barbárie, Brasil, capitalismo, centro, cidade, comunicação, crônica, direita, domingo, Ensaio, escândalo, ironia, modernidade, opinião, parque, passeio, Politica, praça, prosa, reflexão, São Paulo, trânsito

O povo que pedala encaixotado

A palavra “bicicleta” já vinha pipocando há algum tempo nos jornais, blogues e o escambau (“o debate”, diria um otimista, mas esse não é o meu caso). Como proposta urbana, utopia, desiderata ou discurso para as massas, dependendo de quem a pronunciasse. Agora, o ensandecido atropelador do Golf preto escancarou até onde a questão da bicicleta – a palavra e o objeto – pode chegar.

Como ideia, agora não é mais segredo para ninguém que a bicicleta encarna a imagem, isto é, o ideal de uma guinada na história urbana e econômica do Brasil. Como coisa física, ela se afigura um instrumento político, tanto pela afirmação de quem pedala impávido, contra toda a opressão – e repressão, naturalmente – de um ambiente explicitamente disposto a favorecer apenas e tão-somente o carro, quanto pelos conflitos que podem vir a manifestar esse caráter político, não raro com vítimas. (Só lembrando que o conflito é a manifestação por excelência do político.) Continuar lendo

Padrão
cidade, férias, frança, história, imagens, junho, opinião, paris, parque, passado, passeio, prosa, trem, verão, viagem

Lyon, a colina do corvo

Ao contrário dos turistas potenciais ao redor do mundo, a maioria dos franceses torce o nariz acintosamente para Paris, sua tão decantada capital. Noves fora, é a mesma atitude que tende a tomar quem passa longos anos entre a Porte d’Orléans e a Porte de Clignancourt, subindo e descendo pelas alamedas anti-barricadas. Com todo seu estilo (palavra preciosa) de edifícios haussmanianos e monumentos em bronze – na verdade uma desculpa tipicamente francesa para uma homogeneidade e um monocromatismo sufocantes –, o problema é que Paris enche, com o perdão do linguajar. Aliás, de vez em quando uma dessas pessoas que querem se mostrar viajadas e versadas nos segredos do “eldorádico” Velho Mundo (contradições à parte) lança mão do seguinte argumento: “na França? Paris é perda de tempo, boa mesmo é a região tal”, e cita alguma área do Sul. Seria um argumento quase impecável, não fosse, primeiro, o fato de que a vida não é feita apenas de férias, e segundo, a curiosa coincidência de essas pessoas aparecerem por aqui todos os anos, em busca de liquidações na galeria Lafayette, sem saber que a dita loja está presente em todas as cidades com alguma relevância no país. Continuar lendo

Padrão
abril, crônica, descoberta, deus, Filosofia, flores, folhas, frança, opinião, paris, parque, passado, passeio, praça, primavera, prosa, reflexão, religião, tempo, transcendência, vida

Um milagre basta

Abri mão de pensar num sentido para a vida graças à chuva de pétalas de cerejeira e folhas de chorão. É um fechamento tão tranquilo para o ciclo da beleza, que não pude evitar uma tranquilidade semelhante para o ciclo da existência. Simples assim. Antes que o mês de abril possa começar e terminar com seus míseros trinta dias, os galhos se enchem de flores, como se explodisse dentro deles uma matéria inquieta de cor e vida, depois as pétalas se desmancham com o vento e dão lugar às folhas. Mas estas últimas tampouco hão de durar mais do que seis meses, sete no máximo, antes de deixar novamente nus os galhos…

E assim por diante, como todos sabemos. E, como todos sabemos, é esse o mesmo círculo a que obedecem todos os viventes, desde o bilionésimo do bilionésimo ano do passado, desde que cadeias de matéria deram para se replicar. Coisas brotam, coisas secam, nas árvores, nos mares, nas savanas, como na minha cabeça brotam ideias, e são projetos, depois secam, e são desistência.

A florada de um cerejal nao nutre ambições de beleza e faz muito bem. Nada tem muito sentido para um galho coberto de flores, que só sente de fato a inclinação de atrair abelhas – e as abelhas vão, atraídas pelos formatos apetitosos. Estirado, algo preguiçosamente, sobre um branco de praça com vista privilegiada para a colheita dos insetos, vejo, quase distraído, a repetição do que aconteceu no ano passado, no ano em que nasci, antes mesmo que os anos fossem contados. E me ponho a citar: é o ciclo, o ciclo da vida, a vida é um ciclo… e adormeço.

Caem as pétalas e adubam a próxima florada, as folhas virão para tomar seu lugar e encher de energia um infinito de reações químicas, que jamais verei de perto. E nem preciso, para saber que elas só fazem manter e criar mais flores, mais folhas, mais galhos, mais reações. Eu, adormecido, embalado por uma vida em ciclo: acaba para recomeçar, morre para dar mais vida… Um dia, começou sem antes ter acabado; outro dia, vai acabar sem recomeçar em seguida, mil anos antes que o sol, como promete a grande ampulheta cósmica, exploda e engolfe nosso planetinha.

Não que as plantas se perturbem de saber, se souberem, que, depois de tanto tempo, esse brota e apodrece vai dar em nada. E eu, que em muito menos tempo também vou dar soma zero, ainda gasto meu tempo desperto pensando nessas coisas. Jeito besta de ocupar as décadas (um nada!) que me restam! Bom, no fim das contas, esse pensamento e todos os outros se valem, como se valem as abelhas se o assunto é disseminar o pólen. Algo em mim me diz que eu não deveria apostar tanto na minha própria duração para além de mim mesmo, mas…

Vendo tanto renascer, tanto rebrotar, acabo caindo na tentação, doce e idiota, de acreditar que um fim nunca é fim de verdade. Alguma coisa dura, quero; alguma coisa renasce, desejo. Meu lado ingênuo aponta para a beleza do universo, diz que é milagre, e garante que, entre as coisas que não vão terminar quando chegar o meu fim, estou eu mesmo.

É claro que isso não pode ser verdade. Mentira grossa, decerto. Que tem a ver com a beleza que admiro com a transcendência dos meus olhos? Minha carne fenece tão facilmente quanto as folhas do outono, e então, para ser direto: adeus beleza, adeus olhos. Continua o ciclo, mas eu pulei fora dele como essas pétalas que flutuam no vazio. E se meus braços e pernas são feitos do mesmo material que esses galhos, então não valem mais do que eles ou o ciclo de que fazemos todos parte.

Porém, já sei… que mudem as estações, não vai mudar a admiração que tenho pela sua regularidade, o milagre da sua reprodução, e a suspeita pouco justificada de que toda essa vida tem algum sentido e obedece a algum desígnio. Parece não bastar a evidência de que toda a beleza do universio é a beleza que eu aprecio, e todo o sentido da vida é a vida como eu a sinto. Deve ser isso. O verdadeiro milagre da vida é ter engendrado um ser que a sente como bela e tem amor ao ciclo, a ponto de desejar ser maior do que ele. Para mim, já é milagre suficiente.

