfomeado e morto de frio, aperto o passo, mas só tenho um pensamento: oxalá a polícia não invente de ir à praça Saint Michel.

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A “sensação de segurança” é um engodo

O penúltimo texto tratava de um dos aspectos mais cansativos e artificiais da forma marqueteira que assumiu a política de uns tempos para cá. (Quanto tempo? Dez, vinte anos? Difícil estabelecer um início preciso para um processo tão paulatino…) Embora o tema a perpasse sem descanso, não me refiro à política enquanto disputa de poder, embora esse aspecto tenha recoberto o termo quase inteiramente no debate público, mas ao verdadeiro quotidiano político, o esforço constante de viver em comunidade. Trata-se da questão da segurança, martelada em todos os telejornais, muitos filmes, conversas no barbeiro e no táxi, e repetida inclementemente por candidatos a qualquer coisa em seus discursos temerários.

Poderia ser uma particularidade brasileira. Afinal, nossas maiores cidades são território livre para assaltos, sequestros-relâmpago e o diabo a quatro, quando não estão em franca guerra civil, sem contar os acordos de bastidores entre governos e grupos criminosos para que estes últimos “peguem leve”. Mas não. A julgar pela prioridade que o tema recebe, o mundo inteiro deve estar à beira de centenas de guerras civis entre criminosos satânicos e os pobrezinhos dos cidadãos de bem, sempre acuados em seus cantos, tentando levar suas vidas sem serem esquartejados por bandos criminosos. Sem contar os terroristas, claro. Porque, afinal de contas, eles existem. E se existem, só podem estar por toda parte, certo? O raciocínio parece tortuoso, mas tem dado sucesso a seus proponentes em eleições mundo afora.

Muitos meses atrás, comentei aqui sobre a violência policial, comparando maio de 68 e todos os meses de 2008, na França como no mundo. Só de confrontar fotografias antigas com recentes, ficou claro que a tropa de choque (CRS na França) que trocaram cascudos com estudantes diante da Sorbonne em 68 mais parece uma fileira de guardas de trânsito, comparada à tropa de hoje. Aqueles policiais tinham capacetes, escudos e espingardas (não usaram), por certo; os de hoje parecem robôs de filmes de ficção científica, com suas armaduras, máscaras e coturnos à la Kiss. A polícia de hoje é bem mais ameaçadora. Tem um visual que intimida enormemente. Mesmo as patrulhas simples, pelo menos na França (e pelo que vi, no Rio também), vestem-se com blusas negras que lhes dão um ar de muito mais fortes, além de rasparem a cabeça como recrutas do exército. Não consegui explicar isso à época, então retomo a pergunta: por que a polícia deste início de século precisa causar tanto terror?

Para responder, volto ao penúltimo texto: a estação ferroviária, a cerveja, os soldados em uniforme camuflado exibindo suas boinas negras e seus fuzis semi-automáticos, desses que disparam sei lá quantas centenas de projéteis por segundo. Também coturnos, também cabeças raspadas, uma forma de olhar que, sem a menor fagulha de sucesso, buscava passar a impressão de investigar qualquer coisa. Um quarteto que se arrastava entre malas e bilhetes, simbolizando o mesmo programa anti-terrorismo que eliminou os bagageiros das estações de trem. Imagino o alto comando do exército a formular sua política de combate aos homens-bomba: colocar alguns rapazes sobre as plataformas, prontos para metralhar o primeiro zé-mané que pareça ter uma banana de dinamite por baixo da bata ou do turbante (sim, porque gente de paletó está acima de qualquer suspeita).

A segurança é a prioridade número um da maioria dos governos ao redor do mundo. Economia, saúde, educação, meio-ambiente, tudo isso é obrigado a disputar o segundo lugar, onde ainda sobram eventuais migalhas de atenção midiática. Talvez haja duas exceções. Uma é nosso bom e velho Lula, porque também não tem muito como competir com os políticos estaduais Brasil afora, que ainda enchem as PMs de carros enquanto a criminalidade teima em não ceder. A outra é o celebérrimo Obama, que, não é nada, não é nada, prossegue com duas guerras do outro lado do mundo, uma delas justamente contra o terrorismo. Fora esses aí, há anos ouvimos falar, e vemos na prática, em aumento do efetivo policial, tolerância zero, combate à delinqüência, câmeras espalhadas pelas cidades, monitoramento de lan-häuser, atenção particular para os “subúrbios sensíveis”. O público, já apavorado, porque já escutou esses discursos todos e já viu cenas de jovens em confronto com a tropa de choque, adere. Vota, esquece todos os outros problemas, fecha os olhos para a má gestão da estrutura pública… essa ladainha, todos conhecemos.

Mas, ora, que coisa estranha: nenhuma dessas políticas de segurança tem surtido um grande efeito duradouro. A não ser, talvez, o programa de Rudolph Giuliani em Nova York, o “tolerância zero”. Mas não é a mesma coisa, porque o que se fez na Big Apple foi deixar de fechar o olho para as pequenas infrações, como avançar o sinal vermelho e encher as calçadas de cadeiras. Isso, mais um policiamento ostensivo em nada diferente do que fazem os tradicionais guardas londrinos, conseguiu um nível de paz e tranqüilidade urbana muito maior do que a paranóia policialesca que, por exemplo, levou ao assassinato de Jean Charles.

A reação do público, no entanto, parece não reverberar a contradição. Nas pesquisas, as pessoas, aquelas normais, trabalhadoras, de bem (e assim por diante), continuam manifestando um medo enorme, diante de um mundo que lhes aparece como cada vez mais perigoso, instável e coalhado de bandidos, desde criminosos comuns até terroristas religiosos. Mesmo assim, elas declaram, diante da reação governamental, isto é, diante da presença massiva de gente com uniforme futurista, cacetete, fuzil, boina, cabeça raspada, escudo, capacete, óculos de visão noturna e gás lacrimogêneo, que experimentam uma maior “sensação de segurança”.

Ora, direi, sensação de segurança! Mas se dizíeis estar a vos cagar de medo! Como é possível?

