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Naturam expellas (parte 5)

[N.B.: esta é a quinta parte de um texto sobre a velha questão “homem/natureza”, inspirado no ecocídio de Mariana-MG e que está destruindo um dos nossos mais importantes rios – e agora também o mar! Nas partes anteriores, tratei de como foi conceitualizada a natureza no pensamento moderno, entre Bacon e Marx.  Depois, lidei com os desconfortos que a relação entre natureza e técnica causou no século XX. É sempre bom lembrar que “natureza” é um termo polissêmico, que se presta a muita manipulação: por isso, entro agora na parte que trata daqueles que tentam pensar esse conceito por um ângulo completamente diferente.]

Leia também a PARTE 1.

Leia também a Parte 2.

Leia também a Parte 3.

Leia também a Parte 4.

hokusai ondas e barco

A Inarredável

Com tudo isso, é preciso passar à segunda resposta possível para o sentido da impossível expulsão da natureza, retorcendo um pouquinho a idéia de que ela volta “triunfal”, “irrompendo vitoriosa contra o seu tolo desprezo”. Para tanto, vai ser necessário deixar de seguir Horácio e, principalmente, de navegar pela superfície desses discursos ocidentais clássicos. Aqui, não é mais questão de que a natureza “volta”. É questão de que a natureza simplesmente nunca foi embora.

Pode-se expulsar a natureza com um ancinho, com um ar condicionado, com um rigoroso planejamento logístico? Não, não se pode.

De certa forma, esse ponto fica subentendido, de um jeito ou de outro, em todas as doutrinas discutidas acima, mesmo quando elas tentavam teorizar a natureza como externa, expulsa, subjugada, sem direito de cidadania. A propósito, é bastante natural que, ao se exercitarem, as doutrinas sejam levadas a expelir com o suor os elementos que não conseguem absorver e, por isso, lhe aparecem como toxinas. O mesmo vale para qualquer sistema, a começar pelo sistema econômico…

Com isso, vemos que sempre existe algo de dúbio, como a liberdade que se constrói “por cima” da necessidade; ou o trabalho indispensável de nomear aquilo sobre o qual se exercerá um poder; ou ainda, a duplicidade em última instância insuperável das “naturezas”, primeira e segunda. Também fica evidente a impossibilidade de sustentar a cisão radical entre o “nosso” e o natural pela própria polissemia do termo: “natureza” às vezes se diz, inclusive, como sinônimo de “essência”, de modo que a cultura aparece como uma “segunda natureza”.

Cúmulo da dificuldade expressiva: seguindo por essa linha, pode-se afirmar até mesmo que “é da natureza” do ser humano… destruir a natureza.

Maurice Merleau-Ponty consagrou três cursos inteiros, entre 1956 e 1960, ao problema do conceito de natureza, na tradição filosófica e nas ciências. Seu objetivo, com tanto tempo dispensado a esse assunto, era incorporar à fenomenologia a necessidade de pensar de maneira integrada a linguagem, a natureza e, como ponto de convergência de ambos, o corpo.

Hoje, trabalhos como o de Bruno Latour, Isabelle Stengers e Michel Serres se dedicam a desmontar essa armadilha do, digamos assim, “dualismo natural” que vê na natureza o “outro” do humano. Especificamente para Stengers, essa assimetria (tomo aqui emprestado o termo de Latour) é fruto de verdadeiras catástrofes. Mais precisamente, essas que estamos vivendo.

E, por outro ângulo, pode-se enxergar também no perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro outro movimento que põe em xeque a certeza de que o Espírito (para usar o termo hegeliano por motivos que vão ficar claros em seguida) é que tem uma experiência formativa da realidade humana. Uma das coisas que aprendemos com o antropólogo carioca é que se para o europeu a civilização, a atividade humana, é da ordem do espiritual, e a natureza da ordem do “meramente” material, para o ameríndio ocorre o oposto.

Uma anedota que o antropólogo conta e em que particularmente achei graça (no sentido de prazer e interesse) é aquela que diz que, enquanto os espanhóis discutiam se os índios tinham alma, na famosa controvérsia de Valladolid (lindamente transformada em espetáculo teatral por Jean-Claude Carrière), os ameríndios afogavam espanhóis para descobrir se seus corpos eram reais e, conseqüentemente, apodreceriam.

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davinci turbulencia1

Como podemos lidar com isso, do ponto de vista dos versos latinos de Horácio? Ora, tudo vai depender de como olhamos para “a natureza”, como empregamos este termo traduzido ao latim como natura (essa que aparece em Horácio) da já longínqua noção grega da physis. A natureza de energias, relações, potenciais, daquilo que cresce (phuo, o verbo de que deriva o termo “física” e também a palavra feto) e engendra. Mexer com a natureza é mexer com potências e intensidades, e não meramente com uma divindade plenamente individuada.

Assim entendido, o conceito de natureza é da ordem do que necessariamente se expande, se transforma, do que não é nada em particular, mas cada coisa e mais as virtualidades em que cada coisa está implicada. O virtual, o pré-individual, a intensidade. Construir a casa da qual se expulsarão as folhas (“a natureza”…), com ancinho ou sem, exige um trabalho (no sentido físico) com o peso dos tijolos, por sua vez feitos de um barro molhado e aquecido, fazendo passar o dinamismo do calor pela potência da argila e da água, tudo isso dentro de um molde de madeira ele mesmo dotado de seu próprio dinamismo…

Antes de mais nada, a turbulência. Antes da matéria, a energia. Antes do real, o virtual. Ninguém entendeu isso melhor do que Leonardo da Vinci, que passava horas e horas de seus dias a desenhar os diferentes turbilhões que surgiam na água de acordo com as barreiras que ela encontrava – e também de acordo com os encontros fortuitos (clinamen?) de suas próprias moléculas em fluxo. Ninguém representou isso melhor do que o grande gênio de Hokusai, o artista japonês. (Cuja influência, por sinal, é bastante visível na obra de Van Gogh, uma espécie de Leonardo da Vinci do pós-impressionismo.)

Modular, e não moldar, dirá Simondon, que também dá o exemplo da marcenaria que corta as tábuas segundo a estrutura energética da própria madeira, sob pena de fazer um corte completamente errado. Natureza contra natureza, potência diante de potência, só nesse cruzamento se dá a ver o objeto que, com certa leviandade, tomamos como unidade constitutiva do real (da natureza…).

Com isso, o momento singular da ação técnica (a expulsão com o ancinho, por exemplo) não é tanto um agenciamento do homem com a natureza, mas de dois momentos, dois fluxos, duas intensidades, ambos da natureza (ambos dinâmicos, capazes de crescer e engendrar), ainda que se possa apontar a presença de um deles na figura da madeira (entendida como natural porque não é humana) e a do outro no humano que performa o gesto.

Ou ainda o exemplo metalúrgico de Deleuze e Guattari (já que estou tratando de um recente desastre no setor econômico que extrai metais): a têmpera, o fogo, conduzindo o metal a seu estado de menor forma e maior potência, maior virtualidade, maior fluxo; a forja, em que esse fluxo é confrontado à dinâmica de outras forças, quais sejam, a do forjador: o objeto metálico como fruto do agenciamento entre dinâmicas intensivas de um corpo e de uma matéria com quase infinita virtualidade.

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times square

Em suma, o gesto que produz o lixo e o gesto que ilumina Times Square não são capazes de conduzir a uma cisão pela qual de um lado está a natureza e, de outro, estamos nós. Ou, para falar como a linhagem alemã tratada em parágrafos anteriores, um lado para a necessidade e a vida animal, o outro para a liberdade e a ação propriamente humana.

Ou ainda, para que sejamos “como mestres e possessores” da natureza, porque, afinal de contas, como perceberam com muita perspicácia Adorno e Horkheimer, para isso é necessário que nos tornemos mestres e possessores… de nós mesmos! O que nos conduz, necessariamente, a alguma forma de totalitarismo, ainda que imperceptível.

É claro que os mestres da Escola de Frankfurt tinham outra coisa em mente, mas não podemos deixar de enxergar esse processo em várias das iniciativas de biotecnologias, simbiose homem-máquina, inteligência artificial e assim por diante, que estão se desenvolvendo atualmente sob a égide da subsunção a um imperativo venal e financeiro com conseqüências potencialmente muito funestas…9

A barreira rompida em Mariana não era um ancinho que expulsava a natureza, mas uma força que continha outra força, um agenciamento de um determinado tipo, que precisa ser tratado em mais detalhe. O problema é que nos acostumamos a vê-lo exatamente assim, como um ancinho mágico nas mãos do aprendiz de feiticeiro que leu errado o livro do mestre, pensando que era um livro de registros contábeis.

Extraímos bens valiosos das entranhas da terra, mas controlamos as “externalidades negativas” (não tenho palavras para descrever meu ódio a essa expressão, a mais funesta fórmula mágica dos tempos que correm). Com isso, perpetua-se uma ilusão, que vai nos corroendo por dentro: nossa alienação à própria potência técnica que molda nosso mundo é como um gigantesco tumor e a metástase, bem se vê, está disseminada. Essa alienação técnica é também, indissociavelmente, uma alienação quanto ao sentido dessa palavra que tanto usamos: “natureza”…

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metalurgia

O que há de mais interessante no ponto que estou tentando levantar talvez seja esse descolamento entre o plano da interação e agenciamento entre energias e o da capacidade expressiva do que ocorre efetivamente. As forças da matéria rejeitada pela mina, em nome de uma seleção de forças cujo imperativo estava longe dali, acumularam-se cada vez mais intensamente no lago, como se não existissem, como se estivessem fora, expulsas de alguma maneira.

Mas é claro que não estavam expulsas coisa nenhuma. O que estavam era agenciadas de modo deturpado, iludido, perverso, porque a potência técnica que presidiu sobre esse processo estava ela mesma iludida e pervertida. Resta mais uma pergunta para nossa coleção, e que está relacionada a essa dupla alienação: como é possível deturpar os agenciamentos, se não existe a priori uma finalidade para o que devam ser esses agenciamentos?

Antes de tentar alguma resposta, mais um exemplo: afinal, o que vale para a mina de Mariana vale também para o gás carbônico que se acumula na atmosfera, e que dispõe rigorosamente da mesma potência de todo gás carbônico que jamais houve no universo. Mencionemos três delas: refletir os raios do sol; participar da fotossíntese; formar-se a partir da explosão de determinados combustíveis. (E mil outras poderiam ser lembradas.)

Pois, justamente, ao queimar os combustíveis em nome da potência das máquinas, avaliando-a e medindo-a por seus efeitos sobre as imagens simbólicas que compõem o PIB e o índice Dow Jones, a atividade técnica de nosso ancinho paradigmático não expulsa a natureza, mas seleciona e reorienta muitos de seus potenciais. Sem perceber, faz com que outros de seus potenciais se tornem tóxicos a ponto de inviabilizar nossa própria vida.

Não que “a natureza”, esse ente mítico e hipostasiado, esteja particularmente preocupada com a possibilidade de que nossa vida se torne inviável no planeta. Mas nós estamos… e se fomos capazes de hipostasiar um ente de nome “natureza”; se fomos capazes de enxergar nesse ente uma intencionalidade e uma profunda teleologia – ou, melhor dizendo, se fomos capazes de projetar nele nossa própria intencionalidade e propensão às teleologias –, então deveríamos ser capazes de entender que “deste jeito não dá mais”.

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castelo de kafka

Em outras palavras, imaginemos uma visão de profundo cinismo; alguém querendo pensar para além de um ser humano que já estaria condenado à destruição que ele mesmo causou. Com essa visão, alguém poderia afirmar que, do ponto de vista da natureza ela mesma, com sua virtualidade, suas potências e sua ancoragem no pré-individual, essa destruição do humano não faz a menor diferença. Ou, melhor dizendo: que “tanto faz” – o ser humano “está sobrando” ou “só atrapalha”.

Acontece que esse cinismo todo nos joga numa espécie de círculo, porque, afinal de contas, a mesma potência figurativa e especulativa que nos leva a hipostasiar a natureza, projetando nela nossas próprias intenções, é uma virtualidade do corpo e, portanto, da natureza; e é também aquela que eventualmente nos conduz a esse cinismo.

Por isso, uma alternativa mais fecunda seria perguntar-se o que é que nos leva a estabelecer essa camada de desentendimento, de verdadeira alienação, que faz com que os agenciamentos singulares e reiterados, quotidianos e institucionalizados, que produzimos no mundo moderno, entre diferentes potencialidades e virtualidades da natureza (como physis), sejam auto-destrutivos, isto é, coloquem em risco nossa própria existência. Por que é que estamos rodando sem rumo, perdidos, iludidos pelas imagens de felicidades e bens que já sabemos destinados ao fracasso…

Um claro exemplo está na oposição que se faz entre a responsabilidade pelo meio ambiente (guardemos essa expressão enquanto não aparecer outra mais precisa) e a responsabilidade pela vida social, expressa na idéia de que, se formos resguardar o planeta abandonando determinadas atividades econômicas parasíticas, muitos empregos vão ser perdidos. Exemplo concreto é este que se vê em Minas Gerais: defensores das mineradoras envolvidas já admitem que elas são culpadas, mas, embora tenham que pagar pelo estrago que fizeram, isso tem que dar-se de uma maneira que não resulte em demissões.

