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As efígies de Marina

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Muito se fala em Marina Silva como fenômeno eleitoral que, mais uma vez, irrompe de forma surpreendente no calendário; são muitas avaliações e muitas certezas, mas até hoje não vi nada sobre o que há nela de mais enigmático e fugidio. Não só pelo efeito que teve sobre o petismo – que, de repente, redescobriu-se de esquerda, ao menos em temas estritamente econômicos – e sobre os tucanos – que alegremente abandonaram um candidato que nunca os agradou de verdade –, nem só pelas idas e vindas ideológicas de alguém que quer governar com Lula e Fernando Henrique, Suplicy e Serra, Giannetti e Erundina. Mas também porque à candidata do PSB aderem tantas – e tão bem – versões e interpretações que o substrato desaparece, torna-se inacessível.

Toda vez que leio sobre Marina, seja de marineiros, seja de anti-marineiros, colunistas de jornal, cientistas políticos etc., sinto que estou lendo não sobre uma pessoa, mesmo uma figura política, mas sobre uma efígie, um daqueles ícones gregos cujo conteúdo simbólico era preenchido pela economia afetiva dos fiéis nos quatro cantos do Império Bizantino. Por isso, noves fora o que venha a significar a efígie de Marina Silva na cédula eleitoral e, com uma probabilidade não negligenciável, nas paredes do Palácio do Planalto, tenho mais interesse em discutir as versões de Marina do que a própria Marina. Até porque, como eu disse, a Marina que tem uma voz, um corpo e uma história está soterrada por suas versões e sou incapaz de exumá-la.

Mas pelo menos acho que consigo pentear um pouco esse universo das versões. Essas são quase infinitas, mas as mais importantes são pelo menos três. Para dar um pouco de tempero à exposição, divido essas versões segundo uma lógica semelhante à de gêneros literários. Com isso, temos, para começar, o suspense fantástico, em que Marina é um fantasma que encarna todos os medos passados, presentes e futuros, como no conto de natal de Dickens. Temos, em seguida, a auto-ajuda de banca de rodoviária, em que ela é a tábua de salvação para todas as frustrações de uma vida desajustada. Por fim, temos ainda o épico novelesco, que faz da candidata a encarnação de esperanças órfãs e flutuantes.

Esses são, respectivamente, a Marina dos petistas, a Marina da direita “de raiz” e a Marina de uma certa classe média autoindulgente, que quis fazer de junho de 2013 o instante apoteótico do civismo anódino. O que tem de interessante nessa multiplicidade de imagens de Marina? Respondo: a curiosa coincidência de que todas elas surgem de um mesmo gesto, isto é, o impulso para recobrir com o coque bem-comportado da ex-ministra a própria insuficiência, a própria falha trágica.

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Dickens no Planalto

Começo pela narrativa petista. Nela, Marina é um fantasma assustador,que arrastacorrentes pelo sótão à noite, gritando “buuu”. Ela é a imagem de alguém que vai mandar escada abaixo as conquistas populares dos últimos anos em nome de uma ecologia vulgar, algo como “ela vai parar o país para salvar o mico da Amazônia e a perereca da Baixada”. Vai, por fim, interromper o processo de ruptura com sei lá quais forças políticas que estariam sendo desalojadas pelo triunfo de Lula, ainda que a maior parte dessas forças pareçam estar perfeitamente alojadas no Estado até hoje.

O segundo ponto dessa narrativa faz uso de uma verdade quase inegável para produzir um enorme sofisma. Nela, Lula teria dado início a uma transformação epocal que só Dilma seria capaz de prosseguir. Em que pese a transformação socioeconômica que ocorreu no Brasil desde 2003, a própria noção de uma transformação epocal, isto é, a inauguração de um novo período histórico no país, a superação de uma etapa e assim por diante, pressupõe que ela não possa ser simplesmente prosseguida. Pode-se prosseguir com um estado de coisas, mas não com a superação de um estado de coisas. Se for verdade que o Brasil atingiu um outro patamar com a inclusão social, a superação da fome endêmica e o combate ativo à miséria, e eu acredito que isso seja uma verdade bastante evidente, necessariamente será preciso pensar o país em outros termos. A idéia de “mudar mais” não contém essa percepção, mas retorno a isso em seguida.

Voltemos ao gênero “suspense fantástico”. Para dar conta da ascensão de Marina Silva, essa narrativa não pode ver nada de diferente do que a intenção, ou então um empuxo inerente à sociedade, de barrar ou reverter a transformação epocal. Então, a nova coqueluche eleitoral só pode ser fruto de: 1) uma conspiração conservadora; 2) a ilusão de uma classe média urbana que se crê moderninha, mas é conservadora; 3) um espoucar de fundamentalismo religioso, em aliança instável com um messianismo ambiental também iludido.

Aos olhos petistas, nada mais pode explicar a onda marineira senão a reação ao processo modernizador encabeçado por pontas-de-lança como Guido Mantega, Henrique Meirelles e José Eduardo Cardozo. Como se estivéssemos num novo 32, num novo 54. Afinal, grande parte da narrativa petista ortodoxa consiste em afirmar-se como continuação de Getúlio, o que não deixa de ser curioso, porque toma Getúlio apenas em sua vertente de modernizador econômico-industrial e deixa de lado o Getúlio que compunha com oligarquias e combatia violentamente a dissidência, comunismo em particular – algo que não deixa de ter seus paralelos no Brasil de hoje, falando nisso.

Esse fantasma, que sempre rondou de alguma maneira a ambição de colocar o Brasil na modernidade industrial (veja você), acabou por encarnar-se numa ex-correligionária. Nela se combinam os saudosos do neoliberalismo, o antipetismo difuso e o explícito daquilo que vem sendo chamado de “antiga classe média”, as quimeras de quem preferiria ver um modelo de desenvolvimento menos destrutivo (e aqui surgem afirmações como “o Brasil não é a Alemanha”, que contradizem frontalmente aquela ambição industrializante) e por aí vai. Marina Silva, a síntese espectral de tudo que não é a luz do desenvolvimentismo.

A conseqüência mais visível é aquela que se expressa na denúncia tão repetida de que não há “nova política” nas ações de Marina, ao contrário do que quer seu discurso. De fato, é um discurso enganoso e cheio de inverdades, esse de uma “nova política”. Mas, primeiramente, não deixa de ser divertido ver políticos atirando a primeira pedra no assunto “discurso enganoso”. E, mais importante ainda, ninguém vai se perguntar por que é que o discurso de uma “nova política” ecoa tanto?

No plano meramente fenomenal, poderíamos ficar satisfeitos com a resposta de que “a política tradicional está esgotada” ou “a representação popular é insuficiente”, mas isso não explica a gigantesca carga de paixões que se envolvem num processo eleitoral como este que estamos atravessando. Demonstração disso são as oscilações nas intenções de voto dos candidatos, que dão até mesmo a Aécio uma nesga de esperança. Outra demonstração está no retorno de algum sabor de debate ao período eleitoral. Finalmente estamos vendo posicionamentos em relação a coisas como o papel do Bacen, a relação entre religião e política, e se o Estado deve colocar-se a reboque do mercado ou tentar direcioná-lo de alguma maneira.

