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A última curva do círculo

Um súbito azedume, raiva contra as folhas amassadas e secas. É injustificado o travo na glote ao pisar sobre elas, mortas e embebidas na água suja da estação. Daqueles caminhos cobertos de amarelo e vermelho, em que o vento dos belos dias erguia redemoinhos, restaram essas pequenas sombras encarniçadas, molduras marcadas pelas solas dos sapatos. E ao erguer os olhos para as poucas que ainda se agarram aos galhos, amedrontadas com a perspectiva da queda e da morte inevitável, não é a melancolia usual de um jovem dezembro que me ataca, mas essa absurda aversão, esse horror despropositado.

Meus ombros não têm marcas de pegada. Têm, sim, o peso de um tempo indiscreto, imperador narcisista que faz questão de se exibir. Deixa em meu corpo um sinal, o afundamento das espaldas, o desejo do tronco de esconder-se do olhar severo que o déspota lhe lança, como a todos. Confundo-o com a chuva, que amolece o tecido da casaca e a aba do chapéu, tal qual o deteriorar-se dos meses me abala o espírito. Tento espanar, com a água, a pressão do tempo. Tento abrir os ombros e preencher os pulmões. Mas o ar que atende ao convite me ofende. Gelado, queima os caminhos; empapado, enrijece minhas faces.

Desisto. Recolho-me novamente, inerte, como inertes estão os cadáveres em que piso, ainda que tente evitá-los, desgostoso.

Reconheço que basta contar quatro meses para brotarem as próximas folhas, minúsculas, redondas, de um verde transparente. Reconheço que é o ciclo, infinitamente mais ancestral do que qualquer ancestralidade a meu alcance. Erradas estão as folhas que insistem em não tombar, que imploram a uma natureza que não responde, que choram quando fustigadas pelo vento, que secam no pé e não entendem a condenação definitiva. Está inscrito, em sua natureza de folha, o destino do outono. Morrer. Nascer em abril. Perecer em novembro.

Eu é que não vou perecer com a aproximação do inverno. Mas sinto, intimamente, que já experimentei diversos ocasos, uma suíte deles, desde que as cores começaram a mudar e os ventos assumiram sua inclemência. Morro com uma folha, morro com mil. Morria alegre com a hemorragia de outubro, quando elas caíam como lágrimas de sangue e jorravam ao longo das aléias. Morro novamente, agora amargo, enquanto os ciprestes se preparam para a estabilidade do olvido.

Sei por isso que sigo o mesmo ciclo das folhas. Estamos na mesma curva, na mesma etapa, a um passo do mesmo mergulho. Se, enquanto a terra permanece congelada, não estarei morto, como elas, estarei ao certo paralisado. Estarei diminuído, abafado pelos panos que me mantêm vivo, pressionado pelas precipitações enervantes, quase sem folga. Como os vegetais, subsistirei na esperança de um novo abril, a nova reversão da curva, do ciclo, do círculo, o renascimento que se vive a cada ano, a volta, o alívio.

Creio que seja essa expectativa que me atemoriza. A evidência de que existo agrilhoado aos ciclos e de que esses ciclos são um só. Minha vida. Entrego-me ao ódio por essas folhas, não por elas, que nada podem, mas pela hélice a que estão amarrados meus pulsos e tornozelos, como elas aos galhos, antes da queda.

Como se falasse, dirijo a palavra às folhas mortas e lhes pergunto por que não ficam assim, por que não se contentam em apodrecer e seguir eternamente como húmus. Brotar novamente na primavera, que terror! É o supremo ato de submissão, um esforço para se entregar mais uma vez, entre tantas, à parábola que resultará em outra morte, em mais lama, em mais pegadas.

Eu me encheria de admiração por elas, se as folhas se recusassem a recomeçar. Elas teriam a força que a razão quis atribuir apenas a si própria, e que tanta desgraça causou aos entes concretos, ao se misturar aos corpos, templos do necessário, sede da condenação ao tempo. Diante da recusa heróica dos vegetais, eu me questionaria.

Eu me perguntaria, vexado, perturbado, por que eu mesmo, por que nós todos, que temos mais vontade do que as folhas, não podemos dar um passo para fora do destino. Da fatalidade, de uma forma de vida que se nutre infinitamente da própria morte. De um estágio que sabemos superar, mas a que nos curvamos como escravos.

Por que nos aferramos a ser trágicos? Eu desejaria saber. Seria a manifestação que eu gostaria de dar à minha inveja dos vegetais forros. Meu rancor mudaria nessa inveja se, e somente se, eu visse, nas folhas, a prostração transmutada em liberdade. Até lá, como parece inevitável, vou morrendo para viver.

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Cinema, censura e a tranqüilidade que era mentira

Cartaz de homem velho pichado no metrô de Paris
Passadas as semanas loucas de maio, a vida que se prometia tranqüila revela a verdadeira face na forma de pilhas de afazeres acumulados. Diante dos prazos que vão se encurtando, morrem abraçados o descanso idealizado e o desejo de dedicar-se a leituras e escritas pessoais. O maior prejudicado é o blog, claro, ninguém duvide. Ele é empurrado para o fundo da lista de prioridades, ao passo que o futebol, essa maldita cachaça, não aceita ser removido da primeira posição.