Padrão
barbárie, Brasil, centro, cidade, costumes, crônica, descoberta, desespero, doença, Ensaio, escândalo, férias, Filosofia, ironia, modernidade, opinião, parque, passado, passeio, pena, praça, prosa, reflexão, saudade, São Paulo, tempo, trânsito, tristeza, viagem, vida

As concubinas do sultão

20131125_124341

* Prometo que este é o último da série de textos antigos, pelo menos por enquanto. Foi escrito há mais de um ano, ou seja, a tal “recente” já não tem nada de recente… *

Uma cidade se conhece por seus espaços públicos. Construam-se os edifícios que forem, eles obedecerão sem recurso aos planos e projetos que o arquiteto aprendeu em sala de aula ou desenvolveu em laboratórios e escritórios; no interior, a mais transparente das atividades se dá às escondidas, atrás do concreto, entre as divisórias de compensado, de um pavimento a outro. Se isso parece um paradoxo, que seja. Mas os prédios jamais darão sentido a uma cidade. A não ser, eventualmente, para aniquilá-la, com seu silêncio grosseiro e pelo furto escandaloso de nacos do horizonte.

No espaço público, as coisas acontecem segundo o que são em seu instante. Ainda que sejam planejados os parques e passeios, geométricas as praças de um qualquer núcleo urbano, é muito limitado o poder que a habilidade dos construtores terá sobre o que se passe nos paralelepípedos e gramados. Que podem os técnicos calcular quanto aos encontros, os olhares, os figurinos, o linguajar? Os imóveis pertencem aos proprietários, pois não; os apartamentos são dos inquilinos e os escritórios, das empresas. Mas a rua pertence ao homem. A ninguém mais. Talvez por isso assuste tanto os misantropos.

A culpa dessas minhas reflexões recai toda sobre uma recente passagem por São Paulo. Curta demais para encontrar todos os velhos amigos e tão atribulada que mal pude rever os lugares determinantes do que sou – para o bem e para o mal. (Lembro de alguns que foi impossível visitar: o Bar do Cidão, os teatros da praça Roosevelt, a rua 13 de Maio com o impagável Café Piu-piu…) Mas não foi uma visita tão sumária que me bloqueasse o bombardeio de sensações e lembranças. Umas doces, outras amargas, as mais tristes nem por isso menos ternas.

Receber de uma só vez todas essas impressões emocionais, devo frisar, é coisa de uma violência atroz. Após algumas horas sobre o solo tão familiar e tão distante, percebi o quanto ficara aturdido. Os parentes vinham buscar ternura, queriam saber sobre a vida no estrangeiro e dar as boas-vindas, mas eu, num estado de quase catatonia, era todo balbucios. Graças, a viagem e o fuso horário serviram como desculpa.

Resta que minha relação com a cidade em que cresci nunca foi fácil. Reação, imagino, de um espírito de natureza perambulante, flâneur malgré soi, inconformado com as barreiras que lhe impõe um modelo urbano escamoteador. No entanto, eu jamais o percebera. Pensava que meu problema com São Paulo fosse a poluição, o desafio hercúleo de deslocar-se, o desastre estético, a incompreensível ausência de qualquer forma de ordem urbana. A exemplo de muitos vizinhos, eu me enganava porque tinha o olhar por demais voltado para o alto, lá onde estão as estruturas circunstanciais, aquilo que, por natureza, é e será sempre frio e morto.

Por um lapso de percepção viciada, não entendi que o problema estava ali, logo à frente, na altura dos olhos e dos corações. Foi necessário interpor um oceano entre ela e mim para me dar conta dos fundamentos do conflito em que sempre vivi com a estranha São Paulo das buzinas e mutismos temíveis. Hoje, afastado, perdido no meio de um povo cujas gírias ainda desconheço, o que desenvolvi foi, finalmente, a resposta para o antigo dilema que parecia ter ficado em casa, lá atrás, esquecido no armário.

Eis que São Paulo, enxergo afinal, é uma terra refratária ao espaço público. Parece aplicar um estranho programa: se há alguma área de convivência, em que os olhares se cruzem e se ponham em comunicação, que seja suprimida; se há um parque, que os escapamentos, milhões de galões de gás, sufoquem os freqüentadores; se há calçadas, que se alarguem as avenidas até só haver espaço para o asfalto; se há comércio pelas ruas, que seja confinado a enormes condomínios com ar condicionado e música ambiente.

Enquanto isso, na curta semana que passei entre os meus, eu nutria o enorme desejo de observar os tipos, delinear os rostos, adivinhar pensamentos. É o que faço quando caminho sem destino, a passo lento, pelas ruas de Paris. Só que em São Paulo, os rostos, tipos e pensamentos se furtavam a mim. Subindo ou descendo as calçadas esguias, era impossível decifrar as idéias dos transeuntes: em seus rostos, transparecia apenas a preocupação de desviar dos buracos, dos postes, dos ambulantes e dos demais pedestres espremidos. Cada corpo, ao sair de um carro, de um ônibus, de um prédio, de um buraco do metrô, logo dava um jeito de, furtiva e melindrosamente, enfiar-se novamente em algum buraco do metrô, prédio, ônibus, carro. De um caixote para outro, sempre, tão célere quanto conseguisse. Descobri uma população encaixotada.

Essa conclusão não tem nada de agradável, é claro. Ao contrário, ela perturba sobremaneira. Repito, uma cidade se conhece pelo espaço público. Com o que, de repente, depois de uma vida, percebo que não conheço São Paulo. Como corolário, acredito que ninguém conheça. Pois a cidade não se deixa conhecer. Como se precisasse esconder o rosto, ela abafa a própria voz natural, uma vibração produzida a cada instante pelo flutuar de seus habitantes.

Mas São Paulo parece envergonhada por constituir-se de pessoas. E que não são poucas: dezenas de milhões de almas, veladas como as concubinas de um sultão. Uma multidão que não se olha, não se enxerga, não se cruza. Trocando em miúdos, não se conhece.

Padrão
alemanha, arte, calor, cidade, comunicação, conto, costumes, crônica, descoberta, domingo, frança, francês, greve, guerra, história, hitler, literatura, modernidade, paris, parque, passado, passeio, primavera, prosa, reflexão, saudade, tempo, trabalho, trem, tristeza, vida

O sol e o século

Primeiro dia do ano com sol e temperatura acima de zero, já na última semana de fevereiro. Então ela aproveitou para levar as cartas todas ao correio, depois comprar queijo, vinho, carne e pão. Apesar da luz ressuscitada e do clima agradável, o clima ainda era fresco: cinco ou seis graus. Caso para um bom casaco, mas não pesado demais. Ela escolheu um escarlate, de lã, um de seus preferidos desde o dia em que Henri Salvador, do palco, atirou uma flor e ela foi cair em suas mãos. Passou a ser o casaco da alegria.

