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Naturam expellas (Parte 3)

[N.B.: esta é a terceira parte de um texto sobre a velha questão “homem/natureza”, inspirado no ecocídio ocorrido semana retrasada em Mariana-MG e que está destruindo um dos nossos mais importantes rios.]

Leia também a PARTE 1.

Leia também a Parte 2.

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* * *

Mestre e possessor, pois sim, mas porque “liberto” dos grilhões de uma existência “meramente natural”. Um dos pontos cruciais da construção de uma modernidade faustiana que tentou “expulsar a natureza” é a idéia de que “natureza” (já não mais falando em “estado de natureza”) corresponde a um contexto de amarras da necessidade, à qual se oporia a engenhosidade humana e, em particular, a razão. De estado a superar, passa-se de substrato; a abafar, acrescente-se.

Encontramos idéias deste tipo, de maneiras ligeiramente diferentes, em três alemães de mente para lá de poderosa: Kant, Hegel e Marx.

O mestre de Königsberg, primeiro, para respeitar a cronologia: no texto Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolítico, de 1784, Kant faz uma espécie de síntese da idéia prometéica do humano como animal nu, dependente de suas próprias técnicas, e da fórmula pascalina da cultura (ou hábito) como “segunda natureza” (idéia que será retomada criticamente na obra de Bernard Stiegler, mais recentemente).

Ele afirma, então, que estava nas finalidades da natureza (que “não faz nada por acaso”) que o ser humano:

obtenha inteiramente de si próprio tudo que ultrapassa o agenciamento mecânico [mechanische Anordnung] de sua existência animal e que não participe de nenhuma outra felicidade e nenhuma outra perfeição senão as que criou ele mesmo, livre do instinto, por sua própria razão.6

Aqui, a natureza não precisou de um Criador punitivo para ela mesma querer expulsar o humano de seus mecanismos imanentes, isto é, seu “agenciamento mecânico”. Mas é uma estranha fórmula: como pode a natureza ter desejado a extração de uma de suas criaturas, tornando-a tão frágil? Por que a fragilidade, que implica a sujeição às forças naturais, deveria ser vista como “porta de saída”da natureza, e não uma inserção ainda mais intensa, por sofrida?

O tema volta mais tarde na obra de Kant, na Crítica da Faculdade de Julgar e nos Fundamentos da Metafísica dos Costumes. A questão, ele diz, neste último texto, é que a natureza é o reino da necessidade, onde todo fenômeno obedece a leis fixas da matemática, da física e de tudo aquilo que merece o epíteto “ciências da natureza”. Não há liberdade na natureza, porque a liberdade pertence toda à razão. Se não é possível “expulsar a natureza” propriamente, ela está, em todo caso, expulsa do reino onde o humano age com sua maior desenvoltura, enquanto humano, livre e poderoso: o reino da razão prática e dos costumes.

A mediação entre esses dois reinos, que o velho prussiano faz questão de resgatar como modo todo seu de reconciliação, é o da faculdade de julgamento, aquela que discerne valores: no fundo, tudo gira em torno de um gesto inteiramente humano de valorar: cabe ao humano “dar sentido” à natureza. Por sinal, quando Marcuse, séculos mais tarde, for tentar pensar uma crítica ao mesmo tempo ecológica e marxista ao capitalismo, é nesse texto de Kant que ele vai buscar a fonte de inspiração. Porque Kant vê na natureza uma intencionalidade sem intenção, isto é, a capacidade de formar objetos de tamanha coerência que, pensaríamos, só podem ser frutos da intenção…

Como se vê, um certo trabalho de linguagem continua servindo de véu entre nossa civilização e uma dada natureza que continuamos nos esforçando por expulsar, mesmo quando estamos reconciliados com ela. Um trabalho de linguagem e também um empréstimo de intencionalidade, um certo ranço de antropomorfismo que se insere pelas frestas do pensamento racionalista, driblando o pensador.

* * *

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Mas como este texto não é uma exegese de Kant, vamos seguir em frente: essa mesma distinção entre a necessidade do natural e a liberdade do racional aparece de forma modificada em Hegel, autor que foi muito influenciado pelos textos dos primeiros economistas políticos, franceses como britânicos (Hegel leu muito o escocês Adam Smith). O animal, como o humano, têm necessidades de ordem natural, que são limitadas, mas o humano possui um outro tipo de necessidade, muito mais universal, que se subdivide em particularidades e aparece como “conforto”, depois “luxo”, e assim por diante (Princípios da Filosofia do Direito, parágrafos 191 e seguintes).

Essas necessidades sociais (“conjunção de necessidades imediatas ou naturais com necessidades mentais que surgem de idéias”) são preponderantes no humano como efeito de sua universalidade. Por esse motivo, diz o filósofo, “o momento social carrega em si o aspecto de libertação, ou seja, a necessidade natural estrita é obscurecida e o ser humano se ocupa de sua própria opinião (…) e com uma necessidade que ele mesmo produz, em vez de uma necessidade externa” (parágrafo 194).

Como é que se produz essa liberdade tão universal e tão particularizável? Ora, dirá o leitor alemão da obra de Locke e Smith, é trabalhando que conseguimos o que queremos! Assim,

através do trabalho o material bruto diretamente fornecido pela natureza é adaptado especificamente a esses fins numerosos por toda sorte de procedimentos. Agora essa mudança formativa confere valor a fins e lhes dá sua utilidade, então o homem, no que ele consome, está sobretudo atento aos produtos dos homens. São os produtos do esforço humano o que o homem consome” (par. 196).

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Note-se que o texto de Hegel seria perfeitamente capaz de ser usado para justificar a mineração tal como é feita no Brasil. O material “fornecido pela natureza” é bruto. Os procedimentos, isto é, a técnica, o “engenho e a arte”, diria Camões, o especificam, engendram nele os valores e as utilidades. No mundo do consumo humano, os entes são objetos do esforço humano: a natureza ficou em outro plano, uma vez que foi transformada.

Mas não se pode encontrar em Hegel uma formulação precisa que explique o que devemos fazer com a produção em massa de rejeitos, lixo, poluição e dívida. Teríamos, talvez, de voltar à Fenomenologia do Espírito para afirmar que falta mais um Aufhebung à substância universal? Afinal, se a economia do “produtos do esforço humano” é tética, não seria o sufocamento do humano sob os imperativos de produtividade, as montanhas de lixo e a acumulação da dívida uma instância antitética?

E seria mesmo o caso de se perguntar como se daria essa nova superação, e o quanto seria possível manter o tipo de discursividade que marcou a modernidade ocidental, uma linguagem que, como lembra Viveiros de Castro, é proposicional de cabo a rabo. Teríamos de incorporar, talvez, aos desdobramentos do espírito uma etapa de expressão que recuperasse a linguagem dos mitos, capaz de reintroduzir uma racionalidade mais circular e propriamente universal (para além da universalidade que encontramos no discurso hegeliano das “necessidades sociais”)?

Está aí algo a pensar, mas não no escopo deste texto…

* * *

Derrubada do Pau Brasil

Último alemão desta seqüência, o pai do socialismo científico, o incontornável mouro, Karl Marx. Já podemos lhe dar razão quando, ainda jovem, nos seus manuscritos de 1844, critica Hegel por só ver o “lado positivo” do trabalho. O lado negativo é a proletarização, isto é, o fato de alienar-se o trabalhador dos meios de produção:

Hegel concebe a autocriação do homem como um processo, a objetificação como negação da objetificação, como alienação e supressão dessa alienação; assim, ele apreende a natureza do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque real, como resultado de seu próprio trabalho. O que possibilita o comportamento real, ativo, do homem para consigo mesmo (…) é que ele exterioriza realmente todas as suas forças genéricas (…) e isso só é possível hoje sob a forma da alienação (Esboço de uma Crítica da Economia Política).