Traduzo: não existindo, a “nova política” introduziu na administração do calendário eleitoral algo que andou ausente demais: a política, que poderíamos chamar de “velha”, mas, neste sentido, tem qualquer coisa de atemporal, embora sua roupagem possa envelhecer e rejuvenescer, cá e lá. O que a falsa, enganosa, mentirosa, quimérica “nova política” escancarou não foi o esgotamento de uma “velha política”, como ela se propunha a fazer. A tal “velha política”, na verdade, é apenas a noção de que se possa simplesmente “administrar” ou “gerir” a coisa pública, modo infeliz de pensar que une num abraço caloroso Aécio-choque-de-gestão-lá-em-Minas-Neves e sua arqui-inimiga Dilma-gerentona-que-faz-assessor-chorar-Rousseff. É aquilo a que Jacques Rancière se refere, por exemplo, como “polícia”. Em outras palavras, o que a “nova política” tão ingênua escancarou foi a absoluta despolitização da sociedade, aí inclusos os partidos políticos, mesmo aqueles com raízes altamente politizadas.

Por isso, se Marina é um fantasma para a cúpula petista, isso decorre de sua própria hybris, sua falha trágica. O partido que, no Brasil que se redemocratizava, mais teve a política no cerne da sua formação e de seu crescimento admirável, coisas que não se pode honestamente negar em relação ao PT, foi também o partido que supervisionou o maior processo de despolitização da sociedade brasileira em período democrático. Funcionou enquanto era preciso desativar o campo minado que permitiria a tal transformação epocal, leia-se inserção social e supressão da miséria (em outro texto, tentei argumentar o quanto a questão da miséria é fundamental para entender o sucesso do governo Lula, mas é preciso reforçar essa argumentação, coisa que ficará para ainda um outro texto, a ser escrito sabe-se lá quando).

Essa estratégia imediatamente deixaria de funcionar quando o impulso da inserção começasse a enfraquecer e fosse necessário atacar os grandes nós e gargalos que mantêm tão injusta a sociedade brasileira: interesses encastelados, rentistas, latifundiários, oligarcas e oligopolistas, todos eles muito poderosos e muito articulados. Só haveria um caminho para fazer isso: a política. Seria preciso correr riscos, entre eles o de ficar fora do poder. Haveria confronto, porque quando há política, há confronto. Não se trataria de “prosseguir” uma transformação epocal que só pode ocorrer de uma vez, mas de construir as estruturas da tal nova etapa.

O PT se recusou a assumir essa tarefa. Definiu-se como governo de esquerda cujos antagonistas todos seriam “a direita”. Aliou-se, para tal, a diversas cepas daquilo que, em outras eras, teria denominado “direita”. Atingiu um notável controle sobre a máquina política cujo principal efeito prático não foi jamais a garantia de sucesso na implantação de políticas públicas, essas que desalojariam os poderes tradicionais encastelados, mas a garantia de que seus adversários mais frontais teriam uma posição marginalizada nos processos legislativo e eleitoral. E só. Desse ponto de vista, foi um enorme sucesso, atestado pelo naufrágio do PFL e a contenção em um nível meramente estadual do PSDB. No mais, os interesses encastelados prosseguem impávidos, aprovando seus códigos florestais e barrando suas reformas políticas.

Marina, espectro Marina, cujo uivo na calada da noite pergunta: voltará a política? Pessoalmente, acredito que ela terá de voltar, mais cedo ou mais tarde: ainda somos uma sociedade cheia de cisões e a inclusão social não poderá ter outro efeito senão aguçá-las. Duvido que a política, não “nova”, mas “novamente”, se encarne em Marina Silva, mas temos hoje um gostinho dela. André Singer foi a mente vinculada ao PT que mais cedo entendeu essa urgência de retomarmos um pouco de política que seja, ao escrever sobre junho de 2013 que era o momento de reforçar alguns aspectos e jogar outros fora daquilo que ele denomina “lulismo”. Recomendo ao partido lhe dar ouvidos, senão o próximo fantasma poderá ser um demônio sulfuroso.

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A dama do S.O.S.

Passemos à narrativa conservadora. Aqui, o ponto de partida é a necessidade de remover os usurpadores, para falar grosseiramente. Não há expressão melhor para definir a visão conservadora sobre o governo do PT, o que ajuda muito a explicar a incapacidade de lhe dar uma resposta à altura. Voltaremos a isso. Sim, diz o conservador, o PT venceu eleições em série, mas foi fruto de populismo, clientelismo, cooptação de forças políticas, corrupção e, por que não, sorte. O trono, na verdade, ainda pertence de direito àquele que for ungido pelos poderosos tradicionais, embora de fato esteja na mão de uma corja bolivariana e assim por diante.

Não é por acaso que Aécio Neves derreteu muito mais do que Dilma com a chegada de Marina à corrida presidencial. O PSDB tornou-se, pouco a pouco, o grande ungido dessa força social. Deixou de ser o partido de Franco Montoro para tornar-se o partido de Marconi Perillo e nem se deu conta. Ao aceitar a tarefa de ser a ponta-de-lança do anti-petismo, que na verdade não passa de um sentimento anti-usurpação, os tucanos se contentaram com um papel de subordinado perante forças tradicionais que, como sabemos, nunca tiveram pudores de se associar mesmo aos usurpadores que tanto combatem: Getúlio queimou café de bom grado e Dilma se refestelou com Belo Monte… O PSDB, afinal, tornou-se refém desse papel e ficou paulatinamente desmilingüido com a incapacidade de seus representantes em bater o inimigo. Hoje, sua sobrevivência depende de um governador em São Paulo que mais parece um quadro da Arena e de um candidato a presidente sem presença política e, principalmente, sem o menor vestígio daquela máscara de moralidade que se espera de um candidato do conservadorismo. Triste retrato.

Para piorar, a posição de ungido do PSDB implodiu ruidosamente quando apareceu um ator que parecia um pouco mais adequado para o papel, no curto prazo. É bem verdade que Marina vende a alma ao prometer, para ficar só nesse tema, uma política econômica ortodoxa ao extremo. Coisa que Lula, como se sabe, também fez, e por escrito, sorrindo ao assinar. Mas o contrato que alienou seu velho espírito lhe deu em troca as chaves do coração conservador, escancarando o caminho para encarnar em definitivo o combate ao usurpador. Incomodado com a anemia política de Aécio e a tibieza geral de seu antigo partido-herói, o conservador brasileiro respira aliviado: encontrou sua tábua de salvação. E não podia ser uma efígie mais perfeita: uma pessoa que veio do povo, ambientalista, lutou a vida toda, foi ministra de Lula, atrai o voto evangélico, que costuma ser também conservador… O que poderia ser melhor?

Ainda assim, é uma tábua de salvação, digna daquela literatura de banca de rodoviária, a auto-ajuda mais rasteira. Marina, como qualquer outro ungido de mesma ordem, pode ser bastante confiável, mas não completamente. Jamais poderá apagar a evidência avassaladora do naufrágio: os botes e bóias salva-vidas se espalhando pela água, passageiros e tripulantes ensopados e berrando em desespero, um Schettino que não quer voltar a bordo… Hoje, já não há mais timão para o conservador assumir. O conservador não quer que lhe usurpem o trono, mas tampouco quer se sentar nele, preferindo algum outro aventureiro para fazer o trabalho sujo.

Acontece que, se estivesse disposto a se sentar no trono, seria preciso administrar diretamente o país tal como ele vem se transformando nas últimas décadas, isto é, numa direção que não interessa em nada a quem se beneficia dos antigos desequilíbrios desta terra. Voltar atrás não seria possível, salvo sob catástrofe. Avançar rumo a uma sociedade mais equânime e eficaz poderia ser muito interessante, mas não para os poderes instalados, que teriam que abrir mão de uma parte de suas prerrogativas. Por enquanto, ainda não é necessário fazer isso (até porque o poder, hoje, está nas mãos de um grupo que jamais chegou a tentar isso explicitamente, ainda que tenha criado parte das condições para tal).