Para quebrar a tonalidade alegre demais do vermelho, pôs uma boina cor de creme, cuja sobriedade, somada aos óculos de aro dourado, deveriam emprestar à sua figura um equilíbrio elegante. Desde pequena, sua mãe lhe transmitira a certeza de que não há valores para a mulher como a elegância e o equilíbrio. A mãe já passou há muito, mas ela ainda segue a lição à risca.

A rua era a mesma de todos os anos, desde que comprara o apartamento em que vivia, com muito esforço e trabalho, dela e do segundo marido. Os mesmos prédios de pedra, haussmanianos, opacos e solenes. A mesma fileira de árvores sem folhas, a mesma linha de trem depois da cerca. Mas os tantos meses sem luz, como acontecia a cada ano, quase a levaram a esquecer que cara tinha o bairro quando banhado de sol. Na esquina, a claridade conferia a cada braço das ruas um tom próprio, inteiramente diferente dos demais.

É o que faz o sol, sempre que lança pinceladas sobre uma esquina. Mas ela não reparava nisso há muitos anos, desde muito pequena, quando quase foi atropelada por um Citroën Traction Avant. Salva por um desconhecido de sapato envernizado e bigode esquisito (sua mãe dizia que era um famoso artista espanhol), a única lembrança que ela guardava do episódio era a luz do sol, que embelezava um lado da rua e deixava o outro, aquele de onde vinha o automóvel, esfumaçado e umbroso.

De lá para cá, tanta coisa! Uma adolescência dura, em que os pais evitavam o quanto podiam deixá-la sair. O medo dos boches, os invasores que falavam pela garganta. E o dia em que não conseguiu chegar em casa, voltando da escola, porque as ruas estavam apinhadas de gente, como nunca ela tinha presenciado. Era algo que ela nem imaginava, acostumada que estava aos bulevares desertos senão por veículos camuflados. E então, o desconhecido de boina negra e jaqueta surrada que apareceu de lugar nenhum, um rifle às costas, tomou-a pelas faces e lhe tascou um beijo. Foi seu primeiro beijo. E o rapaz exclamava: “Eles foram embora! Os americanos estão chegando!”

Depois da Liberação, a escassez de comida e os tempos de normalista. E ela rompeu relações com o pai, envergonhada de ele não ter aderido à Resistência. Aceitara passivamente os soldados invasores atravessando a rua debaixo da janela. Sem esboço de reação, senão pela expressão de desgosto e asco. Continuara trabalhando, gerando renda para o inimigo, enquanto o resto do mundo lutava e morria para libertá-los. Como ela o repreendeu naqueles anos de juventude inflamada! Ele jamais deu uma respondeu. Só a mesma seqüência de suspiros. Enfim, levou muitos anos até que ela pudesse compreender a escolha de um homem que precisava engolir todas as humilhações para alimentar a família, tanto quanto em tempos de paz. Ela só o perdoou numa tarde chuvosa de janeiro, de joelhos diante de sua tumba no Père Lachaise.

O primeiro emprego, para contribuir em casa, foi num liceu suburbano. Aulas de francês, matemática e geografia para uma garotada pouco interessada nos estudos. Com o tempo, ela acabou se acostumando a pegar o trem todas as manhãs na Gare Saint-Lazare e sacudir sobre os trilhos, como se montada num cavalo mal adestrado, por mais de uma hora, enquanto as construções escasseavam. A cada vez que um aluno baixava a cabeça e dormia durante a aula, ela se lembrava de como desejara estudar medicina e de como os pais a demoveram da idéia.

Casou-se pela primeira vez por impulso: um rapaz para quem seu pai torcia o nariz, garoto sem eira nem beira, sempre do contra. Ela não era nada do contra, a não ser, é claro, quanto às atitudes do pai durante a guerra. Pois o primeiro marido era filho de um mártir da resistência, cujo nome estava inscrito na fachada de um edifício do Quartier Latin, marcando o ponto em que ele foi abatido a tiros pelos alemães em agosto de 44.

A união por rebeldia não demorou a se revelar um erro. Em menos de dois anos, ela já nutria um desejo, obviamente secreto, de divórcio. Mas não queria dar o braço a torcer ao pai. Não queria se ver sozinha, mesmo que valesse mais a pena. E a essa altura já tinha a filha, linda e meiga, que não merecia a dor e a vergonha de uma separação. “Pela menina”, ela dizia para si mesma, à noite, enquanto tentava pegar no sono, “é preciso suportar”.

O sol não mudava seu jeito delicado de banhar as esquinas, mas o mundo, entre um raio de luz e o seguinte, se transformava como esquizofrênico. E ela nunca teve certeza, ao longo dos anos, se tanta mudança era algo a aplaudir ou lamentar. Foi com esses sentimentos misturados e palavras molengas, evasivas, dúbias, que ela lançou sua condenação à irmã caçula quando, batendo as portas e lançando maldições a toda a geração anterior, abandonou a casa dos pais e desapareceu. Rebeldia muito mais grave do que um casamento intempestivo. E muito mais segura, autônoma, poderosa. A primogênita, em sua altivez de mãe e trabalhadora, invejou, muito sem querer, a atitude. E a definia como “capricho de agitação juvenil” quando conversava com os pais.

E a irmã foi reaparecer dois anos mais tarde, numa fotografia de jornal. Atirava pedras de trás de uma barricada no boulevard Saint Michel contra a parede humana da polícia de choque. A menina estava mudada. Usava os cabelos longos e desgrenhados, berrava frases políticas, impedia o funcionamento da universidade, distribuía beijos indiscriminadamente entre os companheiros de rebelião. Um assombro. A família ficou chocada. Como tinha se transformado aquela garota, que até ontem brincava de boneca! Mas a primogênita, em silêncio, não conseguia evitar de achá-la linda.

Sua filhinha já freqüentava a universidade quando o casamento se dissolveu. E não foi ela que partiu, mas ele, deixando atrás de si um sentimento amargo de abandono, em vez do alívio que ela esperava. Martelava sua cabeça a convicção de que aquilo provava que nem mesmo um homem sem classe e sem educação poderia querê-la para companheira por toda a vida. E ela se viu triste, tendo de cuidar da casa para ninguém, já que a filha estudava numa universidade do sul.

Com a separação, um bom número de homens se apresentaram como pretendentes. Para sua grande surpresa, ela que se sentia velha e sem graça. Mas, em respeito aos sentimentos da filha, declinou com gentileza todas as proposições. Como ela conhecia mal o fruto de seu próprio ventre! Foi a menina que, observando a melancolia da mãe, arranjou uma maneira de colocá-la diante do pai viúvo de um colega. O homem grisalho, de terno xadrez e fala tranqüila, mas segura, era editor em Saint Germain, e se tornaria, em menos de um ano, seu segundo esposo.