Ironicamente, houve quem visse grande parte desse lado negativo. Exemplo: o próprio Adam Smith, com um trecho como este:

A compreensão da maior parte das pessoas é formada pelas suas ocupações normais. O homem que gasta toda sua vida executando algumas operações simples (…) não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer seu espírito inventivo (…). Ele perde naturalmente o hábito de fazer isso, tornando-se geralmente tão embotado e ignorante quanto o possa ser uma criatura humana. O entorpecimento de sua mente o torna não somente incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda conversação racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre ou terno, e, conseqüentemente, de formar algum julgamento justo (…). A uniformidade de sua vida estagnada naturalmente corrompe a coragem de seu espírito (…). Esse tipo de vida corrompe até mesmo sua atividade corporal, tornando-o incapaz de utilizar sua força física com vigor e perseverança em alguma ocupação que não aquela para a qual foi criado. Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida às custas de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais.” (A Riqueza das Nações, Livro V)

Mas é interessante notar como, na obra magna de Marx, O Capital, dois momentos distintos na relação da natureza com o trabalho são visíveis: no Livro I, o trabalho, “criador de valores de uso”, é “condição de existência do homem” e “necessidade natural eterna de mediar o intercâmbio material entre homem e natureza”. O trabalho também é “dispêndio de músculo e nervo” e “apropriação do natural para os carecimentos humanos”7. Nesse sentido, todas as formas sociais implicam algum tipo de trabalho.

Para quem está tratando da “expulsão da natureza”, muitas coisas aqui são interessantes: primeiro, cabe notar que Marx já começa de um ponto em que outros, antes dele, tiveram que penar para chegar, que é a atividade de gestação de valores (no caso, valores de uso). É a atividade que vimos, sob variadas formas, como mediadora, mas também inseparável de modalidades da linguagem e da técnica. O humano, aqui, reafirma-se como tal em um processo constante de extração dos seus valores e, portanto, da sua civilização (ou outras palavras quase sinônimas, como cultura, sociedade etc.).

A produção de valor é uma apropriação do natural, isto é, uma sobredeterminação, a tal ponto que, inserida no mundo que o humano gestou para si próprio, o que está sobredeterminado sobrepuja e chega a apagar o natural de onde foi extraído. Novamente, o natural desaparece do plano do discurso e, por extensão, do visível. Não é surpresa que tenhamos nos tornado incapazes de enxergar o que nossa própria atividade faz com a natureza, em termos de produção de lixo…

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Marx, no entanto, introduz brevemente (para depois deixar de lado) um elemento que estava ausente das análises anteriores: o corpo. Afinal, engrendrar o mundo social (dos valores de uso) através da apropriação do natural é um dispêndio de músculo e nervo, ele diz. É o consumo do corpo humano, que se exaure em nome da produção da civilização humana. O humano como natural (digamos assim) sendo parasitado pelo humano social…

Em outro texto, logo nas primeiras páginas dos cadernos conhecidos como Grundrisse, Marx chega a dizer que toda produção é consumo e todo consumo é produção: ao consumir, digamos, comida, o humano produz seu corpo; ao produzir essa mesma comida, é preciso consumir seu corpo. E assim por diante, ou seja: um constante atravessar da fronteira entre o natural e o social, uma mediação entre esferas mantidas, ainda assim, separadas, sem coincidir propriamente.

E também no Capital, encontramos durante a crítica à teoria da renda de David Ricardo aquela que é provavelmente a mais clara expressão – infelizmente não desenvolvida nesse sentido – dos ruídos entre a simbolização alienante e as dinâmicas de uma natureza feita de potência. Eis o trecho dotado de maior beleza poética, se posso me expressar assim:

Imaginemos agora as quedas-d’água, com as terras a que pertencem, nas mãos de pessoas que são consideradas proprietárias dessa parte do globo terrestre, como proprietários fundiários, e que resolvam excluir o investimento do capital na queda-d’água e sua utilização pelo capital. Elas podem permitir ou negar a utilização. Mas o capital não pode criar por si a queda-d’água. O sobrelucro que se origina dessa utilização da queda-d’água não se origina, portanto, do capital, mas do emprego de uma força natural monopolizável e monopolizada pelo capital. Nessas circunstâncias, o sobrelucro se transforma em renda fundiária, isto é, recai para o proprietário da queda-d’água.8

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Ou seja: para Marx, o capital, que, para todos os efeitos, é artifício e linguagem (que se apresenta preferencialmente sob forma simbólica no dinheiro), consegue apropriar-se, por essa mesma via simbólica, das forças (dinâmicas, poderíamos dizer) naturais, de “partes do globo terrestre”, para sua própria linguagem. Isto é a renda, remetendo à origem rousseauísta da desigualdade entre os homens… Este trecho já me impressionava bastante. Agora, com o ecocídio do Rio Doce, me impressiona mais ainda!

Mas, na verdade, a passagem realmente interessante do Capital é aquela do Livro III em que ele afirma que o reino da “verdadeira liberdade só começa, de fato, quando o trabalho termina”. Afinal, o trabalho é “determinado pela carência”, portanto “reino da necessidade”. Assim, “além dele começa o desenvolvimento das forças humanas, que vale como fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, entretanto, só pode desabrochar tendo o reino da necessidade como base”.

O que é interessante aqui é que o trabalho já não é mais a fonte de uma liberdade humana. Nem mesmo o trabalho não-alienado. A atividade humana livre está além do trabalho, mas ainda assim se constitui sobre uma base de trabalho e, portanto, de necessidade. A relação entre o natural e o social, o artifício, o construído, é muito mais tensa nesta passagem do que em qualquer outra. Afinal, o que determina os ganhos de liberdade é a redução da jornada de trabalho, algo que ele diz claramente.

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(Leia-se a partir desse tema da liberdade o célebre texto de Keynes sobre as possibilidades econômicas de nossos netos, publicado em 1930: aparece novamente o mesmo tema do trabalhar menos, mas justamente essa redução do trabalho poderia implicar uma liberdade que tornaria inviável a socialidade com a qual nos acostumamos.)

Portanto, aquilo que aparece a Marx como verdadeira liberdade está em relação tensa e invertida com o processo que parece estar mais ligado à liberdade nos autores que vimos anteriormente. O processo pelo qual se “expulsa a natureza” não liberta, ainda que a liberdade se assente sobre ele. O que se faz em relação à natureza nesse reino da verdadeira liberdade?

E mais: se, como previu Keynes (talvez se esquecendo da infinita universalidade e particularização dos desejos artificiais descritos por Hegel), temos produtividade suficiente para manter em níveis mais, digamos, seguros a atividade econômica que “expulsa a natureza”, então qual é o imperativo que faz com que queiramos expandi-la além de todos os limites?

Temos aí, certamente, mais um fenômeno de sobredeterminação, de valores, linguagem, trabalho e técnica. Mas é justamente isso que nos traz ao século XX, quando nuvens carregadas começam a se formar sobre a noção dessa atividade humana que nos torna “mestres e possessores” da natureza, “libertados dos constrangimentos naturais” pelo trabalho e assim por diante. Quando a ênfase passa à análise do outro lado, a escravidão, o colonialismo, o imperialismo, as guerras, a desumanização. É o século de Oswald Spengler, Hannah Arendt, Adorno e Horkheimer, Lewis Mumford.

Continua na Parte 4.

Leia também a Parte 5.

Leia também a Parte 6.

NOTAS

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6.Die Natur hat gewollt: daß der Mensch alles, was über die mechanische Anordnung seines thierischen Daseins geht, gänzlich aus sich selbst herausbringe und keiner anderen Glückseligkeit oder Vollkommenheit theilhaftig werde, als die er sich selbst frei von Instinct, durch eigene Vernunft, verschafft hat. Die Natur thut nämlich nichts überflüssig und ist im Gebrauche der Mittel zu ihren Zwecken nicht verschwenderisch.

7.Este ponto do discurso de Marx mereceria uma atenção maior. Sou da opinião de que todo O Capital pode ser lido como uma teoria da socialização do corpo, através do conceito de trabalho (origem do valor-trabalho, portanto) como dispêndio de músculo e nervo. Onde há valor, há socialização (simbolização, antes de mais nada) do corpo.

8.Denken wir uns nun die Wasserfälle, mit den Boden, zu dem sie gehören, in der Hand von Subjekten, die als Inhaber dieser Teile des Erdballs gelten’ als Grundeigentümer, so schließen sie die Anlage des Kapitals am Wasserfall und seine Benutzung durch das Kapital aus. Sie können die Benutzung erlauben oder versagen. Aber das Kapital aus sich kann den Wasserfall nicht schaffen. Der Surplusprofit, der aus dieser Benutzung des Wasserfalls entspringt, entspringt daher nicht aus dem Kapital, sondern aus der Anwendung einer monopolisierbaren und monopolisierten Naturkraft durch das Kapital. Unter diesen Umständen verwandelt sich der Surplusprofit in Grundrente, d.h. er fällt dem Eigentümer des Wasserfalls zu.

