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Lições de quem largou o vício

No primeiro dia, tudo parecia depender de nosso heroísmo e abnegação. Largar as drogas parece ao alcance da mão, ao menos para quem tem força de vontade. A desintoxicação, pensando bem, não exigiria nenhum grande gesto, no máximo um pequeno sacrifício: abster-se de dobrar o filtro, de acender o fogão, de riscar o fósforo, de meter a colher no pó, de derramar a água fervida, de acrescentar açúcar, de saborear. Se um único desses movimentos fosse evitado, a salvação estaria próxima.

Era sábado. Dia bem escolhido, sem obrigações, ideal para enfrentar a sonolência e a ofensiva germânica das dores de cabeça. Matar ou morrer. Não havia mais alternativa senão largar o vício que nos corroía por dentro, dissolvia nossos estômagos, impregnava nossas roupas, amarelava nossos dentes e, cheguei a crer, nossa pele.

Ah, líquido insidioso! Quiseste, pois, comprar nossa saúde com energia e sabor? Quiseste envenenar nossas artérias com o ardil de teu aroma? Acreditaste que, dependentes de ti para acordar, trabalhar, raciocinar, não teríamos a coragem e a disposição para expulsar de nossa casa tua perfídia indiscreta? Pois que dirás agora?

De fato, fomos heróicos e abnegados no sábado. No domingo, igualmente. Passamos o dia esparramados sobre a cama, depois sobre o sofá, incapazes de preparar refeição mais complexa que um punhado de sanduíches. Na bancada que serve de despensa, os sacos de pó seguiam intocados e nós tratávamos de não pensar neles. Víamos televisão, embasbacados, porque filmes exigiriam uma concentração inatingível. E se, dentro do crânio, os miolos pulsavam em agonia, fazíamos de conta que era enxaqueca, contra a qual nada se pode fazer.

Segunda-feira chegou, com sua rotina compulsória. Para o tormento físico, tentamos aspirina, a chave-mestra das pílulas. Tomamos logo duas cada, cientes do sofrimento que ainda haveríamos de encarar ao longo do dia. Recorremos à força de vontade para vestir as roupas, amarrar os cadarços e preencher os bolsos com chave, carteira, celular. Colocávamos em palavras nossa convicção: “É preciso ser forte, temos de vencer.”

Quando um de nós se aproximava de uma recaída, lançava um breve olhar para o outro, na tentativa de buscar forças na cumplicidade e no amor. Era nossa única esperança para vencer o empuxo do vício, a crise de abstinência, o desejo lúbrico por aquele líquido negro, ligeiramente viscoso, cuja imagem fantasmagórica parecia pairar constantemente à frente de nossos olhos. Deu certo. Sem querer desapontar o outro, nem eu, nem ela recorremos a uma xícara às escondidas.

Mas persistia a questão da dor, que não passava. E havia trabalho a fazer, muito trabalho. Impossível, debaixo das ondas que afogavam nossos cérebros. Era um impasse evidente. Não sabíamos o que fazer. Se o desempenho profissional se visse comprometido, a volta ao vício seria uma questão de tempo. Pouco tempo. De repente, uma solução possível se afigurou: não havia alternativa, senão cheirar. Fui buscar o pó na despensa. A lata que tinha passado o fim-de-semana intocada me esperava com a paciência de um monge tibetano. Recolhi-a e a levei de volta para a sala. Tínhamos, é verdade, dúvidas de que fosse a melhor atitude. Afinal, cheirar está a um passo de beber. Bem teríamos pensado duas vezes, mas a verdade é que não há motor mais possante que a falta de opção. Destampei a lata.

Soltaram-se os eflúvios, que de imediato se puseram a flutuar pelo recinto. Cheguei a ver alegres tons rosados, em contraste com a verdadeira cor do pó, madeira quase negra. Aproximei o nariz, ainda um pouco hesitante, e aspirei. Faltam palavras para expressar o prazer. Que alívio, um contato afastado, mas real, com o objeto de meu vício. A intempérie no sistema circulatório se acalmou um tanto, tornou-se brisa controlável. Eu poderia ter passado o dia todo com a cara enfiada naquela lata, sujando a ponta do nariz e sofrendo alucinações. Mas passei-a para ela, e ela reagiu de forma idêntica. Desta vez, meu prazer foi contemplar a iluminação imediata de seu rosto.