Não se pode quebrar o município, apenas cobri-lo de arsênico, mercúrio e sabe-se lá que outras substâncias nocivas.

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hephaistos e aquiles

O problema aqui está na estranha, até mesmo absurda oposição entre os “meios de vida” (o salário, diga-se) e a própria vida. Uma determinada atividade mata. Mas paga salário. Salário, uma soma em dinheiro que permite responder às exigências por outras somas em dinheiro: imagens cristalizadas, fenecidas, mortas, do desejo, da atividade, das relações contratuais. Então a escolha que está colocada é ao mesmo tempo simples e inverossímil: para manter-se vivo, é necessário provocar a morte – no limite, a própria morte.

Tome-se o exemplo da indústria petrolífera: ela é indispensável para uma gigantesca cadeia de produção, então não pode ser abandonada, para não comprometer os assalariados e, claro, toda a coletividade que vive dos impostos recolhidos. Mas ela provoca desastres como o da BP e, mais ainda, o próprio aquecimento do planeta: para não comprometer a economia global, é preciso sacrificar o globo…

É evidente e, de certa forma, já é assunto um tanto batido, a inversão das finalidades. Abra qualquer manual de economia e, nas primeiras páginas, você lerá que aquela doutrina (ciência, dirão seus apologetas) trata da alocação de bens e serviços, dada a limitação dos recursos. Você lerá também que as imagens monetárias que sustentam essa alocação são um auxiliar, um meio, um símbolo que permite comparações.

Mas abra qualquer jornal de economia e estará evidente que a relação é inversa: a atividade econômica e a alocação de bens servem para gerar as divisas. São, afinal, as divisas que pagam as dívidas, remuneram os acionistas, garantem as estatísticas, evitam as crises… A dimensão da atividade cristalizada, o dito “valor”, a imagem mortificada de um universo da virtualidade quase infinita, orienta os gestos que, ao redor do planeta, adulterarão por obra dos “mestres e possessores” o próprio universo da infinita virtualidade: a natureza.

Mestres e possessores alienados, subjugados ao sistema de suas próprias imagens-símbolos, organizados sob a égide de uma racionalidade instrumental da qual não conseguem se livrar, embora não entendam para além de uma formação cada vez mais restrita a uma “área de excelência”. Possessores, com certeza. Agora… “mestres”?

Mais uma vez, palmas para Adorno e Horkheimer, mas também palmas para Rousseau. O problema semiótico, a camada de linguagem mal colocada, reaparecem em todo seu fulgor. Estamos diante, mais uma vez, de uma limitação da capacidade de expressar aquilo que se efetiva. A estrutura do expressável, em outras palavars, não acompanha sua paralela, a estrutura do realizável. São agenciamentos mancos que se produzem aqui, acoplamentos empobrecidos.

Keynes, em seu célebre texto sobre a riqueza de seus netos (que é uma geração hoje na terceira idade, diga-se de passagem), demonstra preocupação com o fato de que um “amor desmedido ao dinheiro” (e Keynes não era nem monge, nem bolchevique) impeça a realização de sua visão utópica de pouco trabalho e muito lazer. Mas, ora, amor é da ordem do desejo e dinheiro é da ordem do símbolo: natureza e expressão.

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beijing neblina

Ainda sobre natureza, expressão e também técnica, no mesmo texto em que tratam da metalurgia, Deleuze e Guattari escrevem algo que deveria segurar por um tempo nossa atenção:

(…) há uma relação essencial entre as ferramentas e os signos. É que o modelo trabalho, que define a ferramenta, pertence ao aparelho de Estado10. Com freqüência se disse que o homem das sociedades primitivas não trabalhava propriamente, mesmo se suas atividades eram muito coercitivas e regradas (…). O elemento técnico devém ferramenta quando se abstrai do território e se assenta sobre a terra enquanto objeto; mas é ao mesmo tempo que o signo deixa de inscrever-se sobre o corpo, e se escreve sobre uma matéria objetiva imóvel. Para que haja trabalho, é preciso uma captura da atividade pelo aparelho de Estado, uma semiotização da atividade pela escrita. Donde a afinidade de agenciamento signos-ferramentas, signos de escrita-organização de trabalho.

A dupla está apontando o dedo para a subsunção daquilo que poderíamos chamar generalizadamente de “atividade técnica”, agenciamento de corpos e territórios, gesto desejante, por uma “semiotização” que hierarquiza e controla. É a transformação dessa atividade em trabalho, orientando-a para finalidades que estão no horizonte, não no próprio desejo ou no próprio corpo.

Como diz Simondon, o trabalho é um caso particular da técnica, e não o contrário, mas construímos toda uma estrutura interpretativa para a atividade humana que nos faz crer exatamente no oposto: trabalha-se e esse trabalho contém técnicas.

Trabalha-se para quê, então? Diríamos, com Horácio, e lançando um olhar reprovador aos alemães que lemos acima: para “expulsar a natureza”, criar um reino impossível e ilusório de liberdade. Trabalha-se em nome da semiotização, dos nomes que demos às coisas por cima delas mesmas e das declarações performáticas que realizamos em seguida: “isto é meu”, “isto vale tanto”.

A linguagem chegou a um ponto em que está toda contaminada com essas fórmulas do trabalho, do tornar-se “mestre e possessor”, do ancinho iludido. Li por esses dias no jornal que o Brasil já não é mais um “mercado emergente”, mas um mercado “submergente”; por causa da crise, você sabe. Mas em nenhum momento alguém parece ter estranhado que se identifique assim tão facilmente um território habitado por pessoas que falam a mesma língua a “um mercado”.

Já não se diz mais “o mercado brasileiro” para designar a atividade econômica que ocorre no Brasil ou entre o Brasil e outros países (digo, outros mercados). Agora se diz: “o Brasil é um mercado… outros mercados estão crescendo mais / crescendo menos”; e por aí afora. É o mesmo vício de linguagem que nos leva a dizer que a Samarco é “vítima” do rompimento da barragem porque seus lucros vão ser prejudicados, ou que o importante é “não colocar em risco os empregos”. Quem está soterrado pela lama não tem emprego, ora.

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fritz lang trabalhadores

Também é por isso, em grande medida, que parece tão difícil chegar a algum acordo nas cúpulas do clima, mesmo para a já altamente arriscada meta de um aquecimento global de “apenas” dois graus. A transição energética não pode acontecer rapidamente o suficiente sem comprometer “o crescimento”, que por sua vez, no discurso oficial, comprometeria “o emprego” de bilhões de pessoas.

Mas não é só isso: afinal, a maioria dos países envolvidos têm compromissos com dívidas públicas (e privadas, diga-se) que se tornariam inviáveis sem “o crescimento”, de modo que parece mais confortável rumar para o suicídio do que comprometer o sistema de signos e contrações do tempo em que consiste o sistema de dívidas, investimentos e ações.

Simplesmente, o acoplamento desse sistema semiótico, enquanto potência de figuração, racionalidade e imaginação, com as dinâmicas do carbono, dos metais e da atividade dos corpos (sob a forma de trabalho), está conduzindo a um agenciamento climático que, no longo prazo, exclui a presença da humanidade, tal como a conhecemos.

Aquele sujeito imaginário, de atitude cínica, que mencionei acima como exemplo, poderia dar de ombros e simplesmente esperar a chegada da morte, como na música de Raul Seixas. Mas esse também seria um caso de linguagem e imagens em rota de abolição com o desejo, porque o desejo, como tal, é potência de vida e não se presta a esperar a morte chegar.

E é isso que traz a reflexão toda para o último problema: haveria outros agenciamentos possíveis ainda disponíveis para nós? Maneiras de promover a cópula de diferentes potências, de dinâmicas físicas, porções de natureza, que não envolvessem essa alienação do trabalho, essa subsunção a uma linguagem hierarquizante do valor e da propriedade?

Continua na Parte 6.

Notas

vangogh turbulencia

9. No Brasil, a obra de Laymert Garcia dos Santos é recheada com bons exemplos a esse respeito. Recomendo em particular a coletânea de título Politizar as Novas Tecnologias (Editora 34).

10Uma breve advertência: é bom lembrar que quando a dupla fala em aparelho de Estado, não estão se referindo àquilo que hoje se tornou comum, a dicotomia entre “o Estado” (sinônimo de governo) e “o indivíduo” ou “o mercado”. Estado, aqui, designa uma forma de organização, controle, disciplina e poder que é vertical, rígida, edipiana. Portanto, inclui aquilo que os auto-intitulados libertários denominam “o mercado”, reino de uma liberdade definida de maneira um tanto quanto ad hoc.

Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, cidade, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, modernidade, morte, opinião, Politica, prosa, reflexão, Sociedade, tempo, trabalho, transcendência, tristeza, vida

Naturam expellas (parte 4)

[N.B.: esta é a quarta parte de um texto sobre a velha questão “homem/natureza”, inspirado no ecocídio de Mariana-MG e que está destruindo um dos nossos mais importantes rios. Nas duas partes anteriores, tratei de como foi conceitualizada a natureza no pensamento moderno, entre Bacon e Marx. É sempre bom lembrar que “natureza” é um termo polissêmico, e por isso se presta a muita manipulação…]

Leia também a PARTE 1.

Leia também a Parte 2.

Leia também a Parte 3.

chernobyl

A armadilha da tecnofobia

Foi por causa desse papel importantíssimo de um gesto intencional e técnico que, na escolha da tradução dos versos latinos, fiz questão de resguardar a figura da furca, o ancinho (ou rastelo, como se diz em São Paulo), em vez de enveredar pelo “violentamente” que muitos tradutores escolheram, em diversos idiomas. O ato é violento, claro, sobretudo por essa violência pouco divisável da sobredeterminação, que abre a via para todo tipo de abusos. Mas considero muito importante não perder de vista o artifício, a elaboração técnica desse gesto pelo qual a natureza se vê expulsa – temporariamente ou ilusoriamente. Expulsa de onde? Da casa, no exemplo da ode de Horácio; ou, de modo mais amplo, daquele mundo que os humanos habitam, ou crêem habitar: da cultura, das cidades, da economia.

Ora, expulsar a natureza com um ancinho. Horácio diz com toda clareza que existe um dispositivo intermediário, um objeto de fabricação humana, ou de uso imaginado pelo humano, para permitir que se expulse a natureza. Ninguém acreditaria que se possa expulsar a natureza simplesmente com as mãos. Aquele “ancinho” que se traduz como “violentamente” é uma violência à qual só se consegue chegar porque o corpo é inserido em um agenciamento técnico e, em paralelo, uma estrutura simbólica, indissociável, que amplificam e expressam seu próprio gesto, sua própria força.

Artifício da expulsão que é, também, sempre um artifício de expressão, e artifício performático: ao dizer que estou expulsando, transformo um determinado gesto numa expulsão, para todos os efeitos. Ou melhor: para todos os efeitos imediatamente apreensíveis! Aquilo que poderia ser visto como uma redistribuição topológica passa a ser interpretado como criadora de algo que, hoje em dia, costuma ser designado com uma expressão mágica: “externalidades”…

* * *

O poeta latino fala em ancinho, mas nós, na era ultra-industrial e financeirizada, poderíamos usar outras imagens. Expulsar o calor com o ar condicionado. Expulsar o esgotamento das fontes naturais de água com caminhões-pipa. Expulsar o empobrecimento das terras com fertilizantes, herbicidas, pesticidas e outros venenos. Expulsar o cansaço, o sobretrabalho, as desilusões, a raiva, com antidepressivos, ansiolíticos, turismo enlatado, indústria cultural. Expulsar a recessão com derivativos de derivativos. A lista é interminável.

Mas não vamos esquecer: mais cedo ou mais tarde

duc du berry 2

O grande problema de uma lista como essa que fiz acima é o risco que ela embute de nos jogar numa espécie de tecnofobia inconseqüente, uma nostalgia algo rousseauísta – embora essa designação seja injusta com Rousseau, sem dúvida. Na linha dessa tecnofobia, a solução para as mazelas do mundo contemporâneo seria uma espécie de volta à… bom, à natureza, à “vida simples do campo”, ao período pré-industrial ou coisa que o valha. Algo desse pensamento aparece com freqüência excessiva em algumas propostas ligadas ao conceito de decrescimento, como assinala este texto de Moysés Pinto Neto. Também é um ponto desconfortável de teorias como a do estado estacionário de Herman Daly.

Para falar a verdade, temo que me atribuam sentimentos assim. Nada mais longe das minhas cogitações.