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Faits divers à brasileira

fait divers

I

Saiu na semana passada a notícia de que morreu o prefeito de um determinado município de Minas Gerais. Seu avião caiu enquanto ele sobrevoava um acampamento do MST, que ocupava uma fazenda de sua propriedade.

Os acampados dizem que esse e um outro avião davam rasantes sobre os barracos para assustar as famílias. Também segundo os sem-terra, coquetéis molotov eram jogados dos aviões. Um bombardeio, em suma.

O advogado do prefeito morto disse à imprensa que tinha apenas pedido que o falecido mandatário fotografasse a área invadida, para poder entrar com um pedido de reintegração de posse.

Seja um bombardeio, seja um reconhecimento aéreo, o motivo para o próprio prefeito estar lá, e não um fotógrafo contratado – ou capangas, seria o caso de dizer, em se tratando de um bombardeio – é coisa que não se explica racionalmente. Seria preciso recorrer a uma explicação afetiva: o gozo do sadismo, talvez.

Não se sabia, da última vez que li a notícia, se o avião foi abatido ou caiu sozinho. Já o outro piloto, que não nasceu ontem, se mandou e não se falou mais nele. Pelo menos na imprensa.

II

Em 30 de abril de 1981, uma bomba explodiu no colo do sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, dentro de um automóvel de marca Puma, no estacionamento do Riocentro, que naquela época ficava longe pra burro de tudo.

Dentro do centro de convenções, um espetáculo que reunia 18 mil pessoas comemorava o Dia do Trabalho. No horário da explosão, Elba Ramalho estava no palco.

A bomba tinha sido preparada para explodir no meio do show, matando sabe-se lá quantos espectadores. O objetivo dos conspiradores, como tantas outras vezes na história, era colocar a culpa em movimentos contrários à ditadura (ou, simplesmente, comunistas). Com isso, achavam que podiam barrar a redemocratização.

Não deu certo e o único cadáver nessa aventura acabou sendo o de um dos criminosos. Só em 2014 a Justiça aceitou a denúncia contra os demais militares envolvidos. Até então, o Judiciário considerava que esse crime entrava no âmbito da lei de anistia, de 1979.

III

O artista plástico Cildo Meirelles relata, em documentário sobre sua obra, a história do seu pai, que foi afastado do Serviço de Proteção ao Índio depois de fazer uma denúncia grave: na região conhecida como Bico do Papagaio, no norte do que hoje é Tocantins, fazendeiros massacravam índios lançando mão de algo que pode perfeitamente ser considerado guerra biológica.

Roupas contaminadas com o vírus da gripe eram atiradas de aviões sobre aldeias. Os índios, ainda não contactados pelo “homem branco”, não tinham anticorpos contra a gripe, essa doença de origem europeia.

O raciocínio lembra de maneira perturbadora o do prefeito mineiro morto na semana passada. Mas naquela ocasião, até onde sei, não caiu nenhuma aeronave. Com isso, morreram algo como 40 mil índios. Dos sobreviventes, diz Cildo, muitos tiveram um colapso mental diante do extermínio de toda a sua aldeia.

O pai do artista conseguiu levar o caso à Justiça. Mas só: o corrompido Serviço de Proteção ao Índio tinha mais interesse em proteger os criminosos e relegou seu incômodo funcionário a funções burocráticas. Algo que não lhe permitisse atrapalhar.

IV

Em 1968, antes mesmo do AI-5, o brigadeiro João Paulo Burnier arquitetou um plano mirabolante para tornar o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) uma organização terrorista no sentido mais literal possível. A idéia de Burnier era usar pára-quedistas para explodir diversas bombas no Rio de Janeiro, a mais destruidora delas Gasômetro de São Cristóvão, às 18h, matando centenas de milhares de pessoas, de uma vez só.

O objetivo – adivinhe! – era acusar as oposições à ditadura, comunistas em particular, claro, e produzir um furor nacionalista sanguinolento como o que gangrenou a Indonésia poucos anos antes.

O plano só não foi adiante porque o pára-quedista Sérgio Macaco se recusou a cumprir a missão e, ainda por cima, entregou tudo à imprensa: o plano foi publicado no hoje extinto jornal Correio da Manhã e, em conseqüência, abortado.

O que resultou dessa aventura genocida? Uma sindicância militar: Burnier, nosso aspirante frustrado a Bin Laden, foi inocentado. Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, que salvou a vida de uma multidão de cariocas, foi expulso da corporação.

V

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Em 1987, uma matéria da revista Veja – que, os mais jovens talvez não acreditem, naquela época era considerada uma fonte digna de informação – dá conta de que um capitão do exército de nome Jair planejava explodir algumas bombas, uma delas numa adutora do Guandu, que abastece o Rio de Janeiro.

O jovem e irresponsável Jair, prossegue a reportagem, pretendia abalar a confiança no ministro do Exército indicado por Sarney. Tudo por causa de disputas em torno do soldo de oficiais. Um croqui da bomba chegou a ser desenhado pelo capitão e publicado pela revista.

Mesmo assim, com evidências feitas pelo próprio punho do conspirador, o episódio de terrorismo planejado não impediu o militar de encetar uma notória carreira política, arrastando consigo boa parte de sua família.

Como sabemos, o tal de Jair não amadureceu muito de lá para cá.

VI

Em 2009, foi premiado no festival de Gramado (e em muitos outros) o filme Corumbiara, de Vincent Carelli. O filme conta a história do “outro” massacre de Corumbiara. Sobre o massacre de sem-terra na mesma região de Rondônia, ocorrido em 1995 e mais conhecido, o jornalista João Peres acaba de lançar um livro.

O massacre do filme de Carelli ocorreu dez anos antes do caso do livro de Peres. Um completa 20 anos, o outro completa 30. Pelo visto, os massacres no Brasil são tantos que os nomes já começam a se esgotar.

Em 1985, uma aldeia inteira de índios de etnia desconhecida foi varrida do mapa por fazendeiros locais, que ali preferiam ver bois a pessoas. Vinte anos depois, os indigenistas conseguem voltar à área e encontram vestígios do crime. Jagunços e policiais tentam bloquear o trabalho – defendendo criminosos, mais uma vez. A população tem medo de falar.

Com a passagem do tempo, é impossível saber quantas pessoas foram assassinadas em nome do latifúndio.

E cito este caso apenas porque ele é pontual: seria exaustivo e não acrescentaria nada ao argumento listar os abusos cometidos quotidianamente Brasil afora contra populações autóctones.

VII

A semana passada também conteve uma, digamos assim, efeméride. Completaram-se dois anos desde que policiais da UPP da Rocinha, no Rio de Janeiro (mais de 20 policiais) seqüestraram, torturaram e assassinaram o auxiliar de pedreiro Amarildo Dias de Souza. O cadáver desapareceu e provavelmente nunca será encontrado.

Acho que quem leu até aqui se lembra bem da fórmula “Cadê o Amarildo”, que marcou a esperança de que esse tipo de crueldade, sadismo e barbaridade oficial, em nome da “boa sociedade”, fosse erradicado e superado no Brasil. Esperança frustrada, mais uma vez.

Mas esse é apenas o caso mais emblemático. No começo deste ano, policiais militares da Bahia mataram 12 jovens, a grande maioria sem passagem na polícia. Foi a chamada “chacina do Cabula”. A primeira reação do governador, o petista Rui Costa, foi comparar a ação da polícia a um gol.

Só a mobilização da população local levou à mudança da narrativa.

Os casos semelhantes são muitos e não vou me alongar.

* * *

PS: Na verdade, vou me alongar, sim. Na primeira versão deste texto, onde deveria estar “chacina do Cabula”, escrevi por descuido “chacina da Chatuba”. Mas não seja por isso: em 2012, houve uma chacina na Chatuba, em Mesquita, Baixada Fluminense. Seis jovens mortos por traficantes.

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Oliver Sacks de 5 a 7

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Terminei de ler Oliver Sacks sobre a descoberta da morte batendo à porta e me pus imediatamente a pensar em Agnès Varda. Mais especificamente, um de seus primeiros filmes, Cléo de 5 à 7, de 1962, em que acompanhamos durante duas horas (das cinco às sete, justamente) uma jovem cantora que espera o resultado de um exame; ela tem certeza de que ele virá com a notícia do câncer incurável.