Assim levamos a semana. Acordávamos, tomávamos o chá-da-manhã, corríamos para a lata milagrosa, santuário das narinas abstêmias. Depois, tentávamos tocar a vida, na medida do possível. Fomos menos produtivos e, desconfio, mais irritadiços. Mais preguiçosos e menos tolerantes. Se, por um lado, alguém parecia nos martelar a cabeça, por outro, aos poucos sumia a fogueira do estômago. Aguentamos.

É essa a palavra. Aguentamos.

Cinco ou seis dias depois, parecia passada a crise. Podíamos levar uma vida quase normal, sem aquela agitação doentia, os olhos esbugalhados, o tremor nos dedos. Forçoso confessar que nos arrastávamos um tanto, sem o ritmo da batalha do dia-a-dia. Mas um ganho era líquido, sem trocadilho, e certo. As cabeças não doíam mais. Esse pequeno triunfo parecia coroar nosso esforço.

Acontece que nos deixamos levar pela ilusão. Sábado à noite, um bar com amigos, a lista de bebidas parecia incluir o item ideal para quem quer levar uma vida normal, como a de todo mundo, isto é, dos limpos, abstêmios, não-viciados. Um drinque que leva a maldita bebida de que tínhamos sido dependentes. Não foi por tolice que caímos na armadilha. Foi traição do inconsciente, ávido por um pouco mais daquele gostinho saudoso. Foi assim que, na manhã de domingo, muito além da ressaca, demos com a velha crise de abstinência a bater na porta.

Em arrependimento, arrancamos cabelos. Imploramos clemência aos espírito da droga. Trocamos acusações vazias, já sabendo que aquela era uma culpa compartilhada. Mais calmos, recorremos a um juramento, como os que se faziam na Idade Média. Dali por diante, seríamos mais fortes, dissemos entre nós.

E fomos mesmo. Exceção feita para um único dia. Quinta ou sexta, já esqueci. Acontece que era um momento-chave de nossas vidas. Demandava um nível de concentração invejável. Como exigir que passássemos sem uma xícara? Pelo menos foi uma só, asseguro. Era inevitável. Caso contrário, não teria como não submergir.

Pois foi aí que aconteceu o milagre. Ao primeiro gole, um enjôo, acidez na boca, discretas convulsões. Sim, um milagre: o corpo rejeitava aquela invasão ácida e quente, de um líquido sem o qual, poucos dias antes, não conseguia se manter coerente. Nesse instante, entendemos que estávamos limpos. Nosso sangue, composto até então de alguns glóbulos, umas gotas de água e um dilúvio de cafeína, já tinha voltado a ser vermelho. Uma vez na vida, havíamos vencido.

Mas não estávamos inteiramente livres de problemas. Precisávamos encontrar uma maneira de preencher a lacuna da disposição física e mental. Essa tinha sido, afinal de contas, nossa desculpa para mergulhar tão profundamente no vício, na dependência, na entrega servil a uma substância pesada. Que outra fonte poderia nos fornecer a trimetilxantina indispensável?

Pensamos primeiro naquele famoso refrigerante imperialista; mas se acidez é o problema, não pode ser essa a solução. Consideramos o chá, mas o resultado foi decepcionante. Chocolate também tem seus efeitos colaterais terríveis, queira Tim Maia ou não. Pílulas? Nada disso, nosso estado de dependência jamais chegou a níveis tão patológicos.

Finalmente, encontramos. Mais uma vez, teríamos de recorrer ao pó, a divina poeira que anima as almas. Uma loja de produtos naturais, na rua de comércio vizinha, vende guaraná em pó. Na seção, claro, de produtos exóticos, muito estranhos, vindo daquelas terras em que as plantas são verdes o ano inteiro. Eis aí a saída. Guaraná é riquíssimo em cafeína, não costuma fazer mal ao estômago e não deixa ninguém com dentes amarelos. Compramos.