Era como se a vida recomeçasse. Tanta novidade, que passou a primavera e o verão, mas ela não se deu um segundo para observar o traçado dos raios de sol. Um ano depois do novo matrimônio, a maior e melhor das surpresas: ela ainda era fértil. Mais uma criança se juntaria à família. Alegria misturada a apreensão, claro, para alguém que já passava dos quarenta e sentia a velhice mais próxima do que a mocidade.

Mas o tempo para pensar no assunto não existia. Era necessário encontrar um apartamento maior, para caberem a nova criança e a biblioteca do novo marido. Economizaram, venderam bens, contraíram empréstimos, conseguiram pagar o três quartos no primeiro andar da rua Cardinet, acima dos correios, que ocupariam pelas décadas seguintes. Foi onde cresceu o menino, cuja maior diversão, em pequeno, era acompanhar a passagem dos trens pela janela. Era onde se faziam os almoços de domingo para a filha, o genro e os netos, garotos barulhentos e pouco mais novos do que o próprio tio. E onde ela sentiu, enfim, que, de um jeito ou de outro, tudo se encaixava e fazia sentido.

Foram os melhores vinte anos de sua vida, muito bem vividos. Sobretudo depois da aposentadoria. Tempo empregado em fruir da família, não em acompanhar os movimentos do sol ou reclamar do radicalismo da agitação política, tão mudada desde os tempos de sua irmã nas barricadas. Ela lamentava as bombas e os seqüestros, mas não pensava neles quando desligava a televisão. Só temeu pela vida do filho – um frio na espinha indescritível, um enjôo injustificado – quando explodiram a estação de Saint Michel. Mas o alívio foi imediato quando ele telefonou, algumas horas mais tarde, para dizer que estava bem, a salvo na casa de um amigo.

Enviuvou na virada do século, mas a morte do marido foi tão tranqüila e paulatina que a tristeza logo se transformou em cálculo de quanto tempo levaria para se reencontrarem. Ela mesma já não era nenhuma garotinha. Nas primeiras semanas, foi difícil encontrar modos de ocupar o tempo solitário, mas, aos poucos, ela foi se inscrevendo em cursos de cerâmica, pintura, história, filosofia. Aprendeu tanta coisa, que parecia ter voltado à escola. Sua cabeça nunca esteve tão boa. Os cálculos para se unir ao esposo no jazigo de Montparnasse desapareceram por completo: era, afinal, uma certeza. E não há necessidade de pensar em certezas. Ela, então, deixou tombar a pressa.

A um passo da primavera, descer à rua para comprar artigos de primeira necessidade se tornou um prazer. Desses pequenos deleites da pequena vida, que tantos anos leva para aprender a apreciar. E esse prazer em particular, o sol se espraiando de maneira desigual pelos braços das ruas, ela ficou contente de reaprender. A vida, tanto tempo passado, tantos eventos, tantos desgostos e alívios, ainda podia lhe trazer novidades. Talvez tenha sido por isso que ela respondeu com um sorriso aberto e um entusiasmo tamanho, talvez até inapropriado, quando o rapaz de sotaque estrangeiro e bons modos (coisa rara nesses jovens de hoje) veio lhe perguntar para que lado ficava a rua de Saussure.

Padrão
alemanha, Brasil, crônica, descoberta, férias, frança, história, inglaterra, inglês, ironia, Itália, London, opinião, paris, parque, passado, passeio, praça, prosa, reflexão, Rio de Janeiro, saudade, São Paulo, tempo, trem, tristeza, viagem, vida

Das cidades, como do amor

<!– @page { size: 21cm 29.7cm; margin: 2cm } P { margin-bottom: 0.21cm } –>

Certo amigo costuma dizer que nossa relação com as cidades é como as relações amorosas. Ele diz, por exemplo, que Roma é cidade para namorar; Paris, para casar. Não peça explicações para seu julgamento, por favor! Essas coisas, todo mundo sabe, são o que há de mais pessoal. Sendo assim, minha opinião e a dele têm lá suas diferenças, como era de se esperar, mas não posso negar que a analogia tem sentido.

Jamais, para ilustrar, eu me meteria num namoro com Roma. Eis aí, ouso dizer, uma cidade a ser tratada com toda a cafajestagem que faz a má fama dos homens, isto é, a velha trinca: álcool aos litros, elogios absurdos e telefone falso. Já Paris, é difícil dizer; anos atrás, talvez eu também pensasse nela como uma cidade para casamento, filhos e aposentadoria. Sempre, claro, com separação de bens, que seguro morreu de velho e o europeu é tudo, menos confiável.

Mas, passados dois anos e meio, vejo que esta é uma cidade com que se pode ter no máximo um relacionamento razoavelmente durável, feito de passeios e conversas deliciosas, ou de exibi-la como prenda para saborear a inveja nos olhares todos que se voltam para sua companheira. É que esses invejosos não têm idéia do que possa ser a vida com a prima donna que compartilha de sua intimidade. As pequenas irritações, manias e exigências. O egoísmo de quem foi criada para só merecer admiração e cuidados. A distância insolente de quem pensa ser sempre precisada e nunca precisar. Essa é Paris, a cocotte.

Desenvolvendo a analogia suscitada por meu amigo, venho pensando nas muitas relações diferentes que mantenho com as cidades que conheci, e mesmo com algumas em que nunca estive, no que poderia ser classificado, para seguir na linha amorosa, como fantasias. É sempre tão irracional, circunstancial, acidental, quanto tudo o mais na nossa vida, menos aquilo que, ainda irracionalmente, acreditamos tratar com a razão. E o curioso é que, ao contrário das relações que um sujeito normal pode ter com mulheres no longo prazo, com as cidades é possível viver dezenas de romances simultâneos, na imaginação como na carne. Afinal, a não ser que seja mitologicamente histérica, a cidade em que está fincado nosso lar jamais terá ciúmes de uma visitinha que façamos a alguma outra nas férias ou no fim-de-semana. Turismo, neste caso, não é adultério.

Minhas relações mais complicadas são, é claro, com as cidades brasileiras. Estive nelas a maior parte da vida, balancei entre umas e outras, em tantas briguei e amei, com tantas rompi e reatei. Por sinal, já falei um pouco disso em outros cantos. Agora é hora de pensar nas estrangeiras, que, além de tudo que uma cidade já normalmente significa, têm ainda o mistério da outra cultura, da diferença, da variação infinita dos povos.