Daí a enorme conveniência de poder se apoiar numa tábua que flutua auspiciosamente nas proximidades do naufrágio. Mas por que falo em naufrágio? Ora, sempre pareceu que um usurpador não duraria muito no centro do poder (ainda que o poder, no caso, seja a mera administração de poderes muito pouco dispostos ao deslocamento). O radicalismo, a ingenuidade, a pouca repercussão das idéias, o acesso barrado a meios de expressão, as campanhas midiáticas, a intervenção do Judiciário, o bloqueio do Congresso… Enfim, sempre haveria algum meio de remover o incômodo, o pequeno incômodo.

Mas o usurpador atual, sabe-se lá por quê, conseguiu se instalar e perenizar no posto, apesar de terem ido embora alguns daqueles fatores já mencionados: sorte, vastas alianças, líderes malévolos, corruptos até o talo, e por aí vai. Embora muito pouco tenha sido cedido em qualquer momento, já se chegou ao ponto em que os poderes tradicionais cansam de permitir ajustes pontuais nas relações de poder. Que, afinal, arriscam mais tarde se tornarem ameaças de fato, quem sabe?

Oriunda do ninho inimigo, Marina Silva carrega a imagem perfeita de salvadora da pátria e parece ter percebido isso ao mandar sinais como a velha história do Banco Central independente e a promessa de não concorrer a um segundo mandato. Não tem uma estrutura partidária forte que a sustente, o que, do ponto de vista de quem a quiser manipular, parece torná-la mais manipulável (muito embora estruturas partidárias fortes também se deixem manipular, como sabemos). Sua principal bandeira, a ambiental, pode aparecer sobre inúmeros aspectos, inclusive alguns que agradem às maiores esferas do poder. Sua disposição em governar com “os homens bons” ou “os melhores de cada lado” ressoa, aos ouvidos de quem se considera elite intelectual e esteio moral de uma sociedade, como um convite para retomar as rédeas.

O ícone bizantino de Marina, quando olhado por esse grupo, se desenha como uma imagem iluminada surgindo através de uma bruma espessa e escura, e não como a aparição fantasmagórica de todos os temores. (A bem dizer, me parece que quem tem cumprido esse papel, por enquanto, é Fernando Haddad, mas deixemos isso para outra hora.)

Mesmo assim, é o traço de uma falha trágica, e ainda mais sedimentada que a versão petista. É a hybris de quem desconsidera a existência de movimentos internos na sociedade e a inevitável formação de espaços para grupos que não sejam o seu próprio. Em outras palavras, é a típica arrogância de quem enxerga uma determinada sociedade como um espaço pronto e estamentado, que se deve apenas administrar e manter sob controle. De modo que é também uma despolitização, ou, mais claramente, uma deslegitimação da política como um todo. O Estado aparece aí como instância administrativa a ser ocupada por políticos que incorporam executivos, instalados pelo verdadeiro conselho de administração que compõe o grupo dos verdadeiramente poderosos. Por sinal, Marina ganha pontos entre esses brâmanes ao subscrever à idéia de que se possa tocar um país com “quadros técnicos”, qualificados e assim por diante.

Um último ponto sobre as tábuas de salvação do conservadorismo brasileiro: elas têm uma característica muito estranha, que se mete no meio do cálculo conservador e pode ser resumida na expressão “vida própria”. A cada vez que surge uma nova tábua, o conservadorismo brasileiro se esquece desse traço incômodo e é por isso que, até hoje, não houve momento de catarse redentora que não acabasse dando em algum tipo de confusão. Dos militares a Joaquim Barbosa, de Jânio a Carlos Lacerda, as tábuas de salvação sempre acabam saindo do “script”. Às vezes, até que o resultado não é muito terrível. Outras vezes, dá em tragédia, seja do ponto de vista dessa direita de raiz, seja do de todos os demais. (Aproveitando, nesse caso específico não acho tão infértil comparar Marina a Jânio: cabe lembrar que um dos motivos pelos quais seu governo ficou travado, forçando-o a tentar o golpe, é que ele não quis ser simplesmente um títere da UDN. Será que Marina está disposta a ser títere? Eu não poria minhas fichas nisso.)

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Deus ex machina

“Um mês de gente na rua e descobrimos que o modo de fazer política no Brasil já não dá mais, chega, precisamos de caras novas, precisamos sonhar. Tudo que desejamos é que apareça alguém trazendo algo em que se possa acreditar, simplesmente acreditar, algo que seja belo e mobilize todas as classes sociais, todas as raças, todas as profissões, todas as origens regionais e étnicas, rumo à reconciliação final, absoluta, essa sim verdadeiramente redentora. Uma pessoa, um rosto, uma imagem, que desate todos os conflitos e traga à flor da pele o que há de puro e belo em todos nós. Alguém que nos conduza a um novo patamar de sociedade e desenvolvimento, sem nenhum tipo de ruptura, sem conflito, sem que ninguém perca nada, nem mesmo os privilégios que mantêm o estado das coisas mais ou menos igual ao que sempre foi. Algo como um anjo…”

Eis que já havia uma pessoa disponível, que poderia corresponder a essa expectativa imagética. Uma pessoa que irrompeu na cena eleitoral alguns anos atrás de maneira algo obscura, mas já com elementos muito aproveitáveis, como a mensagem pacífica, conciliadora; a bandeira de alcance potencialmente universal que é o ambientalismo; a história de vida inspiradora, com o aspecto agradável de quem veio para somar, não dividir.

Forma-se assim mais uma imagem para Marina: a síntese corporificada de uma esperança social e política. Uma esperança difusa, é certo, mas ainda assim mobilizadora. É importante ver com clareza que não existe a mínima necessidade, neste contexto, de que o conteúdo da plataforma de Marina coincida com os anseios de quem quer que seja. A rigor, o fato de que os diferentes anseios não coincidem entre si chega a ser um trampolim, catapultando essa associação que, em outras circunstâncias, poderia ser vaga, mas com a proximidade do processo eleitoral se tornou mais sólida. Como ninguém sabe ao certo qual é a linha em torno da qual se coordenam os diferentes anseiose as diferentesansiedades que se amalgamaram em algum momento de 2013 (removendo um pouco a concretude dos problemas de mobilidade e violência policial, com os quais a agitação começou), basta que sejam, eles mesmos, anseios – isto é, afetos. Hesito em dizer que se trata de uma rede de cunho substancialmente afetivo, para não parecer que estou associando essa rede à Rede que Marina tentou transformar em partido político, sem sucesso.

Olhada por esse ângulo, a história de vida, a postura pública e a mensagem de Marina deixam completamente de ser de Marina: a relação se inverte. Ou seja, Marina é que se transforma no apêndice, na manifestação material e corporificada, inevitável ainda que um pouco incômoda, de uma imagem, uma história, uma postura e uma mensagem desejadas. Como acontecia com os ícones bizantinos, e de maneira geral com toda forma simbólica em religiões, movimentos políticos, agremiações políticas etc., Marina (não a pessoa, estou falando da figura pública) se torna uma estrutura vaga, com compartimentos disponíveis para se preencher com a inscrição, aliás a representação, de uma miríade de desejos. Esses desejos tão variegados passam a parecer, desta feita, milagrosamente semelhantes, coincidentes, próximos. Eles estão espaçados, como numa díade, em que de um lado existe a singularidade indiscernível e indeterminada e, de outro, sua versão estampada na efígie de Marina.