Tem funcionado. A cada manhã, misturamos ao suco umas pitadas do guaraná. Com ele, podemos levar o dia inteiro como crianças num parque temático. Só tem um porém. Aliás, sempre tem algum, raios! O bendito pó tem um gosto terrível. Nada parecido com o refrigerante que era brasileiro ou o suco adocicado que se vende nas farmácias. Este que adotamos é arenoso e amargo. Terrível. Como se diz, gosto de remédio. A tal ponto que, da última vez em que o engoli, me flagrei aos suspiros:

– O café era tão gostoso…

* * *

PS: Não foi a primeira vez que tentamos limpar nossos organismos. A primeira, como deve ter ficado claro, falhou vergonhosamente. À época, também escrevi sobre o assunto. O texto pode ser encontrado aqui.

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Nos jardins, as cerejeiras

Três cerejeiras
Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora…

Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.

Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.

Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.

Se me fosse dado mudar algo no texto de “O Cerejal”, de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.

Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: “Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!” Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.

Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.

Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.

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Ele, um homem sem nome

Escultura+mulher+nua

Pelas cócegas leves que lhe causava o roçar dos pêlos, sentiu a mão que abandonava sua nuca para envolver a curvatura de um seio. Ao contato tão delicado dos dedos, a pele macia cedeu, afundou-se, e o calafrio que disparou por sua espinha a fez apertar os olhos e morder o lábio. Deixou escapar um som abafado. Passou os braços por trás da nuca dele. Pelos cabelos anelados, puxou sua cabeça para trás e assaltou com os seus aqueles lábios escancarados.
O movimento dos dois corpos engatava-se pela harmonia do ritmo. Ele aninhou a cabeça em seu colo, ela apertava com as panturrilhas os rins ligeiramente salientes por baixo das costas encurvadas em sua direção. Sentia como se seu corpo cozinhasse, dois suores se misturando pela fricção, membros que dançavam feito cobras enfeitiçadas. A cada vez que ela expirava, soltava todo o ar de seu interior, e era como se escapasse uma parte de sua alma, vaporosa, à temperatura de ebulição. Passou as unhas, com violência quase descontrolada, pelas costas do homem. Debaixo da pele úmida, a musculatura era tensa, entregue ao esforço de dar prazer. Ele tinha o rosto crispado, rilhava os dentes, grunhia como um urso. Ela teve um acesso de riso, espasmos graves, livres, sem pretensões. Sentia puxões involuntários nos músculos internos das coxas, e seus pés estavam esquecidos, frios, os dedos virados para dentro.
O prazer tomava corpo no passo lento em que os corpos balançavam. Ambos queriam prolongar ao máximo aqueles minutos de simbiose das carnes, sentados sobre um colchão desconhecido, ela por cima, a abraçá-lo com os quatro membros, um limitando o fôlego do outro. Mais cedo ou mais tarde, ela sabia, escaparia de seu bojo um facho elétrico, que apagaria de seu cérebro, por um momento, todo traço de consciência.
Porém, antes que pudesse ser arrebatada pelo orgasmo inevitável, ela percebeu que ele balançava a cabeça com violência, chocando-a contra seus ombros. Seu corpo todo se agitava, tremia, enquanto sua vontade frágil combatia o fluxo que ascendia, de prazer e vida. Foi em vão. Ela sentiu quando, de uma só vez, todo aquele corpo grande, coberto de uma penugem dourada, se deixou relaxar com uma sucessão de espasmos e mais grunhidos nervosos.
