Começo a escrever na noite de sexta-feira anterior à Marcha da Liberdade marcada para a avenida Paulista, 28 de maio – dia que no futuro talvez seja nome de rua. Provavelmente só vou terminar de manhã, logo antes de partir para a referida marcha. Aliás, bem disse alguém por aí: não se deveria dizer “marcha”, mas alguma outra coisa, porque a liberdade não marcha, ela dança. (Voltaremos a isso.) Sábias palavras. Continuar lendo
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Direito natural, versão felina
Estou tentado a chamar a gata vira-latas da rua de “Espinosa”. Sendo um sobrenome, serve igualmente para macho e fêmea e, embora eu ainda a chame de “gata”, só comecei com isso por achar que estava prenhe, com a barriga enorme que tem. Mas gata nenhuma leva tanto tempo para parir, o que me traz à conclusão de que ela é gorda, simplesmente. Com isso, nem sei mais se é gata ou gato, porque machos e fêmeas engordam do mesmo jeito. Mas o nome provavelmente vai ser Espinosa.
A bem da verdade, nem sei se é mesmo um gato vadio e vira-latas. Nicole está convencida de que o bicho é da vizinha, o que não explica por que ele acredita tão piamente que nossa casa é o lugar para estar sempre e a todo momento. Por mais que eu adore animais, não sou tão chegado ao cheiro que deixam quando, indisciplinados, ocupam cantos de jardins e fazem de residências que não lhes pertencem um depósito de seus dejetos.
Também penso em chamá-lo Espinosa porque ele e eu vivemos num estado que lembra o direito natural como definido pelo sábio holandês: o direito de cada um coincide com a extensão de sua potência, levando em conta a potência, claro, de sufocar a potência dos outros. Pois bem, ele pode invadir a casa, se esgueirar pelas paredes e fugir saltando o muro com agilidade insuspeita para um gordo, ainda que o gordo em questão seja um gato. Eu, de meu lado, posso correr atrás dele, gritar, fingir que vou lhe atirar alguma coisa, na esperança de que o susto seja tanto que ele desista de aparecer por aqui.
(Hoje, aliás, as crianças já não cantam mais o “atirei o pau no gato”, o que está muito certo, já que toda violência possível deve estar contida em aparelhos eletrônicos.)
Ele pode voltar. Pode tentar me vencer pelo cansaço. Eu posso insistir, posso mesmo fechar a porta do depósito quando sei que ele está lá dentro, embora ainda não tenha tido a audácia de fazer algo tão cruel. É um jogo de gato e rato em que quem faz o papel de rato é o gato, já o gato sou eu. E não é um jogo: o que está em jogo é o asseio da minha casa. Como no direito natural, ele me teme (tanto que foge ao me ver chegar no portão) e eu também tomo meus sustos, como quando entro no escritório para dar com um volume de pelos dormitando em minha cadeira.
Exagero com essa história de direito natural. Há qualquer coisa de civil, também, na nossa relação. Pelo menos da minha parte. Firmamos um acordo tácito pelo qual não exercerei minha potência de esmagar seu crânio com uma pedra. (Ele também nunca me arranhou ou mordeu. Ai dele.) Ele invade minha casa, ele rompe com as regras mais fundamentais da propriedade privada, mas não vou puni-lo nem com o cárcere no depósito, nem com a morte. É um felino, ora bolas, e jamais foi instruído sobre o funcionamento das leis de propriedade.
Por outro lado, o gato malhado da rua não atravessa jamais o portão e prefere passar os dias debaixo dos carros. Sabendo que nada fez de errado, não vê motivo para fugir. Nem mesmo quando se aproxima um humano adulto armado com uma enorme barra de metal e um macaco. A dois passos de distância, assiste impassível, com ar até preguiçoso e despeitado, enquanto o humano em questão sua para trocar um pneu. Será que o instruíram nas leis de propriedade?