Diante de tamanho paradoxo, refleti sobre o assunto e cheguei à conclusão que segue: essa tal “sensação de segurança” é um engodo. Ela não existe. Quando alguém acredita experimentar uma “sensação de segurança”, está enganada, não porque não esteja sentindo nada, mas porque aquilo que ela toma por uma “sensação de segurança” é, na verdade, outra coisa. Logo veremos o quê. Primeiro, preciso mostrar que não faz sentido falar em “sensação de segurança”. Ora, “sensação de segurança”…

Imagine você, em sua casa, deitado em seu sofá numa tarde de sábado, depois daquela feijoada, vendo pela televisão seu time ser esculachado em rede nacional. Você está seguro? Até certo ponto, sim. Pode cair um meteoro em sua casa, claro, mas afora essas hipóteses mirabolantes, você corre pouco risco de ser vítima de algum evento traumático ou perigoso. E que sensação você tem nesse momento? Sonolência, provavelmente. Raiva do juiz, talvez. Preocupação com o aluguel, eventualmente. Azia, posso arriscar. Mas “sensação de segurança”? Duvido.

Outra situação: você está dirigindo numa estrada escura. É noite. Chove a cântaros (é uma chuva das antigas). De repente, uma enorme vaca ruminando a um palmo dos faróis. Você entra em pânico. Solta um berro de pavor. Mas não há tempo para faniquitos: no último instante, você dá uma guinada com o volante, afunda o pé no freio, depois no acelerador, e consegue se safar. Seu coração ainda está disparado, você continua sem fôlego, suas mãos tremem. Mas o medo já passou. O que você sente? Alívio, certamente. Ódio da péssima iluminação da estrada, sem dúvida. Pena da vaca que talvez não escape ao próximo carro, nem ele a ela. Mas “sensação de segurança”? Necas…

Talvez eu esteja querendo brigar com os fatos, admito. Se as pessoas garantem que têm essa tal sensação, se elas insistem que é uma experiência verdadeira, quem sou eu para contradizê-las? Mas antes que me lapidem: eu nunca disse que elas não sentem nada. Eu disse simplesmente que essa sensação não é de segurança. Então, direis, é de quê? Tentarei responder.

Metade da resposta, acredito, está nas explicações dos pesquisados. Elas sentem medo e o associam de alguma maneira à “sensação de segurança”. Essa associação é muito freqüente para ser coincidência. De fato, tudo aponta para a noção de que a “sensação de segurança” corresponde à constatação (talvez inconsciente) de uma ausência de ameaça ou, melhor ainda, da ameaça contida, afastada, superada. É o que vimos nos exemplos acima, de maneira rudimentar, mas válida. Portanto, é impossível conceber a “sensação de segurança” sem uma sensação mais fundamental e mais evidente de medo, pavor, terror, ameaça, risco, decadência, desordem, chame como quiser – escolha, por exemplo, uma palavra do repertório de analistas políticos ligados a qualquer governo ao redor do mundo.

Seguimos no campo do paradoxo: como é possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre o medo, se o medo é o oposto da segurança? Estranho, não? Falta alguma coisa nessa nossa definição…

Então voltemos aos dois textos que mencionei nos primeiros parágrafos. O que encontramos? Policiais saídos de algum videogame, desses baseados em Robocop ou Exterminador do Futuro. O temor (mal dirigido) do terrorismo islâmico, que põe soldados armados até os dentes em todas as estações de trem da França (e muitos pontos turísticos), como se aqueles rapazes recém-saídos do treinamento fossem capazes de evitar a detonação de uma bomba. As tropas de choque que, e isso eu vi com meus próprios olhos, precisam de dois ou três batalhões, camburões e jatos d’água para desbloquear escolas onde garotos e garotas de 16, 17 anos fazem seu mui ameaçador piquete.

Para que serve tudo isso? Quem está mais seguro graças a esses bravos profissionais da violência estatal? A população? A gente de bem? O nobre e honrado cidadão? Alguém realmente acredita nisso? Sim, alguém acredita nisso. Basta ver, também alguns parágrafos acima, a reação habitual dos já mencionados cidadãos. Mortos de medo, mas ainda eleitores dos Sarkozys, Berlusconis e Serras da vida, graças a essa formidável “sensação de segurança”.

Devem então ser esses os componentes da magia paradoxal de nosso tempo. Primeiro, o medo; depois, o belicismo encarnado em policiais e soldados. Mas por que o belicismo? O que ele representa, quer dizer, o que ele provoca em quem o presencia? Traduzindo, como é que ele contribui para a “sensação de segurança”? Afinal de contas, guerras são tão opostas a qualquer noção de segurança quando o próprio medo, aliá seu correlato. Será possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre duas coisas que se opõem tão perfeitamente a qualquer idéia de estar seguro?

Sim, é possível. E talvez exatamente como conseqüência da contradição, da mesma forma como a multiplicação de dois números negativos produz um positivo. O belicismo dos assustadores soldados faz sentido quando entendemos a impressão que ele esconde: uma percepção de força, ou seja, uma demonstração de poder. Talvez o conforto implícito de que é possível agredir de volta, ou até agredir antes. De que qualquer ameaça será contrabalançada por um efeito punitivo e multiplicador. Que sei? Só posso afirmar que essa projeção de virilidade primitiva é o segundo componente da tal “sensação de segurança”.

Com isso, acho que já temos um quadro da nossa vítima. A “sensação de segurança” nada mais é senão um núcleo de medo recoberto por uma couraça de poder. Como o medo exige alguma forma de força e a força só é necessária quando temos medo, um anula e alimenta o outro. Desse estranho equilíbrio, dessa tensão delicada e perigosa, nasce essa tal “sensação de segurança” que tanta gente afirma sentir. Ou seja, é um engodo e um engodo arriscado.

Digo arriscado porque a “sensação de segurança” só pode aumentar de duas maneiras: ou cresce o medo e, em seguida, a demonstração de força como reação que restabelece o equilíbrio, ou aumentam, forçando um pouco a barra, as demonstrações de força, que por sua vez reverberam até multiplicar também o medo original. Não é difícil perceber que estamos diante de uma bola de neve. Só lembrando que o destino de toda bola de neve é a avalanche.