Foi impossível evitar o assédio da decepção. Não que o acusasse pela incontinência, mas já antevia a perda da excitação, o amolecimento do parceiro, o final abrupto da relação. Para não terminar o encontro sem o êxtase que merecia, e que chegou a parecer tão próximo, ela seria obrigada a continuar sozinha dali por diante, estimulando o próprio sexo e os sentidos, agarrada à fantasia do que quase havia sido. Não seria uma satisfação tão grande quanto o prazer de ser levada ao gozo pela agressividade habilidosa do parceiro. Porém, se ele não conseguisse evitar de recolher seu estandarte, seria a única alternativa à frustração de não gozar.
Surpreendentemente, ele ainda conseguia. Envolveu sua cintura entre os braços, deitou-a de costas sobre os lençóis e, numa respiração penosa, acelerada, continuou a se movimentar por dentro dela, com afinco redobrado. Não era um atitude natural. Era evidente que, ao contrário, ele obrigava seu corpo a um quase sacrifício, combatendo a tendência fisiológica, que ela bem conhecia, de largar-se e dormir profundamente. Mas ela também sabia que o esforço não daria resultado por muito mais tempo. Se ela não atingisse logo seu próprio ponto de sublimação, ele perderia seu tônus, os órgãos não responderiam e a virilidade de seu membro desmancharia em flacidez. Ela teria de se unir ao esforço do homem para que ele obtivesse algum êxito.
Ela se sentia confusa, mas emocionada. Tocava-a o fato de que ele ainda se preocupasse com a satisfação da parceira, mesmo já tendo obtido a própria. Não é a regra entre os homens, dizia-lhe sua experiência amorosa de quase das décadas. Tratando-se de um namorado, um marido, um amante, o caso seria outro, mas não muito. O homem verdadeiramente amoroso cuidará que seu júbilo não seja solitário. Se também for consciente das volições do amor, tratará de levar a mulher ao zênite do arrebatamento, nem que seja por temor de que ela encontre um outro que o faça.
Mas não era esse, ela pensou, o caso do homem que resfolegava por cima de seu corpo. Seu altruísmo era, sem sombra de dúvida, desvinculado de emoções estáveis. A relação dois dois estava submetida a um contrato rigoroso, em que ficava acordado que não seria mais do que um encontro fugaz, uma noite de prazer sem conseqüências que só teria lugar porque uma atração irresistível os colocara um diante do outro. Um acaso, pois. Que tenham se encontrado, e iniciado uma conversa, durante um vernissage a que nenhum dos dois planejara comparecer. Mas compareceram ambos e, simples assim, travaram conhecimento. Enfeitiçaram-se um pelo outro, e não era efeito do álcool oferecido com fausto, nem de suscetibilidade emocional.
Ele, suprema desgraça, era casado. Eis ali seu anel, que não permitiria uma mentira ou disfarce. Ela, recém-separada, acreditava estar livre do desejo, pelo menos por mais alguns meses. Tomara asco do gênero masculino e vangloriava-se das portas abertas que tinha para cuidar da própria vida. Talvez tenham sido justamente essas barreiras a empurrá-los um para o outro. Como saber? Não seria o matrimônio forte o suficiente para apagar o verdadeiro vulcão de testosterona que corroía as estruturas morais do homem, nem as convicções velariam à percepção da mulher a força telúrica dos olhares penetrantes que ele lhe lançava.
Por longas horas, ainda tentaram conter nas raias da civilização presumida o desejo mútuo que praticava seus caprichos sobre os dois espíritos. Mas não demorou até que algo acontecesse, um resvalar involuntário dos dedos, um ato falho da linguagem, qualquer coisa, e o instinto acabasse assomando à superfície. Ele se apressou em deixar claro que não tinha intenção nenhuma de abandonar sua família, nem ao menos de colocá-la em risco. Ela respondeu que jamais esperaria ou exigiria dele nada parecido. Explicou sua situação, sua misandria recentemente desenvolvida, a repulsa a qualquer forma de vínculo estável com um homem naquele instante. Desse ponto, chegaram a um acordo sobre suas intenções, que lhes permitiria partir para a relação livre sem a perspectiva da culpa ou do remorso.