Na dúvida, segue cá nos fundos o laboratório de política e direito com Espinosa, o gato gordo, que, mesmo quando afugentado, encontra uma área inalcançável do telhado e lá se põe a espiar o inimigo (esse sou eu). Imóvel e de olhos arregalados, é capaz de agüentar horas à espera de que ele se canse e tudo possa voltar à rotina. E realmente vai voltar, no ciclo anárquico e conflituoso do direito natural em que vivemos, bicho e gente, no quintal de uma casa.
Litania para o capital
Fuçando nos arquivos mais recônditos deste HD, acabei encontrando a brincadeira que segue abaixo. Foi escrita quando eu estava na faculdade (e, aliás, este HD nem fabricado era), para provocar meus colegas corretores da Bovespa, que andavam um tanto nervosos, conseqüência de alguma dessas crises por aí.
Lembro-me particularmente de um desses meus amigos, a quem perguntei, por pura gaiatice, já sabendo a verdade, se a corda estava apertando demais o pescoço da empresa em que ele trabalhava. (A tal empresa foi absorvida por outra bem maior, poucos dias depois.)
Pois bem, a resposta do rapaz foi adorável: “Agora, só resta rezar.”
Passei o dia imaginando como rezariam os colegas do rapaz, logo antes da abertura dos negócios, à espera do retinir do sininho. Seria como uma grande celebração, engravatados de joelhos, mãos unidas, ar de introspecção. Aos poucos, vai se erguendo uma voz coletiva, um grande uníssono, para este que, em nosso século, tomou o lugar que já foi de Deus e outros deuses.
Enfim, segue abaixo um esboço do que clamariam os infelizes. Já vou avisando a Duncan Niederauer que cobrarei os direitos autorais se ele quiser adotar a nova oração nas cerimônias da NYSE.
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Litania para o capital
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Ó Vós, que permitis, divinamente,
A implosão de todo patrimônio!
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- Concedei-nos cobrir as perdas.
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Ó Vós, que sois pai de todas as Bolsas,
idolatria de derivativos!
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- Concedei-nos cobrir as perdas.
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Ó Vós, que distribuís as sementes
da fortuna e da fome, cegamente!
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- Concedei-nos cobrir as perdas.
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Ó Vós que podeis prever o porvir
daqueles que abdicam de consumir!
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- Concedei-nos cobrir as perdas.
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Vós que negais os frutos do trabalho,
escutai as preces do investidor:
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- Concedei-nos cobrir as perdas!
Paris não tem segredos
… E logo, logo, nenhuma cidade terá. Veja bem. Isso que aparece na fotografia acima são as duas janelas de minha casa. A da esquerda é o quarto de dormir, com as cortinas vermelhas, improvisadas, que instalei para substituir as originais, também encarnadas, mas bem mais grossas e eficientes, que caíram com um estrondo patético na primeira noite em que tentei fechá-las. À esquerda, a sala, com a cortina original, cor de creme, e dois vasos, um com flores, o outro com uma pimenteira. Os vasos já existem desde o ano passado. Estiveram vazios durante todo o último inverno, a maior parte da primavera, também. As flores, comprei para substituir as antigas, que estavam mortas. Foi no início de agosto, salvo engano. A flor mais alta, violeta, ainda estava fechada, só foi se abrir no final do mês. A fotografia, portanto, só pode ter sido tirada na última semana de agosto ou nas primeiras de setembro.
Quem gerou essa imagem não foi minha máquina fotográfica. Encontrei-a depois de baixar o Google Earth, pensando que seria a ferramenta ideal para me ajudar a preparar as viagens que, queira Deus, ainda farei. E será, sem sombra de dúvida. Navegando por suas telas, passeei virtualmente pela Unter den Linden de Berlim e pela Gamla Stan de Estocolmo. Vi de perto a distância entre o museu Ermitage e a avenida Nevski, tantas vezes evocada no desespero transcrito de Dostoievski. Fui a Roma, que tenho boca, baixei a aplicação que reproduz a capital do império no tempo de Constantino e me esbaldei de passear por suas construções, monumentos e edifícios, descobrindo a aparência intocada das ruínas que conheci há mais de um ano. O Google, novo Constantino ou novo César, como queira, me concedeu a graça que os administradores do turismo italiano me negaram.