Até onde conseguimos levar o discurso e a estrutura reticular que sustentam a “sensação de segurança” tão fundamental a essa política mané de nossos tempos? De onde mais podem vir as ameaças que justifiquem tropas de choque e soldados com fuzis desfilando pelas ruas e estações de trem? Que outras medidas podem ser tomadas para, como é mesmo que se diz?, garantir a tranqüilidade dos cidadãos? Respostas nos comentários, por favor.

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Nos quartéis lhes ensinam a antiga lição

Na excitação de viajar, na ansiedade de partir, somos capazes de atravessar as estações ferroviárias sem atentar para o microcosmo que são esses ambientes abobadados, luminosos e coalhados de gente. É um mundo estranho, para não dizer invertido, em que o turistas têm o ar mais nervoso que os profissionais, porque esses últimos sabem onde estão e conhecem seus horários, enquanto o viajante ocasional se perde entre as plataformas enfileiradas de onde vão saindo as golfadas de passageiros. Também é o lugar em que bagagens se espalham pelo chão como em nenhum aeroporto, obstáculos variáveis, imprevisíveis, para os atrasados que precisem alcançar algum trem prestes a partir. Terra em que bilheteiros e maquinistas passeiam de cabeça erguida, senhores inquestionáveis. Ambiente de confusão e risco, em que batedores de carteira agem sem ser incomodados e soldados de uniforme camuflado passeiam exibindo suas metralhadoras, em busca provavelmente de terroristas com dinamite escondida no turbante.

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Convivo há anos, menos frequentemente do que gostaria, é verdade, com esse espaço de passagem e de encontro. Já topei com esses galhardos militares dezenas de vezes, mas nunca tinha parado para examiná-los. Nem brevemente. Quando corremos pela plataforma afogueados e vergando sob o peso da bagagem, é tão natural encontrar um quarteto de homens armados até os dentes quanto um grupo de americanos com camisa florida. A presença de sentinelas do exército só se torna chocante, isto é, nada natural, quando reduzimos o ritmo, sentamos para esperar um trem que ainda vai demorar, tomamos uma cerveja e deixamos os olhos passearem pelo ambiente em liberdade. Reconheço, se exigem que eu reconheça: essa rapaziada está aí para garantir a minha segurança. Mas se minha segurança precisa ser garantida por jovens moços treinados para as piores condições de combate (sei lá, no Afeganistão), então não posso me sentir nada seguro.

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Enquanto beberico a espuma da cerveja, tenho a impressão de que um deles me espia. Céus! Será o volume da carteira no bolso, que ele estima poder ser uma pistola? Tomo a nota mental de começar a andar de paletó mesmo no verão. Ou seria só inveja por eu estar bebendo e ele, trabalhando? Melhor não sorrir, nem nada: o soldado talvez seja um nervosinho à la Kubrick, pode tomar como uma ofensa e me fuzilar. O olhar pode ter outras explicações também, mas prefiro nem pensar nelas. Ele está armado e eu sou inofensivo. Seria uma boa hora para aparecer um suspeito de terrorismo que desviasse a atenção do grupelho. Se eu presenciasse uma cena de caçada, talvez tivesse um material melhor para escrever.

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Mas os homens-bomba não marcam presença. Os soldados vão se afastando, com um ar de grande atenção que mal disfarça uma enorme sonolência, digna do sábado que é. Em vez do agente da Al Qaeda, quem se aproxima das mesas é um bêbado, trazendo ao laço o cão que o caracteriza como borracho francês. A propósito, os olhos semicerrados e o passo longe de retilíneo o caracterizam como borracho internacional. Ele interrompe a marcha poucos metros à minha esquerda e começa um discurso. Dirige-se a um homem que, sentado em seu canto, finge ler seu jornal e ignorar o interlocutor. É natural ofender-se ao ser ignorado e o bêbado não é exceção: alça o tom e troca a conversa fiada por uma série de insultos (dos quais ignoro a metade) e ameaças contra o cidadão, que por sua vez já não tem os olhos tão fixos no jornal.

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Do outro lado da estação, os soldados, em seu passo sempre arrastado, contam os segundos para o fim do turno. Turistas e profissionais continuam a se esbarrar, correndo para todos os lados entre as plataformas, procurando seus destinos e seus trens, saltando malas e evitando carrinhos de bebê. Entre o bêbado e o homem do jornal, segue o impasse. O café do cliente esfria na xícara que ele não ousa alcançar. A garçonete prefere ficar fora da questão para não levar um sopapo desnecessário. O agressivo orador já tem o braço erguido. O leitor se esconde debaixo das páginas. O assunto se estende por minutos e minutos. Nós outros, acovardados, não ousamos a menor intervenção.

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Um homem em camisa branca corre para junto do bêbado. Dirige-se a ele no tom brando dos negociadores. “Ah, finalmente!”, penso. Então a estação tem seguranças, não só soldados. Qual. Obtido o sucesso de convencer o bêbado a procurar diversão em outro canto, ele retorna para sua mesa, logo atrás do epicentro da crise. Era, afinal, apenas outro cliente do bar da estação, mais corajoso que o resto de nós. Trêmulo, o alvo das injúrias agradece timidamente. Até que enfim, pode esticar a mão para o café, a essa altura gelado. O autor das injúrias, camarada que teve ao menos o mérito de animar a tarde, vai cambaleando para uma das saídas. O alívio substituindo a tensão, a atmosfera recupera aos poucos seu caráter irreal.

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Desço para o banheiro. No caminho, ao pé da escada, os quatro soldados conversam sem animação. Um deles coça a orelha com o cano da metralhadora e não consigo deixar de ficar incomodado. Por curiosidade, ponho-me a olhar em volta: cá e lá, homens de camisa negra, postados diante de lojas e corredores, trazem nas costas a inscrição “Sécurité“. Não falta, ali, quem me transmita a impressão de vigilância, seja contra os seguidores de Mohammed Atta, seja contra sei lá que outros contraventores que os homens de preto estão lá para combater. Batedores de carteira, talvez? Bêbados, certamente não.

