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O leitor, terrorista internacional

Aconteceu duas vezes. Primeiro em Copenhagen, depois em Guarulhos. O sinal: bagagem ou casaco na esteira do raio-x, olhos apertados e sobrancelha alçada na pessoa de uniforme, a exigência de separar o objeto suspeito para um exame mais próximo, com direito a luvas de borracha e tom de voz imperioso. Até segunda ordem, o viajante é um terrorista em potência ou, na melhor das hipóteses, um mísero traficante internacional.

Algo ali chamou a atenção dos “agentes de segurança” aeroportuários. São os responsáveis por evitar que a Al Qaeda risque os céus, mas também por manter constantemente vivo na consciência de cada passageiro a lembrança de que a Al Qaeda existe e a sensação de que está por todo lado. Aos olhos do poder, principalmente os funcionários mais baixos do poder, a Al Qaeda está por todo lado. Por todo lado. E, noves fora os americanos velhos de guerra, ninguém está mais seguro disso do que os dinamarqueses.

Uma palavrinha sobre os dinamarqueses. Continuar lendo

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A “sensação de segurança” é um engodo

O penúltimo texto tratava de um dos aspectos mais cansativos e artificiais da forma marqueteira que assumiu a política de uns tempos para cá. (Quanto tempo? Dez, vinte anos? Difícil estabelecer um início preciso para um processo tão paulatino…) Embora o tema a perpasse sem descanso, não me refiro à política enquanto disputa de poder, embora esse aspecto tenha recoberto o termo quase inteiramente no debate público, mas ao verdadeiro quotidiano político, o esforço constante de viver em comunidade. Trata-se da questão da segurança, martelada em todos os telejornais, muitos filmes, conversas no barbeiro e no táxi, e repetida inclementemente por candidatos a qualquer coisa em seus discursos temerários.

Poderia ser uma particularidade brasileira. Afinal, nossas maiores cidades são território livre para assaltos, sequestros-relâmpago e o diabo a quatro, quando não estão em franca guerra civil, sem contar os acordos de bastidores entre governos e grupos criminosos para que estes últimos “peguem leve”. Mas não. A julgar pela prioridade que o tema recebe, o mundo inteiro deve estar à beira de centenas de guerras civis entre criminosos satânicos e os pobrezinhos dos cidadãos de bem, sempre acuados em seus cantos, tentando levar suas vidas sem serem esquartejados por bandos criminosos. Sem contar os terroristas, claro. Porque, afinal de contas, eles existem. E se existem, só podem estar por toda parte, certo? O raciocínio parece tortuoso, mas tem dado sucesso a seus proponentes em eleições mundo afora.

Muitos meses atrás, comentei aqui sobre a violência policial, comparando maio de 68 e todos os meses de 2008, na França como no mundo. Só de confrontar fotografias antigas com recentes, ficou claro que a tropa de choque (CRS na França) que trocaram cascudos com estudantes diante da Sorbonne em 68 mais parece uma fileira de guardas de trânsito, comparada à tropa de hoje. Aqueles policiais tinham capacetes, escudos e espingardas (não usaram), por certo; os de hoje parecem robôs de filmes de ficção científica, com suas armaduras, máscaras e coturnos à la Kiss. A polícia de hoje é bem mais ameaçadora. Tem um visual que intimida enormemente. Mesmo as patrulhas simples, pelo menos na França (e pelo que vi, no Rio também), vestem-se com blusas negras que lhes dão um ar de muito mais fortes, além de rasparem a cabeça como recrutas do exército. Não consegui explicar isso à época, então retomo a pergunta: por que a polícia deste início de século precisa causar tanto terror?

Para responder, volto ao penúltimo texto: a estação ferroviária, a cerveja, os soldados em uniforme camuflado exibindo suas boinas negras e seus fuzis semi-automáticos, desses que disparam sei lá quantas centenas de projéteis por segundo. Também coturnos, também cabeças raspadas, uma forma de olhar que, sem a menor fagulha de sucesso, buscava passar a impressão de investigar qualquer coisa. Um quarteto que se arrastava entre malas e bilhetes, simbolizando o mesmo programa anti-terrorismo que eliminou os bagageiros das estações de trem. Imagino o alto comando do exército a formular sua política de combate aos homens-bomba: colocar alguns rapazes sobre as plataformas, prontos para metralhar o primeiro zé-mané que pareça ter uma banana de dinamite por baixo da bata ou do turbante (sim, porque gente de paletó está acima de qualquer suspeita).