Até aqui, a diferença entre a Marina-dos-desejos e qualquer outro líder político carismático da história é muito pouca. Tudo que está dito acima pode ser encontrado em descrições e análises de fenômenos políticos de massa em autores tão inconciliáveis quanto Ortega y Gasset e Freud, Gustave le Bon e Adorno, Gabriel Tarde e Elias Canetti. A pequena diferença que existe está no aspecto de resolução que a Marina candidata recobre, e que estava faltando na Marina vice-candidata de EduardoCampos. Perante um cenário em que esse impulso desejante estava se desvanecendo, perdido na discussão estéril sobre Black Blocs, Sininho, Copa do Mundo e sei lá mais o quê, quando parecia perdida a perspectiva de que os anseios desaguassem em algo de concreto, ou ao menos visível (quero dizer, identificável, apontável numa tela de televisão ou computador), o que representaria um nível de frustração com alto potencial destrutivo, eis que apareceu um deus ex machina, pairando sobre o cenário como se saído dos escombros de alguma tragédia.

Mas existem diferenças mais significativas, particularidades mais acentuadas. Essa é mais uma imagem de Marina, aquela que não exatamente angariou a multidão, mas foi angariada por ela e, no mesmo gesto, produzida por ela. Mais uma vez, isso não significa que a própria Marina tenha algo a ver com isso, o que faz muito pouca diferença, considerando que o assunto deste texto é justamente a imagem caleidoscópica de uma candidata. Uma característica interessante dessa imagem em particular é o quanto ela atraiu uma certa classe média que, sem ser anti-petista, muitas vezes tendo até mesmo sido petista no passado, desencantou-se com o governo do PT em alguma das levas de desencantamento que esse governo produziu, mas se recusa a bandear para as hostes do adversário tradicional, leia-se o PSDB. Aquela vasta onda de indecisos que apareciam nas pesquisas eleitorais quando Eduardo Campos era candidato implodiu e uma parte disso deve se dever, sem dúvida, especificamente a essa Marina entre tantas, a Marina-deus-ex-machina. Alguns poucos desses desencantados estavam dispostos a votar em Aécio apenas para se verem livres de Dilma, que parece infinitamente mais insuportável do que Lula por diversos motivos, entre eles sua notória empáfia – cabe lembrar que essas pessoas eram as mesmas que desejavam alguém “menos político” liderando o país. Pois, o “menos político” é isso aí: alguém que não sabe atrair simpatia apenas com sua mera figura. – Agora, todos podem bandear, com uma dose razoável de alívio, para Marina.

Ainda preciso explicar por que acho que aqui também há uma falha trágica em ação. Qual é a hybris desse contingente que produziu a imagem de Marina como síntese do “desejo de mudança”? Ora, essa efígie de Marina é provavelmente a mais cândida de todas, porque ela não apenas rejeita o conflito – e aqui cabe apontar mais uma vez a presença de um instinto de despolitização que anda grassando entre nós –, como ainda o ignora. Marina, aquela que pode unir a todos. Marina, enviada para nos redimir sem que tenhamos de partir para o confronto. Marina, a figura distante no interior da qual podemos nos reunir como jamais conseguiremos fazer aqui fora. Com ela, alguma mudança muito positiva será obtida sem as cenas de violência que presenciamos nos últimos 15 meses. Marina, cuja história de vida tão entrelaçada com a história social do Brasil representa a superação que o próprio Brasil precisaria viver – e viver, cabe dizer, é sinônimo de atravessar.

Mas será que é possível descrever essa história de vida apagando todas as partes que dizem respeito ao conflito? Será que a fome que ela passou é apenas o ponto de partida dramatúrgico para uma bela história de superação? É nisso que vamos transformar o horror – antigamente se dizia flagelo – da fome? Será que vamos silenciar sobre a dor, a doença, a angústia, a fraqueza, a morte que circundam a fome? Vamos obliterar as origens políticas e sociais, leia-se conflituosas, da fome?

O mesmo vale para a questão religiosa: tornar-se evangélica após décadas de catolicismo, envolvendo-se ao mesmo tempo em lutas políticas que envolvem o confronto, lado a lado com agnósticos e ateus, contra poderes espirituais instituídos e violentos, será que isso é apenas um detalhe a mais? Não existe aí uma escolha de lados que denota uma cisão, isto é, um conflito?

Na bandeira ambiental, a mesma coisa. Será que é apenas a linguagem de uma política futura, ou será que é o confronto com poderes rigidamente encastelados, como parecem indicar o destino de Chico Mendes (da elite, como ela disse, ou não, esse não é o ponto) e o gigantesco aparato repressivo montado na curva do Xingu?

Será que o partidário da imagem-redenção de Marina reconhece a presença nela dessa síntese não da esperança e do desejo, mas das contradições sociais de um país em que ainda há muita luta a ser travada?

Não me parece. E fico me perguntando como esse eleitor reagirá, isto é, o que ele fará com o ícone bizantino para o qual orou, quando a verdadeira Marina – aquela que tem um corpo, uma voz, uma presença – tiver de lidar com todos esses pontos de conflito, dominação e exclusão, tendo assumido a presidência. Ele vai incorporar também a redescoberta da política, essa que sempre esteve ali em algum lugar, em estado latente? Ou vai se tornar um iconoclasta? Até que pode ser algo interessante a descobrir.

Para encerrar

Não deixa de ser uma certa covardia dispor-se a falar tanto sobre as imagens que os outros têm de Marina Silva, e não da minha própria. Mas enfim, se sou covarde, que pelo menos se faça bom proveito da minha covardia. Honestamente, eu não seria capaz de ir muito além disso, porque nas minhas tentativas de ler o processo eleitoral, Marina em particular, minha concepção de nossa candidata oscilou entre as três imagens acima (talvez nem tanto a segunda) e mais algumas outras. O que não chega a ser um fracasso; devo confessar que personagens enigmáticos me fascinam.

E me fascinam mesmo quando podem ocupar um cargo importante como a presidência da República. Sou muito cético quando dizem que este ou aquele presidente vai destruir o país ou algo assim. Sou igualmente cético com a idéia de que este ou aquele candidato seja algum tipo de panacéia. O Brasil é uma sociedade muito complexa, urbanizada, diversa e extensa, seu sistema político absorve uma infinidade de forças, e me parece altamente improvável que alguém assuma o Executivo federal e vire tudo de cabeça para baixo da noite para o dia.

Sociedades como a brasileira têm uma dinâmica própria, que pode acelerar ou ralentar, desviar-se de alguns graus, sofrer revezes, de acordo com quem ocupa ou deixa de ocupar o poder. Mas é pouco mais do que isso. E mesmo assim, sempre produz suas linhas de fuga, suas alternativas criadoras. Sempre acumula energias neste ou naquele ponto para um salto que desate este ou aquele nó. Acusado de pretender virar a economia de cabeça para baixo, Lula imediatamente produziu a “carta ao povo brasileiro”. Acusado de pretender eliminar o Bolsa-Família, Serra em 2010 imediatamente prometeu dobrá-lo. Acusados de ter idéias de suprimir benefícios sociais e trabalhistas, Aécio e Marina imediatamente afirmaram que os reforçarão. Nada de surpreendente aí.