Não é que faltem assuntos. Uma centena de coisas aconteceram desde o último artigo: eventos, impressões, opiniões, que estou louco para compartilhar com quem, digitando qualquer coisa no Google ou no Yahoo!, acabe caindo por aqui. Duro é escolher e ordenar todos os filmes do Festival de Cinema Brasileiro de Paris, em particular os documentários; as matérias lidas nos jornais franceses, como sempre um prato cheio para quem gosta de divagar sobre notícias alheias; as novidades, sempre tendendo para o absurdo, que chegam sem parar do Brasil.

Um exemplo é o caso envolvendo o Gabeira, o Pedro Dória, e a famigerada lei brasileira. Observe que eu disse lei, e não Justiça, que é coisa bem diferente. Quando soube que o velho guerrilheiro foi admoestado pelos tribunais por causa do apoio recebido do jornalista (espontaneamente), fiquei pensando nas armas disponíveis aos internautas para lutar contra a censura. Lembrei da vez em que tentaram colocar o dossiê do Luiz Nassif como primeira referência para quem digitasse “Veja” no Google. Mas não vi como isso poderia ajudar no combate à censura. Pensei num levante de blogueiros adotando o banner de Gabeira, mas isso só daria mais munição aos tribunais para apertar a corda no pescoço do candidato. E mesmo quem está fora do Brasil não escapa ao constrangimento, afinal, quem leva as bordoadas vive na Cidade Maravilhosa. A localização dos blogs pouco importa. Ao que parece, só resta mesmo reclamar, como de hábito.

O que não chega a ser um desastre. Pelo menos, o episódio serve de gancho para trazer à baila alguns dos documentários brasileiros que vi na última semana e que pretendo comentar nos próximos artigos. Não poucos têm como tema, ainda que indiretamente, a nossa última ditadura escancarada. É o caso de Operação Condor, Hércules 56 e Wilson Simonal, ninguém sabe o duro que dei. Do ponto de vista puramente cinematográfico, são todos excelentes. De um prisma histórico, são fundamentais. Considerado o momento revisionista e mesquinho por que passa a opinião pública brasileira, vieram em boa hora. Quem tiver alguma simpatia pelo que o Brasil viveu na geração de nossos pais (quer dizer, dos meus pais), que vá vê-los com urgência!

De volta à questão da censura: com voto ou sem voto, nosso Brasil tem muita dificuldade em lidar com a idéia de democracia. É triste, mas não tão vergonhoso como pode parecer. Democracia não cai do céu, é um aprendizado difícil. Os alemães, por exemplo, civilizadíssimos que são (e são mesmo), tiveram que colocar em risco a própria existência como nação para incorporar finalmente os valores democratas. Os franceses, quase isso. Os russos não aprenderam até hoje. E por aí vai. Nós, que já tivemos duas ditaduras longas em menos de 120 anos de república, mesmo quando pudemos votar, jamais vivemos de fato em democracia. A opinião sempre foi cerceada, o voto obrigatório, a polícia violenta, a imprensa desonesta (nem toda, bem entendido). Que os tribunais queiram excluir a internet do debate político, cá entre nós, não é surpreendente no Brasil, onde livros ainda podem ser recolhidos por decisão judicial e jornalistas são multados por “ofensas” que podem vir, quem sabe, a pronunciar algum dia. É triste, sim, e muito. Só que também é uma excelente oportunidade para externar o desejo de liberdade de expressão, de democracia, de um desenvolvimento que vai muito além do econômico, mas contribui muito para ele.

Democracia exige prática. Pratiquemo-la.

PS 1: Isso não quer dizer que eu concorde com a análise radical que Pedro Dória faz da liberdade de expressão. Ele coloca uma questão interessantíssima, talvez sem querer, de fundo filosófico, ou seja, a tratar no Cálculo Renal muito mais do que aqui: como definir as fronteiras da expressão? Para Dória, toda propaganda é expressão e deve ser radicalmente livre, o que incluiria publicidade de cigarros e bebidas na hora do almoço. Eis aí uma idéia que incita à análise. Nem sempre a publicidade é expressão e nem sempre a expressão é opinião. Bom, esse é mais um assunto para a pilha acumulada!

PS 2: Temo que, nas próximas semanas, este espaço se transforme num blog sobre cinema. Não de crítica cinematográfica, que não sou crítico. Mas de reflexões que se apóiam em filmes. Culpa da overdose de tela grande deste maio sobrecarregado. Depois, prometo que volto ao normal.

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Ainda mais ao norte

Carl Xiii
Nenhum dia na Suécia é igual ao anterior. Tão violenta é a variação das horas de luz e trevas, que os suecos não conseguem conter o comichão de comentar o assunto, quando a curva da primavera vai se tornando mais e mais aguda: “nesta época”, eles informam, cúmplices de contentamento, “são cinco minutos de sol a mais por dia”. E o dado confere com o que aprendemos na véspera.

