Este primeiro parágrafo virá cheio de obviedades; é que, óbvias que sejam, elas ainda podem contar com o mérito de pelo menos serem verdadeiras. Assim, é óbvio, como todos sabemos, que a tecnologia do século XXI já está mudando e ainda vai mudar muita coisa, principalmente no modo como fazemos, percebemos, entendemos e avaliamos as coisas. Obviamente, do nosso ponto-de-vista, uma grande parte dessas mudanças será para melhor, mas outra parte tão grande quanto mudará para pior. É evidente. Assim como é evidente que teremos, daqui a vinte ou cinquenta anos (para os que ainda estiverem de pé até la), outro ponto-de-vista tão diferente do atual, que muito do que nos parece ruim será considerado bom e vice-versa. Finalmente, e isso é o mais interessante e talvez menos óbvio: o que nós e nossos filhos consideraremos ruim nesse tal futuro engendrará novas mudanças radicais, pouco importa se tanto quanto as atuais ou não, mas que certamente terão aspectos piores e melhores… e assim por diante. É claro.
Isso posto, posso passar ao menos óbvio e mais pessoal. Se tem uma instituição relativamente recente que me deixa particularmente frustrado, ela se chama “entrevista por e-mail”. Como tudo no mundo (e vou voltar às obviedades, mas só provisoriamente, prometo), essa pequena maldição do século XXI não é perniciosa per se. Mas seu uso disseminado, quase irrestrito, tem uma consequência que me parece terrível – e vou tentar demonstrá-la. O problema é o seguinte: quando a maioria das entrevistas são feitas por e-mail; quando o jornalista prefere mandar as perguntas e esperar as respostas a enfrentar o entrevistado cara-a-cara; quando os editores preferem esse método porque as reclamações são menos prováveis; quando, enfim, as empresas pagam tanto por uma entrevista por e-mail quanto por uma entrevista de verdade, é porque a própria ideia da entrevista perdeu completamente o sentido.
Nem preciso retornar às obviedades, como a de dizer que na palavra “entrevista” está contida a palavra “vista”, o que já deveria dizer muita coisa. De qualquer forma, a etimologia é a primeira a morrer quando as circunstâncias se alteram, e isso não deveria ser nenhum drama. O problema é quando a natureza das coisas fica para trás e continuamos usando o mesmo termo para nomeá-las. Uma simpática piadinha seria exigir a troca do nome “entrevista” por “entretecla” ou coisa que o valha, mas esse não é o ponto.
Antes que me tomem por cínico, já fiz mais de um par de trabalhos desse tipo, sempre com um aperto no coração. Mas, como diz Gilberto Gil num documentário sobre Jards Macalé que vi outro dia, todo mundo tem de se prostituir de vez em quando. É o leitinho das crianças, como dizem. Por sinal, como os mais sagazes já terão desconfiado, recebi hoje mesmo as respostas de uma entrevista por e-mail e esse foi o evento que me induziu a escrever este libelito. Mas falo disso depois.
Fora aquelas básicas, de qualquer matéria, em que se perguntam coisas pontuais para preencher lacunas de um texto, a entrevista serve um propósito bem definido e, a meu ver, bastante nobre. Quando alguém se presta a dar uma entrevista (não coletiva), é porque sabe bem o que está falando e está disposto a responder a questões colocadas à queima-roupa por alguém que, se tiver condições para tal, pode retrucar e exigir explicações depois de ouvir a resposta. Tratando-se, digamos, de jornalismo investigativo, algo que muito admiro mas não faria muito bem, acontecem às vezes coisas bem interessantes: de um lado, alguém se dispõe a dar uma entrevista porque espera usar o jornalista como escada para disseminar leituras enviesadas ou se defender perante a opinião pública; de outro, um repórter que pretende tirar informações do entrevistado que o dito cujo preferia esconder, ou ao menos induzi-lo a se comprometer ou contradizer. Desse jogo de manipulações recíprocas, belíssimas matérias já saíram.
O caso é ligeiramente diferente para entrevistas com intelectuais ou artistas. Não existe antagonismo entre entrevistador e entrevistado, mas o jornalista quer ainda assim arrancar algo diferente, especial. Por exemplo, um escritor que, no meio do diálogo, perceba em um de seus personagens um traço de caráter que lhe tinha escapado até então. Ou o pensador que, sem querer, deixe entrever que sua teoria é racista ou misógina. Resumindo, a entrevista necessariamente envolve algo de inesperado para ambas as partes; e isso resulta do fato de que se trata de um diálogo. O diálogo, e desculpe evocar mais uma vez a etimologia, é um discurso que passa através (do grego día) dos interlocutores. Ou seja, ao final, as perguntas nunca são o que deveriam ter sido no começo e, muitas vezes, caminha-se para longe daquilo que se esperava.
Um interlúdio: não é curioso que esse tipo de diálogo esteja perdendo terreno, ao menos no campo jornalístico, justamente numa era em que as tecnologias de comunicação instantânea estão se desenvolvendo em pontos extremos do assim (estranhamente) chamado “tempo real”? Onde o potencial para o diálogo é maior, o que será que faz com que o diálogo efetivamente realizado seja menor? Eis aí um belo tema de pesquisa… Mas voltemos ao assunto: a famigerada entrevista por e-mail.
Como eu disse, recebi hoje respostas para perguntas enviadas há três dias. É tempo suficiente, vamos convir, para alguém refletir muito bem sobre o que quer dizer. Lendo, pude constatar que as respostas eram mesmo coerentes, pelo menos entre si. Algumas vezes, porém, minhas questões foram (deliberadamente?) ignoradas, e o texto embaixo discorria sobre assuntos que no máximo as tangenciavam. Pior ainda: faltavam duas perguntas, que o entrevistado, um intelectual ex-ministro que se envolveu com reformas malsucedidas, preferiu fingir que não existiam.
No diálogo de uma entrevista de verdade, eu poderia ter insistido, reformulado o tema, sublinhado alguma frase que ele tivesse dito (há várias, mesmo no texto escrito, que dão azo a interpretações bastante polêmicas). Mil coisas. Mas não. Trata-se de uma entrevista por e-mail e, no final das contas, o sujeito conseguiu transformar meu trabalho num palanque para bradar o que bem quisesse. A gota d’água é que meu poder de edição está muito restrito: se a entrevista fosse ao vivo, a própria transcrição do oral para o escrito permite cortar as partes mais cretinas, como o autoelogio e a publicidade indisfarçada. Já o escrito, quando é bem escrito, tem uma linha interna que torna o corte bem mais arriscado.
Trocando em miúdos, a entrevista por e-mail não é realmente uma entrevista, mas um mísero e pálido recolhimento de declarações, travestido de reportagem. É mais confortável para o jornalista, que não precisa ficar depurando fitas durante horas, na redação ou em casa, de madrugada, no fim-de-semana. Basta colocar o texto já mandado no formato e no padrão da organização em que trabalha, coisa rápida. Também é mais confortável para o entrevistado, que pode publicar exatamente aquilo que tem vontade de ver impresso e nada mais. Parece uma win-win situation, mas existe um terceiro jogador, esse que por sinal está cada vez mais escasso: o leitor. O produto que chega a ele é menos interessante, é mais propaganda que jornalismo e provavelmente não traz novidades. Esse aí, o tal leitor, é quem acaba perdendo, como de hábito.