No caso da eleição de 2014, prefiro me concentrar em dois fatos: o primeiro é a volta de uma certa discussão política efetiva: o que queremos para o Bacen? O que queremos para a Amazônia? Até que ponto a religião deve se misturar com a política? E o segundo pode soar mais trivial, mas não creio que seja. Como bem apontou o editorial do New York Times (N.B.: nenhuma mídia brasileira), o Brasil, esse país tão racista e tão machista, se encaminha para escolher a próxima presidenta entre duas mulheres; uma das duas, negra. Como eu disse, uma sociedade complexa e vasta como a brasileira tem sua dinâmica própria.

Padrão
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Moldar o homem

* Outro texto antigo, de janeiro de 2008, salvo do incêndio do Diplo. De lá pra cá, poucas coisas mudaram: o tal presidente já se casou com a tal modelo, já brigou com professores, já xingou um agricultor, já tentou colar sua imagem à de dois outros presidentes que estão muito na moda, já engrossou a voz pra cima dos vizinhos, já recorreu ao lado militar… e a popularidade continua caindo, caindo, caindo… *

A cidade já dorme, os jornais vivem a correria do último fechamento, a televisão passa programas mais ousados. Enquanto isso, uma última reunião ainda tem lugar; uma reunião de governo, mas importante demais para a indiscrição do palácio. Sendo assim, na sala de estar de um qualquer apartamento, com varandas que dão para um bulevar engarrafado, mais alto do que os postes e as copas das árvores, não é uma família que aproveita seu único momento de união para ver a novela, todos sentados no sofá; são homens e mulheres de testa franzida e braços cruzados, eles com gravatas coloridas, elas com cabelo cortado acima dos ombros. E discutem, nervosos, em torno de uma mesa de centro apinhada de papéis.

São jovens. Ninguém ali conta mais de quarenta e cinco anos. Alguns têm menos de trinta. Mesmo assim, são os assessores mais importantes do presidente. Mais, muito mais importantes do que a equipe econômica, para dar um exemplo que parece inverossímil. A economia vai bem, ora, quer dizer, mais ou menos. Isto é, vai bem para uns; para outros, vai mal. E mesmo que fosse mal para todos, no meio de uma depressão com inflação descontrolada, seriam esses os assessores que teriam a voz mais ativa na administração do Estado. Eles são basilares.

A reunião está marcada há tempos e deveria ser corriqueira. Mas começou no meio da tarde e até agora, quase madrugada, ainda vai se arrastando. O que era para ser uma mera vista de olhos sobre resultados felizes terminou como violenta lavagem de roupa suja. Desde as primeiras trocas de palavras. O tempo começara a fechar pouco antes da hora do almoço, quando chegou, via fax, a última pesquisa. Ao choque dos maus números, seguiu-se uma corrente de telefonemas e e-mails.

Você viu?

Vi. E agora?

Ou então:

Você viu?

Não. E aí?

C’est de la merde.

Os espíritos, a esta hora, já passaram da fase de exaltação, aquela em que uns e outros se acusam disso e daquilo, e é concreto o risco de passar às vias de fato. Agora, os espíritos já atingiram o ponto de suprema fadiga, em que a reunião se torna inútil, porque nada de racional poderá ser decidido. Mas ninguém quer admitir que é hora de interromper os debates. Amanhã, todos sabem, vão ouvir. Vão ouvir muito. De colegas, superiores, jornalistas e, claro, do próprio presidente, na figura de seu secretário particular.

Parece que as estratégias foram todas vãs. Os números insistem em associar a imagem do chefe de Estado a uma concepção antiquada da política: príncipe frio, distante, homem de puro cálculo e nenhum contato com a realidade do povo. Contra todos os esforços dessa equipe brilhante, formada pelas melhores cabeças das melhores escolas de marketing e recursos humanos, a população simplesmente não quer acreditar que está diante de um caso diferente. E agora?

Tudo já foi tentado. Ainda quando o hoje presidente era apenas um político ambicioso, decidiu-se voltar os canhões para o reclame de sua formação diferente. Ele não veio das mesmas escolas tradicionais de sempre, e isso é muito bom, porque significa que não terá as mesmas idéias tradicionais de sempre. Os mesmos vícios. Suas raízes não estão naqueles meios aristocráticos dos antecessores. É filho de imigrante, seu sobrenome logo o denuncia. Esse cara é novidade. Esse cara é renovação.

Deu certo. Na campanha, encarnou o jovem dinâmico e trabalhador, que entende as angústias de toda essa gente correta, que ganha a vida honestamente e não quer saber de confusão, insegurança, ameaças à humilde e digna mediocridade. Finalmente! Um candidato que torcia o nariz para aquela gente esquisita, com idéias esquisitas e ultrapassadas, aquela gente que dominava a política até então. Contra os velhos embates entre visões antagônicas do futuro, que ameaçavam arruinar a nação, apresentava-se alguém com a promessa única de construir o presente. E sobre quais bases? As da ordem a qualquer preço, da segurança em primeiro lugar, do trabalho acima de tudo. Pronto. Foi eleito.

O prestígio da equipe de mídia chegou ao ápice. A partir dali, eles teriam plenos poderes para decidir o que o presidente diria e faria; mas, principalmente, estava a cargo deles a definição de como o presidente diria e faria o que dissesse e fizesse. Anunciar maus resultados do consumo interno, por exemplo, nem pensar. Caberia ao velho ministro, ao jovem porta-voz, a qualquer um. Menos ao líder intocável. Este deveria trajar uma carapaça moral, para o bem da nação.

Logo após o feliz decreto das urnas, parecia uma boa idéia enviá-lo em férias – merecidas, diga-se – para uma ilha, em companhia de um grande empresário, admirado e invejado através do país. Parecia coisa que gente jovem, dinâmica, com a cabeça aberta, faz. Mas a população não entendeu assim. Pegou mal. Os jornais reclamaram muito. Vai saber, insinuavam, qual é o teor das conversas entre o novo presidente e uma raposa que investe em energia, transportes, mídia…

Passaram à tática seguinte para reforçar a imagem de saudável novidade que tentavam colar ao chefe. Quer dizer que o homem gosta de um jogging pela manhã? Pois então, vai correr diante das câmeras, vai discutir orçamento com a ministra da Cultura enquanto corre, vai convidar os presidentes de países vizinhos para acompanhá-lo na corrida, vai dar entrevistas entre um pique e outro. O importante é aparecer bastante no jornal do horário nobre, em roupas de ginástica e ao ar livre. Nada de se exercitar na academia do palácio, recluso, como faziam os outros!

Mais uma vez, face à desconfiança persistente do público, foi necessário alterar a estratégia. Um divórcio. Assim, escancarado. Quantos daqueles políticos tradicionais teriam coragem de se separar enquanto estivessem no cargo, arriscando o pescoço diante da opinião pública conservadora? Ora, nenhum. Pois um processo traumático desses ocuparia as manchetes, com certeza, por mais de um mês. Os índices de desemprego seriam relegados a uma nota de página par! Imagine, quanta identificação, quanta empatia, quando o povo soubesse que o presidente é tão normal, “como todo mundo”, que foi até traído pela mulher! Mas, estranhamente, houve pouco mais do que alguns comentários chistosos, nos botecos e nos cartuns, sobre o “reizinho corno”. E o assunto morreu.