Começo com a mera constatação de que esse lugar já não existe mais. A bem dizer, nunca existiu realmente. Quem porventura defenda um “retorno” ao que quer que seja precisaria explicar, em primeiro lugar, qual é com precisão o ponto a que quer voltar. Não vale, por exemplo, encontrar a solução individual de tornar-se eremita, porque o eremita é alguém que, mantendo-se “fora” da civilização, está em constante interação com ela e, portanto, a pressupõe.

Também não vale querer voltar a um “modo de produção” imediatamente anterior ao desenvolvimento deste que está lançando tantos gases de efeito-estufa na atmosfera, porque esse “modo de produção” também implica um “modo de vida” que tende às tensões e aos potenciais que exigem o desenvolvimento do mesmo maquinário que nos colocou onde hoje estamos.

Por fim, há bons sinais de que seja uma falácia a crença nessa natureza “intocada”, “pura” ou o que quer que seja, à qual se desejaria voltar: mais adiante este texto vai abordar o caso das “florestas culturais” como aparece na obra de William Balée, um dos proponentes da chamada “ecologia histórica”: a atividade humana modifica seu entorno (a dita “natureza”) desde sempre e de maneira duradoura, mas não necessariamente destrutiva como a atual.

Para além disso, é fundamental lembrar que a própria idéia da cisão entre “homem” de um lado e “natureza” de outro implode atividades de modificação do meio realizadas por toda e qualquer forma de vida – já que toda vida é um metabolismo e, portanto, realiza, como se diz, “trocas” com um meio. Mais ainda para animais dotados de uma existência psíquica, para os quais o meio é sempre, antes de mais nada, um território, passível de ser marcado, ressignificado, dividido, distribuído, apropriado. Pense nos castores, nos joões-de-barro, nos pica-paus…

Em outras palavras, todo “ambiente natural” que somos capazes de identificar contém determinantes que são fruto da atividade de seres vivos, em particular aqueles com atividade psíquica, em particular o ser humano. Desses, só um pretende “expulsar a natureza”, e incluindo no guarda-chuva deste conceito todos os demais viventes capazes de atuar nela ou, dependendo do ponto de vista, sobre ela.

Mais adiante, será o caso de concentrar-se nisso e entender como não se pode “voltar à natureza” porque a natureza sempre esteve no mesmo lugar (todo lugar, adiante-se).

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alexander-fleming

Tampouco me satisfaz a idéia de que se poderia pisar para fora do sistema técnico atual aperfeiçoando alternativas estritamente tecnológicas, como na idéia do desenvolvimento sustentável por meio de energias renováveis, no trans-humanismo, parabiose e assim por diante. (Este tema também é tratado no texto que linquei acima.) Tudo isso é importante, mas insuficiente, e servirá no máximo para ganharmos tempo até pensarmos em algo melhor.

Afinal, o resíduo das energias fósseis (dentre os quais aparecem termos como “poluição” e “concentração de dióxido de carbono na atmosfera”) é um problema entre tantos, e cujo resultado mais nocivo decorre da própria noção de desenvolvimento que justificou seu uso até hoje. Sem reexaminar essa idéia de desenvolvimento, o máximo que se pode conseguir é alongar um pouco a agonia, esgotando outros meios de nossa vida antes do estritamente energético.

O segundo motivo é que nossos corpos não seriam capazes de suportar ser atirados de repente num modo de vida (supostamente) sem mediação técnica, ou seja, aquilo que poderia ser entendido como “retorno à natureza”. Nem que seja pelo simples fato de que todos nós nascemos neste mundo em que há antibióticos e vacinas. Portanto, não chegaria à idade adulta se tivesse que enfrentar com a corrente sangüínea nua as superbactérias que devem a nós mesmos sua existência – mais uma triste ironia.

Por sinal, aqui caberia fazer uma pausa: os antibióticos, descobertos mais ou menos por acaso por Alexander Fleming e disseminados durante as guerras monstruosas do último século, são um fármaco no sentido grego do termo, ao qual se aplica a dualidade do “gift/gift“, a dádiva/veneno tão claramente assinalada por Marcel Mauss e Georg Simmel. Isto é, à medida que salvavam vidas, também tornavam-se um problema mais grave do que às vezes nos damos conta.

Não apenas, como se sabe, seu uso indiscriminado (leia-se: comercial) levou ao surgimento de super-bactérias resistentes, como também fragilizou os corpos, dado que bactérias nocivas são mortas junto com bactérias necessárias à vida do indivíduo. Mais uma vez, o imperativo simbólico dos balanços contábeis dos laboratórios adulterou os fluxos e as virtualidades da potência dos remédios.

Afinal, o corpo é um ecossistema: para expulsar a natureza, seria preciso expulsar o corpo!

O mesmo vale para as estruturas nas quais vivemos: se todos resolvessem adotar da noite para o dia uma tecnofobia radical, não haveria mato no mundo que recebesse a todos, nem seria possível desmontar as cidades ou “adaptá-las” radicalmente para esse novo modo de vida. A idéia ela mesma é absurda. Assim, nosso próprio condicionamento fisiológico e os meios associados que nos fazem o que somos invalidam qualquer sonho de “retorno à natureza”, revalorização da vida frugal ou coisa que o valha.

Por fim, e trata-se agora de uma enorme ironia (entre tantas), uma suposta “volta” à vida simples e sem recursos tecnológicos não só não é a solução para o ponto a que chegamos em nossa ilusão técnica de expulsar a natureza, como ainda por cima pode acabar sendo sua própria conseqüência. A se confirmarem os prognósticos mais alarmistas, os sistemas de comunicação, logística e transações que sustentam a nossa tão inflada civilização se tornariam inviáveis.

Dificilmente a reação da humanidade a essa constatação seria pacífica, conduzindo a conflitos bastante destrutivos. Que tipo de conflitos poderiam ser fomentados pela mudança do clima? Bom, cientistas dizem que já é possível ter uma idéia olhando para… a Síria. Diagnóstico correto ou não, resta que o fim dessa história seria levar os sobreviventes a uma vida bastante, como se diz, primitiva. Irônico, não? Trate de não rir.

Instrumentos e dominação

hiroshima

Muitas das raízes da incompreensão técnica e econômica do humano sobre si próprio foram apontadas nas obras que trataram da relação entre homem e natureza, de trabalho e liberdade, no último século. O exemplo mais óbvio é provavelmente o de Adorno e Horkheimer, que escreveram um enorme e célebre livro, a Dialética do Esclarecimento, para demonstrar como a racionalidade que se pretende conhecedora e controladora das potências naturais, em nome da liberação e do poder do humano, acaba se convertendo em conhecedora e controladora do próprio humano.

Querer dominar a natureza conduziria, assim, inexoravelmente a querer dominar o humano em seguida. Portanto, uma das fontes do totalitarismo estaria na própria potência supostamente libertadora que a humanidade, segundo se crê, carrega consigo: mas a razão contém algo de auto-corrosivo, como parecia demonstrar a destruição da guerra que os autores vivenciaram, e que se encerrou com a invenção do armamento mais aniquilador que até então se conhecera.

A bomba atômica, por sinal, serve de ilustração para o que queremos dizer com toda essa questão da “expulsão da natureza”: encerrada sob a racionalidade das disputas de poder, território e controle do comércio, a potência da natureza, naquilo que contém de mais ínfimo, porém mais energético, com a bomba é detonado de uma vez só pela própria racionalidade que havia sobredeterminado a natureza como um todo. Ela então ergue-se liberada, enraivecida, triunfal, numa enorme explosão em forma de cogumelo: o cogumelo da vingança, para usar uma imagem meio cafona, mas na linha do argumento de Horácio.

Como vimos na segunda parte, uma parte considerável do processo de dominar algo, a natureza em particular, consiste em lhe sobrepor toda uma camada, uma verdadeira estrutura, de significação, pela qual se podem introduzir interrelações, medições, valores e juízos. Juízos, valores e medições não são dominadores por si, mas desde que haja um imperativo pelo qual se cindem as potências entre aquelas que se consideram desejáveis (a maximizar) e indesejáveis (a minimizar), a atividade simbolizadora passa a orientar-se segundo essa tarefa.

O sucesso nela dependerá, por isso, cada vez mais na capacidade de dominar o seu material, radicalizando a cisão e o espaçamento entre aquele que age e aquele sobre o qual a ação é realizada. Daí por diante, onde serão assentadas as cisões dependerá cada vez mais do próprio processo simbolizador, ele mesmo um exercício de potências – e, evidentemente, de poder.

* * *

A análise mais abrangente, porém, é provavelmente a de Hannah Arendt em A Condição Humana, título que por si só traz alguma coisa de sinistro, se nos lembramos do quanto já se fez para definir o humano como aquele que é capaz de libertar-se de todo condicionamento… A filósofa alemã faz nesse livro uma distinção que mereceria ser mais explorada, entre o “labor” e o “trabalho” (em português fica estranho, já que “labor” é um termo que nunca usamos, mas está valendo), além de distinguir ambas do que é propriamente político – tudo isso no reino da ação humana (melhor seria traduzir como atividade), por oposição à contemplação valorizada pelos antigos.

Acontece, diz Arendt, que a elevação dos assuntos do mero labor, ou seja, da atividade dirigida à necessidade (aquilo que a gente costuma chamar de “trabalho”), às determinações econômicas, a assunto social pleno, e não à mera administração da vida privada (oikonomía), ocupa o espaço que deveria pertencer à política em estado puro, que seria, por sua vez, o reino da liberdade. Observe-se que, de maneira razoavelmente próxima, mas ainda assim significativamente distinta à de Marx, Arendt opõe o trabalho e a liberdade. Assim, coloca-se a contrapelo de como pensava o idealismo alemão.

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Mas a liberdade pertence a uma forma de atividade que é coletiva e contemporânea do trabalho: ela está explicitando um problema que surge do abandono da idéia grega de uma liberdade aristocrática, por oposição à limitação dos escravos à necessidade e ao trabalho, tema explorado em profundidade por André Gorz em Crítica da Razão Econômica. Para Arendt, nada foi colocado no lugar dessa distinção, de modo que, em vez de generalizar-se a liberdade da política, generalizou-se a escravidão do trabalho (ou melhor, do labor).

Não é uma mera aporia, tampouco uma defesa desvairada de um retorno àquele mundo aristocrático dos gregos (muito embora esteja bastante claro que o mundo se encaminha para uma re-aristocratização, pela via da plutocracia; mas isso é outro assunto, brevemente abordado em outro texto deste blog). O que há de realmente interessante, no texto de Arendt, é a o surgimento dessa figura intermediária entre o aristocrata livre e o animal laborans: o homo faber.

Este sim é o titular daquilo que a autora designa, propriamente, como “trabalho”, e que traduz duas palavras gregas: tekhnê e poiesis. A artefatualidade e a criatividade, poderíamos colocar assim. O que ela está nos apontando é a capacidade de produzir sua própria realidade que o ser humano possui, e que se distingue tanto do trabalho quanto do exercício do poder ou da deliberação política. A obra do homo faber é duradoura e é cultural, no sentido de produzir o universo das coisas e das instituições que povoamos.

©Photo. R.M.N. / R.-G. OjŽda

No entanto, é bastante evidente que a filósofa se mantém na linha clássica do passo para fora da natureza, da distinção entre o que é fruto do artifício e o que é natural, diferenciando-se muito pouco do que afirmavam os alemães que a antecederam – aos quais se soma Heidegger, naturalmente, com sua tese do Gestell, a convocação pela qual se confere sentido a algo que é extraído da natureza.

Não é o caso de entrar demais em Heidegger, entre outros motivos porque a análise da questão da técnica no bigodudo de más opiniões políticas já foi empreendida por gente muito mais qualificada que eu e em profundidade. Para não passar completamente batido, eu diria o seguinte: se a técnica é um gesto entre muitos de revelar (entbergen) e convocar (hervorrufen) algo da natureza à presença (Anwesenheit), então temos ainda um problema de afastamento entre o natural e o humano (entendido como social, racional etc.), ainda que seja menos da ordem da expulsão e mais da ordem da dominação, sob forma de inserção no sentido (portanto, na linguagem, tema com que já cruzamos) e na tomada de forma – uma forma específica, informada pela noção do que é útil. Ou seja, a adulteração dominadora que Adorno e Horkheimer apontam (como já tinha sugerido Rousseau, aliás) segue intocada.

A diferença está no fato de que aqui, de alguma maneira, o natural se expressa também (já que é convocado), de modo que temos um primeiro vislumbre, tênue que seja, de uma natureza que mantém suas intensidades e sua força própria mesmo na realidade tomada pelo humano formalizador e dominador. Já é alguma coisa, e traz o problema ao próximo ponto.

Continua na Parte 5

Leia também a Parte 6

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Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, doença, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, história, modernidade, opinião, passado, Politica, reflexão, Sociedade, tempo, trabalho, transcendência, trem

Naturam expellas (Parte 3)

[N.B.: esta é a terceira parte de um texto sobre a velha questão “homem/natureza”, inspirado no ecocídio ocorrido semana retrasada em Mariana-MG e que está destruindo um dos nossos mais importantes rios.]