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Não vamos nos esquecer de que era uma estação de trem, em que tudo se mistura e não sabemos bem quem está indo, quem está vindo, quem persegue ou é perseguido. Nas minhas considerações de quando parto em viagem, penso apenas em como chegar aonde vou, nas maravilhas que vou visitar, sei lá eu. Meu sentimento de segurança só se manifesta em meio a essa névoa irreal de pequenos ladrões, grandes soldados, terroristas em potencial e seguranças que vestem preto. Por um momento, tenho dificuldade em distinguir quem está do meu lado e quem quer me atacar. Claro está que não é a melhor das sensações.

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Um episódio em parte real

Como quase tudo que me sucede por aqui, foi no metrô. Madrugada de sábado, uma das últimas composições, já quando o intervalo entre uma e outra passa dos dez minutos. A namorada e eu cansados pelo horário, um tanto altos, mas nem por isso bêbados, esperávamos no silêncio dos que não têm forças para falar. Enfim veio o trem. Havia lugares vagos, para alívio de ambos, e por milagre eram contíguos. Sentamo-nos, eu muito distraído, o olhar para fora da existência, recusando-se a fixar qualquer objeto. Teria continuado assim por toda a viagem, se não ouvisse o suspiro.
– Tadinho!

Virei o rosto para ver o que se passava. Era um homem muito velho, que tentava alcançar a porta. A lâmpada vermelha já piscava, o alarme soava anasalado e arrogante, mas o pobre ancião não tinha nem condição de se apressar, tal era seu estado de decadência física. Cortava o coração vê-lo ali, radicalmente encurvado, esticando os braços a um passo da porta, no esforço heróico de colocar um pé diante do outro. Elogios ao condutor, que, do outro lado da estação, avistou a cena pelo espelho e atrasou nossa partida. Imagine aquele senhor, tão castigado, tendo de esperar um quarto de hora, em pé na plataforma.

O atraso nos deu a oportunidade de agarrar seus braços e alçá-lo para dentro, eu e um outro sujeito igualmente distraído, absorto na música de seu aparelhinho. Foi só o tempo de ele entrar, a porta fechou-se e fomos postos em movimento. Mas como o trem sacudia, já que sacudir é da natureza dos trens, foi necessário ainda segurar o pobre velho desequilibrado, que não tinha forças de se agarrar ao poste de alumínio, nem contrariar o ímpeto da composição para chegar ao assento.
Ele nos agradecia, meneando a cabeça, enquanto o conduzíamos a sentar-se. Instalado, dobrou-se sobre si mesmo e se pôs a revirar o interior do paletó. Não foi surpresa alguma constatar que sua mão tremia com violência. Uma mão de ossos, pele seca e grandes manchas circulares.

Em nome da discrição que as boas maneiras prescrevem, retomei meu assento e meu ar distraído. Do que parecia um episódio terminado, guardava apenas o sentimento de ter realizado a boa ação do dia. Tão grande era minha distração que não acompanhei a seqüência dos movimentos do ancião e, quando ele me estendeu um pequeno objeto, tomei-o sem atentar para o que era.

Vejo agora que foi um erro. Se já não o tivesse entre os dedos, poderia apenas espalmar a mão para recusar o maço de dinheiro que me fora presenteado. Àquele ponto, a quantia era impossível de estimar. Um canudo grosso feito de notas de cinqüenta. Talvez houvesse mais de mil euros atados com um elástico.

Pasmado, ergui os olhos e percebi que muitos me encaravam com ar severo. Ao meu lado, a namorada apertava minha perna, as unhas enfiadas na carne. À frente, o outro rapaz transparecia o mesmo pensamento que o meu, também segurando um maço de notas, sem jeito, o dinheiro lhe queimando os dedos. Como eu, ele claramente não sabia o que fazer. Mas foi o primeiro a falar.

– Monsieur…

Do colega, meus olhos retornaram ao pobre ancião dobrado sobre o assento à minha frente. Observei-o como antes não quisera fazer. Se me referi a ele como “pobre”, não poderia ter escolhido adjetivo mais infeliz. Cada peça de sua roupa indicava o contrário. Os óculos espessos, de aro dourado, acusavam marca das mais cobiçadas. A gravata vermelha era de seda e estampava um padrão característico dos altos funcionários da burocracia francesa. Nos sapatos, no paletó, na carteira de couro, em tudo estava explícita a condição privilegiada daquele velho que nos causava tanta pena.

Imediatamente, assomou ao meu espírito a questão mais óbvia. Que será que o levara a andar de metrô na madrugada de sábado? Um homem em suas condições, rico e doente, quase inválido, poderia muito bem ter tomado um táxi, se não possuísse um carro próprio, conduzido por chofer de luvas brancas. Como fora parar ali? Formulei internamente uma resposta: a idade afetava sua capacidade de raciocínio. Era, sem dúvida, um senil. Isso explicaria não só sua presença, mas o dinheiro que ele metera em nossas mãos.

Já que o outro beneficiado não ia além do vocativo, eu mesmo tive de superar a surpresa e formular um protesto.

– Desculpe, o senhor se enganou. Não precisa dar recompensa, ajudamos por ajudar.

O outro concordou com a cabeça. Fiquei com a impressão de que ele estava aliviado. Mas o velho se recusou a recuperar o dinheiro.

– Não é recompensa. É presente.

Dessa vez, foi o outro que falou, argumentando com a típica linguagem empolada dos franceses.

– O senhor compreende que não é habitual receber somas de desconhecidos, sobretudo com um valor tão elevado…

Em voz baixa e sumida, firme ainda assim, o ancião interrompeu a declaração de recusa e se pôs a explicar, lentamente e em tom autoritário, por que nos deslizara os canudos de dinheiro. Anunciou que estava muito doente e, como podíamos perceber, muito velho. Sabia que seu futuro não contava mais do que um par de meses. Possuía dinheiro demais, pretendia distribuí-lo e se achava no direito de fazê-lo da maneira que escolhesse.

– Minha fortuna, podem acreditar, me serviu bastante, por décadas e décadas. Lutei muito por esse dinheiro, mas também aproveitei como ninguém. Agora chega. Passei no banco, tirei tudo que tinha no caixa. Vou fazer a mesma coisa amanhã e até o corpo não aguentar. Vocês dois me ajudaram, parecem bons garotos, façam o que quiserem com o dinheiro. Comprem alguma coisa, jantem no Alain Ducasse, a escolha é de vocês. Se quiserem uma dica, sugiro viajar. As viagens são a melhor coisa que o dinheiro pode oferecer.