Com poucos meses de governo, o presidente já foi visto comentando jogo de futebol, ensinando receita de batata assada, fazendo compras em supermercado. Cantou ao lado de seu ídolo, perdeu no tênis para o presidente do Congresso, pediu a um ditador africano, com educação, para que respeitasse os direitos humanos. Tudo detalhadamente noticiado, nos jornais, nas rádios, na televisão, na internet.

A última grande jogada, de que muito se orgulha o mais jovem dos membros da equipe, mentor da idéia, foi a manhã de domingo no parque de diversões. Quantas vezes um chefe de Estado, categoria humana grave e rígida, foi fotografado despencando em montanhas-russas ou abraçando o Pato Donald? Brilhante! Melhor do que isso, só mesmo aproveitar a ocasião para tornar público, como se sem querer, o namoro com uma manequim famosa-famosíssima. Genial. O mais indiferente dos públicos não escaparia.

Mas, como indica essa última pesquisa, nem o algodão-doce com a amada deu resultado. Para o cidadão médio, esse aí é igual a todos os presidentes anteriores. A mesmíssima coisa. Só um pouco mais saidinho. Não se sentem mais próximos de seu líder, nem sentem o líder mais próximo. E os brilhantes assessores se vêem sem resposta. Já passada a meia-noite, ninguém consegue pensar em nada. Sumiram as ideias. Todos estão exaustos. Olhos pesados, respiração curta. Ainda tentaram discutir mais uma resposta agressiva ao problema. Algo sobre um casamento. Com a modelo, é claro. Mas é impossível saber se a idéia é boa. Todas as outras pareciam ótimas, foram testadas no mercado internacional… enfim.

É tarde. Desistem. Os profissionais, cabisbaixos, tomam suas pastas e vão partindo. Um a um. Estão desanimados, nem procuram disfarçar as olheiras e os ombros encurvados. O que dizer desses consumidores? Ah, francamente! São imprevisíveis.

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costumes, crônica, deus, direita, economia, eleições, esquerda, estados unidos, guerra, história, imagens, imprensa, modernidade, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, religião

Blood, toil, tears and sweat

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Das outras vezes em que passei a noite em claro desde que vivo em Paris, foi para ver futebol. Ontem, abdiquei de acordar a tempo de ir ao curso de alemão para viver a História in the making. À distância, mas em tempo real, como só nossa era de conexões pode permitir. Olhos inchados, sobre a escrivaninha uma caneca de chá, trêmulo de frio e expectativa, passei horas no portal da CNN, a clicar sobre os mapas dos Estados americanos, vendo a subida dos números, acompanhando os comentários da torcida democrata em blogs e jornais, que, em poucas horas, passaram da apreensão esperançosa a uma torrente incontida de emoção, alívio e orgulho.

Eram quase seis horas da manhã na Europa quando começou o discurso da vitória de Barack Obama, no Grant Park de Chicago. Ohio e Virginia acabavam de revelar sua definitiva mudança de lado. A Flórida estava a caminho. Enquanto esperava a subida ao palanque do presidente eleito, a cobertura da BBC exibia cenas da celebração no Quênia, terra do pai e de muitos meio-irmãos de Barack. Uma multidão cantava e dançava, em meio a declarações de que aquela era uma vitória deles, também, um pouco. E quem haverá de dizer que não era? Comecei a imaginar a expressão de algum redneck do Mississippi que estivesse assistindo àquela cobertura; não sem uma certa alegria sádica, pensei que ele talvez sofresse um enfarte. Pena que só existisse na minha cabeça.

E começou o discurso. O 44o presidente dos Estados Unidos é um pequeno milagre, para não dizer que é um grande milagre. Seu domínio da oratória é raro. Cada movimento de sua cabeça e de suas mãos, cada pausa no meio das frases, cada piadinha que quebra a gravidade da retórica, cada olhar, tudo é tão bem estudado que parece natural. A facilidade de sua expressão é tamanha que faz crer que improvisa. Certa vez, debati com meu pai um discurso de campanha do então recém-escolhido candidato democrata. Ele dizia que não empolgava, eu discordei. Sem falsa modéstia, eu tinha razão. Obama não pode imprimir a suas palavras um tom inflamado, que o associaria mais a Jesse Jackson e a Malcolm X do que a Martin Luther King Jr., cujo famoso discurso do sonho é evocado por dez entre dez comentaristas desta eleição. De quebra, ainda reduziria a percepção de sua distância do belicismo caipira dos republicanos atuais.

Obama, ao falar, inculca no ouvinte os atributos que quer: sereno, culto, preparado, forte, capaz. Sua fala é tão bem controlada que até nos momentos em que deveria perder o controle, não perde. Foi assim quando se referiu a Michelle Obama, “the love (pausa) of my life“, e a sua avó, que faleceu no final da última semana. À parte os agradecimentos, devo dizer que fiquei muito impressionado com a força e a beleza do discurso. Digno de Lincoln, King, evidentemente, e Churchill, também em versão de texto, porque a pronúncia não é nada fácil (se não tiver paciência, pule direto para o último parágrafo, que é o ápice da beleza oratória). Melhor, creio, do que Kennedy. Em política, saber falar é tão importante quanto saber costurar acordos ou administrar a economia. Também nesse aspecto, Obama começa muito bem.

Nem preciso dizer que sou fascinado pela arte da Oratória. Talvez porque eu mesmo falo muito mal: tendo a embaralhar as palavras e perder a atenção do ouvinte. Que dirá de uma multidão… A vantagem de viver no estrangeiro, aliás, é que, com o sotaque, tudo se perdoa. Admiro, até invejo, quem consegue segurar o público só com a força de sua presença e de sua voz. Mais além, a palavra é um dos fenômenos que mais me fascinam. O poder de falar é determinante. É quase irresistível. Apaixona, como se vê pelos olhares vidrados da multidão que segue a voz clara de Obama, como investidores seguem sem pensar as ondas do mercado. A persuasão das belas palavras leva às lágrimas homens feitos, grisalhos, que em teoria viveram o suficiente para não se deixar emocionar e conduzir tão facilmente. Milhares de pessoas abrem mão de sua individualidade para repetir o mantra irresistível da campanha bem-sucedida: “Yes, we can!

A oratória é uma arte perigosa, sim. Basta lembrar de Carlos Lacerda, de Joseph Goebbels, e da seqüência magistral de Júlio César, peça de Shakespeare em que Brutus e Marco Antônio discursam sobre o cadáver ainda quente do líder, e basculam as emoções da multidão romana pela simples potência de suas frases fulminantes. O bardo, com sua visão aguda, não deixa dúvidas: o erro estratégico de Brutus foi deixar o adversário falar; e por último, ainda por cima. O texto dá a entender que a história do Império Romano seria outra sem essa falha.

Mas Obama, como eu já disse, é um milagre. No ponto em que está, já realizou grande parte do que tinha de fazer como símbolo. Imagem do homem negro que supera os obstáculos e consegue unir todas as etnias do país. Encarnação do esclarecimento que esmaga o perigo crescente do obscurantismo. Um bofetão no rosto da tradição racista dos Estados do Sul. Só pelo fato de ter sido eleito, Obama já abalou as estruturas nefastas da desigualdade, embora ela não vá deixar de existir, e forte, mesmo que ele seja reeleito e conduza um governo impecável nos próximos oito anos. Obama já chegou mais longe que o doutor King. E já chegou mais longe que Bobby Kennedy, branco como a neve, mas assassinado sem ter a chance de vencer as primárias democratas.