Leia também a PARTE 1.

Leia também a Parte 2.

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Mestre e possessor, pois sim, mas porque “liberto” dos grilhões de uma existência “meramente natural”. Um dos pontos cruciais da construção de uma modernidade faustiana que tentou “expulsar a natureza” é a idéia de que “natureza” (já não mais falando em “estado de natureza”) corresponde a um contexto de amarras da necessidade, à qual se oporia a engenhosidade humana e, em particular, a razão. De estado a superar, passa-se de substrato; a abafar, acrescente-se.

Encontramos idéias deste tipo, de maneiras ligeiramente diferentes, em três alemães de mente para lá de poderosa: Kant, Hegel e Marx.

O mestre de Königsberg, primeiro, para respeitar a cronologia: no texto Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolítico, de 1784, Kant faz uma espécie de síntese da idéia prometéica do humano como animal nu, dependente de suas próprias técnicas, e da fórmula pascalina da cultura (ou hábito) como “segunda natureza” (idéia que será retomada criticamente na obra de Bernard Stiegler, mais recentemente).

Ele afirma, então, que estava nas finalidades da natureza (que “não faz nada por acaso”) que o ser humano:

obtenha inteiramente de si próprio tudo que ultrapassa o agenciamento mecânico [mechanische Anordnung] de sua existência animal e que não participe de nenhuma outra felicidade e nenhuma outra perfeição senão as que criou ele mesmo, livre do instinto, por sua própria razão.6

Aqui, a natureza não precisou de um Criador punitivo para ela mesma querer expulsar o humano de seus mecanismos imanentes, isto é, seu “agenciamento mecânico”. Mas é uma estranha fórmula: como pode a natureza ter desejado a extração de uma de suas criaturas, tornando-a tão frágil? Por que a fragilidade, que implica a sujeição às forças naturais, deveria ser vista como “porta de saída”da natureza, e não uma inserção ainda mais intensa, por sofrida?

O tema volta mais tarde na obra de Kant, na Crítica da Faculdade de Julgar e nos Fundamentos da Metafísica dos Costumes. A questão, ele diz, neste último texto, é que a natureza é o reino da necessidade, onde todo fenômeno obedece a leis fixas da matemática, da física e de tudo aquilo que merece o epíteto “ciências da natureza”. Não há liberdade na natureza, porque a liberdade pertence toda à razão. Se não é possível “expulsar a natureza” propriamente, ela está, em todo caso, expulsa do reino onde o humano age com sua maior desenvoltura, enquanto humano, livre e poderoso: o reino da razão prática e dos costumes.

A mediação entre esses dois reinos, que o velho prussiano faz questão de resgatar como modo todo seu de reconciliação, é o da faculdade de julgamento, aquela que discerne valores: no fundo, tudo gira em torno de um gesto inteiramente humano de valorar: cabe ao humano “dar sentido” à natureza. Por sinal, quando Marcuse, séculos mais tarde, for tentar pensar uma crítica ao mesmo tempo ecológica e marxista ao capitalismo, é nesse texto de Kant que ele vai buscar a fonte de inspiração. Porque Kant vê na natureza uma intencionalidade sem intenção, isto é, a capacidade de formar objetos de tamanha coerência que, pensaríamos, só podem ser frutos da intenção…

Como se vê, um certo trabalho de linguagem continua servindo de véu entre nossa civilização e uma dada natureza que continuamos nos esforçando por expulsar, mesmo quando estamos reconciliados com ela. Um trabalho de linguagem e também um empréstimo de intencionalidade, um certo ranço de antropomorfismo que se insere pelas frestas do pensamento racionalista, driblando o pensador.

* * *

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Mas como este texto não é uma exegese de Kant, vamos seguir em frente: essa mesma distinção entre a necessidade do natural e a liberdade do racional aparece de forma modificada em Hegel, autor que foi muito influenciado pelos textos dos primeiros economistas políticos, franceses como britânicos (Hegel leu muito o escocês Adam Smith). O animal, como o humano, têm necessidades de ordem natural, que são limitadas, mas o humano possui um outro tipo de necessidade, muito mais universal, que se subdivide em particularidades e aparece como “conforto”, depois “luxo”, e assim por diante (Princípios da Filosofia do Direito, parágrafos 191 e seguintes).

Essas necessidades sociais (“conjunção de necessidades imediatas ou naturais com necessidades mentais que surgem de idéias”) são preponderantes no humano como efeito de sua universalidade. Por esse motivo, diz o filósofo, “o momento social carrega em si o aspecto de libertação, ou seja, a necessidade natural estrita é obscurecida e o ser humano se ocupa de sua própria opinião (…) e com uma necessidade que ele mesmo produz, em vez de uma necessidade externa” (parágrafo 194).

Como é que se produz essa liberdade tão universal e tão particularizável? Ora, dirá o leitor alemão da obra de Locke e Smith, é trabalhando que conseguimos o que queremos! Assim,

através do trabalho o material bruto diretamente fornecido pela natureza é adaptado especificamente a esses fins numerosos por toda sorte de procedimentos. Agora essa mudança formativa confere valor a fins e lhes dá sua utilidade, então o homem, no que ele consome, está sobretudo atento aos produtos dos homens. São os produtos do esforço humano o que o homem consome” (par. 196).

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Note-se que o texto de Hegel seria perfeitamente capaz de ser usado para justificar a mineração tal como é feita no Brasil. O material “fornecido pela natureza” é bruto. Os procedimentos, isto é, a técnica, o “engenho e a arte”, diria Camões, o especificam, engendram nele os valores e as utilidades. No mundo do consumo humano, os entes são objetos do esforço humano: a natureza ficou em outro plano, uma vez que foi transformada.

Mas não se pode encontrar em Hegel uma formulação precisa que explique o que devemos fazer com a produção em massa de rejeitos, lixo, poluição e dívida. Teríamos, talvez, de voltar à Fenomenologia do Espírito para afirmar que falta mais um Aufhebung à substância universal? Afinal, se a economia do “produtos do esforço humano” é tética, não seria o sufocamento do humano sob os imperativos de produtividade, as montanhas de lixo e a acumulação da dívida uma instância antitética?

E seria mesmo o caso de se perguntar como se daria essa nova superação, e o quanto seria possível manter o tipo de discursividade que marcou a modernidade ocidental, uma linguagem que, como lembra Viveiros de Castro, é proposicional de cabo a rabo. Teríamos de incorporar, talvez, aos desdobramentos do espírito uma etapa de expressão que recuperasse a linguagem dos mitos, capaz de reintroduzir uma racionalidade mais circular e propriamente universal (para além da universalidade que encontramos no discurso hegeliano das “necessidades sociais”)?

Está aí algo a pensar, mas não no escopo deste texto…

* * *

Derrubada do Pau Brasil

Último alemão desta seqüência, o pai do socialismo científico, o incontornável mouro, Karl Marx. Já podemos lhe dar razão quando, ainda jovem, nos seus manuscritos de 1844, critica Hegel por só ver o “lado positivo” do trabalho. O lado negativo é a proletarização, isto é, o fato de alienar-se o trabalhador dos meios de produção:

Hegel concebe a autocriação do homem como um processo, a objetificação como negação da objetificação, como alienação e supressão dessa alienação; assim, ele apreende a natureza do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque real, como resultado de seu próprio trabalho. O que possibilita o comportamento real, ativo, do homem para consigo mesmo (…) é que ele exterioriza realmente todas as suas forças genéricas (…) e isso só é possível hoje sob a forma da alienação (Esboço de uma Crítica da Economia Política).

Ironicamente, houve quem visse grande parte desse lado negativo. Exemplo: o próprio Adam Smith, com um trecho como este:

A compreensão da maior parte das pessoas é formada pelas suas ocupações normais. O homem que gasta toda sua vida executando algumas operações simples (…) não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer seu espírito inventivo (…). Ele perde naturalmente o hábito de fazer isso, tornando-se geralmente tão embotado e ignorante quanto o possa ser uma criatura humana. O entorpecimento de sua mente o torna não somente incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda conversação racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre ou terno, e, conseqüentemente, de formar algum julgamento justo (…). A uniformidade de sua vida estagnada naturalmente corrompe a coragem de seu espírito (…). Esse tipo de vida corrompe até mesmo sua atividade corporal, tornando-o incapaz de utilizar sua força física com vigor e perseverança em alguma ocupação que não aquela para a qual foi criado. Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida às custas de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais.” (A Riqueza das Nações, Livro V)

Mas é interessante notar como, na obra magna de Marx, O Capital, dois momentos distintos na relação da natureza com o trabalho são visíveis: no Livro I, o trabalho, “criador de valores de uso”, é “condição de existência do homem” e “necessidade natural eterna de mediar o intercâmbio material entre homem e natureza”. O trabalho também é “dispêndio de músculo e nervo” e “apropriação do natural para os carecimentos humanos”7. Nesse sentido, todas as formas sociais implicam algum tipo de trabalho.

Para quem está tratando da “expulsão da natureza”, muitas coisas aqui são interessantes: primeiro, cabe notar que Marx já começa de um ponto em que outros, antes dele, tiveram que penar para chegar, que é a atividade de gestação de valores (no caso, valores de uso). É a atividade que vimos, sob variadas formas, como mediadora, mas também inseparável de modalidades da linguagem e da técnica. O humano, aqui, reafirma-se como tal em um processo constante de extração dos seus valores e, portanto, da sua civilização (ou outras palavras quase sinônimas, como cultura, sociedade etc.).

A produção de valor é uma apropriação do natural, isto é, uma sobredeterminação, a tal ponto que, inserida no mundo que o humano gestou para si próprio, o que está sobredeterminado sobrepuja e chega a apagar o natural de onde foi extraído. Novamente, o natural desaparece do plano do discurso e, por extensão, do visível. Não é surpresa que tenhamos nos tornado incapazes de enxergar o que nossa própria atividade faz com a natureza, em termos de produção de lixo…

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Marx, no entanto, introduz brevemente (para depois deixar de lado) um elemento que estava ausente das análises anteriores: o corpo. Afinal, engrendrar o mundo social (dos valores de uso) através da apropriação do natural é um dispêndio de músculo e nervo, ele diz. É o consumo do corpo humano, que se exaure em nome da produção da civilização humana. O humano como natural (digamos assim) sendo parasitado pelo humano social…

Em outro texto, logo nas primeiras páginas dos cadernos conhecidos como Grundrisse, Marx chega a dizer que toda produção é consumo e todo consumo é produção: ao consumir, digamos, comida, o humano produz seu corpo; ao produzir essa mesma comida, é preciso consumir seu corpo. E assim por diante, ou seja: um constante atravessar da fronteira entre o natural e o social, uma mediação entre esferas mantidas, ainda assim, separadas, sem coincidir propriamente.

E também no Capital, encontramos durante a crítica à teoria da renda de David Ricardo aquela que é provavelmente a mais clara expressão – infelizmente não desenvolvida nesse sentido – dos ruídos entre a simbolização alienante e as dinâmicas de uma natureza feita de potência. Eis o trecho dotado de maior beleza poética, se posso me expressar assim:

Imaginemos agora as quedas-d’água, com as terras a que pertencem, nas mãos de pessoas que são consideradas proprietárias dessa parte do globo terrestre, como proprietários fundiários, e que resolvam excluir o investimento do capital na queda-d’água e sua utilização pelo capital. Elas podem permitir ou negar a utilização. Mas o capital não pode criar por si a queda-d’água. O sobrelucro que se origina dessa utilização da queda-d’água não se origina, portanto, do capital, mas do emprego de uma força natural monopolizável e monopolizada pelo capital. Nessas circunstâncias, o sobrelucro se transforma em renda fundiária, isto é, recai para o proprietário da queda-d’água.8

lama rio doce aimores

Ou seja: para Marx, o capital, que, para todos os efeitos, é artifício e linguagem (que se apresenta preferencialmente sob forma simbólica no dinheiro), consegue apropriar-se, por essa mesma via simbólica, das forças (dinâmicas, poderíamos dizer) naturais, de “partes do globo terrestre”, para sua própria linguagem. Isto é a renda, remetendo à origem rousseauísta da desigualdade entre os homens… Este trecho já me impressionava bastante. Agora, com o ecocídio do Rio Doce, me impressiona mais ainda!

Mas, na verdade, a passagem realmente interessante do Capital é aquela do Livro III em que ele afirma que o reino da “verdadeira liberdade só começa, de fato, quando o trabalho termina”. Afinal, o trabalho é “determinado pela carência”, portanto “reino da necessidade”. Assim, “além dele começa o desenvolvimento das forças humanas, que vale como fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, entretanto, só pode desabrochar tendo o reino da necessidade como base”.