Oliver Sacks é um cientista de 81 anos, com um passado cheio de realizações. Mesmo assim, seu relato altivo e elegante me remeteu a Varda e Cléo. É que ambos tocam no mesmo ponto; um ponto que nos atinge a todos, constantemente, mesmo quando não estamos, nem acreditamos estar para morrer. O filme pode servir para iluminar o que há de mais intenso no breve artigo de Sacks. Graças às sequências filmadas décadas atrás, o texto publicado semana passada ganha uma dimensão ainda mais ampla e uma beleza ainda mais vívida.

Na ficção de Varda como na confidência de Sacks, temos a ocasião de vislumbrar uma nesga da imensidão inerente à vida, tanto maior quanto mais temos a experiência e, claro, a ciência da finitude individual. E aqui devo confessar que esse tema andava mesmo rondando a minha cabeça, tendo revisto há poucos dias o filme de Varda. Posso dizer que, a rigor, estou me aproveitando da metástase de Oliver Sacks, o que à primeira vista pareceria uma atitude vil, mas lembre-se que um dos componentes dessa imensidão, aliás dessa tendência ao infinito, é a possibilidade de fazer na vida coisas aproveitarão a outrem.

Sacks cita Hume sobre a proximidade da morte e a vontade de viver: nunca tanta disposição física, tanta curiosidade para os estudos quanto agora, bem pertinho do fim. Uma estranha liberdade, como se a certeza eliminasse a angústia do outro mundo. Junto com ela, Sacks fala de uma estranha capacidade para enxergar a vida passada como uma totalidade, vê-la como nunca foi vista antes, do alto, coerente e completa. Surpreendente serenidade perante o inevitável, que advém quando ele deixa de ser uma especulação existencial e se torna uma data no calendário.

Agnes Varda

Varda não é cientista, não faz citações (não nesse sentido). Ela é artista, faz imagens. Aliás, outro traço que deveria separá-los, mas estranhamente os une, é que, embora ela seja mais velha que ele (tem 86 anos), quando fez o filme contava 34 primaveras. Como eu disse, é um tema universal e ininterrupto. Aos olhos do velho cientista ou da jovem artista, finitude e eternidade, finitude perante a eternidade, finitude ensejando eternidade. Talvez só mesmo diante da morte os finitos reconheçam que são eternos, e eternos só porque são finitos.

Voltando às imagens: sem precisar dizer nada abertamente, o que seria de uma cafonice atroz (tem um ou outro momento assim, a bem dizer), as seqüências do filme expõem com serenidade a dilatação dos sentidos que dão movimento à vida, no instante em que a doença parece sugerir que a vida se resume à unidade frágil do corpo. No táxi, vemos as ruas de Paris que se sucedem diante do pára-brisas (num tempo em que a faixa de pedestres era marcada por semi-esferas de metal que pareciam cascos de tartaruga), enquanto a motorista ouve rádio e as passageiras (a cantora e sua camareira) fazem silêncio.

Como as ruas, as notícias se sucedem. A guerra na Argélia. As declarações de um ministro. Dois ou três faits divers. O cenário perfeito para o enfado. Mas junto com a sucessão de prédios e pequenos engarrafamentos, acompanhando a voz monótona do radialista, segue a personagem, em quem não consigo deixar de ver uma conexão, embora difusa, com tudo que aparece e tudo que é dito. Nem que seja pelo enfado, por uma reação de defesa, um bloqueio. Sem que ela soubesse, tudo aquilo sempre a afetou, como afeta a todos nós.

É claro, são afecções muito diferentes daquelas que povoam o dia-a-dia de qualquer um. Ainda assim, são inextirpáveis delas, porque o que as produz é o dia-a-dia levado ao limite, ao extremo. Se uma briga de casal na mesa vizinha do bar sempre parece algo constrangedor e muitas vezes mesquinho, como parecerá a alguém em conflito com o destino do próprio corpo? E como será para essa jovem mulher com dinheiro, já retratada como consumista e vaidosa, atravessar a cotoveladas um bulevar apinhado de lojas, em que todos os demais se dedicam à atividade do eterno consumo de objetos fugazes – fugazes como a moda que os criou? Um bulevar que ela mesmo deve ter atravessado tantas vezes a passo lento, saboreando as cores, as luzes, os chamados quase convincentes dos vendedores?

A realidade da duração eclode a cada seqüência de Cléo, com seus intervalos rigidamente e cronologicamente marcados. Uma duração que é sempre indefinida, porque remete tanto a memórias e marcas quanto a perspectivas e aspirações, mas em todo caso sempre envolve a percepção, a ação, o desejo da cantora angustiada. Nas suas relações, nas suas escolhas, nos seus caprichos, ela está sempre além das próprias fronteiras porque as partes de sua vida e de seu ser aparecem, se iluminam, pelo contato com o que está fora dela; e é aí mesmo que essas parcelas de realidade aparecem e se iluminam também, junto com ela.

A tal ponto que ela pode chegar a esquecer o que a angustia: porque apaixonou-se por um chapéu, porque um compositor lhe apresentou uma canção adorável, porque uma amiga a levou para o cinema. A visita ao ateliê em que essa amiga trabalha como modelo para escultores, onde o professor corrige com certa impaciência um aluno que não soube representar a curva do quadril. Ela esquece, mas o espectador não. E é no alívio do breve esquecimento, da alegria que sabemos fugaz, que se produz a beleza da narrativa de Varda e, com ela, um sabor a mais na vida como um todo.

É também pelo concurso de estímulos externos que retorna a lembrança do medo, da angústia, do diagnóstico. O chapéu preto, que lhe “cai muito bem”, juízo pronunciado em voz grave. Uma piada do músico que a faz sufocar no próprio apartamento e descambar rua afora. Um galanteador que, inadvertidamente, menciona o início do período de Câncer. Em cada um desses episódios, o alcance da vitalidade de Cléo se contrai novamente, a finitude deixa de ser a janela para um infinito virtual. A duração esmorece e o tempo volta a ser cronológico, uma prisão de sucessões que sufoca a personagem mais do que a angustia.

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Se pudermos fazer do filme de Agnès Varda um pano de fundo para como Oliver Sacks se refere a seu próprio “5 a 7”, o estoicismo do cientista talvez apareça sob uma nova luz, eu diria até que mais intensa. Tem algo a mais do que o mero “cabe a mim agora escolher como viver os meses que me restam; devo viver da maneira mais rica, profunda e produtiva que puder”, que ele diz. Isolado do resto do texto e sem o pano de fundo desse vínculo estreito entre finitude e eternidade, entre duração e tempo, esse trecho seria quase um truísmo – e bastante sintomático da mentalidade contemporânea, com sua ênfase na produtividade. (Note-se que em sua enumeração ele não inclui “compensadora”, “agradável”, “satisfatória”, “alegre”…)

O que tem a mais está adiante: a sensação de estar vivo “intensamente”, que também pode ser traduzido como “intensivamente”, se pensarmos no caráter de contração da finitude e de expansão da virtualidade: é alguém que vê o prazo (cronológico) curto para esticar os braços rumo a um mundo que não tem motivo para limitar-se, e quer esticar seus braços como se fosse um polvo e suas cabeças como se fosse uma Hidra. Cada vez menos cronologia, cada vez mais duração…

Como a passageira do táxi em sua ambígua relação com o noticiário, Sacks também se posiciona, mas intencionalmente, sobre o mundo com seu noticiário e suas politicagens. Diz que não vai mais prestar atenção no que ocorre no Oriente Médio e nos argumentos sobre aquecimento global, não porque tenha tenha deixado de se importar, mas porque essas coisas pertencem a um futuro do qual ele não fará parte. Sacks decidiu manusear a topologia do seu mundo, escolhendo ele mesmo seu formato e seu alcance. Uma eventual questão sobre a viabilidade dessa decisão é estéril, porque o mero gesto de aceitar ou recusar dimensões do mundo é uma expressão de duração, dessa eternidade inerente à finitude.