Buenos Aires, a misteriosa cigana sentada a uma mesa no fundo do salão, que dirá coisas absurdas ao ser abordada, rirá em desvario de enunciados que nem terão sido piadas, mas levará o parceiro à loucura em mais de um sentido. Lisboa, sempre à espera, para amolecer os membros e as articulações pela mera força de seu olhar de melancolia e devaneio. Barcelona, fulgor sufocante de um caso de verão regado a música e boa bebida, papos despretensiosos sobre arte que não entendemos, mas amamos, depois uma despedida sem tristeza. Berlim, divina e altiva, sempre sedutora e simpática, mas brilhante demais, muito poderosa e difícil, a ponto de não termos nem coragem de tentar uma aproximação. E assim por diante.

Dentre todas essas, há uma cidade que não consigo descrever nesses termos. Talvez seja aquela que conhecemos na primeira juventude, para um amor que ainda não consegue se reconhecer como grande ou pequeno, e depois perdemos de vista, para depois reencontrar um pouco mais tarde e sentir a mesma coisa, sabendo que é recíproco. E assim, sucessivamente, talvez pelo resto da vida, curtos momentos de pura felicidade, mas que não podem se estender, e que às vezes nem se concretizam, como quando há algum outro relacionamento em curso e não estamos dispostos a interrompê-lo.

É Londres, louca terra dos carros na esquerda, da polidez inquestionável polindo a superfície de uma frieza involuntária, dos preços altos para tudo que não seja cerveja. Capital de um império caído que ainda se vê em todas as caras, nas feições que os povos subjugados transmitiram ao opressor para toda a eternidade. Londres que divide os sonhos entre a glória austera dos tijolos vitorianos e e o brilho vertical de vidro que atesta o triunfo do século americano. Green grass, grey sky, God bless. Venha o que vier, serão sempre deliciosas as tortas e a geléia que acompanham o chá.

Mas não há modo de termos, London, London, nada mais, neste momento, do que isso que tivemos nas duas últimas semanas. As caminhadas no South Bank, o teatro esplêndido do West End, as bolas de neve no Green Park, de nome subitamente tão irônico debaixo da nevasca histórica que interrompeu o transporte através do Reino Unido. Tudo isso será inesquecível, como sempre foi. Mas a vida agora é além-túnel, além Mancha, naquilo que teus habitantes, ainda mais petulantes do que são excêntricos, chamam desdenhosamente de “Europa”. Mas Paris, minha cara, é o contra-exemplo de um diamante que não é eterno. Quem sabe o que traz velado o futuro?

Padrão
arte, costumes, crônica, desespero, folhas, frança, opinião, paris, parque, passado, passeio, prosa, reflexão, tempo, transcendência, vida

A última curva do círculo

Um súbito azedume, raiva contra as folhas amassadas e secas. É injustificado o travo na glote ao pisar sobre elas, mortas e embebidas na água suja da estação. Daqueles caminhos cobertos de amarelo e vermelho, em que o vento dos belos dias erguia redemoinhos, restaram essas pequenas sombras encarniçadas, molduras marcadas pelas solas dos sapatos. E ao erguer os olhos para as poucas que ainda se agarram aos galhos, amedrontadas com a perspectiva da queda e da morte inevitável, não é a melancolia usual de um jovem dezembro que me ataca, mas essa absurda aversão, esse horror despropositado.

Meus ombros não têm marcas de pegada. Têm, sim, o peso de um tempo indiscreto, imperador narcisista que faz questão de se exibir. Deixa em meu corpo um sinal, o afundamento das espaldas, o desejo do tronco de esconder-se do olhar severo que o déspota lhe lança, como a todos. Confundo-o com a chuva, que amolece o tecido da casaca e a aba do chapéu, tal qual o deteriorar-se dos meses me abala o espírito. Tento espanar, com a água, a pressão do tempo. Tento abrir os ombros e preencher os pulmões. Mas o ar que atende ao convite me ofende. Gelado, queima os caminhos; empapado, enrijece minhas faces.

Desisto. Recolho-me novamente, inerte, como inertes estão os cadáveres em que piso, ainda que tente evitá-los, desgostoso.

Reconheço que basta contar quatro meses para brotarem as próximas folhas, minúsculas, redondas, de um verde transparente. Reconheço que é o ciclo, infinitamente mais ancestral do que qualquer ancestralidade a meu alcance. Erradas estão as folhas que insistem em não tombar, que imploram a uma natureza que não responde, que choram quando fustigadas pelo vento, que secam no pé e não entendem a condenação definitiva. Está inscrito, em sua natureza de folha, o destino do outono. Morrer. Nascer em abril. Perecer em novembro.

Eu é que não vou perecer com a aproximação do inverno. Mas sinto, intimamente, que já experimentei diversos ocasos, uma suíte deles, desde que as cores começaram a mudar e os ventos assumiram sua inclemência. Morro com uma folha, morro com mil. Morria alegre com a hemorragia de outubro, quando elas caíam como lágrimas de sangue e jorravam ao longo das aléias. Morro novamente, agora amargo, enquanto os ciprestes se preparam para a estabilidade do olvido.

Sei por isso que sigo o mesmo ciclo das folhas. Estamos na mesma curva, na mesma etapa, a um passo do mesmo mergulho. Se, enquanto a terra permanece congelada, não estarei morto, como elas, estarei ao certo paralisado. Estarei diminuído, abafado pelos panos que me mantêm vivo, pressionado pelas precipitações enervantes, quase sem folga. Como os vegetais, subsistirei na esperança de um novo abril, a nova reversão da curva, do ciclo, do círculo, o renascimento que se vive a cada ano, a volta, o alívio.

Creio que seja essa expectativa que me atemoriza. A evidência de que existo agrilhoado aos ciclos e de que esses ciclos são um só. Minha vida. Entrego-me ao ódio por essas folhas, não por elas, que nada podem, mas pela hélice a que estão amarrados meus pulsos e tornozelos, como elas aos galhos, antes da queda.

Como se falasse, dirijo a palavra às folhas mortas e lhes pergunto por que não ficam assim, por que não se contentam em apodrecer e seguir eternamente como húmus. Brotar novamente na primavera, que terror! É o supremo ato de submissão, um esforço para se entregar mais uma vez, entre tantas, à parábola que resultará em outra morte, em mais lama, em mais pegadas.

Eu me encheria de admiração por elas, se as folhas se recusassem a recomeçar. Elas teriam a força que a razão quis atribuir apenas a si própria, e que tanta desgraça causou aos entes concretos, ao se misturar aos corpos, templos do necessário, sede da condenação ao tempo. Diante da recusa heróica dos vegetais, eu me questionaria.

Eu me perguntaria, vexado, perturbado, por que eu mesmo, por que nós todos, que temos mais vontade do que as folhas, não podemos dar um passo para fora do destino. Da fatalidade, de uma forma de vida que se nutre infinitamente da própria morte. De um estágio que sabemos superar, mas a que nos curvamos como escravos.