Em Roma, encontrei um instrumento magnífico. A princípio, pelo menos. Pequenos ícones que retratam câmeras fotográficas. Clica-se sobre eles e se é atirado dentro da cidade, numa fotografia tridimensional tirada sabe-se lá por quem, sabe-se lá quando. (Era certamente verão.) Da primeira vez, acreditei que seriam só os grandes entroncamentos, os pontos turísticos, os centros importantes da cidade eterna. Qual o quê. A cada número da rua, vê-se um outro ícone, depois outro e outro mais. É possível inventar caminhos por todos os cantos de Roma, como quem anda a pé, mas sem se cansar, sem sentir o calor, sem ser ofendido por algum italiano grosseiro, só de clicar sucessivamente nas máquinas intermináveis que vão se apresentando à sua frente.
Rostos e placas de carro, enfim, tudo que possa identificar alguém, são desfocados. Anda-se por avenidas e vielas onde ninguém tem face, figuras congeladas em seus trajes, poses e caminhos, mas desprovidas de olhos, lábios, expressões. É um passeio em que o vento é morto de uma morte estranha, ainda capaz de inclinar as árvores, mas não balançá-las. Onde os sinais vermelhos se recusam a passar ao verde, mas os motoristas não se impacientam. Onde o pequeno trânsito irritante, causado por algum caminhão parado em fila dupla, é eterno enquanto assim o mantiver o gestor desse programa do Google. É a presença física numa cidade estrangeira, tão física quanto pode ser uma presença virtual.
Cansado da vista de Roma, deixei-me invadir pela curiosidade. Quão bem fotografada seria Paris? Considerando, claro, que, para além do universo Google, é a cidade mais retratada do mundo, logo à frente do nosso malemolente Rio de Janeiro. Os bairros mais afastados teriam o mesmo privilégio do centro? Os mais feios? Os mais sujos? Os mais castigados pela criminalidade? No espaço de um segundo, com o esforço concentrado de digitar as cinco letras do nome da cidade e um Enter decidido, vi-me a sobrevoar esta outra capital, mais nova, mas nem por isso menos célebre que o lar dos papas e imperadores.
Posicionei o cursor sobre meu bairro. Aproximei a imagem e esperei enquanto ela se tornava mais nítida. Aos poucos, pude identificar a praça, a rua de trás, o carrossel das crianças, a fileira de árvores no larguinho. Apareceram, um depois do outro, os ícones de máquina fotográfica. Cliquei no que parecia mais próximo do meu prédio. Não era, havia outros, mas pude ler as insígnias das lojas, dos correios, do restaurante chinês, onde almoço quando a pressa fala mais alto que a saúde. De câmera em câmera, fui me achegando de minha pequena rua. Entrei à direita. Bem à frente, li o nome do estacionamento enorme que é responsável por mais de metade do barulho que às vezes me impede de dormir.
Fui avançando até chegar na imagem que registrei acima. Minhas janelas, visíveis por qualquer um, em qualquer parte do mundo. No meu caso, era quase um espelho. O verdadeiro observador, do lado de cá, no outono, quase inverno, aquecido pelo gás, em plena escuridão. Do lado de lá, minha presença virtual, flutuando pela rua nas últimas semanas do verão, com flores radiantes, essas que, para o verdadeiro eu, de carne, que escreve e não flutua, já estão amarelecidas e sem pétalas.