O que é interessante aqui é que o trabalho já não é mais a fonte de uma liberdade humana. Nem mesmo o trabalho não-alienado. A atividade humana livre está além do trabalho, mas ainda assim se constitui sobre uma base de trabalho e, portanto, de necessidade. A relação entre o natural e o social, o artifício, o construído, é muito mais tensa nesta passagem do que em qualquer outra. Afinal, o que determina os ganhos de liberdade é a redução da jornada de trabalho, algo que ele diz claramente.

Millbank workhouse

(Leia-se a partir desse tema da liberdade o célebre texto de Keynes sobre as possibilidades econômicas de nossos netos, publicado em 1930: aparece novamente o mesmo tema do trabalhar menos, mas justamente essa redução do trabalho poderia implicar uma liberdade que tornaria inviável a socialidade com a qual nos acostumamos.)

Portanto, aquilo que aparece a Marx como verdadeira liberdade está em relação tensa e invertida com o processo que parece estar mais ligado à liberdade nos autores que vimos anteriormente. O processo pelo qual se “expulsa a natureza” não liberta, ainda que a liberdade se assente sobre ele. O que se faz em relação à natureza nesse reino da verdadeira liberdade?

E mais: se, como previu Keynes (talvez se esquecendo da infinita universalidade e particularização dos desejos artificiais descritos por Hegel), temos produtividade suficiente para manter em níveis mais, digamos, seguros a atividade econômica que “expulsa a natureza”, então qual é o imperativo que faz com que queiramos expandi-la além de todos os limites?

Temos aí, certamente, mais um fenômeno de sobredeterminação, de valores, linguagem, trabalho e técnica. Mas é justamente isso que nos traz ao século XX, quando nuvens carregadas começam a se formar sobre a noção dessa atividade humana que nos torna “mestres e possessores” da natureza, “libertados dos constrangimentos naturais” pelo trabalho e assim por diante. Quando a ênfase passa à análise do outro lado, a escravidão, o colonialismo, o imperialismo, as guerras, a desumanização. É o século de Oswald Spengler, Hannah Arendt, Adorno e Horkheimer, Lewis Mumford.

Continua na Parte 4.

Leia também a Parte 5.

Leia também a Parte 6.

NOTAS

child labour

6.Die Natur hat gewollt: daß der Mensch alles, was über die mechanische Anordnung seines thierischen Daseins geht, gänzlich aus sich selbst herausbringe und keiner anderen Glückseligkeit oder Vollkommenheit theilhaftig werde, als die er sich selbst frei von Instinct, durch eigene Vernunft, verschafft hat. Die Natur thut nämlich nichts überflüssig und ist im Gebrauche der Mittel zu ihren Zwecken nicht verschwenderisch.

7.Este ponto do discurso de Marx mereceria uma atenção maior. Sou da opinião de que todo O Capital pode ser lido como uma teoria da socialização do corpo, através do conceito de trabalho (origem do valor-trabalho, portanto) como dispêndio de músculo e nervo. Onde há valor, há socialização (simbolização, antes de mais nada) do corpo.

8.Denken wir uns nun die Wasserfälle, mit den Boden, zu dem sie gehören, in der Hand von Subjekten, die als Inhaber dieser Teile des Erdballs gelten’ als Grundeigentümer, so schließen sie die Anlage des Kapitals am Wasserfall und seine Benutzung durch das Kapital aus. Sie können die Benutzung erlauben oder versagen. Aber das Kapital aus sich kann den Wasserfall nicht schaffen. Der Surplusprofit, der aus dieser Benutzung des Wasserfalls entspringt, entspringt daher nicht aus dem Kapital, sondern aus der Anwendung einer monopolisierbaren und monopolisierten Naturkraft durch das Kapital. Unter diesen Umständen verwandelt sich der Surplusprofit in Grundrente, d.h. er fällt dem Eigentümer des Wasserfalls zu.

placa de pare

 

Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, cidade, costumes, crime, desespero, deus, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, história, modernidade, morte, opinião, passado, Politica, reflexão, religião, Sociedade, tempo, transcendência, tristeza, vida

Naturam expellas (parte 2)

[N.B.: esta é a segunda parte de um texto sobre a velha questão “homem/natureza”, inspirado no ecocídio ocorrido semana retrasada em Mariana-MG e que está destruindo um dos nossos mais importantes rios.]

Leia também a PARTE 1.

Na linha do patriarca

josé bonifácio 500 mil reis

Na primeira interpretação, fazemos como José Bonifácio: tentamos criar um mundo em que a natureza está fora e a civilização está dentro, exceto pelos jardins de que cuidamos bem e de algumas reservas naturais em que fazemos turismo e evitamos a extinção de nossas espécies preferidas. Mas se tem algo que aprendi com a leitura (na verdade, releitura exaustiva) de Simondon é que qualquer realidade se conhece pelas suas franjas, suas membranas, ali onde ela é obrigada a reafirmar-se na interação com o que passa por seu meio associado.

E, justamente, o meio associado é aquilo que, estando fora, é constituinte de qualquer idéia de interioridade.

Assim, a civilização contemporânea, no que tem de mais próprio, não se revela nas filas de castanheiras do jardim das Tulherias, nem na ordem-que-se-finge-de-caos (ou o contrário) de Times Square, nem na aparentemente milagrosa melhora dos índices de expectativa de vida ou ocorrência de doenças, registradas pelas estatísticas dos últimos dois séculos. A civilização contemporânea define-se pelas paisagens da Indonésia em chamas, dos tar sands canadenses, da dita “fronteira agrícola” do Mato Grosso, dos subúrbios de Altamira, mas também da Baixada Fluminense, e das barreiras que estouram em Minas Gerais.

Afinal, é ali que ela define o que vai deixar “de fora” e o que vai laboriosamente incorporar “para dentro de si”. Aqui é onde os dados são lançados: no gesto constante de expulsar a natureza para ter Times Square e bons indicadores socioeconômicos; na atividade infatigável de extrair a substância valorada e entregar rejeitos; na mania neurótica de produzir lixo, lixo e lixo.

(Sobre o lixo, ouça-se o que diz Peter Szendy NESTE LINK – tem legendas.)

Eu disse que ia tratar da primeira forma possível de interpretar a idéia do “naturam expellas furca”, mas já abro revelando toda a minha discordância dela. São vícios argumentativos, não consigo evitar. Afinal de contas, a idéia de expulsar a natureza, deixando-a do lado de fora do ambiente em que nós mesmos vivemos nossas vidas – a cultura, a civilização, o que for –, à parte um certo número de mediações (arrancar alimentos do seio da terra, calafetar embarcações, cuidar da saúde, aquecer ambientes), tem qualquer coisa de hipostasia.

Como se a natureza fosse um ente bem delineado e concreto, que pudesse ser expulso de um outro ente delineado e concreto, algo que identificamos como nossa verdadeira habitação, a cultura, a civilização. Como se aquele que expulsa não fosse sempre também alguém que, bolas, não pode se arrancar do que ele mesmo considera natural e externo a si próprio! Como se o óleo que alimenta os carros da avenida Paulista, as lâmpadas de Times Square e a jardinagem das Tulherias não misturassem teimosamente o artifício e o natural, o cultural e o físico.

* * *

calor na índia

Mas parece que já naturalizamos esse modo de pensar. Com o passar dos séculos, nem mesmo nos lembramos do quanto se teve de argumentar para passar a crer na idéia de que fosse necessário colocar a natureza para fora do nosso mundo (nosso mundo, veja você). Talvez a formulação mais cruel dessa idéia esteja em Hobbes, quando ele diz que a vida no “estado de natureza” não tem “artes, letras ou sociedade”, então é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”2;. Aqui, o mesmo poder que funda uma sociedade – civilizada, poderíamos acrescentar – é aquele que extrai o humano da natureza: a natureza é guerra, diz Hobbes. Guerra, medo, ameaça.

Tal cisão radical entre o agente da expulsão (nós, a rigor) e a natureza que é expulsa pode ser identificada, em maior ou menor grau, em todas as descrições – míticas, a propósito, embora não possamos admiti-lo abertamente – que empregam a idéia de um estado de natureza que se oponha à civilização, ao mundo social, político, o que for3. Algo parecido pode ser lido no Discurso sobre a Desigualdade, de Rousseau – esse malandro que vira o contratualismo de Hobbes de cabeça para baixo. Muito embora ele o afirme em tom de denúncia, quando enxerga na origem da propriedade privada o gesto autoritário do primeiro a dizer “isto aqui é meu”.

E é preciso levar a sério essa fórmula. Pois determinar que algo – um terreno, por exemplo, e de fato a posse da terra é uma dimensão de primeiríssima importância, como mais tarde vai mostrar com brilhantismo Karl Polanyi a respeito do nascimento do capitalismo – é “de alguém” contém sempre um caráter de despotencialização. Uma parte da autonomia existencial (se posso falar assim) do objeto ou da porção de terra é perdida em nome de uma submissão ao artifício, à simbolização, à linguagem.

Masaccio expulsão do jardim do éden

A terra que era superfície (termo importante!) do planeta, sede da gênese de mundos, ambiente de circulação de entes vivos – humanos aí inclusos –, passa a ser “o terreno de alguém”. O gado que pasta e muge é “o rebanho de alguém”. Objeto de direito comercial. Patrimônio. O que esse ancinho performático faz é expulsar a natureza do plano do discurso, ao recobrir aquilo que era supostamente natural com uma superfície de determinações outras: culturais, financeiras, simbólicas. Um outro tipo de expulsão, como se vê, e igualmente ilusória.

A propósito da questão discursiva, veja só como é interessante o lado religioso da questão – e não se pode deixar de fora a narração religiosa, que sempre manteve um diálogo de alta proximidade com outras narrativas totalizantes, em particular as metafísicas. No Gênesis, ao homem é dado o direito e a função de nomear todas as coisas, mas isso enquanto ele ainda está no Paraíso, isto é, dentro de algo que poderíamos ler como uma natureza intocada e perfeita, criada por Deus para o usufruto daquela criatura feita à sua imagem e semelhança.

Mas intervém o pecado original e o homem é expulso – note-se: não a natureza – do Jardim do Éden, obrigando-o a viver do suor de seu trabalho e a reproduzir-se com a dor do parto – mas mantendo seu caráter de imagem encarnada do Criador. Daí por diante, aquele que nomeou quando integrado ao Paraíso passará a enfrentar as adversidades de um vale de lágrimas: seria daí, então, que vem a reviravolta nada dialética, a peripécia pela qual torna-se ele mesmo um agente de expulsão da natureza? Será que é por isso que, com o perdão da piada infame, “Paraíso” no mundo dos humanos foi reduzido a um bairro de São Paulo não particularmente mais agradável do que o resto da cidade?

* * *

Encyclopedie-Diderot

Seja como for, o ápice dessa mitologia que começa a se elaborar em paralelo à modernidade, e tem um caráter ao mesmo tempo titânico e masturbatório, pode ser encontrado (para variar) em Descartes, o estrito dualista das certezas claras e distintas. É no Discurso do Método que ele afirma, sem maiores pudores, que o conhecimento (adivinhe: claro e distinto…) de como funciona a realidade natural poderá fazer do ser humano “como o mestre e possessor da natureza”4. Aqui, não se expulsa, mas se domina, subjuga e usa, “não só para gozar sem pena de seus frutos, mas sobretudo para a conservação da saúde”…

Que ironia, hoje, pensar como o usufruto “sem pena” dos frutos da natureza resulta em enormes penas, de furacões a rios de lama, de enchentes a queimadas, de secas a cidades submersas… Cúmulo da ironia: tal domínio e tal usufruto chegaram a um tal nível que a “conservação da saúde” se tornou quase impossível: pense nisso quando estiver em São Paulo e precisar tomar um gole de água carregada de metais pesados.

Mas há duas coisas a notar nesse trecho de Descartes: a primeira é, evidentemente, sua paráfrase do “knowledge is power” de Bacon, autor que ele evidentemente havia lido. Mas Descartes diz algo mais interessante ainda: o conhecimento sobre determinada dimensão da realidade permite ter poder sobre essa mesma dimensão. E o filósofo francês é prudente: não corre o risco de dizer abertamente o que está implícito em seu texto. Afinal, para a mentalidade de seu tempo a natureza já tem um “mestre e possessor”, que atende pelo nome de “Aquele que É”: Deus.

golfinhos

O mesmo que, como vimos, entrega à sua criatura dileta o poder de nomear todas as coisas: mas, ora, se a linguagem é performática, então nomear é uma forma de saber. E se saber é controlar, já se pode vislumbrar aonde estamos chegando. Assim, para contornar os riscos de críticas oriundas da cúria – e tais críticas na época poderiam comprometer a vida de alguém até o talo –, Descartes diz abertamente que, ao colocar a natureza como objeto do conhecimento (isolado, portanto) e também da ação, o ser humano está brincando de Deus. Não será o último a fazer essa comparação…

Segundo ponto, que já antecipa o que vou tratar um pouco mais adiante: Descartes quer que conheçamos “a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus” tão distintamente como conhecemos “os diversos metiês de nossos artesãos”, de modo a podermos “empregá-las do mesmo modo a todos os usos a que podem servir”. O trabalho da natureza sendo como o trabalho do artesão, a técnica deste último deverá tratar de colocá-la sob seu controle, fazendo com que ela sirva a seus próprios desejos e interesses.