Não perguntariam um ao outro nem mesmo como se chamavam. Sairiam dali diretamente para um motel, em carros separados, com um intervalo de tempo, após despedidas de naturalidade inquestionável aos demais presentes. Fariam amor, diriam adeus, e nunca mais. O acordo contava com a concordância irrestrita das partes envolvidas. Portanto, ela estava certa de que não seria por efeito de algum sentimento de estima que ele prosseguia em sua insistência de fazê-la gozar.
Seria, pois, uma manifestação de altruísmo, de consideração e respeito. Mas não era o momento de se perder em conjecturas. O fôlego do homem se esgotava. Se ela não conseguisse atingir o orgasmo nos instantes seguintes, todo o esforço seria perdido. Concentrou-se. Reforçou os movimentos, contraiu seus músculos para tornar a fricção mais intensa. Dali a pouco, pôde perceber um latejamento leve, e uma sensação que parecia uma longa nota de clarinete que vibrasse em seu corpo de baixo para cima, da vulva à nuca. Seus músculos contraíam-se e distendiam-se sem um comando seu. Ela conseguira. Queria demonstrá-lo ao parceiro, revelar que seu esforço tivera uma
recompensa digna, que ele poderia baixar a guarda. Gemeu, gritou, enfiou os dentes no pescoço salgado e vermelho do homem, com suas veias e tendões saltados.
Não seria o mais intenso de seus orgasmos, mas o que experimentava era, ainda assim, muito agradável. Foi tomada por uma calma que lhe parecia da amplidão do universo. Suspirou. Sentiu que o corpo do homem abandonava sua posição sobre ela para largar-se, exausto, a seu lado, mas ainda com o braço passando por cima de seu ventre. Abriu os olhos porque sentiu o desconforto do vento frio que ocupava o espaço deixado pelo corpo grande e pesado sobre o dela. Num movimento lento, voltou o rosto para o lado e encarou seu parceiro, que ainda tinha as faces ruborizadas pela força que fizera. Mas já estava adormecido.
Ela continuou observando seu rosto. Prestava atenção na respiração forte do adormecido ainda ofegante, no tronco que subia a cada inspiração e descia gentilmente para expulsar de volta o ar, na expressão de tranqüilidade imaculada. Um novo pensamento a assaltou. Todo aquele sacrifício seria mesmo apenas uma demonstração de consideração? Não teria acontecido algo a mais naquele intervalo de tempo em que estiveram juntos? A atração, ora, não pode ser apenas química. E mesmo que seja, é inconcebível que as ligações químicas de um momento não se reproduzam através do tempo. Os corpos, afinal, são os mesmos.
Presa pelo braço do parceiro, atravessado por cima de seu umbigo, ela não podia se levantar para ir ao banheiro, como desejava, para limpar-se e tomar uma ducha gelada. Pensou em empurrá-lo, afastar o braço, forçar a saída, mas decidiu deixar os movimentos drásticos para mais tarde. O homem dormia profundamente, ressonava, e o som de seu quase ronco transmitia uma vontade curiosa de também adormecer. Ela acompanhou com o olhar os traços do rosto, as rugas, as pequenas pontas de barba que ameaçavam nascer, os cabelos que já sofriam a invasão de alguns fios brancos e grossos.
Assaltou-lhe uma curiosidade terrível de saber quem era aquele homem, como se chamava, o que se passava em sua cabeça. Para todos os efeitos, era um adúltero. Levou para a cama uma mulher que não é a sua. Mas não parou nisso. Foi até as últimas conseqüências, no esforço de proporcionar-lhe um orgasmo, ainda que tardio. Como seria seu casamento? Terrível? Talvez a mulher não lhe despertasse mais desejo algum, talvez ele não sentisse por ela mais do que uma estima carinhosa e fria. Ou talvez ainda a desejasse como sempre a desejara, mas fosse incapaz de afastar do pensamento as fantasias com outras mulheres. Era um homem, não? E os homens querem todos, por natureza, ser polígamos, não? Eis aí um, deitado ao seu lado, que conseguiu sua pequena migalha de poligamia, sua escapadela travessa e segura, livre de culpa ou medo de revelação, graças a um contrato verbal de cláusulas claras e invioláveis.