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Quando Sacks, na esteira de Hume, fala em desprendimento (termo com o qual estou traduzindo insatisfatoriamente “detachment”), ele transmite a idéia de que está deixando um legado e que, quando encontra jovens inteligentes, sente que “o futuro está em boas mãos”. Ele expressa com uma clarividência notável a noção de que sua própria individualidade, sua subjetividade, se podemos dizer assim, está tanto ou mais fora dele (de seu corpo, quero dizer) quanto dentro; ele, enquanto sujeito de um mundo, enquanto alguém que vive – pensa, sente, ama, deseja –, na verdade não é um corpo no espaço, embora sempre atravesse esse espaço do corpo. E seu tempo, naturalmente. Mas se seu tempo terminará certamente, sua duração não necessariamente. Existirá ainda uma porção de subjetividade dele na subjetividade dos outros, nas mãos do porvir, da dita posteridade.

Da mesma maneira, quando ele diz sentir que as mortes dos outros, na sua geração que “está de saída”, são como a perda de uma parte dele mesmo, poderia com até mais razão dizer o oposto: a morte dos outros deixa subsistir desses outros apenas aquilo que eles gravaram e deixaram em nós, nos demais, no mundo. O que não passou pelo outro é o que some.

Ou seja, quando Sacks escreve que os mortos deixam buracos que não podem ser preenchidos, na verdade ele está expressando o oposto: os buracos são seus próprios preenchimentos. Eles têm positividade, subsistência, talvez até mesmo existência. São presenças na forma de marcas, reminiscências, influências, sempre a postos para serem revividas quando alguém as busca e recupera. Essa é a natureza da singularidade absoluta que Sacks expressa ao fim do texto: a singularidade de uma duração, de uma intensividade, de um bailado eterno com o virtual.

Para concluir, volto a Cléo em Paris. Mas antes, um último comentário sobre Sacks. Como é lindo lê-lo a dizer que teve, como escritor e leitor, um “intercourse” especial com o mundo. Termo muito bem escolhido, porque expressa tão maravilhosamente o que pode ser a comunicação como gesto autopoiético e relacional que é usado para se referir ao sexo. Sacks está dizendo que sua relação com o mundo – ou seja, com a vida – foi, para todos os efeitos, carnal. Uma relação de tesão pelo mundo, à qual o mundo responde com tesão. E quando as relações envolvem tesão, elas tendem a criar algo a mais do que os indivíduos que entram nelas. Sacks deixa isso bem claro ao falar de si próprio.

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Agora sim, tenho todos os elementos para concluir com o filme de Varda. O que se pode afirmar, com leveza e alegria, é que a personagem é muito maior, mais viva, mais bela, mais forte, infinitamente mais interessante, ao final de sua jornada do que no início. As duas horas representadas pela cineasta são sem dúvida o principal intervalo da existência de Cléo, o período que mais valeu a pena ou melhor, as penas de caminhar sobre esta Terra.

Em que pese uma escorregada no romantismo barato ao final do filme (uma pena, mesmo…), essa súbita expansão da vida de Cléo perante a morte é resumida na primeira cena, que me parece ser um dos inícios de filme mais brilhantes da história do cinema. Na sala da cartomante, com a câmera fixa acima das mãos das personagens, contemplamos como, em dois minutos, aquilo que parecia ser a consulta de uma menina tola e sonhadora, querendo saber seu futuro amoroso, se transforma no percurso épico de uma mulher angustiada e torturada. É uma reviravolta brutal, executada magistralmente por uma cineasta então ainda iniciante.

Cléo teve de encarar de frente um tempo que lhe parecia curto para aceder à duração. Precisou que fosse rompido seu contato com as coisas do mundo para que o mundo fizesse enfim sentido para ela, tanto em seus objetos quanto em suas relações. Diante dos olhos do espectador, uma pessoa é puxada para além do imediato, esse que é fonte de tantas frustrações, sobretudo à medida que o tempo vai se esvaindo sem avisar.

Oliver Sacks, naturalmente, nunca foi alguém do mero imediato ou do eterno consumo do mesmo. Mas é notável como uma situação semelhante à da personagem de Varda foi o que o incentivou a expressar para o mundo, na imprensa, esse encontro com sua própria duração, no bailado entre finitude e eternidade. Não é por acaso que o texto deixou tanta gente tocada.

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O Inconcebível

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“Colapso”. Nossas conversas do dia-a-dia, aquelas do bar, da calçada, do elevador, ganharam agora uma nova palavra, um novo clichê. Colapso, como quando as fundações de um prédio se rompem e ele cai, ou quando um sistema complexo se revela mal planejado e ele entra em parafuso. Ou quando a defesa de algum time bate cabeça e toma uma goleada.

Dizemos assim: daqui a pouco a água acaba em São Paulo e a cidade vai entrar em colapso. Às vezes avançamos no raciocínio, citando que a estiagem veio para ficar, por causa da mudança climática e do desmatamento – afinal, já faz anos que tem chovido paulatinamente menos. Então toda a economia do Sudeste vai entrar em colapso: sem chuvas e com tanto calor, as hidrelétricas não agüentam.

Ocasionalmente, tendo mencionado o clima, o pensamento continua avançando e dizemos: se não fizerem algo, o mundo todo é que vai entrar em colapso. E, de fato, é pequena a probabilidade de “fazerem” alguma coisa, uma vez que, vivendo de abstrações, a humanidade, essa que poderia fazer alguma coisa, passou as últimas décadas espoliando o planeta. No máximo, dá para contar com alguns arranjos perfeitamente dribláveis por quem tem imaginação – coisa que não falta aos empreendedores mundo afora.

Às Últimas Conseqüências

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Esse termo, “colapso”, merece um olhar mais atento. Escutando suas três sílabas, percebo que saímos pronunciando a palavra de modo um pouco leviano, como diria o senador Neves. Quantas vezes não afirmei por aí, para puxar papo com um vizinho ou o porteiro, que “o colapso” está ficando cada vez mais provável? Mas será que eu consigo imaginar o que essa expressão implica realmente? Será que sou capaz de representar na minha cabeça o que é o tal colapso? Acho que não. Continuar lendo

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A batalha perdida do pastor

A polêmica suscitada pela entrevista de Silas Malafaia a Marília Gabriela é uma daquelas oportunidades de ouro para levantarmos hipóteses igualmente polêmicas, com as quais tentamos chamar a atenção. No meu caso, não pretendo fazer uma análise detalhada das opiniões do pastor, como fez, por exemplo, o biólogo Eli Vieira. Meu escopo é mais abstrato e minha hipótese trata das diatribes de Malafaia no contexto de um fenômeno ainda vago, mas já repisado: “a volta da religiosidade”. O que quero sugerir é que a luta de Malafaia é uma luta vã, isto é, uma luta que só pode vir a acontecer porque sua premissa fundamental é uma admissão de derrota. Malafaia conduz uma briga perdida, provavelmente por querer.

Antes de mais nada, é preciso estabelecer um ponto, sem o qual estou só gastando meu tempo ao escrever e o seu ao ler. É preciso conceder ao pastor o benefício da dúvida e considerar, sem embargo de quaisquer evidências (contrárias ou favoráveis), que ele fala com seriedade e honestamente acredita tanto em seus métodos quanto em seus argumentos. Este postulado é indispensável, porque não foram poucos na história aqueles que adotaram posições extremadas, sobretudo perante a mídia, com o intuito exclusivo de criar para si próprios uma imagem socialmente relevante. Hoje, não são poucos a pensar que Malafaia se encontra nesse grupo. Mas, para efeito de argumento, suponho que não seja o caso, ainda que, como os mencionados, ele tenda a tratar argumentos, evidências e teses com uma leviandade espantosa.

À hipótese, então: parece-me que Malafaia luta (com sinceridade e galhardia, ainda que histriônicas) uma batalha perdida de partida. A grande questão é que ele se dirige a um público bastante particular e, diria eu, provavelmente numeroso, com proporção considerável entre seus fiéis. Não me parece que ele esteja se dirigindo a uma malta histérica e sanguinária de fundamentalistas religiosos, como levaria a crer seu tom de voz e a já referida leviandade. Para justificar sua condenação dos homossexuais, ao contrário, Malafaia busca justificativas na ciência: explicações comportamentais, dados genéticos, origens sociais e ambientais… Ele fala em cromossomos, em traumas, um vocabulário, cá entre nós, bem pouco teológico. (Volto à questão da teologia mais tarde.) E se ele faz isso, ora, é porque o público ao qual se dirige tem algum nível de exigência por explicações como essas, ou seja, faz questão de fundamentar suas opiniões e crenças em dados empíricos. De fato, pesquisas e mais pesquisas reiteram que, para a infelicidade de Silas e tantos outros, o público evangélico não é nem tão homogêneo, nem muito menos tão intolerante quanto costumam pintá-lo.