A segurança é a prioridade número um da maioria dos governos ao redor do mundo. Economia, saúde, educação, meio-ambiente, tudo isso é obrigado a disputar o segundo lugar, onde ainda sobram eventuais migalhas de atenção midiática. Talvez haja duas exceções. Uma é nosso bom e velho Lula, porque também não tem muito como competir com os políticos estaduais Brasil afora, que ainda enchem as PMs de carros enquanto a criminalidade teima em não ceder. A outra é o celebérrimo Obama, que, não é nada, não é nada, prossegue com duas guerras do outro lado do mundo, uma delas justamente contra o terrorismo. Fora esses aí, há anos ouvimos falar, e vemos na prática, em aumento do efetivo policial, tolerância zero, combate à delinqüência, câmeras espalhadas pelas cidades, monitoramento de lan-häuser, atenção particular para os “subúrbios sensíveis”. O público, já apavorado, porque já escutou esses discursos todos e já viu cenas de jovens em confronto com a tropa de choque, adere. Vota, esquece todos os outros problemas, fecha os olhos para a má gestão da estrutura pública… essa ladainha, todos conhecemos.

Mas, ora, que coisa estranha: nenhuma dessas políticas de segurança tem surtido um grande efeito duradouro. A não ser, talvez, o programa de Rudolph Giuliani em Nova York, o “tolerância zero”. Mas não é a mesma coisa, porque o que se fez na Big Apple foi deixar de fechar o olho para as pequenas infrações, como avançar o sinal vermelho e encher as calçadas de cadeiras. Isso, mais um policiamento ostensivo em nada diferente do que fazem os tradicionais guardas londrinos, conseguiu um nível de paz e tranqüilidade urbana muito maior do que a paranóia policialesca que, por exemplo, levou ao assassinato de Jean Charles.

A reação do público, no entanto, parece não reverberar a contradição. Nas pesquisas, as pessoas, aquelas normais, trabalhadoras, de bem (e assim por diante), continuam manifestando um medo enorme, diante de um mundo que lhes aparece como cada vez mais perigoso, instável e coalhado de bandidos, desde criminosos comuns até terroristas religiosos. Mesmo assim, elas declaram, diante da reação governamental, isto é, diante da presença massiva de gente com uniforme futurista, cacetete, fuzil, boina, cabeça raspada, escudo, capacete, óculos de visão noturna e gás lacrimogêneo, que experimentam uma maior “sensação de segurança”.

Ora, direi, sensação de segurança! Mas se dizíeis estar a vos cagar de medo! Como é possível?

Diante de tamanho paradoxo, refleti sobre o assunto e cheguei à conclusão que segue: essa tal “sensação de segurança” é um engodo. Ela não existe. Quando alguém acredita experimentar uma “sensação de segurança”, está enganada, não porque não esteja sentindo nada, mas porque aquilo que ela toma por uma “sensação de segurança” é, na verdade, outra coisa. Logo veremos o quê. Primeiro, preciso mostrar que não faz sentido falar em “sensação de segurança”. Ora, “sensação de segurança”…

Imagine você, em sua casa, deitado em seu sofá numa tarde de sábado, depois daquela feijoada, vendo pela televisão seu time ser esculachado em rede nacional. Você está seguro? Até certo ponto, sim. Pode cair um meteoro em sua casa, claro, mas afora essas hipóteses mirabolantes, você corre pouco risco de ser vítima de algum evento traumático ou perigoso. E que sensação você tem nesse momento? Sonolência, provavelmente. Raiva do juiz, talvez. Preocupação com o aluguel, eventualmente. Azia, posso arriscar. Mas “sensação de segurança”? Duvido.

Outra situação: você está dirigindo numa estrada escura. É noite. Chove a cântaros (é uma chuva das antigas). De repente, uma enorme vaca ruminando a um palmo dos faróis. Você entra em pânico. Solta um berro de pavor. Mas não há tempo para faniquitos: no último instante, você dá uma guinada com o volante, afunda o pé no freio, depois no acelerador, e consegue se safar. Seu coração ainda está disparado, você continua sem fôlego, suas mãos tremem. Mas o medo já passou. O que você sente? Alívio, certamente. Ódio da péssima iluminação da estrada, sem dúvida. Pena da vaca que talvez não escape ao próximo carro, nem ele a ela. Mas “sensação de segurança”? Necas…

Talvez eu esteja querendo brigar com os fatos, admito. Se as pessoas garantem que têm essa tal sensação, se elas insistem que é uma experiência verdadeira, quem sou eu para contradizê-las? Mas antes que me lapidem: eu nunca disse que elas não sentem nada. Eu disse simplesmente que essa sensação não é de segurança. Então, direis, é de quê? Tentarei responder.

