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A Internacional Digital

Deixo como isca para debates um trecho não publicado da entrevista que fiz com Bernard Stiegler, filósofo francês. A versão editada está no Valor de hoje. Transcrevi o trecho que segue abaixo porque me parece que tem muito a ver com algumas coisas que tenho tentado escrever por aqui ultimamente. (Claro, pombas, como leitor dele, muito do que ele diz me influencia.) Mas ele se expressa, naturalmente, muito melhor do que eu.

Stiegler é um dos principais herdeiros de meu autor de predileção, Gilbert Simondon. É também diretor do Instituto de Pesquisa e Inovação do Centro Pompidou (Paris), fundador da associação Ars Industrialis e professor em Compiègne, Londres (Goldsmiths), Cambridge e, a partir do segundo semestre, mais uma instituição superior francesa. Para saber mais sobre o sujeito, basta clicar nos links. Continuar lendo

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Bouazizi, o herói de Nietzsche

Nem Assange, o indiscreto hacker australiano. Nem Zuckerberg, o ainda mais indiscreto empresário precoce da rede, como quis a revista Time. Nem Suárez, o goleiro fugaz dos pampas, sobre o qual ainda hei de escrever. O maior herói de 2010 foi um vendedor de frutas, ambulante e sem licença, natural de Sidi Bouzid, no interior da Tunísia. Chamava-se Mohamed Bouazizi e tinha 26 anos quando morreu.

O gesto heróico de Bouazizi foi um martírio que, em si, não tem nada de novo, mas sempre impressiona. No Vietnã de 1963, Thích Quảng Đức desceu do convento e, com toda a calma que se espera de um monge budista, imolou-se na praça mais movimentada de Saigon. Kennedy admitiu que a imagem daquele corpo se consumindo abalou o mundo. Na Tchecoslováquia de 1969, Jan Palach, estudante de filosofia, escolheu que sua existência não passaria dos 21 anos. De que valia viver sob o jugo soviético? Em 1989, a celebração de sua memória desaguaria na Revolução de Veludo, batendo um cravo no caixão da Cortina de Ferro.

É perturbador, mas parece que morrer dá resultado. Continuar lendo

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O repouso do general

Quando soube que estariam todos fora – demônios, reis, colombinas, palhaços –, concebeu o mal-estar, dramatizou a doença, conquistou a solidão. Livres as paredes para o silêncio, os salões entregues à vibração do tempo baldio, fremiu e suspirou de alívio e apreensão.

Estacou por instantes sem volume. Quando o sangue voltou aos dedos, entregou-se à tarefa solene de desabotoar a farda, pendurá-la no cabide, encerrá-la na escuridão do guarda-roupa. Puxou dos ombros os galardões cheios de estrelas, apertou-os na palma da mão e os depositou na gaveta. Fora de vista, mas não de alcance. Para o caso de precisar buscá-los às pressas.

Seria lá o repouso do general. Nada de respostas, nada de comandos e decisões. A camisa de algodão lhe caía esquisita, mas agradável. Como trocar de pele.

Respiração caprichada, caminhou a passos arrastados até a poltrona. E se instalou, rijo, como numa sala de interrogatório. Conforme o previsto.

Só então ousou um lançar de olhos para o volume que trazia entre as mãos. O objeto grande, pesado e viscoso, coberto por um pano branco tão limpo, liso, fragrante – por que não dizer: imaculado. Tantos anos à espera do momento de encarar a carga, tantos anos, pareciam uma vida inteira. A exemplo da vida, não tinham começo na memória. Que esforço, que heroísmo, dar a crer aos outros que aquilo, aquela coisa, era natural. Que sabia o que fazia. Que vagava pela casa carregando um pacote branco com algum propósito. Missão misteriosa, mas incontornável.

Agora que estavam todos fora – demônios, reis, colombinas, palhaços –, era o momento de esclarecer tudo de uma vez por todas. Teve orgulho da coragem com que fitava o volume fantasmagórico. As mãos, porém, suavam. O cotovelo empurrava os dedos para o pano, o ombro os retinha. Homem e objeto, como conjunto, entravam em sintonia com o tempo paralisado.

Sentiu-se ameaçado, espantou-se, puxou por reflexo o lençol, violento. O tecido voou como espectro e pousou como pomba. Ficou espalhado sobre o assoalho, inerte.

Diante de seus olhos, o volume descoberto. Como antes, não sabia o que era. Não podia descrever a forma. Irregular e perfeitamente simétrico. Opaco ao extremo. Difuso, fora de questão. Solidez opressiva que se esvaía rumo ao chão. Por hábito, desandou a dar nomes: é o mundo, é minha alma, é o passado.

De súbito, faltou fôlego. Cessou a confusão do batismo cego. Poderia decidir-se por qualquer daqueles nomes, ou qualquer outro; subsistiria o mais terrível dos atributos, sempre. O que trazia nas mãos, nelas teria de seguir. Deixasse cair, é certo que espatifaria. O ar seria tomado de imediato pelo vapor venenoso do mundo, da alma, do passado.

Sufocaria. Pereceria. E não conseguia escolher entre o sacrifício sumário, mas horrendo, e a tortura vitalícia de carregar ainda, diante de todos – demônios, reis, colombinas, palhaços –, o volume abjeto, a massa amorfa, coberta pelo mesmo pano branco outrora imaculado, agora encardido com a poeira das cidades.

Na fúria da indecisão, lembrou-se das insígnias ocultas. Esticou-se com cuidado reverente. Não foi à gaveta, mas ao lençol, ainda enrugado a seus pés. A decisão estava tomada sem que alguém a tomasse.

Mesmo para a alma perturbada, à beira do escapismo, era patente. Sublinhavam-no as lágrimas, ao romper o portal. O peito se ergueu em revolta, soluçava e recusava o ar. Debaixo da mortalha, o objeto estremeceu. Poderia deslizar a qualquer instante. Mas não havia controle para os espasmos do corpo entregue.

De uma porta que se cria inexistente, entrou a desconhecida. O susto invocou o sangue das faces e ressuscitou o general. As estrelas das divisas tinham aparência ridícula sobre o algodão dos ombros, mas expunham uma imposição de respeito.

Só não se entregava à deferência o rosto ainda afogueado. A desconhecida flutuava através do salão. Encarou-o e, com expressão indiferente, perguntou o porquê das lágrimas. A resposta saiu refletida, viril como cumpre replicar:

— Não sei… Não sei.

Com isso, ergueu-se e se pôs em marcha, carregando seu fardo, até a escrivaninha do quotidiano.

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