Troca de papéis

Observe que Malafaia não recorre à ciência simplesmente como citação. Contra Jean Wyllys, por exemplo, que é historiador por formação, o pastor tenta a carteirada do argumento de autoridade: “eu sou psicólogo”. Ele se coloca na discussão não como pastor, não como intérprete ou defensor das Escrituras, mas como psicólogo, ou seja, como autoridade científica! Sim, verdade, um psicólogo de formação não é necessariamente um cientista; pode muito bem, por exemplo, ser um profissional de RH ou trabalhar com marketing. Mas não é como Malafaia se apresenta: ele busca usar sua condição de bacharel em psicologia para se passar por cientista, ainda que isso, normalmente, exigisse publicações na área, entre outras coisas.

Mas a discussão, neste texto, não é sobre as qualificações acadêmicas do homem. O crucial, neste momento, é entender a dimensão dessa troca de papéis: Malafaia, por sua própria iniciativa, apresenta como credencial não a espiritualidade, mas a ciência. “A razão”, poderíamos dizer, se estivéssemos com pressa de fazer juízos. Mas não estamos com pressa. Por enquanto, tudo que quero expressar é que, ao se colocar como homem de ciência, ainda que pseudo-ciência, um indivíduo, pastor ou não, se submete de livre e espontânea vontade ao risco de refutação e à exigência de rigor metodológico. Isso é verdade mesmo para alguém que, paralelamente, ainda pode tentar a carteirada inversa, ou seja, reafirmar-se como autoridade religiosa, com uma posição inicial inflexível que coloca, desde o início, fora do alcance o tal rigor metodológico. Isso é extraordinário, porque é uma situação paradoxal, um beco sem saída em que ninguém o obrigou a entrar.

Esse é o elemento central da “batalha perdida” de que falei, mas ainda é preciso desenvolver. Lembremo-nos de que Silas Malafaia é pastor da Assembléia de Deus Vitória em Cristo, uma igreja herdeira dos avivamentos do século XIX, nos EUA e, por isso mesmo, uma religião de culto, ou seja, da experiência direta e individual do divino. Essas religiões, pentecostais e neo-pentecostais, recusam tanto quanto possível as exigências de discussão teológica, do estabelecimento de dogmáticas e da observância estrita de liturgias – elementos vigorosamente criticados nas religiões à época já estabelecidas. Nesse contexto, Malafaia é um líder espiritual, de fato e de direito, numa estrutura em que o direito decorre imediatamente do fato. Em outras palavras, ele tem seguidores, por isso é líder. Não há chancela de autoridade formal e hierarquizada, como no caso do catolicismo, por exemplo. Essa posição de líder espiritual, nem preciso dizer, é muito forte.

Sem embrago de toda essa força, Malafaia não consegue se bastar nessa posição. Ele precisa buscar combustível, munição e mantimentos fora da área espiritual. Eis um fato surpreendente. Se ele precisa fazer isso, é porque a autoridade da religião não basta mais para orientar o comportamento, nem mesmo a convicção, em certas áreas cruciais, como a sexualidade. Sem esquecer, é claro, que Malafaia, pelo histórico de sua religião, não pode recorrer àquelas formulações teológicas que renderam tantos embates, até guerras, entre protestantes e católicos, católicos e católicos, protestantes e protestantes. Como resultado, Malafaia, ao se entregar a incursões clamorosas no debate público, flutua entre inúmeros campos distintos, sem conseguir ancorar-se a nenhum deles: o pentecostal, o teológico-dogmático, o psicológico, o cromossômico… Se ainda fosse líder apenas espiritual, especificamente no estilo de John Newton ou Luigi Francescon, ele poderia deixar de lado o recurso à genética e fazer valer sua visão de mundo pela força da autoridade religiosa. Mas não é o que acontece, provavelmente porque já não são muitos os que estão dispostos a discriminar vizinhos só porque alguém poderoso diz que deve ser assim.

Por outro lado, também poderíamos perguntar que aspecto tem essa batalha perdida de Malafaia, quando a colocamos no contexto da anunciada volta do sentimento religioso. Aqui, para poder apresentar as tonalidades do problema, é preciso fazer um breve excurso. Quando falamos em retorno do sentimento religioso, geralmente não sabemos muito bem que sentimento religioso é esse que está voltando. Mas se colocamos isso em questão, a dúvida passa a ser relativa à idéia de que algo esteja mesmo voltando, isto é, que uma religiosidade do passado saiu de cena, mas agora retorna tal e qual. Afinal, se encararmos as manifestações religiosas de hoje, será que enxergamos um retrato fiel da religiosidade de meio século atrás – ou um século inteiro, ou dois…? E não basta responder que não, porque seria igualmente possível entender o retorno do religioso como o renascimento do espírito místico inerente ao humano, ou seja, sua atração pelo transcendente.

Ora, será que esse espírito esteve mesmo tão adormecido? É claro que não. A sede, o sonho de transcendência, pode manifestar-se de uma infinidade de maneiras. Nas catedrais góticas, nas construções harmônicas de Bach, nos sacrifícios de São Francisco de Assis, na voz dos pastores que entoam spirituals; mas também na conquista do espaço infinito, no desejo de dominar o mundo, no patriotismo cego, na fé inabalável de que são objeto o progresso, a propriedade, o mercado, a revolução. E o misticismo pode tanto ser monacal quanto pentecostal quanto psicodélico quanto druídico quanto futebolístico…

Ciência e fé

De que se trata, então? É aqui que retorna o tema Malafaia… Falei de um homem disposto a subordinar sua autoridade religiosa à chancela da ciência, ou de algo que se pareça com ciência, e reafirmei que isso continua sendo verdade ainda que ele esteja disposto a virar de cabeça para baixo o que dizem os estudos dessa mesma ciência. Não se trata de um homem qualquer, mas um homem que poderia perfeitamente abrir mão dessa chancela e cujo programa televisivo, ainda por cima, é acompanhado por centenas de milhares de telespectadores – de fiéis, por sinal. Estamos, então, diante de um caso de preceitos religiosos que buscam, porque precisam, se justificar na ciência… E pensar que, por séculos e séculos, o mecanismo das relações entre ciência e religião se orientou por uma lógica rigorosamente inversa! Mesmo com todas as suas revoluções, suas acusações de heresia, da Idade Média até fins do século XVIII o que impulsionou a ciência foi a submissão a Deus, declarada e irrenunciável!

O cientista trabalhava para explicitar a glória da Criação, para narrar o poema épico da obra de Deus. Mesmo Galileu, que teve de se retratar para não sofrer a mesma sorte trágica de Giordano Bruno, trabalhava para demonstrar que “Deus escreveu o livro do mundo em linguagem matemática”… Cientistas como ele só estavam dispostos a enfrentar o caos aparente para se aproximar de Deus, cuja perfeição transmitia segurança quanto à eficácia dos cálculos. Leibniz, por exemplo, desenvolveu o cálculo infinitesimal não para romper com religião alguma, mas para colocar à prova suas idéias sobre a Graça divina, como resposta ao inextinguível problema da teodicéia e do mal. Mesmo a física newtoniana se propunha a ser um tributo a Deus.

Tudo isso, todo esse esforço de séculos, foi feito sob o signo da submissão a Deus e ao tal sentimento religioso. Afinal, entender as leis da natureza era uma forma de aproximar-se da Vontade d’Ele. Ou seja, se o sábio, como o vulgar, mas em plena consciência, submete-se aos mecanismos da física, por exemplo, é porque ele se submete aos comandos da Divina Providência. Melhor entendê-la é melhor louvá-la. Mas o ponto é que a autoridade espiritual vinha sempre em primeiro lugar, fosse como dogma, fosse como teologia e metafísica. E a ciência que se orientasse por esse gigantesco farol sobre as consciências. Porque a verdade era uma verdade revelada, era ela que fundamentava todas as verdades particulares. Poucos eram os que se dispunham a questionar essa construção tão sólida.