Os olhares que até então me cobravam, agora só exalavam curiosidade, temperada de uma ligeira inveja. Eu cumprira meu dever, recusara o dinheiro. O que fizesse daí por diante não sofreria de carga moral. O mesmo valia para meu companheiro de berlinda, também observado e incomodado. Percebi que, de uma hora para outra, minhas decisões seriam tomadas diante de uma plateia. Como se vivêssemos um estranho programa de auditório gravado no último vagão do metrô, uma composição que seguia seu caminho a chacoalhar e guinchar, fingindo que em suas entranhas só acontecia o perfeitamente corriqueiro.

Sem recursos, fiz o que deveria ter feito em primeiro lugar. Busquei os olhos de minha companheira. Ali, ao meu lado, ainda apertando com força a minha perna, ela me encarava com uma espécie de piedade, ciente de que não há dor pior, para mim, do que ser observado. Em sua expressão, pude ler o desejo de que nada daquilo tivesse acontecido, que pudéssemos simplesmente chegar em casa, como todas as noites, conversando sobre os eventos do dia, depois ver um filme e dormir em paz. Pequenos, humildes, felizes, sem incômodo.

Fui dominado por um leque de sentimentos inconciliáveis. Quis saltar na primeira parada e correr para a rua, longe dos olhares, só eu e minha consciência abalada. Quis ofender o velho, atirar-lhe o dinheiro ao colo, vociferando que a origem só poderia ser suja, indigna, corrupta. Quis arrancar o elástico que prendia o cilindro e lançar o dinheiro para o alto, de modo a que os demais viajantes saíssem da confortável posição de audiência para o ridículo de disputar dinheiro.

E quis chorar, mas não chorei. Não sei por que quis chorar, não sei por que não o fiz. Nem sei dizer quanto tempo se passou antes que eu olhasse para meu duplo, a poucos passos de mim, e o surpreendesse também congelado, esperando minha reação como eu esperava a sua. Acho que ele se dava conta, ao mesmo tempo que eu, de um detalhe muito estranho.

Aquele dinheiro não tinha graça. Se, como sugerira o doador, eu comprasse um computador, um jantar caríssimo ou uma viagem deliciosa, seria uma aquisição morta, frustrante. E fugaz, porque alimentada por um capital de ilusão, alheio, casual. No dia seguinte, deixaria como legado um rastro de pobreza. Aquele papel valioso, de que ambos certamente temos necessidade, nenhum de nós o queria de verdade. Entretanto, ainda que não o quiséssemos, tampouco tínhamos coragem de devolvê-lo. Honra é honra, orgulho é orgulho, mas dinheiro, acima de tudo, é dinheiro.

No impasse, o elemento preponderante era, sem dúvida, a presença do público. Cheguei a desejar que fosse coisa da minha imaginação a idéia de que o vagão inteiro estava submerso no suspense, impaciente para acompanhar o final da história, pronto para apertar os celulares e votar na ação que os protagonistas deveriam seguir. Pois bem, os protagonistas éramos eu e o desconhecido que se tornara, de súbito, meu irmão.

Mas veio a prova de que estávamos, de fato, no centro das atenções. Chegamos a uma estação em que se cruzam quatro linhas de metrô e duas de trem. Onde centenas de milhares de pessoas trocam de direção a cada dia. Mas ninguém desceu, ainda que muitos já estivessem colocados diante das portas. Subiram boas duas dúzias de pessoas, que se espremeram no espaço que deveriam deixar os que saíssem. Não entenderam por que havia tanta gente e uma atmosfera tão pesada. Mas para mim foi uma ponta de alívio.

Só uma pessoa se mantinha alheia ao suspense. O velho, entregue à caquexia, olhava para os próprios joelhos. Balançava a cabeça, com seu cabelo esparso e espetado. Senti raiva, pensei divisar um sorriso de escárnio, tive ganas de agredi-lo como a um cão indefeso. Se o fizesse, como reagiria a plateia? Que me aplaudissem e louvassem, que me linchassem e vaiassem, não sei o que seria mais abjeto. Alguém, ali, talvez já tivesse uma câmera de vídeo empunhada, pronta para tornar a mim e ao outro rapaz estrelas da internet.

A não ser pelos recém-chegados, para quem tudo devia andar na mais perfeita normalidade, não havia conversas. Ouvíamos o tempo que me apertava o pescoço, sentíamos a fricção dos trilhos. O metrô já chegava à estação seguinte, a penúltima de nosso percurso programado, e eu ainda só conseguia pensar em desaparecer.

A claridade da plataforma invadiu as janelas, despertou-me do torpor. Freávamos. Novamente, busquei a opinião de meu colega de impasse. Percebi que ele tremia um pouco. Tive esperança de que seria ele a romper a teia e resolver a situação. Aguardei, olhos cravados nos seus. E ele não me decepcionou. Quando paramos, projetou-se para cima de mim, tão rápido que não tive tempo para o sobressalto, agarrou o dinheiro das minhas mãos, aproximou o rosto do meu, encarou-me com olhos fixos, olhos negros e decididos, e disse, mais ar do que voz:

– Je ne supporte plus!

Vendo que eu meneava, inteiramente de acordo, ele se ergueu e foi até a porta. O alarme se pôs a soar, mas o prazo curto só aumentou sua determinação. Ele ergueu a alavanca. Ouvimos o estrondo do metal, sentimos a brisa fresca e malcheirosa invadir o vagão, acompanhamos o gesto com que ele atirava ao longe os dois cilindros valiosos, grunhindo de raiva.

Enquanto meu novo amigo recuperava o fôlego, acompanhando o dinheiro que rolava para o canto da plataforma, as portas se fecharam novamente diante de seu nariz, velozes como lâminas de guilhotina. Quanto à fortuna, ela seria de quem a encontrasse, provavelmente um mendigo ou um gari. Nossa, não seria.

Cheguei a fantasiar que o catalisador de toda a história desapareceria de repente ou revelaria ser um demônio, um duende, qualquer ser sobrenatural. Mas qual, o velho continuou encalacrado, olhos nos joelhos, como se nada se passasse à sua volta. Uma frieza tamanha me causou calafrios e reforçou minha convicção de que algo ali não podia ser humano.