Metade da resposta, acredito, está nas explicações dos pesquisados. Elas sentem medo e o associam de alguma maneira à “sensação de segurança”. Essa associação é muito freqüente para ser coincidência. De fato, tudo aponta para a noção de que a “sensação de segurança” corresponde à constatação (talvez inconsciente) de uma ausência de ameaça ou, melhor ainda, da ameaça contida, afastada, superada. É o que vimos nos exemplos acima, de maneira rudimentar, mas válida. Portanto, é impossível conceber a “sensação de segurança” sem uma sensação mais fundamental e mais evidente de medo, pavor, terror, ameaça, risco, decadência, desordem, chame como quiser – escolha, por exemplo, uma palavra do repertório de analistas políticos ligados a qualquer governo ao redor do mundo.

Seguimos no campo do paradoxo: como é possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre o medo, se o medo é o oposto da segurança? Estranho, não? Falta alguma coisa nessa nossa definição…

Então voltemos aos dois textos que mencionei nos primeiros parágrafos. O que encontramos? Policiais saídos de algum videogame, desses baseados em Robocop ou Exterminador do Futuro. O temor (mal dirigido) do terrorismo islâmico, que põe soldados armados até os dentes em todas as estações de trem da França (e muitos pontos turísticos), como se aqueles rapazes recém-saídos do treinamento fossem capazes de evitar a detonação de uma bomba. As tropas de choque que, e isso eu vi com meus próprios olhos, precisam de dois ou três batalhões, camburões e jatos d’água para desbloquear escolas onde garotos e garotas de 16, 17 anos fazem seu mui ameaçador piquete.

Para que serve tudo isso? Quem está mais seguro graças a esses bravos profissionais da violência estatal? A população? A gente de bem? O nobre e honrado cidadão? Alguém realmente acredita nisso? Sim, alguém acredita nisso. Basta ver, também alguns parágrafos acima, a reação habitual dos já mencionados cidadãos. Mortos de medo, mas ainda eleitores dos Sarkozys, Berlusconis e Serras da vida, graças a essa formidável “sensação de segurança”.

Devem então ser esses os componentes da magia paradoxal de nosso tempo. Primeiro, o medo; depois, o belicismo encarnado em policiais e soldados. Mas por que o belicismo? O que ele representa, quer dizer, o que ele provoca em quem o presencia? Traduzindo, como é que ele contribui para a “sensação de segurança”? Afinal de contas, guerras são tão opostas a qualquer noção de segurança quando o próprio medo, aliá seu correlato. Será possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre duas coisas que se opõem tão perfeitamente a qualquer idéia de estar seguro?

Sim, é possível. E talvez exatamente como conseqüência da contradição, da mesma forma como a multiplicação de dois números negativos produz um positivo. O belicismo dos assustadores soldados faz sentido quando entendemos a impressão que ele esconde: uma percepção de força, ou seja, uma demonstração de poder. Talvez o conforto implícito de que é possível agredir de volta, ou até agredir antes. De que qualquer ameaça será contrabalançada por um efeito punitivo e multiplicador. Que sei? Só posso afirmar que essa projeção de virilidade primitiva é o segundo componente da tal “sensação de segurança”.

Com isso, acho que já temos um quadro da nossa vítima. A “sensação de segurança” nada mais é senão um núcleo de medo recoberto por uma couraça de poder. Como o medo exige alguma forma de força e a força só é necessária quando temos medo, um anula e alimenta o outro. Desse estranho equilíbrio, dessa tensão delicada e perigosa, nasce essa tal “sensação de segurança” que tanta gente afirma sentir. Ou seja, é um engodo e um engodo arriscado.

Digo arriscado porque a “sensação de segurança” só pode aumentar de duas maneiras: ou cresce o medo e, em seguida, a demonstração de força como reação que restabelece o equilíbrio, ou aumentam, forçando um pouco a barra, as demonstrações de força, que por sua vez reverberam até multiplicar também o medo original. Não é difícil perceber que estamos diante de uma bola de neve. Só lembrando que o destino de toda bola de neve é a avalanche.