Por que nos aferramos a ser trágicos? Eu desejaria saber. Seria a manifestação que eu gostaria de dar à minha inveja dos vegetais forros. Meu rancor mudaria nessa inveja se, e somente se, eu visse, nas folhas, a prostração transmutada em liberdade. Até lá, como parece inevitável, vou morrendo para viver.

Padrão
arte, calor, costumes, crônica, descoberta, domingo, férias, flores, folhas, fotografia, frança, imagens, opinião, paris, parque, passeio, praça, primavera, prosa, reflexão, tempo, tristeza, verão, vida

É o queira ou não queira

Sabe Deus as coisas em que eu estaria pensando, se não pensasse tanto nas estações. Pelo visto, na hora de me atribuir uma personalidade, alguém cometeu um engano infeliz. A cabeça que estava reservada para mim deve andar apertando o crânio de algum desses muitos homens do campo que invejam a rotação acelerada das cidades e se perdem em devaneios de asfalto. Pois eu, que jamais vivi em cidade que fosse menos do que enorme, fui dotado com a vocação deslocada de caminhar a esmo pelo espaço vazio. Plantações, prados, veredas.

A que se soma essa coisa com as estações. Não só pelo ciclo, pela passagem do tempo, mas pela fisionomia que se imprime nas paisagens, por imposição, sem recurso, de um planeta que anda em círculos. E pela adaptação calma dos viventes, reféns de uma natureza que os precede em muito. Na falta dos horizontes vastos, recorro às ruas, às margens dos rios, aos parques recortados da virulência imobiliária. É pouco, mas é o que há.

Por muito tempo, quis me considerar uma alma, como eu dizia, “do verão”. Pelos dias mais claros, ligeiramente no Brasil, dramaticamente aqui. Porque sou um amante da luz, embora me sinta mais vivo nas madrugadas. Também, ao menos em parte, pelo calor, que quando extremo me pareceu sempre um flagelo mais suportável do que o frio.

Meu partidarismo estival era tão intransigente que eu antagonizava até com Tom Jobim. Sim, o próprio, confesso. Como ousa, maestro, associar o fim do verão, com aquelas enxurradas medonhas, a uma promessa de vida no coração? Para mim, as águas de março marcavam era o início dos tempos de lã, escuridão e resfriados. Evidente que, como sempre, eu estava errado. Simplesmente não entendia o principal, quase óbvio, cego de convicção.

A esperança de que fala a canção nada tem a ver com os meses seguintes. Não exprime qualquer alívio com o fim da fornalha. Como pude não perceber o sentimento difuso, involuntário, produzido ao pé da garganta, uma esperança de vida sem quê nem porquê! A doce satisfação do estio que vai se encerrando ignora, mesmo nas terras mais inóspitas, as projeções para o futuro. Vão secar as folhas, vão cair, mas o espírito nem se lembra.

Não são os mais belos do ano, título reservado à eclosão súbita da primavera, em abril. Mas os dias finais do verão produzem, e isso é uma certeza, o ar mais carregado de vibrações. São ondas de emissor impreciso, talvez o próprio sol, talvez a terra já cansada do sol, talvez as árvores e as pessoas sorvendo os últimos raios que vão descer neste ano. Seja o que for, essas são as duas semanas mais agradáveis que há.

Acontece que o final do verão, nesta metade do mundo, não chega em março, mas em princípios de setembro. São esses dias de agora, em que as famílias voltam das férias e as crianças reencontram colegas e carrascos na sala de aula. É pouco tempo, duas semanas no máximo. Há que aproveitá-las, nos intervalos das enrolações burocráticas que alguém, gerações atrás, resolveu grampear nesta época, acredito que por recalque.

Eis o espírito com que vou redescobrindo a cidade. Nem é preciso esforço, dou logo com um sem-número de detalhes saborosos, efêmeros como cada estágio da vida. É assombroso, por exemplo, como a cor das fachadas muda de um mês para o seguinte. Eu bem queria apertar a mão de Monet, que abriu nossos olhos para cada variação de luz que incide sobre o entorno, sobre os alicerces de nossa vida! O alaranjado nas pedras de Notre-Dame, ontem, não era como o azul esmaecido de novembro. Mesmo as fagulhas de entardecer, que balouçam nas marolas a cada barco que passa, como em qualquer outro mês, agora cintilam em tom mais pungente. Ainda prata, mas um prateado diferente, esse que está aí, vejo, vivencio, mas não ouso descrever.

Se eu vivesse no campo, em outros tempos, certamente não acharia poético o brilho das marolas. Sem dúvida, estaria ocupado com a colheita, cortando lenha para garantir o inverno, separando a ração dos animais. Fora de questão, essa história de caminhar pela cidade em busca de um verão que já se foi. Não faria o menor sentido correr atrás das estações. Elas pesariam sobre mim, inescapáveis, sem interesse pelas minhas preferências.

Padrão
arte, costumes, crônica, direita, guerra, história, inglês, ironia, opinião, paris, parque, passado, passeio, pena, Politica, prosa, reflexão, tempo

Marlon Brando, o terrorista

Ventava forte naquela noite. Choveria ao final da sessão, senão antes. Mas, contra o clichê literário, ainda não estava escuro quando começou o filme. Os organizadores do festival adiantaram o início, temendo a tempestade inevitável. O cinema ao ar livre é uma delícia, mas está sujeito a emoções fortes também fora da tela, como bem sabe quem frequenta o evento anual do <em>Parc de la Villette</em>, cravado num dos bairros mais humildes de Paris.

A tela enorme ondulava a tal ponto que os <em>closes</em> e paisagens pareciam de sonho ou embriaguez. Tínhamos combinado com um grupo de amigos, mas quando nos sentamos sobre a grama, éramos só nós, o casal de guerreiros inquebrantáveis. Todos os demais tiveram medo da fúria dos céus, e com razão. No dia seguinte, algumas cidades da França foram desmontadas por um tornado. Ora… os covardes vivem mais, mas saboreiam menos a vida.

Nós, ao contrário, por amor ao cinema, nos enrolamos em cobertores e enfrentamos a tormenta. Pois os nomes pesavam mais do que as nuvens, era irresistível. Roteiro de John Steinbeck, ninguém menos. Marlon Brando e Anthony Quinn sob a direção de Elia Kazan, magníficos todos eles. Um grande clássico, quase uma chave inaugural da Guerra Fria: <em>Viva Zapata!</em>, de 1952. Com todos os tiros, belos cavalos e proselitismo velado em que o cinema americano é imbatível.