Recebi um abraço da namorada e pude perceber que ela passara os últimos instantes com a respiração presa. Eu também. De volta à calma, também veio o outro, o corajoso, para me cumprimentar. Pus-me de pé e apertamos as mãos. Mas aquele não poderia ser um cumprimento formal, desses que se dão no início das reuniões de negócios. Apesar de nem sabermos o nome um do outro, trocamos um abraço forte, com tapa nas costas, como se fosse no Brasil.

Logo, porém, fomos lembrados de que não estávamos sós e o episódio escapava à nossa esfera. Antes que nos afastássemos, alguém começou a bater palmas. Em um segundo, todo o vagão aplaudia, até mesmo algumas das pessoas que vinham de entrar e praticamente não acompanharam o ocorrido. O ancião continuava atento a seus joelhos.

O desconforto voltou de um golpe. Tudo começara por causa de uma figura surgida do nada, e de repente queriam me fazer de celebridade. Esperavam sorrisos, um aceno, mais abraços e cumprimentos, fotografias, talvez até autógrafos. Mas eu não tinha escolhido, não queria nada assim. Só pensava em deixar aquele ambiente claustrofóbico e ser esquecido por todos eles. Uma hora da manhã de um sábado qualquer, mas era como se apresentássemos um programa de televisão. Desconhecidos sorriam para nós, faziam perguntas, espoucavam flashes indiscretos. E não teríamos mais nem ao menos o consolo de uma viagem luxuosa ou um jantar elegante.

Pareceu uma eternidade até que a estação chegasse. Enfim, era a nossa. Descemos. Junto conosco, vieram meu bravo companheiro e uma multidão insuportável, incluindo sem dúvida muita gente que já deveria ter saltado. O doador senil continuou na mesma posição, olhos nos joelhos.

O trem partiu, a turba se dissolveu, o pesadelo acabou.

Perguntei ao novo amigo:

– Você também mora no bairro?
– Não – ele respondeu, com seriedade quase solene. – Moro no final da linha, mas acho que prefiro pegar o próximo trem.

Jamais compreendi tão bem uma decisão quanto aquela, apesar dos doze minutos de espera que ele teria pela frente. Pensei que poderíamos lhe fazer companhia, mas os olhos da namorada já mal se mantinham abertos e minhas próprias pernas bambeavam.

Cumprimentei-o mais uma vez e, sem outras palavras, nos separamos. Apesar do episódio intenso que nos uniu, espero que jamais tornemos a nos encontrar.

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O sol e o século

Primeiro dia do ano com sol e temperatura acima de zero, já na última semana de fevereiro. Então ela aproveitou para levar as cartas todas ao correio, depois comprar queijo, vinho, carne e pão. Apesar da luz ressuscitada e do clima agradável, o clima ainda era fresco: cinco ou seis graus. Caso para um bom casaco, mas não pesado demais. Ela escolheu um escarlate, de lã, um de seus preferidos desde o dia em que Henri Salvador, do palco, atirou uma flor e ela foi cair em suas mãos. Passou a ser o casaco da alegria.

Para quebrar a tonalidade alegre demais do vermelho, pôs uma boina cor de creme, cuja sobriedade, somada aos óculos de aro dourado, deveriam emprestar à sua figura um equilíbrio elegante. Desde pequena, sua mãe lhe transmitira a certeza de que não há valores para a mulher como a elegância e o equilíbrio. A mãe já passou há muito, mas ela ainda segue a lição à risca.

A rua era a mesma de todos os anos, desde que comprara o apartamento em que vivia, com muito esforço e trabalho, dela e do segundo marido. Os mesmos prédios de pedra, haussmanianos, opacos e solenes. A mesma fileira de árvores sem folhas, a mesma linha de trem depois da cerca. Mas os tantos meses sem luz, como acontecia a cada ano, quase a levaram a esquecer que cara tinha o bairro quando banhado de sol. Na esquina, a claridade conferia a cada braço das ruas um tom próprio, inteiramente diferente dos demais.

É o que faz o sol, sempre que lança pinceladas sobre uma esquina. Mas ela não reparava nisso há muitos anos, desde muito pequena, quando quase foi atropelada por um Citroën Traction Avant. Salva por um desconhecido de sapato envernizado e bigode esquisito (sua mãe dizia que era um famoso artista espanhol), a única lembrança que ela guardava do episódio era a luz do sol, que embelezava um lado da rua e deixava o outro, aquele de onde vinha o automóvel, esfumaçado e umbroso.

De lá para cá, tanta coisa! Uma adolescência dura, em que os pais evitavam o quanto podiam deixá-la sair. O medo dos boches, os invasores que falavam pela garganta. E o dia em que não conseguiu chegar em casa, voltando da escola, porque as ruas estavam apinhadas de gente, como nunca ela tinha presenciado. Era algo que ela nem imaginava, acostumada que estava aos bulevares desertos senão por veículos camuflados. E então, o desconhecido de boina negra e jaqueta surrada que apareceu de lugar nenhum, um rifle às costas, tomou-a pelas faces e lhe tascou um beijo. Foi seu primeiro beijo. E o rapaz exclamava: “Eles foram embora! Os americanos estão chegando!”

Depois da Liberação, a escassez de comida e os tempos de normalista. E ela rompeu relações com o pai, envergonhada de ele não ter aderido à Resistência. Aceitara passivamente os soldados invasores atravessando a rua debaixo da janela. Sem esboço de reação, senão pela expressão de desgosto e asco. Continuara trabalhando, gerando renda para o inimigo, enquanto o resto do mundo lutava e morria para libertá-los. Como ela o repreendeu naqueles anos de juventude inflamada! Ele jamais deu uma respondeu. Só a mesma seqüência de suspiros. Enfim, levou muitos anos até que ela pudesse compreender a escolha de um homem que precisava engolir todas as humilhações para alimentar a família, tanto quanto em tempos de paz. Ela só o perdoou numa tarde chuvosa de janeiro, de joelhos diante de sua tumba no Père Lachaise.