Não sei quem foi que convencionou as datas que marcam a virada das estações, seguindo os solstícios e equinócios. É provável que tenha sido a academia de ciências da França, como sempre, no mesmo golpe em que foram inventados o metro, o quilo e todo o resto das medidas rigidamente decimais, às quais só os anglo-saxões ainda tentam resistir. Em todo caso, certamente não foram os suecos. O dia se equipara em duração à noite na penúltima semana de março; na última, tem início o horário de verão. Mas é final de abril e não há sinal de verão em Estocolmo. Difícil topar com uma árvore já pontilhada de brotinhos de folhas. Enquanto em Paris as sakura já murcham e passam do rosa ao verde, na Escandinávia ainda abrem os primeiros botões de cerejeira.

Os cariocas dizem que o Rio de Janeiro conta com só duas estações: verão e inferno. Piada antiga. Na Suécia, pode-se dizer algo parecido: há o inverno, inferno oposto ao fluminense, e o “não-inverno”. Em julho, o termômetro eventualmente bate nos trinta e os nórdicos derretem. Hoje, domingo, primeiro dia no ano com céu em puro azul, temperatura positiva já ao amanhecer e mais de dez graus no princípio da tarde. A cidade inteira se lança à rua, redescobrindo os territórios que deixou vazios desde setembro. Coisa linda de se ver. Para nós, é muito frio, mas eles aproveitam para deixar braços e pernas finalmente nus. Não os pescoços, cabe alertar: só um louco sairia sem cachecol antes de maio, arriscando uma pneumonia que o deixe prostrado na cama por todo o verão. Nem pensar.

Pergunte a um sueco como ele consegue viver num lugar coberto de neve de setembro até abril. Faça isso a título de experimento antropológico. Há aqueles, com alma de esquimó, que consideram insuportável de tão quente o inverno de outros países europeus, como a Alemanha. Mas é minoria. Há boas chances de que a resposta seja um suspiro, seguido da confissão: “não sei”. Muitos têm o sonho de se mudar para um país mais ameno, para não dizer quente. Alguns citam a Jamaica, porque é tropical e fala-se inglês. E todo sueco é fluente em inglês, com uma pronúncia muito mais agradável do que a dos nativos, sejam britânicos, americanos, australianos, indianos… Ao final de outra pausa, longa e melancólica, o entrevistado responderá em tom de profecia, mais do que de descoberta: “Suporto o inverno para esperar o verão”.

Concluo que o frio extremo é, antes de mais nada, um grande aprendizado. Com a sucessão dos anos, a espera pia por um verão curto e apenas fresco ensina os jovens a se tornarem pacientes. Talvez isso explique o nível de civilização do país e do povo. A Suécia é tudo que dela se diz. ônibus não atrasam, lixo nas ruas é lenda das terras bárbaras ao sul (e praticamente o mundo inteiro está ao sul), mendigo é coisa do passado. Covardia comparar a Suécia à França. A falta de educação parisiense, o mau humor, a frieza, a empáfia, tudo isso passa longe de Estocolmo. Ou seja, aqueles que atribuem ao frio a nuvem negra sobre as cabeças francesas estão apenas muito enganados. Os fatos indicam coisa bem diversa. Aqui, transeuntes sorriem quando abordados, comerciantes são solícitos e dão informações, ninguém se compraz em destratar os outros. Para quem vive no meio de gauleses, conviver com os temíveis vikings é um alívio.

Uma palavra sobre a capital: Estocolmo é a cidade mais linda da Europa, pelo menos entre as que conheço. Uma pena que só se possa vê-la em todo seu esplendor a partir de maio, até setembro no máximo. Fora dessa janela, não bastassem a escuridão e o frio, muita coisa nem abre. Mas quando há luz, não existe delícia maior do que bordejar a linha d’água, entre pessoas tranqüilas sobre suas bicicletas, sem multidões, sem turistas berrando, sem excursões de japoneses, americanos e brasileiros.

Posso ofender muitas sensibilidades ao dizer que Estocolmo é mais bela do que Paris, Roma, Florença, Praga. Não é culpa minha. Na comparação, as cidades italianas não dão nem para o começo. Fora os museus e monumentos, são mais sujas do que o aterro de Gramacho. Praga poderia rivalizar, mas perde pelo tamanho e porque o adversário é mesmo muito difícil. Quanto a Paris, a incensada, é mesmo muito bela, mas cansa rápido. De sua arquitetura toda haussmannienne, cinzenta e retilínea, resulta uma cidade monótona, monocromática, monocórdia. Estocolmo é colorida, espalhada, ampla. Sua arquitetura é imaginativa, sabe misturar diferentes épocas e escolas, quase sempre sem ruído. Belíssima cidade, repito.

Mas este é apenas um texto introdutório. Lanço aqui uma seqüência quase desconexa de primeiras impressões. Coisas assim são o que vi na capital gostosa de um país nórdico desde que cheguei, dois dias atrás. Mas há muito a dizer nas próximas crônicas, se a internet parar de me pregar peças.

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