É claro que houve gente disposta a questionar a submissão do método científico ao dogma religioso. Desde o espinosismo proscrito – que, ainda assim, se colocava como um caminho para a beatitude – até Voltaire, houve também o conflito aberto da religião com a ciência. Darwin está aí que não me deixa mentir: até hoje, para muitos líderes religiosos, rejeitar a teoria da evolução é questão de honra, Malafaia entre eles. Um episódio famoso a esse respeito envolveu o matemático Laplace e o imperador Napoleão. Laplace, inspirado em Newton, mas também de seus rivais teóricos Descartes e Leibniz, escreveu um “Sistema do Mundo” em que tudo, até mesmo a lei da gravitação universal, consistia em forças naturais. (Para Newton, ironicamente, a gravidade era uma prova da existência de Deus, ou, ao menos, do sobrenatural.) Pois Napoleão folheou o texto e perguntou ao sábio: “Qual é o papel de Deus?” E o cientista respondeu: “Majestade, não precisei dessa hipótese”. A essa altura, a autoridade espiritual e a religiosa estavam em campos opostos ou, no máximo, perfeitamente independentes, como era o caso das críticas de Kant à metafísica.

O retorno

Mas uma oposição não é uma submissão. Fala-se em retorno do sentimento religioso como uma reversão no processo de “desencantamento do mundo” de que falava Weber. O mundo foi se tornando mais e mais secular, num processo que teve seu ápice na segunda metade do último século. As igrejas começaram a se esvaziar e pareceu que todas as respostas seriam buscadas na pesquisa empírica, ou melhor, nas soluções de mercado, ou melhor, nas lutas políticas… Mas basta reler a frase anterior para perceber que essas respostas são animadas, ainda, pela mesma busca do transcendente que sempre alimentou o sentimento religioso. Seja o que for que foi embora, não foi um sentimento. Terá sido, antes, uma realidade física e palpável, uma forma de autoridade, portanto uma manifestação política, que dava solidez a esse sentimento. Ainda que se possa dizer que essa solidez, de tão sólida, era sufocante. Era a autoridade espiritual que Malafaia – mas não só ele; também o papa, por exemplo – não pode mais encarnar sem problemas. Uma autoridade que sustenta, entre tantas outras coisas, o impulso científico. Ou então, que se opõe a esse impulso, quando ele resolve escapar do recipiente que lhe é destinado. Mas que jamais se submete a ele.

Ou seja, a posição subalterna em que Malafaia a coloca é estranha à religião em qualquer campo, sobretudo no comportamento, esse de que se tratou na entrevista a Marília Gabriela. A religião, e isso é particularmente verdadeiro em relação aos monoteísmos como o de Malafaia, só se sente verdadeiramente à vontade e só pode funcionar a contento quando tem condições de afirmar, sem desmentidos à altura: eu sou a fonte de todas as verdades fundamentais, seja em cosmogonia, em moral, em escatologia, até em política. Por sinal, essa condição se reflete na frase que João atribui a Jesus: “eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Há, na religião, um componente muito mais amplo do que a fé, entendida meramente como a convicção de um fiel de que sua salvação ou seu consolo passam por aquela doutrina. É difícil imaginar uma religião que não seja normativa. Poderia ir longe, de verdade, uma religião que afirmasse, em vez da sentença acima: “trago conforto aos que sofrem, contanto que não precise desdizer os cientistas, nem as cosmogonias, morais, escatologias, políticas, dogmáticas e liturgias de religiões concorrentes”? Que potência decisória teria essa religião, na hora em que um fiel precisasse aplicar a doutrina em sua vida quotidiana? Algo assim é impensável, pelo menos no quadro dos nossos monoteísmos do “Deus ciumento”, ainda que esse mesmo Deus seja considerado também amoroso e misericordioso. Afinal, a misericórdia é o atributo de quem está em posição superior, jamais subalterna.

Quando leio sobre a participação de religiosos nos debates em torno de casamento homoafetivo, aborto, eutanásia e assim por diante, sempre me vem à mente o célebre trecho de Mateus com o “a César o que é de César”. Belo preceito do cristianismo, que faz grande falta a outras religiões semelhantes. Mas muito difícil de cumprir. Tudo vai bem quando César e Deus estão, ou parecem estar, lado a lado, seja num Estado teocrático, seja a partir da crença, absolutamente majoritária até o século XVII, de que o poder do soberano emana diretamente de Deus. Em outras situações, o cumprimento é bem mais difícil, porque exige do fiel que tome atitudes que vão frontalmente de encontro a suas convicções. Ou, pelo menos, que ele aceite, e até apóie, legislação que contradiga suas crenças. Haja autonomia de pensamento para agir dessa forma! Mesmo o convívio pacífico entre religiões me parece menos a regra e mais a exceção. Depende de um certo equilíbrio de forças entre grupos de fiéis e a comunidade como um todo, algo que nem sempre se verifica…

Ouço Malafaia argumentar que a homossexualidade não é um fenômeno determinado geneticamente, mas comportamental. O determinismo do pastor é primitivo e terrivelmente perigoso, mas não está no escopo da minha hipótese criticá-lo. O biólogo citado no início já o fez. A questão, aqui, é outra. Estamos diante de um líder religioso que, ao menos implicitamente, afirma: “se ficar demonstrado que a homossexualidade é um fenômeno genético, ainda que parcialmente, então eu aceito que ela não é condenada por Deus, já que o código genético é parte da Criação”. Provavelmente isso não é verdade, quero dizer, provavelmente o pastor encontraria um jeito de manter sua condenação ainda que o determinismo genético, tal e qual, ficasse mesmo provado. Ele encontraria um jeito de dizer que a prova não é válida ou que, na verdade, era outra coisa que ele queria dizer. A rigor, ele provavelmente está mais do que ciente de que nenhum cientista sério jamais vai afirmar categoricamente que “a homossexualidade é um fenômeno determinado geneticamente”, já que um determinismo tão forte não pode existir em sistemas complexos como o psicossocial.

Mas isso não é o mais importante, e sim que tal postura, sincera ou não (e estou assumindo que ela é sincera, não vamos nos esquecer), é um atestado de que a batalha de Malafaia é, como eu disse, uma batalha perdida. Porque uma religião que aceita assumir essa posição subalterna não tem como cumprir seu papel. É inverossímil que uma religião afirme: “cremos que Deus determinou tal e tal, mas talvez não seja assim, pode ser que a ciência ou a experiência demonstrem o oposto”. Malafaia se faz o porta-voz de um grupo que, mesmo mantendo todo o misticismo que as religiões tão belamente trabalham, está disposto a subjugar seus dogmas fundamentais a evidências desencavadas pelo trabalho científico. Isso não é pouca coisa. Em outros casos, pode-se chegar a alguma forma de acomodação. Por exemplo, quanto à origem do universo, com seus quinze bilhões de anos, em vez de seis mil. Pode-se dizer que o tempo, como tal, não existe para o Ser Supremo; pode-se dizer que o texto sagrado é metafórico; pode-se mesmo dizer que o tempo tem outro ritmo no mundo espiritual. Ou então, o conflito: “isso é só uma teoria”, que é o caminho escolhido por muitos religiosos radicais com relação à evolução. O que não funciona é jogar fora a parte cosmogônica da religião e ficar só com a parte moral. Mesmo esta parte, provavelmente a mais útil, precisa de um fundamento ontológico, ou melhor, onto-teológico, a não ser no campo de uma ética puramente imanente, algo difícil de imaginar para uma religião como os nossos monoteísmos.

Contra-exemplos

Agora que já apresentei a hipótese, surgiu uma dúvida pessoal. Como seria uma postura religiosa forte neste caso? É evidente que a mais “forte”, no sentido de inabalável, seria aquela que afirmasse: “Esses estudos todos, frutos da vã razão humana, não valem de nada. Ai de ti, mortal, se te dobrares ao pecado, à tentação de um confronto racional com a Palavra!” No passado, essa postura fortíssima bastaria para satisfazer à grande maioria dos ouvintes. Mas parece não ser mais o caso, não majoritariamente. Cada vez menos os fiéis aceitam esse tipo de resposta. Eles não esperam mais da religião uma resposta inflexível, definitiva e autoritária, ao contrário do que pode parecer para quem se mantém à distância, amargamente, balançando a cabeça diante do que lhe parece ser o retorno dos bárbaros fundamentalistas. Os fatos parecem demonstrar que os bárbaros fundamentalistas, em que pese todo o barulho que são capazes de fazer, são menos comuns na religião do que no futebol, na política e, se bobear, até mesmo na ciência.

