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É o queira ou não queira

Sabe Deus as coisas em que eu estaria pensando, se não pensasse tanto nas estações. Pelo visto, na hora de me atribuir uma personalidade, alguém cometeu um engano infeliz. A cabeça que estava reservada para mim deve andar apertando o crânio de algum desses muitos homens do campo que invejam a rotação acelerada das cidades e se perdem em devaneios de asfalto. Pois eu, que jamais vivi em cidade que fosse menos do que enorme, fui dotado com a vocação deslocada de caminhar a esmo pelo espaço vazio. Plantações, prados, veredas.

A que se soma essa coisa com as estações. Não só pelo ciclo, pela passagem do tempo, mas pela fisionomia que se imprime nas paisagens, por imposição, sem recurso, de um planeta que anda em círculos. E pela adaptação calma dos viventes, reféns de uma natureza que os precede em muito. Na falta dos horizontes vastos, recorro às ruas, às margens dos rios, aos parques recortados da virulência imobiliária. É pouco, mas é o que há.

Por muito tempo, quis me considerar uma alma, como eu dizia, “do verão”. Pelos dias mais claros, ligeiramente no Brasil, dramaticamente aqui. Porque sou um amante da luz, embora me sinta mais vivo nas madrugadas. Também, ao menos em parte, pelo calor, que quando extremo me pareceu sempre um flagelo mais suportável do que o frio.

Meu partidarismo estival era tão intransigente que eu antagonizava até com Tom Jobim. Sim, o próprio, confesso. Como ousa, maestro, associar o fim do verão, com aquelas enxurradas medonhas, a uma promessa de vida no coração? Para mim, as águas de março marcavam era o início dos tempos de lã, escuridão e resfriados. Evidente que, como sempre, eu estava errado. Simplesmente não entendia o principal, quase óbvio, cego de convicção.

A esperança de que fala a canção nada tem a ver com os meses seguintes. Não exprime qualquer alívio com o fim da fornalha. Como pude não perceber o sentimento difuso, involuntário, produzido ao pé da garganta, uma esperança de vida sem quê nem porquê! A doce satisfação do estio que vai se encerrando ignora, mesmo nas terras mais inóspitas, as projeções para o futuro. Vão secar as folhas, vão cair, mas o espírito nem se lembra.

Não são os mais belos do ano, título reservado à eclosão súbita da primavera, em abril. Mas os dias finais do verão produzem, e isso é uma certeza, o ar mais carregado de vibrações. São ondas de emissor impreciso, talvez o próprio sol, talvez a terra já cansada do sol, talvez as árvores e as pessoas sorvendo os últimos raios que vão descer neste ano. Seja o que for, essas são as duas semanas mais agradáveis que há.

Acontece que o final do verão, nesta metade do mundo, não chega em março, mas em princípios de setembro. São esses dias de agora, em que as famílias voltam das férias e as crianças reencontram colegas e carrascos na sala de aula. É pouco tempo, duas semanas no máximo. Há que aproveitá-las, nos intervalos das enrolações burocráticas que alguém, gerações atrás, resolveu grampear nesta época, acredito que por recalque.

Eis o espírito com que vou redescobrindo a cidade. Nem é preciso esforço, dou logo com um sem-número de detalhes saborosos, efêmeros como cada estágio da vida. É assombroso, por exemplo, como a cor das fachadas muda de um mês para o seguinte. Eu bem queria apertar a mão de Monet, que abriu nossos olhos para cada variação de luz que incide sobre o entorno, sobre os alicerces de nossa vida! O alaranjado nas pedras de Notre-Dame, ontem, não era como o azul esmaecido de novembro. Mesmo as fagulhas de entardecer, que balouçam nas marolas a cada barco que passa, como em qualquer outro mês, agora cintilam em tom mais pungente. Ainda prata, mas um prateado diferente, esse que está aí, vejo, vivencio, mas não ouso descrever.

Se eu vivesse no campo, em outros tempos, certamente não acharia poético o brilho das marolas. Sem dúvida, estaria ocupado com a colheita, cortando lenha para garantir o inverno, separando a ração dos animais. Fora de questão, essa história de caminhar pela cidade em busca de um verão que já se foi. Não faria o menor sentido correr atrás das estações. Elas pesariam sobre mim, inescapáveis, sem interesse pelas minhas preferências.

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Brasil, crônica, escândalo, ironia, lula, opinião, Politica, reflexão

O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

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