Até onde conseguimos levar o discurso e a estrutura reticular que sustentam a “sensação de segurança” tão fundamental a essa política mané de nossos tempos? De onde mais podem vir as ameaças que justifiquem tropas de choque e soldados com fuzis desfilando pelas ruas e estações de trem? Que outras medidas podem ser tomadas para, como é mesmo que se diz?, garantir a tranqüilidade dos cidadãos? Respostas nos comentários, por favor.

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Nos quartéis lhes ensinam a antiga lição

Na excitação de viajar, na ansiedade de partir, somos capazes de atravessar as estações ferroviárias sem atentar para o microcosmo que são esses ambientes abobadados, luminosos e coalhados de gente. É um mundo estranho, para não dizer invertido, em que o turistas têm o ar mais nervoso que os profissionais, porque esses últimos sabem onde estão e conhecem seus horários, enquanto o viajante ocasional se perde entre as plataformas enfileiradas de onde vão saindo as golfadas de passageiros. Também é o lugar em que bagagens se espalham pelo chão como em nenhum aeroporto, obstáculos variáveis, imprevisíveis, para os atrasados que precisem alcançar algum trem prestes a partir. Terra em que bilheteiros e maquinistas passeiam de cabeça erguida, senhores inquestionáveis. Ambiente de confusão e risco, em que batedores de carteira agem sem ser incomodados e soldados de uniforme camuflado passeiam exibindo suas metralhadoras, em busca provavelmente de terroristas com dinamite escondida no turbante.

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Convivo há anos, menos frequentemente do que gostaria, é verdade, com esse espaço de passagem e de encontro. Já topei com esses galhardos militares dezenas de vezes, mas nunca tinha parado para examiná-los. Nem brevemente. Quando corremos pela plataforma afogueados e vergando sob o peso da bagagem, é tão natural encontrar um quarteto de homens armados até os dentes quanto um grupo de americanos com camisa florida. A presença de sentinelas do exército só se torna chocante, isto é, nada natural, quando reduzimos o ritmo, sentamos para esperar um trem que ainda vai demorar, tomamos uma cerveja e deixamos os olhos passearem pelo ambiente em liberdade. Reconheço, se exigem que eu reconheça: essa rapaziada está aí para garantir a minha segurança. Mas se minha segurança precisa ser garantida por jovens moços treinados para as piores condições de combate (sei lá, no Afeganistão), então não posso me sentir nada seguro.

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Enquanto beberico a espuma da cerveja, tenho a impressão de que um deles me espia. Céus! Será o volume da carteira no bolso, que ele estima poder ser uma pistola? Tomo a nota mental de começar a andar de paletó mesmo no verão. Ou seria só inveja por eu estar bebendo e ele, trabalhando? Melhor não sorrir, nem nada: o soldado talvez seja um nervosinho à la Kubrick, pode tomar como uma ofensa e me fuzilar. O olhar pode ter outras explicações também, mas prefiro nem pensar nelas. Ele está armado e eu sou inofensivo. Seria uma boa hora para aparecer um suspeito de terrorismo que desviasse a atenção do grupelho. Se eu presenciasse uma cena de caçada, talvez tivesse um material melhor para escrever.

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Mas os homens-bomba não marcam presença. Os soldados vão se afastando, com um ar de grande atenção que mal disfarça uma enorme sonolência, digna do sábado que é. Em vez do agente da Al Qaeda, quem se aproxima das mesas é um bêbado, trazendo ao laço o cão que o caracteriza como borracho francês. A propósito, os olhos semicerrados e o passo longe de retilíneo o caracterizam como borracho internacional. Ele interrompe a marcha poucos metros à minha esquerda e começa um discurso. Dirige-se a um homem que, sentado em seu canto, finge ler seu jornal e ignorar o interlocutor. É natural ofender-se ao ser ignorado e o bêbado não é exceção: alça o tom e troca a conversa fiada por uma série de insultos (dos quais ignoro a metade) e ameaças contra o cidadão, que por sua vez já não tem os olhos tão fixos no jornal.

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Do outro lado da estação, os soldados, em seu passo sempre arrastado, contam os segundos para o fim do turno. Turistas e profissionais continuam a se esbarrar, correndo para todos os lados entre as plataformas, procurando seus destinos e seus trens, saltando malas e evitando carrinhos de bebê. Entre o bêbado e o homem do jornal, segue o impasse. O café do cliente esfria na xícara que ele não ousa alcançar. A garçonete prefere ficar fora da questão para não levar um sopapo desnecessário. O agressivo orador já tem o braço erguido. O leitor se esconde debaixo das páginas. O assunto se estende por minutos e minutos. Nós outros, acovardados, não ousamos a menor intervenção.