Uma escapadela, mas onde o prazer da fêmea não foi negligenciado, nem mesmo pela crueldade que muitos homens manifestam de ignorar as necessidades da parceira apenas para exercer uma forma distorcida de superioridade. Para ela, que tantas memórias ruins carregava dos homens que a haviam amado de maneira insatisfatória, até desrespeitosa, aquele sujeito anônimo era quase um herói. Atravessou sua mente, como um pássaro que ela se apressou em expulsar, a idéia de que era injusto, muito injusto, que ela o tivesse encontrado naquelas condições, e não antes do outro, de todos aqueles outros, e também não antes que ele encontrasse alguma mulher para se casar. Talvez sua vida amorosa tivesse sido mais alegre, quem sabe?
Talvez ele tivesse sido o homem certo. Mas agora já estava perdido. Ela não estava disposta a romper o pacto, correr atrás dele, vasculhar seus bolsos para descobrir seu nome e endereço. Agir assim seria, na sua maneira de ver as coisas, bancar a louca. Isso, jamais. O mero pensamento a perturbava de tal maneira que ela precisou sair dali, afastar aquelas bobagens da cabeça, fugir das idéias que formulava contra a própria vontade. Juntou as forças, empurrou o braço do homem e se levantou da cama, nua, ainda sentindo a umidade do suor, do sêmen e de seus próprios fluidos. Ele, porém, nada mais fez do que se ajeitar de outra maneira, numa posição mais confortável para dormir. Antes de se afastar, ela ainda lhe lançou mais um olhar, num gesto que logo considerou um erro. Ele parecia uma criança, agarrando com ambos os braços o travesseiro, as pernas dobradas, o rosto escondido.
Queria, embora não admitisse, saber tudo sobre ele. Teria filhos? Se tivesse, como seria seu relacionamento com eles? Ela leva as mãos ao rosto, meneia a cabeça, repete para si mesma que não, não, não. Caminha até o banheiro. Qual seria a coisa certa a fazer? Tentar algum movimento, para conduzir a situação ao rompimento do acordo? E se ele não quisesse? Não seria ainda mais doloroso? De repente, ela descobriu que não sabia em que termos ele pensaria nela quando acordasse. Talvez não pensasse em termo algum, desse apenas um tchau cordial, dissesse que gostara muito de conhecê-la, e esperasse dela a mesma postura em relação a ele. Mas poderia, também, acordar arrependido, sentindo-se sujo, um adúltero miserável nas mãos de uma mulher manipuladora. Talvez a tratasse como uma prostituta, ou uma conquista, uma mulher fácil. E essa última hipótese era a menos desconfortável, porque derrubaria no mesmo segundo toda a fantasia que ela construíra em torno dele.
Deu-se conta, então, de que a situação já estava ainda mais longe do que esperava, se estava preocupada com a opinião que ele pudesse ter. Jamais dera importância à opinião dos homens sobre ela. Era uma mulher livre e independente. Quem não gostasse dela, tanto pior. De súbito, havia um homem, um homem sem nome, cuja opinião contava. Era demais para sua suscetibilidade. Sem mais um pensamento, ela correu até o banheiro, fechou a porta e se deixou ficar parada diante do espelho, a cabeça baixa e as mãos agarradas à pia.
Quando reergueu os olhos, não reconheceu imediatamente o próprio rosto. Estranhou os olhos entristecidos, a boca, as faces. Encontrou uma marca de expressão em que jamais reparara, e que concluiu ter surgido poucas horas antes. O tempo não perdoa. Ela estava ficando mais velha, sentia-se assim e sua imagem reproduzia o que sua imaginação formulava.