Mas aqui é que entra uma questão importante que vai aparecer repetidamente neste texto: se fosse possível ter um conhecimento efetivamente exaustivo dessas forças todas, será que seria possível controlá-las? Se estivermos nós mesmos submetidos a elas, será que podemos reproduzir com sinal invertido o processo de expulsão do Paraíso, saindo nós mesmos dessa infinitude intensiva de forças, a ponto de tê-las sob nosso controle?

Não poderíamos dizer, ao contrário, que toda convicção de que podemos controlar os potenciais naturais é um indicador de conhecimento faltoso e, por extensão, em se tratando de forças selvagens, arriscado e ilusório? Será essa disputa entre saber e poder, de fato, necessariamente, a relação que se pode nutrir entre a técnica e as forças “do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus”?

* * *

Goethe Faust und der Pudel Ramberg

Chegamos, assim, à origem do problema que, graças a Goethe, passou a ser chamado de faustiano. Foi Goethe que tornou o mito de Fausto algo capaz de abarcar todas as vertentes daquilo que convencionamos nomear modernidade e que já aparece em germe naquilo que discuti nos parágrafos acima. O âmbito religioso, em que o desejo de controlar (ou expulsar) a natureza aparece como pacto com o demônio, voltando-se contra a potência de nomear tal como presenteada por Deus. O desejo de conhecimento como poder para tornar-se “mestre e possessor”. A imposição de valorações de cunho financeiro (e, por extensão, venal) por cima tanto do que se considera uma realidade social quanto do que se considera uma realidade natural.

Marshall Berman, autor do espetacular Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar, tem razão ao chamar atenção para o fato de que as seis décadas necessárias para redigir o Fausto (Goethe começou com 21 anos de idade e só terminou com 82; no ano seguinte, morreu) são o que faz desse gigantesco poema a obra-prima por excelência da modernização. Da década de 1770 aos anos 1830, enquanto o Fausto de Goethe vinha ao mundo, todas as idéias e todas as técnicas que fizeram do ser humano “como mestre e possessor da natureza”, ao menos a seus próprios olhos, vieram ao mundo, a ponto de tirar o fôlego de quem observasse. Foi o tempo da industrialização, do colonialismo, das revoluções burguesas, da derrubada de monarquias – as eras citadas nas obras-primas de Eric Hobsbawm.

Foi também o tempo em que se engendrou a justificativa para todo esse desejo faustiano de dominação e desenvolvimento (eis aí, aliás, um termo capcioso, e que tem sido empregado no Brasil para justificar as maiores atrocidades; sem meias-palavras: crimes!). Para além das relações deus-e-diabo que se lêem na epopéia de Goethe, obras fundadoras como a de Locke afirmam o direito àquela mesma propriedade que Rousseau denunciara, sobrepujando o que poderia ser dito, de maneira não muito rigorosa, mas bastante eficaz, um direito inerente a qualquer objeto: o de ser o que se é. Ou seja, de não receber aquela camada suplementar de simbolização jurídica e linguística que vimos na fórmula do genebrino.

Com esse gesto fundador, político, metafísico e semiótico, torna-se um princípio da dita lei natural que a voz do humano (aquele que nomeia todas as coisas…) sobredetermine a essência de um pedaço de terra, uma porção de matéria modificada pelo engenho, um rebanho de animais…

E como Locke justifica esse direito à propriedade? Pelo trabalho, seja diretamente, seja mediado pela circulação de uma outra força simbólica, o dinheiro que é capaz de contratar (e comandar trabalho, dirá mais tarde Adam Smith, fundando a noção de “valor relativo ou de troca”). Trabalho, técnica, linguagem, um trio poderoso capaz de fazer do ser humano aquele ser “terrível” (deinon) de que fala Sófocles5, porque é capaz de, ao mesmo tempo, “expulsar” a natureza (do plano do discurso, como já mencionei) e, tendo-a expulsado, tornar-se “como mestre e possessor” dela.

Continua na parte 3

Leia também a parte 4.

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Notas

2. “During the time men live without a common power to keep them all in awe, they are in that conditions called war; and such a war, as if of every man, against every man. To this war of every man against every man, this also in consequent; that nothing can be unjust. The notions of right and wrong, justice and injustice have there no place. Where there is no common power, there is no law, where no law, no injustice. Force, and fraud, are in war the cardinal virtues. No arts; no letters; no society; and which is worst of all, continual fear, and danger of violent death: and the life of man, solitary, poor, nasty, brutish and short.”

3. Uma exceção notável está em Spinoza, com a distinção entre natureza naturante e natureza naturada. Outra excepcionalidade está em sua dedução do direito civil por dentro do direito natural: “seja ele insensato ou sábio, o homem é sempre uma parte da natureza, e tudo aquilo pelo qual ele é determinado a agir deve ser relacionado à potência da natureza enquanto ela pode ser definida pela natureza de tal ou tal homem”. Por sinal, Spinoza é exceção em muitas coisas! Ainda assim, a diferença entre o direito natural e o direito civil é uma de barração de uma espécie de “direito de todos a tudo” (segundo a potência de cada um em sua natureza) que é na verdade um direito a nada (porque a potência de cada um limita a potência dos demais) que se aproxima bastante do estado de guerra de Hobbes.

4.“Mais, sitôt que j’ai eu acquis quelques notions générales touchant la physique, et que (…) j’ai remarqué jusques où elles peuvent conduire, et combien elles diffèrent des principes dont on s’est servi jusques à présent, j’ai cru que je ne pouvois les tenir cachées sans pécher grandement contre la loi qui nous oblige à procurer autant qu’il est en nous le bien général de tous les hommes: car elles m’ont fait voir qu’il est possible de parvenir à des connoissances qui soient fort utiles à la vie; (…) on en peut trouver une pratique, par laquelle, connoissant la force et les actions du feu, de l’eau, de l’air, des astres, des cieux, et de tous les autres corps qui nous environnent, aussi distinctement que nous connoissons les divers métiers de nos artisans, nous les pourrions employer en même façon à tous les usages auxquels ils sont propres, et ainsi nous rendre comme maîtres et possesseurs de la nature. Ce qui n’est pas seulement à désirer pour l’invention d’une infinité d’artifices, qui feroient qu’on jouiroit sans aucune peine des fruits de la terre et de toutes les commodités qui s’y trouvent, mais principalement aussi pour la conservation de la santé, laquelle est sans doute le premier bien et le fondement de tous les autres biens de cette vie (…).”

5.Deinon, como aparece no coro de Antígona:

Há muitas coisas terríveis e assustadoras (deinon), mas nenhuma / é tão terrível e assustadora quanto o homem. / Ele atravessa, ousado, o mar grisalho, / impulsionado pelo vento sul / tempestuoso, indiferente às vagas / enormes na iminência de abismá-lo; / e exaure a terra eterna, infatigável, / deusa suprema, abrindo-a com o arado / em sua ida e volta, ano após ano, / puxados por seus cavalos. / Ele captura a grei das aves lépidas / e as gerações dos animais selvagens: / e prende a fauna dos profundos mares / nas redes envolventes que produz, / homem de engenho e arte inesgotáveis. / Com suas armadilhas ele prende / a besta agreste nos caminhos íngremes; / e doma o potro de abundante crina, / pondo-lhe na cerviz o mesmo jugo / que amansa o feroz touro das montanhas. / Soube aprender sozinho a usar a fala / e o pensamento mais veloz que o vento / e as leis que disciplinam as cidades, / e a proteger-se das nevascas gélidas, / duras de suportar a céu aberto, / e das adversas chuvas fustigantes; / ocorrem-lhe recursos para tudo / e nada o surpreende sem amparo; / somente contra a morte clamará / em vão por socorro, embora saiba / fugir até de males intratáveis.

china usina de tres gargantas

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Naturam expellas (Parte 1)

[Nota: o ecocídio no Rio Doce me motivou a retomar um texto que vinha tentando escrever desde setembro. O resultado segue aí abaixo, embora esteja ainda apressado e com ar de rascunho. Mas é rascunho mesmo, respirando com a pressa que o tema exige. Esta é a primeira parte de um raciocínio que ficou mais longo do que o usual. Por isso, resolvi postar em fascículos, para não me cansar, nem ao leitor. Calculo que poderei postar cada parte com um intervalo de dois dias. Eu não poderia fazer diferente, dada a gravidade do assunto.]

Mariana (MG) - Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco (Antonio Cruz/Agência Brasil)

Naturam expellas furca tamen usque recurret

et mala perrumpet furtim fastidia victrix.

Horácio (Quintus Horatius Flaccus, 65aC-27aC)

Talvez seja uma barbaridade tratar de uma tragédia criminosa e desmesurada evocando um poema da antiguidade clássica. Mas acho que essa estratégia pode pelo menos servir como um recurso para tentarmos pensar à frente, quando nos damos conta de que, lá atrás, alguém já avisou, já deu a real, e a gente segue se estropiando por conta da nossa própria irresponsabilidade e cegueira.

Diz o poeta, escrevendo em 50 a.C.: “você pode expulsar a natureza com um ancinho, ela volta cedo ou tarde / irrompendo vitoriosa contra o seu tolo desprezo”. Nos últimos anos, enquanto subia a temperatura e descia a Cantareira, tomei gosto por esses dois versos da epígrafe. A estrofe a que eles pertencem compara a vida nas cidades e no campo.1 Mas para nós, claro, a imagem adquire um sentido bem mais urgente.

Há um mês, lia-se que o Rio Doce não está mais chegando até o mar no Espírito Santo. E agora, para piorar o que já era trágico, o que vai chegar ao oceano é uma enxurrada de metais pesados e tóxicos, depois do rompimento da barreira em Mariana. É bom lembrar que a barreira em questão é pertencente a uma empresa de nome Samarco, subsidiária de duas das maiores mineradoras do mundo: a anglo-australiana BHP Billiton e a nossa conhecida Vale do Rio Doce – empresa que, grosseira ironia, tira o nome do próprio rio que agora destrói. Morreu gente, morreram peixes, morrerão tartarugas, agriculturas ficarão inviáveis. Não há como exagerar no horror.

No mês passado, um naufrágio no porto de Vila do Conde, em Barcarena (Pará), matou boa parte de uma carga de cinco mil bois. Muitos deles afundaram junto com o barco e suas carcaças estão apodrecendo no leito do rio. Milhares de corpos inchados, milhares de esqueletos, no fundo de uma das principais bacias hidrográficas do mundo. Simplesmente porque precisamos exportar mais e mais toneladas de carne – e soja, e minério de ferro, e alumínio… – para cobrir um déficit de conta corrente que, como sabemos com maior ou menor grau de consciência, não pode ser coberto. Escândalos que se somam a escândalos.

Lamento ter que dizer isso: o mais provável é que esses sejam só os primeiros de muitos desastres que seremos obrigados a testemunhar nos próximos anos e, temo, décadas. Não tenho dúvida. Logo se vê pela reação dos responsáveis e das autoridades: livrando a barra da Vale, falando apressadamente em “desastre natural”, recorrendo a doações da população mais bem intencionada, evocando a importância econômica da atividade mineradora no Brasil, embora um breve raciocínio baste para mostrar que esses benefícios econômicos todos são uma enorme e perversa ilusão.

Indonesia

Eu poderia dizer que hoje a Vale se tornou a nossa BP (petrolífera ex-estatal britânica responsável pelo vazamento catastrófico do golfo do México em 2010). Mas não dá para ignorar que, pela frouxidão com que tratamos o tema ambiental – leia-se, o tema do território, do chão em que pisamos, da comida que comemos etc. –, caminhamos rumo a uma proliferação de casos semelhantes. Pelo andar da carruagem, seremos o país das mil BPs. Falando nisso, foi inspirada pelo desastre no golfo do México que Naomi Klein escreveu em 2014 o livro This Changes Everything; no caso do Brasil, o máximo que posso me dispor a dizer é: “I hope it does”. Mas continuo cético.

Com isso, podem dormir na santa paz de Deus as outras mineradoras, petrolíferas, empreiteiras, incorporadoras, bancos, latifúndios, usinas e por aí vai, que doam os bilhões de nossas campanhas eleitorais para poder esgotar o território (florestas, cidades, campos, mares, rios, subsolos…). Quando o mundo vier abaixo, tudo estará bem para esse pessoal, e mal para o resto de nós, com o beneplácito de todo o espectro político, incluindo a imprensa e os sindicatos. Ainda não entendemos a gravidade da ameaça que ronda nossas cabeças, e não é simplesmente uma crise pertencente aos ciclos produtivos. Essas passam.