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Um homem em camisa branca corre para junto do bêbado. Dirige-se a ele no tom brando dos negociadores. “Ah, finalmente!”, penso. Então a estação tem seguranças, não só soldados. Qual. Obtido o sucesso de convencer o bêbado a procurar diversão em outro canto, ele retorna para sua mesa, logo atrás do epicentro da crise. Era, afinal, apenas outro cliente do bar da estação, mais corajoso que o resto de nós. Trêmulo, o alvo das injúrias agradece timidamente. Até que enfim, pode esticar a mão para o café, a essa altura gelado. O autor das injúrias, camarada que teve ao menos o mérito de animar a tarde, vai cambaleando para uma das saídas. O alívio substituindo a tensão, a atmosfera recupera aos poucos seu caráter irreal.

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Desço para o banheiro. No caminho, ao pé da escada, os quatro soldados conversam sem animação. Um deles coça a orelha com o cano da metralhadora e não consigo deixar de ficar incomodado. Por curiosidade, ponho-me a olhar em volta: cá e lá, homens de camisa negra, postados diante de lojas e corredores, trazem nas costas a inscrição “Sécurité“. Não falta, ali, quem me transmita a impressão de vigilância, seja contra os seguidores de Mohammed Atta, seja contra sei lá que outros contraventores que os homens de preto estão lá para combater. Batedores de carteira, talvez? Bêbados, certamente não.

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Não vamos nos esquecer de que era uma estação de trem, em que tudo se mistura e não sabemos bem quem está indo, quem está vindo, quem persegue ou é perseguido. Nas minhas considerações de quando parto em viagem, penso apenas em como chegar aonde vou, nas maravilhas que vou visitar, sei lá eu. Meu sentimento de segurança só se manifesta em meio a essa névoa irreal de pequenos ladrões, grandes soldados, terroristas em potencial e seguranças que vestem preto. Por um momento, tenho dificuldade em distinguir quem está do meu lado e quem quer me atacar. Claro está que não é a melhor das sensações.

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Da urna aos muros

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Quarta-feira, cinco de novembro, oito horas da noite. Entranhas da Gare Saint-Lazare, estação do oitavo arrondissement de Paris. Uma mulher de meia-idade, cabelos brancos e bem curtos, destaca-se da multidão, quase despercebida. Ela escreve com uma caneta pilot negra sobre o fundo branco de um painel publicitário, em movimentos tranqüilos e seguros. Ninguém a incomoda.

Tendo-a avistado à distância, logo penso se tratar de um membro do grupo anarquista que ataca propagandas por toda a cidade, na missão de denunciar o consumismo e a lavagem cerebral. Mas é uma surpresa: eu pensava que os ativistas underground fossem todos muito jovens. Ao menos o são os que, vez em quando, acabam apanhados pela segurança e sofrem processos por dano a propriedade.

A corrente de viajantes vai passando aos encontrões, sem espiar a mulher resoluta em seu discreto vandalismo. Um fluxo penoso, sem ritmo, mil rumos sem direção. Como sangue empurrado por um coração fora de compasso.

Entre pastas, meias de seda e capotes, só uma pessoa interrompe a marcha para ler a mensagem: outra mulher de meia-idade, mas de cabelos anelados, tingidos de vermelho berrante.

Quando a ativista termina seu texto, estou quase perto o bastante para ler. A fulva espectadora sorri de leve. A autora anui de um gesto brusco da cabeça. Um sorriso e ela tampa a caneta. Está claramente satisfeita com o serviço. Pode voltar a seu caminho.

Já estou bastante próximo para enxergar a mensagem. Sobre o anúncio de sapatos elegantes, lê-se:

À quand un Obama ici?

Uma constatação de como a onda azul está espalhada pelo mundo. A onda que venceu, como não venceu a verde, de Gabeira, no Rio. A francesa engajada, figura tão peculiar deste país, queria um Obama para seu país.

Nações diferentes, histórias diferentes, contextos diferentes. Um Obama na França teria de cair realmente do céu, mas pouco importa. A grafiteira do metrô não quer um presidente jovem, inteligente, carismático e negro.

Ela quer o símbolo, a imagem. O Obama dos cartazes, não o do Salão Oval. Ela quer o nome ao qual está associado tudo que se pode esperar de bom e revolucionário neste nosso começo de século, que parecia tão conformista e reacionário.

“Quando teremos um Obama aqui?”, ela quer saber.

Minha senhora, nesse sentido em que a senhora está pensando, já temos.

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