Perfilou-se diante do espelho. Seu corpo ainda era atraente? Talvez jamais o tivesse sido, e os homens que se aproximavam dela o fizessem por compaixão ou, pior, porque não eram capazes de conquistar mulheres mais belas, perfeitas, com curvas traçadas a compasso e sem os pequenos defeitos que lhe saltavam aos olhos. Seus seios lhe pareceram desalinhados e acanhados. Havia uma acumulação de gordura logo abaixo do umbigo, que a fazia sentir-se barriguda, e que não ia embora por nada neste mundo. As nádegas não eram mais tão redondas quanto um dia chegaram a ser. Era impossível disfarçar as concavidades de celulite e os pontos vermelhos de irritação da pele. Que espécie de homem largaria a esposa por uma mulher assim?
Uma certeza se formou em sua mente. “Não sou sedutora, não sou sedutora”, pensou em voz alta, sussurrando no tom de uma sentença de morte. Escapou-lhe o fato de que, poucas horas antes, seduzira aquele mesmo homem que dormia na cama do quarto. Mas sentia-se tão feia e desprovida de encantos que a memória quase se apagara de sua mente. Ele estava ali por alguma espécie de acaso. As ondas de seus cabelos castanhos, que costumava cultivar como uma arma de feminilidade agressiva, traduziam para ela, naquele momento, apenas falta de escova. Passou a mão pelo rosto, e ele lhe pareceu menos liso do que se lembrava.
Percebeu que seus pensamentos a traíam, influenciados por uma perturbação que a ocupara sem motivo, que ela não merecia, mas de que tinha consciência. Revo
ltou-se. Aquilo não poderia continuar assim. Abriu a torneira, molhou as mãos, mergulhou o rosto bruscamente na água fria. O corpo inteiro estremeceu. Tomou ar, estufou o peito. A verdade, disso não tinha nenhuma dúvida, era que não queria alterar o curso de sua vida. Tinha a obrigação de impedir qualquer movimento que a conduzisse nessa direção. Estava decidida: não permitiria que um homem desconhecido lhe negasse o direito de conduzir sua própria vida da maneira como tinha planejado.
Abriu novamente a porta, com o máximo possível de cuidado para não fazer barulho. O homem ainda dormia, e não precisava se preocupar com que ele acordasse: seus roncos cresciam em intensidade, o que era mesmo um bom sinal, uma vez que ela tinha horror a homens que roncam. Pé ante pé, ela buscou suas roupas, espalhadas pelo chão e por cima da cama. Por sorte, nenhuma debaixo do corpo adormecido. Vestiu-se sem olhar para a pele fresca do homem estirado tão perto. Retornou ao espelho, ajeitou-se inteira, os cabelos, o vestido, a maquiagem. A beleza era um componente inseparável de seu amor-próprio.
Ainda sentia no corpo os resquícios do prazer do homem, que a obrigaram a estancar o dilúvio com um papel dobrado. Aquele elemento viscoso de memória quase a abalou, mas sua força de vontade era maior. Tomou sua bolsa, verificou por alto que não deixava nada para trás, atravessou a porta e foi até o carro. Desceu as escadas sentindo o incômodo do sêmen rebelde, mas ignorou-o com galhardia. Deu a partida com um suspiro de alívio e, na saída do motel, fez questão de pagar a conta inteira, como uma última forma de afirmar seu poder individual.
Tomou a avenida no rumo de sua casa. Precisava dormir, não sem antes tomar um último drinque. Mas a determinação que a conduzira para fora do quarto se esvaecia paulatinamente, à medida em que os quilômetros avançavam e a história ia ficando para trás. Não conseguia mais escapar ao ponto mais profundo de sua veleidade: precisava telefonar para a melhor amiga, contar-lhe do ocorrido, de tudo que pensara, do que se passara em seu interior. Sem tirar a mão esquerda do volante, esticou a direita para o banco dos passageiros, abriu a bolsa e a vasculhou em busca do telefone celular. Era uma bolsa pequena, mas seus dedos não topavam com o aparelho. Irritada, ela esvaziou o conteúdo da bolsa sobre o banco. Ele não estava lá.
Percebeu a ironia do fato. Riu, depois sentiu o sangue subir à cabeça. Quase causou um acidente quando golpeou o painel do automóvel. Depois, acalmou-se e riu novamente. Disparou um ligeiro palavrão, suspirou e mordeu o lábio. A vida, pensou, é isso aí. E prosseguiu no caminho para sua própria casa e sua própria cama.
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