Marlon Brando, em seu estilo habitual, travestiu-se de seu personagem, para não precisar interpretá-lo. O astro, que esticou os olhos para virar japonês, pintou o cabelo para virar polonês e encheu a boca de algodão para virar italiano, vestiu organdi branco e sombrero, passou uma temporada na praia, fez-se de estrábico e se pôs a falar muito lentamente. <em>Voilà</em>! Um autêntico mexicano humilde, analfabeto, honrado e bigodudo. Zombaria à parte, o filme é um espetáculo. Anthony Quinn rouba a cena. Embora nos créditos seu nome ainda não apareça com destaque, já mostra por que foi um dos maiores atores do cinema no último século. As batalhas, os diálogos, tudo é belíssimo. E, se há incorreções históricas, se há um a pitada de doutrinamento, respondo que ao cinema tudo se perdoa. Era a Guerra Fria, cada fotograma tinha de estar a serviço da pátria.

Mas o melhor de tudo, na verdade, foi ver projetada na tela a ironia do tempo. Se fosse produzido hoje, <em>Viva Zapata!</em> seria considerado um atentado ao patriotismo. George Bush o condenaria como antiamericano, acabariam deportando Elia Kazan de volta para a Turquia, a Fox se recusaria a passar o material promocional. Marlon Brando, o mito fanhoso e fortão, teria seu retrato afixado em praça pública, procurado como perigoso terrorista. O grande sucesso, quem diria, transformado em enorme perigo pela correnteza das décadas.

Não há dois seres humanos mais distintos que o Zapata que morreu no México em 1919 e o Zapata que nasceu em Hollywood em 1952. Este último se espelhava metade em São Francisco de Assis, metade em Rambo. Descendia de uma família de renome, mas não sabia ler e não tinha um grão de terra que fosse seu. Desprezava as roupas elegantes e só queria um pouco de paz para os camponeses, seus vizinhos. Virou general por acaso, derrubou governos por sorte, teve uma rápida passagem pela presidência, mas renunciou, tomado de asco pelo universo do poder. Quando morreu, na emboscada, era cansaço de tanta luta, quase uma desculpa para depor as armas.

O Zapata do México era um pouquinho diferente. Tinha terras; era pouca, mas produzia. Adorava vestir-se com garbo, destoava pela elegância até exagerada nas festas, cultivava um bigode que devia lhe subtrair não pouco tempo da vida. É provável que soubesse ler, caso contrário teria sido em vão o esforço do amigo Ricardo Flores Magón em lhe apresentar livros anarquistas. Mas, ao contrário, deu resultado: Zapata se encantou pelo anarquismo a ponto de escrever um projeto de reforma agrária, o Plano Ayala, que influenciou o debate político mexicano por décadas. Por fim, se ele foi presidente do México, esqueceram de registrar e só contaram a Steinbeck.

Nem preciso dizer que o Zapata das telas é muito mais interessante. Fico imaginando os suspiros de nossas avós nos cines Serrador e Payssandu. O verdadeiro era muito humano, não chegou a general por acaso, tinha aspirações políticas e gosto de sangue, perdeu muitas batalhas e morreu porque se deixou enganar. Já Marlon Brando, quando mexicano, levava uma vida muito dura em nome de uma causa. Vivia escondido nas montanhas, arregimentava pobres camponeses ingênuos para sua luta, atacava comboios, preparava emboscadas, o escambau. Suprema ousadia, associou-se com comunistas e exilados para derrubar sucessivos presidentes de seu país. Alguns deles, até eleitos.

Não raro, dava um passo para fora de seu analfabetismo e discursava com as melhores técnicas da oratória. Conclamava cada homem a pegar em armas contra a iniquidade dos poderosos. Afirmou mais de uma vez que, se os oprimidos não se organizassem e lutassem, seriam humilhados até o fim dos tempos. Para ele, não havia governo e não havia lei que estivessem acima do sagrado direito do trabalhador à terra. Parecia que falava Jacobo Arenas ou Osama bin Laden, mas não. Era um astro americano, explicando ao público o poder do indivíduo contra a ameaça soviética.

Eis, porém, que nesse meio-tempo os vermelhos viraram poeira. Grupos armados que vivem nas montanhas, preparam emboscadas, atacam comboios, ameaçam governos e desconsideram leis fundiárias ganharam uma nova alcunha. Não são mais interpretados por galãs do naipe de Marlon Brando, levam no máximo alguns cascudos de James Bond, quando tentam destruir a civilização ocidental como antes faziam os vilões russos. A idéia de que as pessoas peguem em armas contra os poderosos se tornou perigosamente inconveniente, agora que no ringue do poder mundial só sobrou um lutador de pé.

O Zapata de Marlon Brando não era um general competente como o Zapata de Morelos: era um terrorista (pelos padrões contemporâneos) cujas vitórias se apoiavam tão somente em sua ideologia e sua sede de lutar. Hoje, mais de meio século depois de filmado, <em>Viva Zapata!</em> de Elia Kazan, mais do que um filme épico, é um documento histórico. Onde mais podemos ver a indústria de Hollywood aplaudindo efusivamente um grupo paramilitar, sabotador, proscrito, liderado por um anarquista violento, mal ajambrado e de pele morena (artificial, mas enfim)! Em tempos de Halliburton, o filme é uma oportunidade rara de ver os Estados Unidos prestando homenagem à iniciativa privada.

Padrão
calor, centro, costumes, crônica, descoberta, domingo, férias, fotografia, francês, guerra, história, imagens, opinião, parque, passado, passeio, prosa, saudade, tempo, verão, viagem, vida

À menor das grandes capitais

Genebra, crepúsculo no verão
Estou em dívida com uma cidade. Tudo que ela quer de mim, e eu venho protelando, é um punhado de palavras sobre como ela encanta sem fazer alarde, ao ponto de definir a si mesma como “a menor das grandes capitais”. Pois bem, cá estou para saldar a dívida, começando pelo epíteto que equilibra com tanta competência a auto-ironia e o orgulho, de uma maneira que só conseguem os muito refinados. Em outras palavras, ele se aplica com perfeição a Genebra.

Como um todo, a Suíça é um país muito instigante. São 41 mil quilômetros quadrados de lagos e montanhas, espremidos entre as legiões sempre famintas de França, Alemanha, Itália e Áustria. Esse adorável cubículo é compartilhado por menos de oito milhões de almas, que falam, de seu jeito bem particular, os idiomas de todos os vizinhos, mais um punhado de dialetos. Não consigo deixar de me surpreender com o fato de que um país tão pequeno tem quatro línguas oficiais. Mas é assim.

Os helvécios são gente conhecida por ser ordeira, educada e competente. São notórios especialistas em fabricar canivetes e relógios, além de lavar, nas horas vagas, o dinheiro de corruptos do mundo inteiro. Talvez seja por isso que as notas do franco suíço sejam tão belas, estampas coloridas de um bom gosto tamanho, que dá tristeza gastar.