O primeiro emprego, para contribuir em casa, foi num liceu suburbano. Aulas de francês, matemática e geografia para uma garotada pouco interessada nos estudos. Com o tempo, ela acabou se acostumando a pegar o trem todas as manhãs na Gare Saint-Lazare e sacudir sobre os trilhos, como se montada num cavalo mal adestrado, por mais de uma hora, enquanto as construções escasseavam. A cada vez que um aluno baixava a cabeça e dormia durante a aula, ela se lembrava de como desejara estudar medicina e de como os pais a demoveram da idéia.

Casou-se pela primeira vez por impulso: um rapaz para quem seu pai torcia o nariz, garoto sem eira nem beira, sempre do contra. Ela não era nada do contra, a não ser, é claro, quanto às atitudes do pai durante a guerra. Pois o primeiro marido era filho de um mártir da resistência, cujo nome estava inscrito na fachada de um edifício do Quartier Latin, marcando o ponto em que ele foi abatido a tiros pelos alemães em agosto de 44.

A união por rebeldia não demorou a se revelar um erro. Em menos de dois anos, ela já nutria um desejo, obviamente secreto, de divórcio. Mas não queria dar o braço a torcer ao pai. Não queria se ver sozinha, mesmo que valesse mais a pena. E a essa altura já tinha a filha, linda e meiga, que não merecia a dor e a vergonha de uma separação. “Pela menina”, ela dizia para si mesma, à noite, enquanto tentava pegar no sono, “é preciso suportar”.

O sol não mudava seu jeito delicado de banhar as esquinas, mas o mundo, entre um raio de luz e o seguinte, se transformava como esquizofrênico. E ela nunca teve certeza, ao longo dos anos, se tanta mudança era algo a aplaudir ou lamentar. Foi com esses sentimentos misturados e palavras molengas, evasivas, dúbias, que ela lançou sua condenação à irmã caçula quando, batendo as portas e lançando maldições a toda a geração anterior, abandonou a casa dos pais e desapareceu. Rebeldia muito mais grave do que um casamento intempestivo. E muito mais segura, autônoma, poderosa. A primogênita, em sua altivez de mãe e trabalhadora, invejou, muito sem querer, a atitude. E a definia como “capricho de agitação juvenil” quando conversava com os pais.

E a irmã foi reaparecer dois anos mais tarde, numa fotografia de jornal. Atirava pedras de trás de uma barricada no boulevard Saint Michel contra a parede humana da polícia de choque. A menina estava mudada. Usava os cabelos longos e desgrenhados, berrava frases políticas, impedia o funcionamento da universidade, distribuía beijos indiscriminadamente entre os companheiros de rebelião. Um assombro. A família ficou chocada. Como tinha se transformado aquela garota, que até ontem brincava de boneca! Mas a primogênita, em silêncio, não conseguia evitar de achá-la linda.

Sua filhinha já freqüentava a universidade quando o casamento se dissolveu. E não foi ela que partiu, mas ele, deixando atrás de si um sentimento amargo de abandono, em vez do alívio que ela esperava. Martelava sua cabeça a convicção de que aquilo provava que nem mesmo um homem sem classe e sem educação poderia querê-la para companheira por toda a vida. E ela se viu triste, tendo de cuidar da casa para ninguém, já que a filha estudava numa universidade do sul.

Com a separação, um bom número de homens se apresentaram como pretendentes. Para sua grande surpresa, ela que se sentia velha e sem graça. Mas, em respeito aos sentimentos da filha, declinou com gentileza todas as proposições. Como ela conhecia mal o fruto de seu próprio ventre! Foi a menina que, observando a melancolia da mãe, arranjou uma maneira de colocá-la diante do pai viúvo de um colega. O homem grisalho, de terno xadrez e fala tranqüila, mas segura, era editor em Saint Germain, e se tornaria, em menos de um ano, seu segundo esposo.

Era como se a vida recomeçasse. Tanta novidade, que passou a primavera e o verão, mas ela não se deu um segundo para observar o traçado dos raios de sol. Um ano depois do novo matrimônio, a maior e melhor das surpresas: ela ainda era fértil. Mais uma criança se juntaria à família. Alegria misturada a apreensão, claro, para alguém que já passava dos quarenta e sentia a velhice mais próxima do que a mocidade.

Mas o tempo para pensar no assunto não existia. Era necessário encontrar um apartamento maior, para caberem a nova criança e a biblioteca do novo marido. Economizaram, venderam bens, contraíram empréstimos, conseguiram pagar o três quartos no primeiro andar da rua Cardinet, acima dos correios, que ocupariam pelas décadas seguintes. Foi onde cresceu o menino, cuja maior diversão, em pequeno, era acompanhar a passagem dos trens pela janela. Era onde se faziam os almoços de domingo para a filha, o genro e os netos, garotos barulhentos e pouco mais novos do que o próprio tio. E onde ela sentiu, enfim, que, de um jeito ou de outro, tudo se encaixava e fazia sentido.

Foram os melhores vinte anos de sua vida, muito bem vividos. Sobretudo depois da aposentadoria. Tempo empregado em fruir da família, não em acompanhar os movimentos do sol ou reclamar do radicalismo da agitação política, tão mudada desde os tempos de sua irmã nas barricadas. Ela lamentava as bombas e os seqüestros, mas não pensava neles quando desligava a televisão. Só temeu pela vida do filho – um frio na espinha indescritível, um enjôo injustificado – quando explodiram a estação de Saint Michel. Mas o alívio foi imediato quando ele telefonou, algumas horas mais tarde, para dizer que estava bem, a salvo na casa de um amigo.

Enviuvou na virada do século, mas a morte do marido foi tão tranqüila e paulatina que a tristeza logo se transformou em cálculo de quanto tempo levaria para se reencontrarem. Ela mesma já não era nenhuma garotinha. Nas primeiras semanas, foi difícil encontrar modos de ocupar o tempo solitário, mas, aos poucos, ela foi se inscrevendo em cursos de cerâmica, pintura, história, filosofia. Aprendeu tanta coisa, que parecia ter voltado à escola. Sua cabeça nunca esteve tão boa. Os cálculos para se unir ao esposo no jazigo de Montparnasse desapareceram por completo: era, afinal, uma certeza. E não há necessidade de pensar em certezas. Ela, então, deixou tombar a pressa.