Estranha sensação. Um sem-número de fotografias tiradas, rostos apagados com esmero, imagens consolidadas e inseridas no enorme sistema de mapas da NASA que o Google transformou em fantástico brinquedinho. Em breve, será assim no mundo todo. Qualquer pessoa que já me enviou uma correspondência, ou qualquer um a quem já enviei meu currículo, poderá ficar curioso de saber onde e, mais ou menos, como moro. Bastará entrar no programa para descobrir. Não imagino que tipo de resultado isso possa ter. Conjecturo, mesmo, que talvez não possa causar nada, seja perfeitamente neutro, não mude coisa alguma no mundo ou só o mude para melhor…
Enfim, não há nada de racional nisso, mas a verdade é que fiquei incomodado, diria mesmo intimidado. Metralhei-me com perguntas: como se produziu a imagem das minhas janelas, pelos céus!? Alguém foi contratado para passear pela cidade inteira, em vários lugares do mundo, visitando ruela por ruela, bairro por bairro, a tirar fotografias tridimensionais a cada três ou quatro passos? Ou teria o Google comprado os registros das câmeras de segurança da prefeitura, que, por sinal, nem são tantas assim…
Essas fotos em que minhas cortinas aparecem fechadas poderiam ter sido tiradas poucas horas antes, ou depois, e as cortinas estariam abertas, meus móveis à vista, as fotografias da parede, essas bem pessoais, expostas. Nesse caso, estou certo, o Google, novo Nero, novo Caracala, teria borrado a visão de minha vida pessoal, ou melhor, da parte mais pessoal da minha vida, antes de lançá-la a público em seu programa. Mesmo assim, segue que o fotógrafo terá visto. O programador, idem. A imagem original talvez ficasse guardada no HD da empresa, como numa gaveta de jornal, esperando para ser descartada ou redescoberta, indefinidamente. Indefinidamente…
Eu disse em algum lugar, talvez até no título deste texto, que Paris não tem mais segredos. Mas se fosse só isso, ora, que é que tem! A tendência é, cada vez mais, que tudo se saiba, tudo se veja, tudo se conheça e esqueça tão rápido quanto acontece. Certo? Boa pergunta, não sei dizer. Mas eu, cá no meu canto devassado pelo Google, bem que gostaria de ter um ou outro segredinho todo meu. E antes que me acusem de ser dissimulado, antiquado, inadaptado, já digo que não é nada disso. Nem se trata de fazer charme. Timidez, talvez seja. Mas pode ser uma mania idiota, coisa de quem não consegue apenas viver no próprio mundo. Talvez seja pedir demais, mas eu gostaria muito se, para ter uma visão das minhas janelas, alguém tivesse de vir até aqui.
Um repórter, finalmente!
Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.
O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.
Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.
Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.
Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.
Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.
O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.
Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.
Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.
Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.
Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.
Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.
Panela de pressão apitando em desespero
A Europa carrega nas costas o peso dos crimes da História; senão todos, pelo menos quase. Isto pode ser verificado em todas as catedrais e castelos, bulevares e cafés. A beleza das árvores no outono pode emocionar, mas sussurra constantemente no ouvido a memória do colonialismo, do fascismo e da Inquisição. O Louvre, além da Vênus e da Gioconda, ainda tem nas paredes, mesmo fenecidas, as manchas de sangue da noite de São Bartolomeu. O Duomo de Florença é no fundo um compêndio da ganância dos Medici, assim como a Praça de São Pedro reflete a história para lá de profana do papado. E o museu do Prado, para não esquecer a Península Ibérica, acima de todas as suas telas de Velásquez e El Greco tem penduradas as vítimas hereges e judaicas, como os espectros que rondam o Tiergarten de Berlim.
Mesmo os crimes cometidos na África, na América e na Ásia são reflexo da crueldade dos europeus, esses seres pálidos de terras frias e escuras, que venderam, geração após geração, suas almas em troca de ouro e glória. Os crimes dos americanos no México, no Caribe, na Coréia, no Vietnã, no Iraque, também ecoam, ainda hoje, a sede de sangue dos conquistadores europeus. É a ação do chamado Ocidente (um conceito obscuro capaz de incluir todos os habitantes de países ricos que não têm pele escura ou olho puxado).
