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O garoto que mexia com letras

Meu garoto estava inconformado com as letras como elas são: sempre as mesmas. Que saco, ele se disse: um som, uma figura. E às vezes a gente ainda é obrigado a ler as palavras de um jeito que não é o que está dito nas letras. Isso não é bom.

Depois, ficou maravilhado de saber que existiam outros alfabetos: no grego, o Ene é um Vê; o Erre, um Pê; o Dê, um triângulo. No russo, tem uma mesa com três pés e um É ao contrário. (esse alfabeto se chama cirílico. Ah, belo nome.) E o chinês faz de cada palavra um desenho de bastonetes e curvas. Acontece que nesses alfabetos, também, as letras são sempre do jeito que são. E isso, ele já tinha entendido, não é bom.

Meu garoto queria que as letras mudassem tão rápido, tão sempre, quanto o mundo. Quer dizer, o mundo que ele via, um mundo que não pára quieto. Meu garoto, que não costumava sentar o facho, se trancou no seu canto e não saiu de lá durante dias e dias. Meu garoto não sentiu fome, nem sede, porque tinha quem cuidasse por ele dessas preocupações menores.

Quando apareceu de novo, trazia um protótipo. “Olha só, ele dizia, é um Bê com três barrigas!” E saiu mostrando para quem aparecia à sua frente. Ele esvoaçava, orgulhoso de sua invenção. Uma contribuição do meu garoto à escrita no Ocidente. De cada interlocutor, ele recebia um sorriso complacente e uma festinha na nuca. Como a festinha que recebem os cãezinhos, e ficam contentes.

Mas não era um cãozinho; era meu garoto. Ele não queria festinha, queria mudar o mundo. Pelo menos uma parte dele, nem que fosse só uma letrinha. E sumiu de novo. A casa virou casa sem garoto, casa de gente grande. Até que ele voltou com outra novidade. Uma folha de papel em branco como a outra, com um Bê que parecia perfeitamente normal. Mas é claro que nada pode ser tão normal assim, em se tratando do meu garoto.

Entre as duas barrigas do Bê, as barrigas de sempre, ele tinha imaginado uma terceira, menor. Ela não deixava a linha do encontro das duas outras tocar no bastão vertical, o principal, preenchido com um traço mais vigoroso do lápis para reiterar sua preponderância. E a explicação: do meio do Bê, nasce um Dê. E essa letra é o nascimento, ainda no meio do caminho.

Mas por que não é um Cê?, perguntaram. O Cêe vem logo depois do Bê no alfabeto. Meu garoto sacudiu a cabeça: o alfabeto não está com nada, ele ensinou, como ensinam os garotos aos grandes quando sabem melhor. O Dê vem do Bê e o Cê vem do Ó. Não é óbvio?

Daí em diante, meu garoto entrou num movimento de dedicação integral à sua invenção, fusão e gênese de letras para um alfabeto mais criativo ou dinâmico. Era um tal de Tê virando Efe, Éle com dois bastões verticais, Agá explodindo do meio de um Á… Em dia, ele veio com um círculo cortado no meio e ficou muito decepcionado ao descobrir que aquilo já tinha um nome: era um Téta, era grego e já era muito antigo…

Não demorou um mês para que as paredes estivessem cobertas com estranhos símbolos, cujo sentido era derivado de outros tantos símbolos, ainda com um emprego por descobrir. Estou certo de que eram, no total, mais do que cem, vá saber. Da manhã até a noite, meu garoto mexia nas suas invenções. Ou as modificava, ou as contemplava, ou engordava seu portfólio.

Cheguei a imaginar que isso seguiria pelo sécula seculórum, mas não: de repente, ele parou. Uma certa melancolia no olhar do meu garoto denunciava que alguma coisa não estava bem em seu lugar. Era isso mesmo: ele tinha percebido que, uma vez que existiam, suas novas letras estavam existidas e eram existentes. Paravam de andar, tanto quanto os alfabetos que ele tinha um dia esnobado.

Mas não haveria de ficar por isso. Meu garoto nunca se dá por vencido. Um dia, sumiu de sua fronte aquele ar tão melancólico. Uma luz tomou seu lugar. Convenhamos que era esperança… mas ele a chamava de “ideia genial”.

Mais um tempo trancado na cuca e ele voltou com outra criação: em vez de inventar novas letras, ele soprava a poeira das velhas, encaixava assim e assado, uma de cara para a outra, em cima, embaixo, enfim. Ele obrigava os sinaizinhos cansados a gritar e dizer coisas novas, coisas que nem eles mesmos tinham pensado, não sabiam que podiam representar.