E se o assunto é “expulsar a natureza”, parece que essa é uma fixação atávica que nós temos. Já no primeiro reinado, eis o que relata o pintor francês Jean-Baptiste Debret, que retratou algumas de nossas verdades mais desconfortáveis:

Pintor de teatro, fui encarregado de nova tela, representando a fidelidade geral da população brasileira ao governo imperial, sentado em um trono coberto por rica tapeçaria estendida por cima de palmeiras. A composição foi submetida ao ministro José Bonifácio, que a aprovou. Pediu-me apenas que substituísse as palmeiras naturais por um motivo de arquitetura regular, a fim de não haver nenhuma idéia de estado selvagem. Coloquei então o trono sob uma cúpula sustentada por cariátides douradas (…).

Desde o berço, o brasileiro desenvolveu essa mesma relação que temos hoje com o solo em que pisamos e aquilo que nele cresce: há que esconder-se a natureza! Substituí-la por “um motivo de arquitetura regular”! Expulsá-la da representação do que seja o Brasil, naquele que é um de seus símbolos fundadores, a coroa estilizada do primeiro monarca. Nada de palmeiras! A natureza não está aí porque ela não existe. Ou seja: não temos natureza, o que temos são recursos naturais, matérias-primas… Riquezas que fazem nossa pujança e grandeza, como querem nos fazer crer.

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O que mais me desanima é o quanto tudo isso é evidente. Lembro bem dos meus primeiros anos em São Paulo: verões mais ou menos amenos, invernos frios, com temperaturas de um dígito – exceto em uma ou duas semanas do chamado “veranico”, palavra que caiu em desuso, já que hoje podemos vivenciar um mês de setembro como o deste ano, cujo calor, em pleno inverno, me dava dor de cabeça.

Naquele tempo nem tão distante, tempestades de verão eram impensáveis em setembro. Neste ano, tivemos exatamente isso, embora o mês, de modo geral, tenha sido seco como têm sido quase todos os meses há coisa de dois anos. E se eu cruzar com alguém na rua se referindo a “veranico”, não dá para evitar, sangue vai correr. Tivemos algumas semanas chuvosas em São Paulo em outubro e as pessoas já vêem afastar-se a famigerada crise hídrica (que, para parafrasear uma declaração atribuída a Darcy Ribeiro, parece não ser crise, mas projeto). Mal sabem elas que aqueles pés d’água de outubro mantiveram o mês abaixo da média histórica, apesar de tudo…

E falando em correr sangue, se a coisa continuar nessa toada, já se vê que dezembro, janeiro e fevereiro vão ser meses mortíferos. Basta lançar um olhar para o subcontinente indiano, onde 4500 pessoas foram ceifadas por uma onda de calor em maio e junho. E como já se fala em um “Super El Niño” para este verão – já li até a expressão “um El Niño Godzila” –, é de se esperar que setembro pareça ameno em comparação com o que vem pela frente. Mas nenhum desses sinais basta para que o país, como um todo, a começar por suas elites sociais e econômicas, para não falar nas lideranças políticas, coloque esse tema nas primeiras posições da pauta.

E no entanto é um problema que ultrapassa o Brasil, embora o atinja em cheio, na condição de país continental que é. Desastres mortíferos, água acabando, queimadas generalizadas na Indonésia, ciclones mastodônticos no México. No contexto mais amplo, leio notícias de que 2015 baterá o recorde de 2014 como ano mais quente da história (“literalmente território desconhecido”, diz um comentarista, ao compartilhar o gráfico da evolução de temperaturas este ano).

Soubemos também recentemente que a Volkswagen, malandrinha, andou falsificando uns testes de poluição; que o Reino Unido não vai conseguir atingir sua meta de redução de emissões de carbono; que as metas brasileiras “ambiciosas” para reduzir desmatamento, anunciadas por Dilma na ONU em setembro, de ambiciosas não têm nada. Que a China está mais uma vez coberta de poluição.

A boa notícia do ano foi o anúncio de que Obama rejeitou a construção do oleoduto conhecido como Keystone XL, que carregaria petróleo de Alberta, no Canadá, até o golfo do México (pobre coitado…) no Texas. Um ligeiro vento de esperança, mas dado o esforço que movimentos como o 350.org tiveram de despender para conseguir essa vitória, é uma lufada realmente ligeirinha, facilmente engolfada pelo temor com o que há de vir.

O ancinho e nós

Quintus_Horatius_Flaccus

Por essas e outras, não tem como não admirar a fórmula sucinta de Horácio. Dia após dia, estamos tentando expulsar a natureza, com qualquer coisa que faça o papel do tal do ancinho. Por exemplo: como se abrigar desse calor todo? Ora, comprando um ar-condicionado. Mas se a temperatura fresquinha é conseguida aqui dentro graça a um dispêndio brutal de energia, que vai aquecer o resto do mundo lá fora, cedo ou tarde o abafado volta. Talvez não diretamente aqui, mas em algum lugar.

E se está quente na rua, é melhor ir para qualquer lugar de carro – com o ar condicionado ligado, claro, reproduzindo mais uma vez o problema, em duas frentes: a poluição do motor e o gasto energético da refrigeração. Tudo isso para não falar do consumo de energia elétrica, obtida seja com barragens (que andam com reservatório baixo), seja queimando carvão. E assim por diante, até a irrupção vitoriosa daquela que quisemos expulsar.

Mas é certo que a culpa não é do pobre diabo que ativa o ar-condicionado da sala para aliviar o sofrimento dos filhos. Para evitar esse tipo de leitura culpabilizadora e moralista, tratemos Horácio como o autor de uma enorme metonímia: cada ar-condicionado vale por milhões de aparelhos no mundo; o ancinho é o arquétipo de tudo que já se usou para obter essa magra vitória sobre o mundo natural. Assim sendo, já está evidente para qualquer um com um mínimo de boa vontade que a humanidade foi, mais do que arrogante, verdadeiramente frívola ao pensar que “com um ancinho” (muitas vezes traduzido como “violentamente”) poderia “expulsar a natureza”, e que ela não voltaria, mais cedo ou mais tarde, “furtim fastidia“.

A observação de Horácio, porém, é só a primeira das respostas possíveis. Ah, sim, diz o poeta, ela volta e volta triunfal: “recurret victrix”. Vitoriosa, vingativa, violenta. Nessa resposta, ela passa por cima de tudo e retoma o que era seu – o que sempre foi seu, talvez. No plano de um poema que compara a vida urbana à campestre, como é o do autor romano, o sentido dessa idéia é que o dia-a-dia de quem tenta se livrar da natureza é ocupado em varrer, lavar, pintar paredes, consertar telhas, podar árvores, eliminar mofo, jogar fora frutas podres, matar ervas daninhas.

A woman wearing a mask walk through a street covered by dense smog in Harbin, northern China, Monday, Oct. 21, 2013. Visibility shrank to less than half a football field and small-particle pollution soared to a record 40 times higher than an international safety standard in one northern Chinese city as the region entered its high-smog season. (AP Photo/Kyodo News) JAPAN OUT, MANDATORY CREDIT

No plano de um mundo ultra-industrial, financeirizado e cego para suas próprias condições de existência, como é o nosso, a interpretação é bem mais sombria: quanto mais labutamos, quanto mais esforço fazemos, quanto mais desenvolvimento para mandar a natureza para longe, mais irresistível ela vai ser quando voltar, engolindo a todos nós. Quanto mais barragens de rejeitos tóxicos, mais enxurradas. Quanto mais usinas atômicas à beira-mar, mais Fukushima. Quanto mais for viável economicamente arrancar o petróleo do leito marítimo, mais desastres no Golfo do México. Quanto mais for necessário expandir a fronteira agrícola para garantir a expansão de cadeias de junk food, mais queimadas fora de controle na Indonésia.

A imagem que temos ordinariamente da mudança climática ilustra bem essa perspectiva apocalíptica, com sua justeza e também seus exageros. Os mares subirão, as cidades serão engolidas, as florestas se tornarão desertos, as lavouras morrerão, metano jorrará (ou já está jorrando) de enormes crateras na Sibéria. Cada um por si e Deus contra todos. A natureza no papel de Conde de Monte Cristo, eliminando pouco a pouco e fazendo sofrer aqueles que a traíram. Quem é que não está cansado de ler alertas assim?

Mas poderíamos explorar uma outra resposta para a mesma fórmula da natureza que tentamos expulsar só para vê-la retornar vitoriosa. Nesta resposta, o problema de querer enxotar a natureza não está simplesmente em sua arrogância frívola, mas acima de tudo em seu caráter de cabo a rabo ilusório. Assim, os desequilíbrios naturais provocados pelo modo de atuação do ser humano “sobre” a natureza – mas na verdade “na” natureza – se situariam não na interação alienada e extravagante entre um dentro (da casa, da cultura, da civilização, da economia, da humanidade) e um fora (a natureza que foi expulsa, as “externalidades negativas” geradas pela atividade humana, econômica em particular), mas por todos os lados, ou seja, na manutenção da própria idéia de uma “casa” que estaria isolada da natureza; na contemplação de uma natureza que está para lá das paredes; no gesto ele mesmo pelo qual cremos estar (violentamente) expulsando a natureza; por fim, no próprio instrumento que usamos para realizar essa pretensa expulsão: o “ancinho”.

Pretendo, daqui para baixo, demarcar as diferenças entre essas duas respostas possíveis, essas duas leituras rivais dos versos de Horácio tal como transplantados, sem considerações sobre o contexto, para nossa realidade. São diferenças cruciais, bem entendido. Como veremos, todos os termos que aparecem nos versos podem ser lidos diferentemente e, com eles, a maneira como nos relacionamos com essa realidade que nos toca – tão urgente, cada vez mais urgente. E com conseqüências profundas, ainda por cima.

Continua na PARTE 2

Leia também a Parte 3

Leia também a Parte 4

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morte dos bois

Notas

1. Pouco antes desses dois versos, há estes outros dois também lindos: “purior in vicis aqua tendit rumpere plumbum / quam quae per pronum trepidat cum murmure rivum?”, que costuma ser traduzido assim: “A água que nas ruas da cidade luta para estourar os canos de chumbo / é mais pura do que aquela que trepida e murmura por um rio?”

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A última curva do círculo

Um súbito azedume, raiva contra as folhas amassadas e secas. É injustificado o travo na glote ao pisar sobre elas, mortas e embebidas na água suja da estação. Daqueles caminhos cobertos de amarelo e vermelho, em que o vento dos belos dias erguia redemoinhos, restaram essas pequenas sombras encarniçadas, molduras marcadas pelas solas dos sapatos. E ao erguer os olhos para as poucas que ainda se agarram aos galhos, amedrontadas com a perspectiva da queda e da morte inevitável, não é a melancolia usual de um jovem dezembro que me ataca, mas essa absurda aversão, esse horror despropositado.

Meus ombros não têm marcas de pegada. Têm, sim, o peso de um tempo indiscreto, imperador narcisista que faz questão de se exibir. Deixa em meu corpo um sinal, o afundamento das espaldas, o desejo do tronco de esconder-se do olhar severo que o déspota lhe lança, como a todos. Confundo-o com a chuva, que amolece o tecido da casaca e a aba do chapéu, tal qual o deteriorar-se dos meses me abala o espírito. Tento espanar, com a água, a pressão do tempo. Tento abrir os ombros e preencher os pulmões. Mas o ar que atende ao convite me ofende. Gelado, queima os caminhos; empapado, enrijece minhas faces.

Desisto. Recolho-me novamente, inerte, como inertes estão os cadáveres em que piso, ainda que tente evitá-los, desgostoso.

Reconheço que basta contar quatro meses para brotarem as próximas folhas, minúsculas, redondas, de um verde transparente. Reconheço que é o ciclo, infinitamente mais ancestral do que qualquer ancestralidade a meu alcance. Erradas estão as folhas que insistem em não tombar, que imploram a uma natureza que não responde, que choram quando fustigadas pelo vento, que secam no pé e não entendem a condenação definitiva. Está inscrito, em sua natureza de folha, o destino do outono. Morrer. Nascer em abril. Perecer em novembro.

Eu é que não vou perecer com a aproximação do inverno. Mas sinto, intimamente, que já experimentei diversos ocasos, uma suíte deles, desde que as cores começaram a mudar e os ventos assumiram sua inclemência. Morro com uma folha, morro com mil. Morria alegre com a hemorragia de outubro, quando elas caíam como lágrimas de sangue e jorravam ao longo das aléias. Morro novamente, agora amargo, enquanto os ciprestes se preparam para a estabilidade do olvido.

Sei por isso que sigo o mesmo ciclo das folhas. Estamos na mesma curva, na mesma etapa, a um passo do mesmo mergulho. Se, enquanto a terra permanece congelada, não estarei morto, como elas, estarei ao certo paralisado. Estarei diminuído, abafado pelos panos que me mantêm vivo, pressionado pelas precipitações enervantes, quase sem folga. Como os vegetais, subsistirei na esperança de um novo abril, a nova reversão da curva, do ciclo, do círculo, o renascimento que se vive a cada ano, a volta, o alívio.