Penso em outra postura, também forte, mas não no sentido da potência impositiva, e sim no sentido do pleno gozo do poder normativo que uma religião pode ter e do qual, a bem da verdade, não pode abdicar. Lutero, por exemplo, quando jovem monge, tinha dificuldade em entender por que sua carne era tão propensa ao pecado. Ele cobiçava, invejava monges mais santos que ele, desejava mulheres, tinha uma queda pela boa alimentação que não condizia com o estoicismo monástico. Tudo isso apesar de suas orações e boas obras. Então ele desenvolveu a célebre doutrina do “sola fides, sola gratia…” O pecado estava nele para que a graça divina pudesse se manifestar de maneira mais gloriosa. Alguém que quisesse manter a condenação ao amor homoafetivo sem abdicar de sua espiritualidade monoteísta poderia seguir essa linha. Aceitaria que esse amor possa estar inscrito, ainda que parcialmente, nos genes e reproduzido nas estruturas psíquicas que as neurociências seriam capazes de ler no cérebro. Mas afirmaria, na linha de Lutero, mas também com uma pitada de Leibniz: Deus inscreveu no código mais profundo da vida um comportamento que ele mesmo condena (o mal, portanto), para que sua graça possa se manifestar, através da fé e das orações, naturalmente, naquele corpo. Uma versão católica desse argumento acrescentaria mortificações e a purificação da carne, exercícios espirituais, aconselhamento com sacerdotes e assim por diante. Mas a essência provavelmente não seria muito diversa.

Em qualquer de suas vertentes, esta é mais uma forma de solucionar o problema da teodicéia, desta vez com o recurso à genética. É, também, uma forma de acondicionar as evidências científicas ao dogma. É, ainda, uma maneira de tentar resgatar o “a César o que é de César”. É, em todo caso, uma postura muito diferente da que vemos em Malafaia. Uma espécie de meio-termo é o estranhíssimo fenômeno da “cura da homossexualidade” (ou do homossexualismo, como dizem), proposta por auto-intitulados psicólogos. É mais uma forma de se colocar no meio do caminho entre a força normativa da religião e a potência empírica das evidências científicas. Afinal, não fica claro até que ponto a cura em questão é espiritual ou propriamente psicossomática; o fato é que, se esses psicólogos se dispõem a considerar a homossexualidade como patologia, não estão falando nela como pecado, mesmo que, paralelamente, usem esse termo dentro dos templos. Ou seja, estão também aceitando que considerações racionais, científicas, ainda que integralmente equivocadas, sejam postas acima das escrituras. Mas, ora, como já vimos, pelo próprio conteúdo do conceito de sagrado ou de divino, as Escrituras, do ponto de vista do fiel, deveriam estar acima de qualquer outro argumento, de qualquer evidência. É, também, portanto, uma batalha perdida.

Como fica, então, o retorno do sentimento religioso? Continuo não sabendo. Para mim, o sentimento religioso jamais deixou de existir, enquanto entendemos que as religiões se nutrem de um sentimento que consiste em desejar ardentemente a transcendência, o infinito, o eterno, o imutável, o perfeito, o absoluto. O divino, em suma. Por outro lado, se entendemos que o que está voltando não é exatamente um sentimento, mas um fato de ordem política, um poder normativo atribuído às religiões, então me parece que posturas como a de Malafaia, dos psicólogos curadores de homossexuais e até, muitas vezes, do Vaticano – como quando, por exemplo, padres tentam argumentar que estupros não provocam gravidez, ou quando encíclicas papais insistem na interdependência estreita entre fé e razão – desmentem essa noção. Algo fundamental para o funcionamento de um tal poder parece ter se quebrado, dentro mesmo da mente dos fiéis, no comportamento daqueles que crêem. Eu diria que é a disposição para remover do caminho do dogma tudo que tenha qualquer outra fonte de legitimação. É esse campo minado que tentam atravessar os Malafaia da vida, com suas batalhas inviáveis.

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O pedestal

Este é alguém que fabricou para si um pedestal. É alguém que, na gramática usual, não pode grande coisa. É o estereótipo do impotente. No dia-a-dia, precisa fabricar ou garimpar tudo que usa, mas seus poderes terminam aí. E um pedestal não é algo que se use, simplesmente. Continuar lendo

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Se formos sociedade civil

Eu deveria dar mais um tempo antes de sentar para escrever isso, mas por instigação do Catatau e da Nicole no texto anterior, vamos aos comentários sobre a Marcha da Liberdade do sábado último. Na verdade, desconfio de que o assunto vai deslizar para a ocupação das cidades espanholas por sua juventude desiludida e indignada – é que não tem como comparar uma caminhada de poucas horas com as semanas de manifestações –, mas vou fazer algum esforço para evitar a escorregadela…

A primeira coisa a ser dita é que a importância de uma ocasião como essa passeata está muitos graus abaixo do perfil revolucionário que muitos querem ver nela, inclusive seus detratores, que gostam de debochar justamente do fato de que não haverá revolução alguma, como se esse fosse o âmago da questão. Em outra escala, o mesmo valeria para o caso espanhol, que já andam chamando de “revolução espanhola”, quando na verdade o que parece é que as coisas não precisam ser propriamente revolvidas, mas redescobertas. Volto a isso depois. Por enquanto, o fundamental é entender que “abaixo” não foi dito em tom pejorativo, mas puramente geométrico: o que está sendo questionado é o primeiro degrau da escada. Numa imagem barata, mas expressiva, podemos dizer que o modo de assentar esse primeiro degrau vai determinar a direção em que a escada pronta subirá. Continuar lendo

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Tomar a potência, desinflar o poder

Começo a escrever na noite de sexta-feira anterior à Marcha da Liberdade marcada para a avenida Paulista, 28 de maio – dia que no futuro talvez seja nome de rua. Provavelmente só vou terminar de manhã, logo antes de partir para a referida marcha. Aliás, bem disse alguém por aí: não se deveria dizer “marcha”, mas alguma outra coisa, porque a liberdade não marcha, ela dança. (Voltaremos a isso.) Sábias palavras. Continuar lendo

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É uma crônica, mas pode chamar de Brasil

A história do texto que segue copiado aí abaixo é, vamos dizer assim, tortuosa. Na semana passada, alguém achou na internet o conteúdo da nota de rodapé, essa da imagem, e o espalhou por aí. Achei o caso bem curioso e tratei de procurar a origem.

Resulta que era o livro de crônicas Verdades Indiscretas, de Antônio Torres. O dito Torres, autor mineiro e eventualmente diplomata, era um rival de João do Rio na imprensa carioca do início do último século. Eis uma biografia do referido. Continuar lendo

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FHC entre o povão e a contradição

Como é pobre a celeuma em torno do artigo de Fernando Henrique! Debater se o homem propõe ou não que o partido dele “abandone o povão” e se concentre na classe média, como se fosse algum absurdo haver partidos de classe média… Um texto inteiro poderia ser dedicado à preferência do brasileiro pela polêmica mesquinha, até mesmo na política, onde as discussões deveriam ser mais penetrantes e corajosas diante da aporia inescapável (sim, a política, enquanto arte, é o bailado numa pista de aporias). A algazarra em torno do texto fernandino é um claro exemplo dessa mediocridade escolhida. Valeria bem mais a pena, por ora, destrinchar o artigo, porque ele expõe o impasse em que se enreda, com muito gosto, o partido de que o autor é presidente de honra. Façamo-lo.

Nosso ex-presidente entende seu texto como um raio-x das insuficiências da oposição, especificamente o PSDB, e uma proposta de reorientação. Entre circunlóquios, lugares-comuns e interpretações bem livres da história recente do país, FHC acaba dizendo, um pouco sem querer, algumas coisas bastante verdadeiras. Se fossem ditas por querer, seriam talvez dolorosas demais para os tucanos e seus correligionários, porque revelam em filigrana que as diretrizes peremptórias que FHC delineia para seu partido, ora, são simplesmente o que o partido, tal como se organiza hoje, não poderá nunca realizar. Em outras palavras, Fernando Henrique atirou no que viu e acertou no que não viu. Só que, como estamos falando de política, o “ver” significa “querer ver”­ – é uma maneira de recortar a realidade de um universo político, tornando-a um discurso coerente, mas coerente segundo determinados pressupostos – e o “não ver” significa “recusar terminantemente, a ponto de não poder ver”. Continuar lendo

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