Nesse país cheio de paisagens bucólicas, cada cidadão é um soldado, mantém um fuzil em casa e, se acaso for piloto de aviões, obrigatoriamente já comandou caças, na juventude. Não que haja risco de o país entrar em guerra, por suposto. A Confederação Helvética, que é como o país se chama oficialmente, é neutra por cláusula constitucional. O último aventureiro que inventou de atacar esses pacatos montanheses rigorosamente treinados para as batalhas foi um corso invocado de nome Napoleão, mas ele não demorou a se arrepender.

O país surgiu no século XII, em busca da tranqüilidade que as disputas internas do Sacro Império não proporcionavam. Genebra, por sinal, foi o último cantão a aderir, já no século XIX, quando se libertou do mesmo imperador corso que esbarrou na resistência suíça. Com isso, o cantão de Genebra é uma espécie de península cercada de França por quase todos os lados, ligada ao próprio país praticamente apenas pelas águas de um lago que leva seu nome.

Não chega a ser, como Berna e principalmente Zurique, a sede de grandes bancos e seguradoras, embora tenha lá seu pé no mercado financeiro. Na realidade, o próprio do local são as organizações supra-nacionais, que fazem de Genebra algo como a capital européia, para não dizer mundial, da diplomacia. Não é à toa que a Convenção de Genebra tem esse nome; dê um passeio sem direção pela cidade e esteja certo de passar diante dos escritórios da OIT, da OMC, da OMS e outras siglas célebres.

Talvez venha daí a definição de Genebra como menor dentre as grandes capitais. Pequena, ela é, sem dúvida, com seus cento e oitenta mil habitantes, incluindo as áreas rurais. Mas também, certamente, o ambiente é de grande capital. Avenidas largas, edifícios imponentes, arquitetura variada (bem mais do que a de Paris), gente na rua, excelentes bares, restaurantes, teatros, museus. Mas, acima de qualquer outro atributo, é preciso louvar o lago.
vista para o lago e o centro
Genebra está situada no ponto preciso em que o lago Léman (ou Genebra) desemboca no Ródano, um belo rio, e importantíssimo, cujo valor estratégico e econômico deu ensejo a uma infinidade de batalhas, desde o tempo dos centuriões. Mas para o turista, felizmente, o que mais conta é o tom esverdeado, único, da água, cuja superfície se estende em forma de triângulo em direção às montanhas cobertas de neve. Para a alma, o contraste com o azul de um céu descoberto é agradável como receber uma massagem; não há melhor lugar para contemplá-lo do que a relva esmerada dos diversos parques que ladeiam o núcleo urbano.

É difícil explicar o prazer mágico que aquele lago produz, mesmo à distância, pontilhado de veleiros, lanchas e banhistas. Talvez seja um efeito do cheiro forte de maresia que impregna toda a região central, muito embora a água seja doce como chocolate suíço. Talvez seja o gorgolejar que abafa o ruído tísico dos automóveis, quando caminhamos pela orla. Talvez seja a população incontável de cisnes, exibindo-se por todos os lados, brancos e sinuosos, sempre a atazanar os patos, tão mais fracos e discretos. Que fantástica descoberta: o lago dos cisnes existe, fica na Suíça, Tchaikovski não o inventou; quando muito, o descreveu, inspirado por Genebra.

Do barqueiro que alugava pequenas lanchas de 13 pés, ouvimos que a pequena embarcação poderia subir o lago e nos levar até Lausanne e Montreux, se dispuséssemos de algumas horas e muitos francos suíços. Quase cedemos, atiçados pelo desejo, mas declinamos da idéia. Imagine! Como seria a experiência chegar de barco a Montreux, cenário do jazz e de Smoke on the Water, um dos refrões mais famosos do Rock n’ Roll, senão o mais famoso? Todas as perspectivas, é claro, pareciam maravilhosas, mas tivemos de nos contentar com um mergulho rápido por ali mesmo. E já bastou para que nossos corpos se declarassem agradecidos.

Seria um crime retratar Genebra como apenas um balneário, embora a cidade goste de reforçar esse seu aspecto, celebrando o lago com um enorme jato d’água. Uma visita ao centro histórico, encarapitado num morro e cercado de antigas muralhas, é obrigatória para todos que tiverem interesse em arquitetura, história, teologia, filosofia e gastronomia. Come-se bem naquelas ladeiras, isso é garantido e dispensa delongas. Mais interessante é o orgulho que a população demonstra dos eventos cruciais que se passaram ali. De distrito do Sacro Império a laboratório de Calvino; depois, república protestante que recebia os refugiados de todo o continente, ao ponto de que novos pavimentos foram acrescentados a todas as edificações, para abrigar a população que dobrou da noite para o dia no século XVII; finalmente, um canto delicioso da Suíça.

O legado da Reforma é valorizado em cada esquina da cidade velha. O parque mais conhecido exibe um painel de cem metros, o dito monumento internacional, com alto-relevos que contam a história das disputas religiosas que culminaram na criação de um leque de novas religiões, na Europa do século XVI. Um espaço de relativo destaque é reservado a Lutero e Zwingli, mas a principal escultura, aliás de aspecto um pouco sinistro, põe lado a lado João Calvino, Teodoro de Beza, John Knox e William Farrell, enormes e solenes.
null
No alto do morro, ao lado da catedral, o museu da Reforma, muito mais do que informativo, é apologético às raias do exagero. A julgar pelo que está exposto ali, todas as boas iniciativas dos últimos séculos são obra de protestantes, a começar pela fundação da Cruz Vermelha, ocorrida ali mesmo, duas ruas abaixo. Curiosamente, contudo, o brasão de Genebra carrega ainda os símbolos de duas instituições superadas por sua história: as chaves do arcebispo e a águia do imperador. Da mesma forma como o hino nacional holandês, até hoje, faz referência ao domínio espanhol.

Outro filho celebrado da cidade é Jean-Jacques Rousseau, que passeava solitário pelas alamedas, produzindo devaneios e pensamentos. Isto é, só até as idéias resultantes culminarem em sua expulsão e exílio em Berna e na Inglaterra. Felizmente, as discordâncias são águas passadas, Genebra abraça a memória de seu filósofo (e romancista e músico) com enorme boa vontade. Hoje, ruas, edifícios e parques ostentam seu nome em diversos bairros. Certamente esse não é o lugar ideal para fazer elogios a Diderot e Voltaire (embora esse último vivesse ali ao lado, em Fernay, França).

Espero ter quitado meu débito com Genebra, embora o comércio pareça um tanto desequilibrado. A cidade suíça, reafirmo, me proporcionou alguns dias de muita satisfação: estética, gastronômica, física. Eu, de meu lado, só pude retribuir com um parco consumo e uma quinzena de parágrafos, como se ela estivesse interessada no que tenho a dizer. A solução recai sobre uma promessa: hei de retornar para, quem sabe, cortar o lago Léman em toda sua extensão, como sugeriu o barqueiro, e ver de um ângulo muito diverso a menor das grandes capitais.

Padrão