Creio que seja essa expectativa que me atemoriza. A evidência de que existo agrilhoado aos ciclos e de que esses ciclos são um só. Minha vida. Entrego-me ao ódio por essas folhas, não por elas, que nada podem, mas pela hélice a que estão amarrados meus pulsos e tornozelos, como elas aos galhos, antes da queda.

Como se falasse, dirijo a palavra às folhas mortas e lhes pergunto por que não ficam assim, por que não se contentam em apodrecer e seguir eternamente como húmus. Brotar novamente na primavera, que terror! É o supremo ato de submissão, um esforço para se entregar mais uma vez, entre tantas, à parábola que resultará em outra morte, em mais lama, em mais pegadas.

Eu me encheria de admiração por elas, se as folhas se recusassem a recomeçar. Elas teriam a força que a razão quis atribuir apenas a si própria, e que tanta desgraça causou aos entes concretos, ao se misturar aos corpos, templos do necessário, sede da condenação ao tempo. Diante da recusa heróica dos vegetais, eu me questionaria.

Eu me perguntaria, vexado, perturbado, por que eu mesmo, por que nós todos, que temos mais vontade do que as folhas, não podemos dar um passo para fora do destino. Da fatalidade, de uma forma de vida que se nutre infinitamente da própria morte. De um estágio que sabemos superar, mas a que nos curvamos como escravos.

Por que nos aferramos a ser trágicos? Eu desejaria saber. Seria a manifestação que eu gostaria de dar à minha inveja dos vegetais forros. Meu rancor mudaria nessa inveja se, e somente se, eu visse, nas folhas, a prostração transmutada em liberdade. Até lá, como parece inevitável, vou morrendo para viver.

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De dois plátanos

Platano
Bem no meio da região conhecida Batignolles, existiu até meados do século XIX um terreno largado, coberto de lixo deixado pelos fazendeiros do entorno, em suas idas e vindas para os mercados da capital. Não havia o menor motivo para prestar atenção no que houvesse sobre os tufos de grama anêmica. Eram objetos esquecidos, indesejados, pontilhando o espaço entre umas poucas árvores quase desfolhadas, tortas, irrelevantes.

Do dia para a noite, Batignolles se tornou um naco do 17o arrondissement de Paris, pelas ordens de Napoleão III (“o pequeno”, segundo Zola). Pequeno ou não, o sobrinho do diabo corso mandou transformar em parque aquela área perdida no meio de seu novo e estimado bairro burguês. Dando seguimento a uma folclórica fixação sua, quis algo no estilo inglês, em que os caminhos são curvos e a grama, impecável. Encarregou seu paisagista preferido, Jean-Charles Alphand, de canalizar a água e criar um córrego com pequenas cachoeiras e pontes, dando num lago artificial para os patos e cisnes negros que passariam a viver ali. Um canto para crianças, caminhos tortuosos, grama capinada e árvores substituídas, uma pequena estufa para uma única pequena árvore, trazida da Ásia e coberta de folhas até hoje. Alphand era um homem muito competente. A square Batignolles, século e meio depois, é um lugar delicioso para ver o tempo passar, pelo menos quando não faz muito frio.

De casa até lá, ando pouco mais de dez minutos. Um caminho que já percorri um sem-número de vezes. Sempre que precisei de sossego, inspiração, verde, rostos. É o lugar em que vivem os tais plátanos sobre os quais venho prometendo escrever desde o início do mês. São dois. Caules robustos e negros implantados com firmeza na terra, um ao lado do outro, seus galhos espalhados a uma distância desrespeitosa. Cobrem o lago inteiro, servem de pouso e guarda-sol para as aves, recortam a vista do céu como se quisessem nos lembrar de que a vida real está aqui, colada ao chão, e as copas das árvores mais vetustas são seu limite.

Até a última vez em que os vi, jamais tinha percebido que eram dois. Contemplava o emaranhado opulento de madeira escura e era só o que via: um emaranhado opulento de madeira escura. Desta vez, por acaso, e essas coisas só acontecem por acaso, vi-me parado diante de um dos troncos, que eu não conseguiria abraçar sozinho. Pude observar as ranhuras da casca, as reentrâncias na madeira, as cicatrizes do tempo, que acumula madeira em camadas, como uma vela que vai derretendo. Mas quanto tempo? Pensei que jamais saberia. Até que avistei, distraído, uma plaqueta verde pendurada, quase invisível. E descobri que se trata de uma árvore de 1860.

Aquele plátano silencioso mudou de figura no mesmo instante. Seu nascimento precedia de alguns anos o do próprio parque. Foi plantado pelo vento, não pelo homem, a quem só coube a sabedoria de não derrubá-lo e incluí-lo em seus cálculos. O lago recebeu seu formato tal como é simplesmente porque, com o tempo, uma bela árvore cresceria e abriria os galhos sobre ele, como asas de um cisne sobre os filhotes. Alphand subiu no meu conceito: além de paisagista competente, não comungava do maior vício de seu tempo, que era a fé doentia na razão e no planejamento humanos. Essa presunção estúpida, que derrubou monumentos e matas, teria levado qualquer engenheiro da época a impor ao lago o traçado de seu esquadro. Mas Alphand considerou que dali a 150 anos um plátano valeria mais do que uma piscina, e cedeu. Com toda razão.

E não foi a última conclusão que tirei do passeio. Mais uma meia-dúzia de passos e fui surpreendido com a informação de que não havia um plátano, mas dois, como eu já disse. Esse segundo tinha o caule ainda mais largo, escuro e áspero. Um grande buraco, à altura de meus olhos, banhava em breu o coração da árvore e revelava o heroísmo com que ela se mantinha de pé. Aquela imagem de força e decrepitude tinha a singular qualidade de ser ao mesmo tempo bela e sublime, se é que os guardiães da Estética me permitem falar assim.

Em seguida, procurei conferir a idade. A placa me deu mais informações do que eu precisava. Seus poucos numerais explicavam que já crescia a árvore antes mesmo de a região entrar para Paris. Os vendedores que atiravam seu lixo sobre a grama o faziam nas redondezas de um jovem plátano. Enquanto Haussmann botava a capital abaixo, folhas nasciam e caíam dos mesmos galhos, em obediência às leis da primavera e do outono, da mesma maneira como as vejo agora.

A regularidade do ciclo biológico não foi alterada nem com as barricadas de 1848, nem com os alemães desfilando pelas Champs-Élysées em 1870, nem com a violência da Comuna, no ano seguinte, nem com a chegada dos nazistas. Tudo isso nada significou para nenhum dos plátanos. Se a Sorbonne parou em 68 e em 2006 (mal comparando), os plátanos nem ficaram sabendo.

De repente, surpreendi meu pensamento nas palmeiras imperiais do Jardim Botânico, enfeitando os caminhos desde que éramos colônia. Quietas, belas, soberanas, enquanto tivemos golpes, ditaduras, escravos e reis, miséria e milagre. Lembrei de D. João VI e do hábito que temos de retratá-lo como glutão e ligeiramente retardado. Que seja, mas então são as palmeiras de um retardado que nos ligam com maior clareza a nosso passado, leia-se nossa história.

De lá para cá, derrubamos o morro do Castelo, abrimos a avenida Rio Branco, demolimos os prédios elegantes que lhe enfeitavam o entorno. Mudamos de capital, de regime, várias vezes de vocação econômica, ao sabor de caprichos nacionais. E as palmeiras balançando ao sabor de ventanias e chuvaradas. Neutras enquanto nossos pais e avós as contemplavam e deixavam de contemplar, elas acompanharam nossos nascimentos e mortes. Exatamente como esses dois plátanos que uma dúzia de crianças agitadas, dois passos à minha frente, tenta desenhar para um trabalho de escola. Plantados no mesmo lugar desde Napoleão III, até Sarkozy e sabe Deus quem mais.

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arte, Clara Nunes, crônica, música, prosa

A vida emoldurada

Torres Azuis Bizarras Noite San Giminiano
Ia andando pela rua dos fundos, atrás de um qualquer coisa que pudesse passar por jantar. Descia uma chuva de alfinete, vagarosa e desagradável. Ainda não era bem noite, mas já fazia escuro e parecia que a cidade se escondia. Todo mundo foge da temperatura que cai bruscamente; em vez de visitar os amigos ou a família, vale mais terminar o domingo com um filme da televisão. No meu caso, foi a necessidade que deu a última palavra. Comer é preciso. Saí. Para me proteger da água e das lâminas do ar, a manta grossa e, principalmente, a música que os fones de ouvido sussurravam.

Quando fiz a curva e embiquei pela rua maior, a faixa mudou. Os acordes em staccato de um cavaco e a voz de Clara Nunes fazendo um aperto de saudade no seu tamborim: Tristeza e Pé no Chão. No mesmo instante, deu-se alguma coisa. Fui invadido por um desconforto que não podia explicar, como se minha cabeça entrasse em conflito consigo mesma. Ou melhor, como se meu corpo visse o mundo à sua frente, mas se reconhecesse em outro canto, outro plano, outro universo. Estranha sensação, caminhar tremendo de frio por uma rua deserta e brilhosa, com tantãs e ganzás como trilha sonora, gingando na celebração de uma voz divina.

Culpa do aparelhinho que me atirava a música direto nos tímpanos. Quem segue seus caminhos ao som da pura realidade, buzinas, berros e motores desregulados, talvez não me entenda. Mas, palavra, é assim. Quando inventaram o walkman, o diskman, o celular que capta FM, o toca-fitas de carro e o famigerado iPod, inventaram ao mesmo tempo a vida com trilha sonora. Para muita gente, o próprio fato de existir passou a ser pontuado pelas emoções que melodias transmitem e batidas impõem.

Tanta gente no metrô com cabos pendurados, caindo pelos lados do pescoço como madeixas de plástico! São garotos, não têm a habilidade de controlar o volume. Um vagão inteiro submetido ao bate-estaca. Seus olhares se perdem no desprezo pelo universo, nem consigo supor que imagem podem ter do mundo, da cidade, das pessoas, enquadrados pela batida agressiva das pistas de dança. Não pode ser a mesma face que eu vejo, por trás de minha música diferente.

Meu caso começou como fuga. Tinha pânico dos vendilhões da Paulista, precisava de um pretexto para não escutar suas vozes, não precisar grunhir um “não” a cada passo. Certo dia, captei a Rádio Cultura pelo celular; examinar os rostos suados e sérios ao som do Stabat Mater de Pergolesi me incutiu a certeza de que todos à minha volta eram infelizes. Compreendi a profunda desgraça de todo aquele ambiente e quis escapar. Claro, a culpa não cabe inteira à música, mas ela tem parte.

Onde foi que li? Um ensaio sobre como mudou nossa relação com a música no último século. Pode ter sido Adorno, o do contra, ou Nikolaus Harnoncourt, ou qualquer outro. Primeiro foi o fonógrafo, que deu à humanidade o controle sobre as harmonias. Qualquer caixinha poderia tocar como uma orquestra. Depois, o rádio espalhou pelo mundo as mensagens sonoras determinadas por alguém em algum lugar, seja lá quem for. Pois era um certo encanto que se quebrava. Tirar melodias de um objeto inanimado perdeu seu verniz de mágica. A música, daí por diante, seria outra.

O golpe de misericórdia foi dado, com certeza, pelo cinema falado. “O grande culpado da transformação”, já dizia Noel Rosa, filósofo malgré soi. Na tela, a música enquadrou a vida real. O herói enlaça a mocinha ao som dos violinos, o assassino dá suas estocadas com um fundo de trítonos secos. O público se deixa envolver. O público somos nós. Nós acreditamos. E transferimos a necessidade de trilha sonora para nossa própria existência. Sem querer.

Daí meu estranhamento, na noite de domingo, enfrentando o frio e a chuva embalado pelo surdo, a cuíca e a voz de Clara Nunes. A máquina que eu trazia no bolso não entende nada. Não sabe escolher o fundo que se adequa por natureza a cada ocasião. Era momento para o quase silêncio de Eric Satie, as lamentações de Robert Johnson ou a cantilena da quinta Bachiana Brasileira de Villa-Lobos. Lágrimas na avenida, um desfile marcado para a quarta-feira? Impossível.

Só fui capaz de retornar ao corpo quando abandonei toda pretensão a uma trilha sonora. O mundo se recompôs, terrível como é: um silêncio de cripta gótica, motores à distância, o eterno chiado urbano que nunca sei de onde vem. Crueza e crueldade do ar que não vibra segundo o acordo das vozes. O ar desobediente que existe além dos meus fones.

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Nos jardins, as cerejeiras

Três cerejeiras
Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora…

Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.

Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.

Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.

Se me fosse dado mudar algo no texto de “O Cerejal”, de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.

Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: “Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!” Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.

Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.

Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.

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Brasil, crônica, escândalo, ironia, lula, opinião, Politica, reflexão

O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

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