A um passo da primavera, descer à rua para comprar artigos de primeira necessidade se tornou um prazer. Desses pequenos deleites da pequena vida, que tantos anos leva para aprender a apreciar. E esse prazer em particular, o sol se espraiando de maneira desigual pelos braços das ruas, ela ficou contente de reaprender. A vida, tanto tempo passado, tantos eventos, tantos desgostos e alívios, ainda podia lhe trazer novidades. Talvez tenha sido por isso que ela respondeu com um sorriso aberto e um entusiasmo tamanho, talvez até inapropriado, quando o rapaz de sotaque estrangeiro e bons modos (coisa rara nesses jovens de hoje) veio lhe perguntar para que lado ficava a rua de Saussure.

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Das cidades, como do amor

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Certo amigo costuma dizer que nossa relação com as cidades é como as relações amorosas. Ele diz, por exemplo, que Roma é cidade para namorar; Paris, para casar. Não peça explicações para seu julgamento, por favor! Essas coisas, todo mundo sabe, são o que há de mais pessoal. Sendo assim, minha opinião e a dele têm lá suas diferenças, como era de se esperar, mas não posso negar que a analogia tem sentido.

Jamais, para ilustrar, eu me meteria num namoro com Roma. Eis aí, ouso dizer, uma cidade a ser tratada com toda a cafajestagem que faz a má fama dos homens, isto é, a velha trinca: álcool aos litros, elogios absurdos e telefone falso. Já Paris, é difícil dizer; anos atrás, talvez eu também pensasse nela como uma cidade para casamento, filhos e aposentadoria. Sempre, claro, com separação de bens, que seguro morreu de velho e o europeu é tudo, menos confiável.

Mas, passados dois anos e meio, vejo que esta é uma cidade com que se pode ter no máximo um relacionamento razoavelmente durável, feito de passeios e conversas deliciosas, ou de exibi-la como prenda para saborear a inveja nos olhares todos que se voltam para sua companheira. É que esses invejosos não têm idéia do que possa ser a vida com a prima donna que compartilha de sua intimidade. As pequenas irritações, manias e exigências. O egoísmo de quem foi criada para só merecer admiração e cuidados. A distância insolente de quem pensa ser sempre precisada e nunca precisar. Essa é Paris, a cocotte.

Desenvolvendo a analogia suscitada por meu amigo, venho pensando nas muitas relações diferentes que mantenho com as cidades que conheci, e mesmo com algumas em que nunca estive, no que poderia ser classificado, para seguir na linha amorosa, como fantasias. É sempre tão irracional, circunstancial, acidental, quanto tudo o mais na nossa vida, menos aquilo que, ainda irracionalmente, acreditamos tratar com a razão. E o curioso é que, ao contrário das relações que um sujeito normal pode ter com mulheres no longo prazo, com as cidades é possível viver dezenas de romances simultâneos, na imaginação como na carne. Afinal, a não ser que seja mitologicamente histérica, a cidade em que está fincado nosso lar jamais terá ciúmes de uma visitinha que façamos a alguma outra nas férias ou no fim-de-semana. Turismo, neste caso, não é adultério.

Minhas relações mais complicadas são, é claro, com as cidades brasileiras. Estive nelas a maior parte da vida, balancei entre umas e outras, em tantas briguei e amei, com tantas rompi e reatei. Por sinal, já falei um pouco disso em outros cantos. Agora é hora de pensar nas estrangeiras, que, além de tudo que uma cidade já normalmente significa, têm ainda o mistério da outra cultura, da diferença, da variação infinita dos povos.

Buenos Aires, a misteriosa cigana sentada a uma mesa no fundo do salão, que dirá coisas absurdas ao ser abordada, rirá em desvario de enunciados que nem terão sido piadas, mas levará o parceiro à loucura em mais de um sentido. Lisboa, sempre à espera, para amolecer os membros e as articulações pela mera força de seu olhar de melancolia e devaneio. Barcelona, fulgor sufocante de um caso de verão regado a música e boa bebida, papos despretensiosos sobre arte que não entendemos, mas amamos, depois uma despedida sem tristeza. Berlim, divina e altiva, sempre sedutora e simpática, mas brilhante demais, muito poderosa e difícil, a ponto de não termos nem coragem de tentar uma aproximação. E assim por diante.

Dentre todas essas, há uma cidade que não consigo descrever nesses termos. Talvez seja aquela que conhecemos na primeira juventude, para um amor que ainda não consegue se reconhecer como grande ou pequeno, e depois perdemos de vista, para depois reencontrar um pouco mais tarde e sentir a mesma coisa, sabendo que é recíproco. E assim, sucessivamente, talvez pelo resto da vida, curtos momentos de pura felicidade, mas que não podem se estender, e que às vezes nem se concretizam, como quando há algum outro relacionamento em curso e não estamos dispostos a interrompê-lo.

É Londres, louca terra dos carros na esquerda, da polidez inquestionável polindo a superfície de uma frieza involuntária, dos preços altos para tudo que não seja cerveja. Capital de um império caído que ainda se vê em todas as caras, nas feições que os povos subjugados transmitiram ao opressor para toda a eternidade. Londres que divide os sonhos entre a glória austera dos tijolos vitorianos e e o brilho vertical de vidro que atesta o triunfo do século americano. Green grass, grey sky, God bless. Venha o que vier, serão sempre deliciosas as tortas e a geléia que acompanham o chá.

Mas não há modo de termos, London, London, nada mais, neste momento, do que isso que tivemos nas duas últimas semanas. As caminhadas no South Bank, o teatro esplêndido do West End, as bolas de neve no Green Park, de nome subitamente tão irônico debaixo da nevasca histórica que interrompeu o transporte através do Reino Unido. Tudo isso será inesquecível, como sempre foi. Mas a vida agora é além-túnel, além Mancha, naquilo que teus habitantes, ainda mais petulantes do que são excêntricos, chamam desdenhosamente de “Europa”. Mas Paris, minha cara, é o contra-exemplo de um diamante que não é eterno. Quem sabe o que traz velado o futuro?

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