Porém, há que entender-se que o Barack Hussein Obama que conhecemos já é uma página da história. Acabou. Daqui por diante, teremos um outro Barack Hussein Obama. Um presidente não é um candidato. Não há um inimigo claro, uma chapa John McCain e Sarah Palin, que não representa absolutamente nada em termos governamentais e administrativos, mas encarna com perfeição a política do atraso, a manipulação de emoções patrióticas belicistas, a mentira de um misticismo chinfrim que se faz passar por religião, a estupidez agressiva travestida de honestidade simplória, que obteve dos eleitores do país mais rico do mundo a bagatela de cinqüenta e cinco milhões de votos. Eis o número de americanos que saíram de casa para escolher o absoluto vazio.

Isso já ficou para trás. Obama não é mais um antípoda dessa gente, ele agora é seu líder. Escolherá um ministério, enfrentará uma crise, tomará decisões difíceis. Negociará acordos comerciais com outros países, inclusive o Brasil, e será duro nas negociações, como espera seu eleitor. Será criticado por jornalistas e zombado por comediantes, como todos os presidentes de todos os países, salvo, no máximo, as piores ditaduras. Ele deixará de incorporar a esperança. Passará a representar um país. Sua oratória será fundamental nessa nova etapa de recessão e guerra, mas não será tudo. A grande, a verdadeira vitória que o novo presidente americano pode obter é outra:

Quando criança, eu vivia num subúrbio de Washington, D.C., e na minha turma da escola havia um único garotinho negro, de cujo nome já me esqueci (como, aliás, de todos os outros coleguinhas daquele tempo). Em várias aulas, a adorável professorinha, Ms. Flannery (engraçado, do nome dela, não esqueci!), se esforçava por nos fazer entender a importância da igualdade e o absurdo da discriminação racial. Certo dia, recebemos como dever de casa inventar uma história que envolvesse outros alunos da turma. Na que escrevi, todos os meus amigos eram abduzidos por alguma força inexplicável e se transformavam em pessoas más, muito cruéis. Eu seria o único a resistir e teria de salvar todos os demais. Um verdadeiro herói americano, digamos assim. Mas mudei o enredo. Achei, veja só, que estaria agindo como um racista se incluísse o colega negro na lista dos maus. No texto final, então, nós dois lutávamos lado a lado pelo triunfo do Bem. Ninguém jamais soube por que fiz a alteração. Meu colega ficou lisonjeado. Se fosse no Brasil, tenho certeza de que passariam a me olhar torto, com o tradicional “sei não”…

Contei esse episódio para chegar à vitória que Obama ainda precisa conquistar, nos quatro ou oito anos em que ocupará a Casa Branca. Ele terá triunfado se ações ingênuas como a minha se tornarem obsoletas. Se ninguém comentar uma decisão do presidente fazendo menção à sua cor. Se não pegarem mais leve, nem mais pesado, porque ele “é negro”. Se concordâncias e discordâncias passarem por cima do fato, como se fosse um detalhe. Ironicamente, o maior feito de Obama terá sido transformar sua grande diferença em qualquer coisa de corriqueiro.

É claro que não vai acontecer. Quinhentos anos de discriminação racial, escravidão, segregação, preconceito, não vão ser apagados por um ou dois mandatos. Mas já terá sido um ganho enorme se, no mundo inteiro, pessoas que sempre enxergaram a si próprias como inferiores por causa de sua pele puderem ter espaço para se impor como cidadãos plenos. Daqui por diante, todas as crianças, de todas as cores e etnias, do mundo inteiro, vão nascer e crescer com a imagem de um presidente americano que não é branco, não é W.A.S.P (OK, Kennedy era católico). Para essas crianças, a idéia de que o negro possa ser inferior ao branco não fará sentido. Eis a vitória que Obama terá de cavar enquanto estiver trabalhando no Salão Oval.

Estou convicto de que a madrugada fria que passei diante do computador e da televisão é algo que vou contar para meus netos. Valeu a pena.

PS: Sobre as eleições propriamente ditas, em português, recomendo os óbvios Biscoito Fino e Pedro Dória, além do excelente blog de Argemiro Ferreira. Para algumas frases bem escolhidas e traduzidas para nossa última flor do Lácio, recorram ao Animot. Para quem gosta de sarcasmo irrefreado, O Hermenauta.

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direita, eleições, esquerda, frança, francês, história, imprensa, ironia, opinião, paris, Politica, reflexão, sarkozy

A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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arte, Brasil, direita, esquerda, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Informação e ânimos exaltados

Todos+os+homens+do+presidente+capa
Muito interessantes, as reações que causou o último texto. Em primeiro lugar, nunca tive tantas visitas, o que é algo a comemorar; por outro lado, o fato de que uma boa parte dessas visitas tenha chegado através do webmail do Ministério Público Federal de vários Estados é bem preocupante. Em segundo lugar, meu comentário (que se queria frio) sobre a baixa qualidade da reportagem produzida no Brasil, com um breve sumário de algumas de suas possíveis razões, foi recebido quase como um manifesto revolucionário. Parece que tocar no nome da revista Veja suscita paixões intempestivas nas pessoas. O quadro é mais ou menos assim: de um lado, há os que sorvem aquelas páginas coalhadas de adjetivos depreciativos como se fosse o néctar do Olimpo. De outro, há toda uma multidão de ex-leitores que só esperam a oportunidade para empastelar o carro-chefe dos Civita.

Houve gente que, comentando minha análise, falou em derrubada de ditaduras, o que me pareceu um tanto fora do contexto, mas, enfim, ninguém é obrigado a ler os textos que comenta. Ao mesmo tempo, alguns leitores aproveitaram a oportunidade para descarregar, numa enxurrada de palavrões, toda a raiva contida contra a revista. Aliás, agradeço aos que tiveram a discrição de fazê-lo por e-mail, em vez de baixar o nível na minha caixa de comentários. Aos demais, lamento não ter podido aprovar suas intervenções, e peço que as reescrevam em tom menos agressivo. A propósito, também seria adequado se aqueles que se irritaram com o que lhes pareceu uma ofensa à sua revista preferida se abstivessem de cumprir a promessa de atentar contra a integridade física do ofensor. O tempo de preparar a vingança seria melhor empregado na releitura do texto, com a cabeça mais fria.

Curiosamente, os comentários sobre o próprio Nassif foram parcos. Sobre seu trabalho de reportagem, quase nulos. A maior parte preferiu desviar o foco para seu caráter: para uns, um semi-deus. Para outros, um sujeitinho anti-ético, como mostraram as acusações de Diogo Mainardi (explicaram-me, mais tarde, que as tais acusações são, na verdade, um parágrafo de uma coluna na própria Veja, em que Mainardi insinua, sem afirmar peremptoriamente, que Nassif teria, quem sabe, sido favorecido pelo governo). Cá entre nós, não tenho a menor idéia do padrão ético do jornalista; jamais colocaria a mão no fogo por ele. Achava suas crônicas da Folha, enviadas sempre com atraso, terrivelmente sem graça. Também sou da opinião de que alguém que conhece a música de Danilo Brito não pode apreciar a técnica de Nassif ao bandolim. Mas repito o conteúdo do último texto: o trabalho de reportagem que ele vem fazendo nas suas catilinárias anti-Veja é de primeira qualidade, e todo esse debate ganharia muito se o outro lado se propusesse a agir da mesma forma.