Disso, ele jamais se cansou. Segue fazendo a mesma coisa até hoje, ainda com o mesmo prazer, neste tempo acinzentado em que já ninguém mais quer tratá-lo por garoto.

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Litania para o capital

Fuçando nos arquivos mais recônditos deste HD, acabei encontrando a brincadeira que segue abaixo. Foi escrita quando eu estava na faculdade (e, aliás, este HD nem fabricado era), para provocar meus colegas corretores da Bovespa, que andavam um tanto nervosos, conseqüência de alguma dessas crises por aí.

Lembro-me particularmente de um desses meus amigos, a quem perguntei, por pura gaiatice, já sabendo a verdade, se a corda estava apertando demais o pescoço da empresa em que ele trabalhava. (A tal empresa foi absorvida por outra bem maior, poucos dias depois.)

Pois bem, a resposta do rapaz foi adorável: “Agora, só resta rezar.”

Passei o dia imaginando como rezariam os colegas do rapaz, logo antes da abertura dos negócios, à espera do retinir do sininho. Seria como uma grande celebração, engravatados de joelhos, mãos unidas, ar de introspecção. Aos poucos, vai se erguendo uma voz coletiva, um grande uníssono, para este que, em nosso século, tomou o lugar que já foi de Deus e outros deuses.

Enfim, segue abaixo um esboço do que clamariam os infelizes. Já vou avisando a Duncan Niederauer que cobrarei os direitos autorais se ele quiser adotar a nova oração nas cerimônias da NYSE.

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Litania para o capital

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Ó Vós, que permitis, divinamente,
A implosão de todo patrimônio!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que sois pai de todas as Bolsas,
idolatria de derivativos!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que distribuís as sementes
da fortuna e da fome, cegamente!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós que podeis prever o porvir
daqueles que abdicam de consumir!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Vós que negais os frutos do trabalho,
escutai as preces do investidor:

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  • Concedei-nos cobrir as perdas!
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Da urna aos muros

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Quarta-feira, cinco de novembro, oito horas da noite. Entranhas da Gare Saint-Lazare, estação do oitavo arrondissement de Paris. Uma mulher de meia-idade, cabelos brancos e bem curtos, destaca-se da multidão, quase despercebida. Ela escreve com uma caneta pilot negra sobre o fundo branco de um painel publicitário, em movimentos tranqüilos e seguros. Ninguém a incomoda.

Tendo-a avistado à distância, logo penso se tratar de um membro do grupo anarquista que ataca propagandas por toda a cidade, na missão de denunciar o consumismo e a lavagem cerebral. Mas é uma surpresa: eu pensava que os ativistas underground fossem todos muito jovens. Ao menos o são os que, vez em quando, acabam apanhados pela segurança e sofrem processos por dano a propriedade.

A corrente de viajantes vai passando aos encontrões, sem espiar a mulher resoluta em seu discreto vandalismo. Um fluxo penoso, sem ritmo, mil rumos sem direção. Como sangue empurrado por um coração fora de compasso.

Entre pastas, meias de seda e capotes, só uma pessoa interrompe a marcha para ler a mensagem: outra mulher de meia-idade, mas de cabelos anelados, tingidos de vermelho berrante.

Quando a ativista termina seu texto, estou quase perto o bastante para ler. A fulva espectadora sorri de leve. A autora anui de um gesto brusco da cabeça. Um sorriso e ela tampa a caneta. Está claramente satisfeita com o serviço. Pode voltar a seu caminho.

Já estou bastante próximo para enxergar a mensagem. Sobre o anúncio de sapatos elegantes, lê-se:

À quand un Obama ici?

Uma constatação de como a onda azul está espalhada pelo mundo. A onda que venceu, como não venceu a verde, de Gabeira, no Rio. A francesa engajada, figura tão peculiar deste país, queria um Obama para seu país.

Nações diferentes, histórias diferentes, contextos diferentes. Um Obama na França teria de cair realmente do céu, mas pouco importa. A grafiteira do metrô não quer um presidente jovem, inteligente, carismático e negro.

Ela quer o símbolo, a imagem. O Obama dos cartazes, não o do Salão Oval. Ela quer o nome ao qual está associado tudo que se pode esperar de bom e revolucionário neste nosso começo de século, que parecia tão conformista e reacionário.

“Quando teremos um Obama aqui?”, ela quer saber.

Minha senhora, nesse sentido em que a senhora está pensando, já temos.

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O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

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