Toda essa sanha destrutiva custou caro ao continente. Eles chegaram à beira do abismo mais de uma vez, a última delas há pouco mais de meio século. Perderam grande parte de sua riqueza, suas colônias, sua predominância internacional. Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, Áustria, Portugal. Todos eles, países que chegaram a se considerar donos de um belo naco do mundo – ou de todo ele. Centros de cultura, comércio e poder. Todos submetidos ao jugo de sua ex-colônia norte-americana e, por algum tempo, a seu antigo patinho feio, a Rússia.
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O que restou do banho de sangue foi um continente fascinante, pelo que tem de cruel e pelo que tem de admirável. Ao contrário do que disse o Otto Lara Resende (ou será que foi o Nelson Rodrigues, se fazendo passar pelo Otto? Isso acontecia…), não é uma burrice aparelhada de museus, mas o museu vivo das burrices e dos brilhantismos que nem sempre se distinguem claramente. É o continente que inventou o humanismo com as ferramentas do Terror e da retórica esnobe. Foi a primeira parte do planeta a romper aristocraticamente com a aristocracia, a disseminar tiranicamente os valores democráticos, a abrir a sociedade às mulheres, sem abrir mão do patriarcalismo. Neste rabicho da Eurásia surgiu a idéia de que todo indivíduo tem direito à educação: os ricos e os pobres, os brancos e os imigrantes; educados, os trabalhadores puderam render melhor nos momentos da espoliação. A Europa investiu mais do que ninguém em transporte de massa, que leva seus subjugados para subúrbios desumanos como os nossos – bom, talvez não como os nossos.
A amplitude das contradições chega a ser fantástica. Se for para comparar com o Brasil, eu diria que nossas contradições são mais comportadas, reproduzindo na ponta dominada uma imagem de tamanha incompatibilidade. Note-se a civilidade, e quão brutal essa civilidade pode ser: quando há um problema, e Deus sabe que há muitos, eles sentam, discutem e resolvem como der. Nem que isso envolva ameaças de aniquilação e fantasmas de guerras passadas. A cultura européia, com toda sua arrogância e xenofobia, e talvez até mesmo por causa dela, é mais aberta do que a nossa. Como pode? Apesar de uma infinidade de atitudes de segregação e desrespeito que se vêem quotidianamente nas ruas de Paris, ainda assim os franceses se dedicam a iniciativas de aproximação com outras culturas, religiões, civilizações, bem mais que os brasileiros.
No Brasil, quando se discute qualquer assunto, a comparação é inevitável: “no Brasil é X, na Europa (ou nos EUA), é Y”. Já o europeu discute assim: “Aqui X, no Egito é Y, em Madagascar, Z, no Japão W, no México…”. O mais notável é que na verdade eles estudam geografia mais ou menos como nós, mas não acham que seja perda de tempo. É um exercício pelo qual reafirmam para si próprios, e para os periféricos deste mundo, sua superioridade moral (já que a econômica e a bélica, não dá mais). Assim, absorvem aquilo que é útil para eles e elevam à categoria de descrição fiel do universo. É autoritário e, ao mesmo tempo, aberto.
Mesmo assim, parece que o momento atual está fazendo transbordar isso tudo. Devo dizer que estou assustado, sem querer soar sensacionalista. Há um ódio latente que é difícil não notar, e que tem justificado um desejo de retornar a narrativas bem mais fechadas (e tão autoritárias quanto). Aqui há olhares de desprezo, acolá de agressividade. De um lado há sobrenomes tradicionais da Provença ou de Champagne, do outro filhos do Maghreb e da Costa do Marfim. Houve por algum tempo uma ilusão de integração e assimilação que exala uma certa beleza. Por sinal, chegou a ser verdade alguns casos. Por exemplo, durante um curso da faculdade, estudantes de origem islâmica debatem com o professor no tom mais aberto e intelectualmente honesto possível.