Certos comentários causaram reflexões que quero compartilhar. Antes de mais nada, preciso esclarecer um ponto fundamental. Um esperto homem de Marketing afirmará, sem dúvida, que os sentimentos suscitados por Veja depõem a seu favor. Mantêm a marca em evidência; são, no fundo, uma publicidade gratuita; podem até aumentar a circulação e fortalecem a posição do veículo como porta-voz das idéias de uma parcela da sociedade. Mas eu discordo inteiramente. Para mim, o irracionalismo que cerca a avaliação que o público tem de Veja é um indício de que ela não cumpre sua função como imprensa. Jornais e revistas não são feitos para serem amados e odiados. São feitos para serem respeitados e lidos. Sei que não é assim no Brasil, terra de Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues e Carlos Lacerda, mas em sociedades minimamente organizadas, respeito e leitores não se conquistam com sentimentos animalescos como os que Veja suscita, e sim com credibilidade. Credibilidade, um conceito que deveria ser fundamental na imprensa, mas que vou deixar para discutir mais adiante.

Agora, prefiro comentar um pedaço do aparte de meu amigo Leonardo: a Veja, segundo ele, deixou de ser um veículo de informação para ser um veículo de opinião. No entendimento de Leo, pelo que me pareceu, há aí dois erros: deixar de ser um veículo de informação e passar a ser um veículo de opinião. Se for isso mesmo, discordo. Para mim, só há um erro nessa frase, que é deixar de informar. Ser um veículo de opinião não é crime nenhum. Todos os grandes jornais do mundo são fortemente opinativos e deixam suas opiniões bem claras. O melhor exemplo é o da revista britânica The Economist. Sua posição é bem simples: a favor do liberalismo econômico e fim de papo. A Fox News é uma rede de televisão francamente favorável ao governo Bush, e isso não foi problema algum até o momento em que ficou claro que ela manipulava informações para isso. O New York Times nunca escondeu sua preferência pelo Partido Democrata. O Última Hora, de Samuel Wainer (cuja autobiografia merece um texto à parte), jamais escondeu sua linha getulista. A Carta Capital, quando das eleições de 2002, colocou-se, em editorial, claramente favorável a Lula. Quem, na França, não sabe que o Le Figaro é o jornal da direita tradicional, o Le Monde, da direita moderna, também conhecida como centro, e o Libération, um jornal francamente de esquerda? Tem também o famoso La Croix, que jamais precisou esconder o fato patente de que pertence à Igreja Católica.

A opinião está longe de ser proibida aos veículos de imprensa; aliás, muito pelo contrário. Redação nenhuma é habitada por almas cândidas, incapazes de parcialidade. No entanto, o trotskista mais ferrenho não cometerá a sandice de afirmar que a The Economist só tem “mentiras”. Será tomado por louco varrido, mesmo entre seus colegas, se o fizer. Mesmo um leitor republicano, um verdadeiro neocon, poderá ler o NYT sem medo de encontrar inverdades publicadas ali por motivos políticos. Quando um jornalista foi flagrado inventando matérias no jornal, e o assunto nem era política, foi sumariamente demitido. Mas o mais importante é que a edição seguinte do jornal continha um enorme mea culpa. Por que esse ato de contrição tão reforçado? Porque a pior coisa que poderia acontecer ao jornal seria perder sua credibilidade.

E, pronto, eis-nos de novo nela. A tal credibilidade. O trotskista respeita a The Economist porque sabe que o jornalismo feito ali é sério, ele o vê nas matérias. Sabe quais são as fontes, sabe quais são os documentos, tem acesso à redação. O republicano respeita o NYT pelo mesmo motivo. Aqui na França, jamais escutei de alguém de direita a frase: “Ah, deu no Libé [ou no Nouvel Observateur, por outra]? Então é mentira, eles são de esquerda!” Nem ouvi a proposição inversa da boca de um esquerdista, dispensando algo que tenha saído no Figaro. É como se isso só existisse no Brasil.

Falando em Brasil, uma pergunta: que veículo em nosso país pode reclamar o título de credível? Penso, penso, penso, não encontro nenhum. A Veja está na berlinda por causa dos artigos de Nassif e por ser a revista de maior circulação. Mas, por exemplo, poderiam ser as Organizações Globo, condenadas pelo próprio passado. Tomando uma Veja entre as mãos, nunca sei se algo que esteja escrito ali é verdadeiro ou falso. Já houve casos em que a falsidade era evidente. Certa vez, topei com um diagrama que não citava, nem naquelas letras minúsculas que ninguém lê, qual foi o instituto que cedeu os dados. Se a incerteza pode chegar a esse ponto, como posso dar crédito a todo o resto? A dúvida paira sobre a totalidade do que está publicado na revista. O resultado é que mesmo os dados que eventualmente forem verdadeiros, e a grande maioria o é (pelo menos, espero que seja), recebem o selo amargo da desconfiança. É por isso que as pessoas de bom senso que conheço estão gradualmente abandonando a imprensa brasileira. É por isso que as empresas andam às voltas com problemas financeiros gravíssimos. É por isso que os melhores jornalistas migram para a internet em páginas pessoais. E seria muito pior, se o Brasil tivesse um público leitor que soubesse exigir credibilidade.

Para terminar, uma palavra sobre o conceito de “denúncia”. Quem acha que o jornalismo brasileiro, do qual Veja é um dos maiores expoentes, faz maravilhosas denúncias (sobretudo contra o governo) deveria buscar um livro chamado Todos os homens do presidente, de Bob Woodward e Carl Bernstein. Aos cultos, desculpe citar uma obviedade. Aos preguiçosos, não desanimem: há um filme homônimo, com Robert Redford e Dustin Hoffman. Eis ali um verdadeiro trabalho de reportagem investigativa que resultou, de fato, na derrubada de um presidente, graças à qualidade técnica com que foi realizada. Assim como acontece no Brasil, uma fonte interna deu a dica do caminho a seguir. Mas, ao contrário de nosso procedimento tupiniquim, em vez de botar a boca no trombone com o famoso “fontes ligadas ao palácio afirmam que…”, os dois americanos se enfiaram nos dados, nas conexões, nas entrevistas e nos telefonemas. Foram apoiados pelo editor-executivo, o célebre Ben Bradlee, apesar de todas as pressões que se podem imaginar. O que conseguiram, graças a um trabalho sério que mal conseguimos compreender no Brasil, foi mudar a história dos Estados Unidos. Sem precisar de piadinhas infames.

Paro por aqui, porque o texto está enorme. Espero ter deixado claro o que ficou obscuro no primeiro texto. Concordo com quem diz que a imprensa tem um papel de vigiar o poder, e acho impressionante como tanta gente esquece que existe uma maneira de fazer isso, e essa maneira se chama “jornalismo”. Não é de hoje que nossos veículos de comunicação deixaram para lá esse pequeno detalhe quando decidem bater no governo. Há muita gente que gostaria, por exemplo, de ver Lula sofrer um processo de impeachment, e se escandalizam porque os ataques da imprensa não conseguem derrubá-lo. Pois eu lanço aqui um balão de ensaio: certamente existem fatos e dados suficientes para justificar que o presidente seja afastado do cargo. Certamente esses fatos e dados estão acessíveis à imprensa. Concluindo: se a imprensa quiser, de fato, tirar Lula do poder, ela tem plena capacidade de fazê-lo. E lá vai a pergunta capital: por que os ataques ao presidente ficam só na retórica e não lançam mão de suas verdadeiras armas?

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