Fora da sala de aula, isso não acontece dessa maneira. Os grupos islâmicos estão se tornando mais herméticos e muito se fala em ressentimento. Há famílias que recusam a entrada de médicos e bombeiros em seus enclaves, sentindo-os como se fossem imposição de um império colonial. Não admitem estudantes não-islâmicos em suas escolas, e chegam a expulsar famílias que colocam seus filhos em escolas públicas, e portanto laicas. Afastam-se de todo contato com o país em torno. A descrição é desagradável, mas o mais desagradável é perceber que por muito tempo não acontecia assim… e agora está acontecendo.
* * *
A explicação pode estar no lado inverso, e é por isso que ele me assusta mais. É mais ou menos normal que populações imigrantes procurem buscar segurança no próprio seio (claro, com um certo bom senso), principalmente quando são grupos excluídos socialmente e economicamente desfavorecidos. O que observo, porém, é um recrudescimento do ódio nos europeus, esses mesmos que há algumas gerações desenvolveram os conceitos de tolerância, humanismo, igualdade e assim por diante, pincelados acima. As comunidades muçulmanas se fecham sobre si próprias e os próprios europeus se fecham também, não só para os muçulmanos, mas para os próprios conceitos que formam o, digamos assim, lado mais admirável dessas contradições européias. Andam ressuscitando ideais de pureza e violência que se acreditavam sepultados e superados. A presença de um “outro”, na verdade um semi-outro, já que sua história é intimamente vinculada à história dos europeus nos últimos séculos, justifica a a firmação de uma identidade que também é mutilada e grosseira. Nada de bom pode sair daí.
Vê-se a tensão em cada canto, como uma panela de pressão que apita em desespero. Muçulmanas com véus tão apertados quanto possam, coloridos, de frente para moçoilas de mini-saia e maquiagem, que as encaram com ar de desdém. Rapazes de barba e pele escura olhando como quem quer briga para colegas pálidos que se barbeiam provavelmente duas vezes por dia, e não retornam o olhar de maneira menos agressiva. As posturas estão cada vez mais demarcadas, distantes, herméticas. Os cursos universitários de cultura islâmica têm pouquíssimos interessados, a grande maioria de estudantes muçulmanos, quase nenhum não-islâmicom querendo se aprofundar em outras formas de pensar e enxergar o mundo. Quando o provável próximo presidente chama uma parcela da população de escória, não é à toa. Não há diálogo, senão marginalmente, entre pessoas “de boa vontade” mas um pouco sonhadoras.
Não há como deixar de ver um certo risco de uma guerra civil, quiçá religiosa, na Europa. Nada, claro, como o que se passa no Brasil. Não é questão de ser assaltado na frente de um policial que finge nada ver. É algo um pouco mais, digamos, sério. Seria a concretização do “choque de civilizações” de Samuel Huntington? Talvez, mas o que se choca são, na verdade, vizinhos que têm o mesmo passaporte, votam nos mesmos candidatos, usam a mesma linha de metrô.
Os valores que salvaram o continente, infelizmente, não são tão fortes quanto chegaram a se afirmar (e não poderiam se firmar sem afirmar-se como tais, talvez até mesmo sabendo que era blefe). Não será de estranhar se esses antigos monumentos forem testemunhas de mais um banho de sangue. Talvez o que falte a esses valores seja nutrir-se da própria dialética e entender o quanto há de contraditório neles. Afinal, se havia o ideal de uma integração, que integração é essa que necessariamente apaga quem vem a se integrar? Se de fato a imigração enriquece a cultura que a recebe, qual é o nome que se dá a um enriquecimento que relega a subúrbios esquecidos a fonte dessa mesma riqueza?
Há uma falha trágica, pelo visto, na própria integração, e que vem completar as falhas dramáticas do integrismo dos brancos e do comunitarismo dos árabes. Muito de criação poderia passar no meio desses buracos, desses vórtices supersaturados de energia. Mas caminhando pela cidade e por alguns de seus subúrbios, conversando com jovens e velhos, franceses “de souche” e filhos de magrebinos, o termo que flutua por entre as frases, quando o interlocutor faz a pausa para retomar a respiração, é ressentimento, como o apito da panela de pressão.