Ao contrário dos turistas potenciais ao redor do mundo, a maioria dos franceses torce o nariz acintosamente para Paris, sua tão decantada capital. Noves fora, é a mesma atitude que tende a tomar quem passa longos anos entre a Porte d’Orléans e a Porte de Clignancourt, subindo e descendo pelas alamedas anti-barricadas. Com todo seu estilo (palavra preciosa) de edifícios haussmanianos e monumentos em bronze – na verdade uma desculpa tipicamente francesa para uma homogeneidade e um monocromatismo sufocantes –, o problema é que Paris enche, com o perdão do linguajar. Aliás, de vez em quando uma dessas pessoas que querem se mostrar viajadas e versadas nos segredos do “eldorádico” Velho Mundo (contradições à parte) lança mão do seguinte argumento: “na França? Paris é perda de tempo, boa mesmo é a região tal”, e cita alguma área do Sul. Seria um argumento quase impecável, não fosse, primeiro, o fato de que a vida não é feita apenas de férias, e segundo, a curiosa coincidência de essas pessoas aparecerem por aqui todos os anos, em busca de liquidações na galeria Lafayette, sem saber que a dita loja está presente em todas as cidades com alguma relevância no país. Continuar lendo
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Nos quartéis lhes ensinam a antiga lição
Na excitação de viajar, na ansiedade de partir, somos capazes de atravessar as estações ferroviárias sem atentar para o microcosmo que são esses ambientes abobadados, luminosos e coalhados de gente. É um mundo estranho, para não dizer invertido, em que o turistas têm o ar mais nervoso que os profissionais, porque esses últimos sabem onde estão e conhecem seus horários, enquanto o viajante ocasional se perde entre as plataformas enfileiradas de onde vão saindo as golfadas de passageiros. Também é o lugar em que bagagens se espalham pelo chão como em nenhum aeroporto, obstáculos variáveis, imprevisíveis, para os atrasados que precisem alcançar algum trem prestes a partir. Terra em que bilheteiros e maquinistas passeiam de cabeça erguida, senhores inquestionáveis. Ambiente de confusão e risco, em que batedores de carteira agem sem ser incomodados e soldados de uniforme camuflado passeiam exibindo suas metralhadoras, em busca provavelmente de terroristas com dinamite escondida no turbante.
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Convivo há anos, menos frequentemente do que gostaria, é verdade, com esse espaço de passagem e de encontro. Já topei com esses galhardos militares dezenas de vezes, mas nunca tinha parado para examiná-los. Nem brevemente. Quando corremos pela plataforma afogueados e vergando sob o peso da bagagem, é tão natural encontrar um quarteto de homens armados até os dentes quanto um grupo de americanos com camisa florida. A presença de sentinelas do exército só se torna chocante, isto é, nada natural, quando reduzimos o ritmo, sentamos para esperar um trem que ainda vai demorar, tomamos uma cerveja e deixamos os olhos passearem pelo ambiente em liberdade. Reconheço, se exigem que eu reconheça: essa rapaziada está aí para garantir a minha segurança. Mas se minha segurança precisa ser garantida por jovens moços treinados para as piores condições de combate (sei lá, no Afeganistão), então não posso me sentir nada seguro.
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Enquanto beberico a espuma da cerveja, tenho a impressão de que um deles me espia. Céus! Será o volume da carteira no bolso, que ele estima poder ser uma pistola? Tomo a nota mental de começar a andar de paletó mesmo no verão. Ou seria só inveja por eu estar bebendo e ele, trabalhando? Melhor não sorrir, nem nada: o soldado talvez seja um nervosinho à la Kubrick, pode tomar como uma ofensa e me fuzilar. O olhar pode ter outras explicações também, mas prefiro nem pensar nelas. Ele está armado e eu sou inofensivo. Seria uma boa hora para aparecer um suspeito de terrorismo que desviasse a atenção do grupelho. Se eu presenciasse uma cena de caçada, talvez tivesse um material melhor para escrever.
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Mas os homens-bomba não marcam presença. Os soldados vão se afastando, com um ar de grande atenção que mal disfarça uma enorme sonolência, digna do sábado que é. Em vez do agente da Al Qaeda, quem se aproxima das mesas é um bêbado, trazendo ao laço o cão que o caracteriza como borracho francês. A propósito, os olhos semicerrados e o passo longe de retilíneo o caracterizam como borracho internacional. Ele interrompe a marcha poucos metros à minha esquerda e começa um discurso. Dirige-se a um homem que, sentado em seu canto, finge ler seu jornal e ignorar o interlocutor. É natural ofender-se ao ser ignorado e o bêbado não é exceção: alça o tom e troca a conversa fiada por uma série de insultos (dos quais ignoro a metade) e ameaças contra o cidadão, que por sua vez já não tem os olhos tão fixos no jornal.
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Do outro lado da estação, os soldados, em seu passo sempre arrastado, contam os segundos para o fim do turno. Turistas e profissionais continuam a se esbarrar, correndo para todos os lados entre as plataformas, procurando seus destinos e seus trens, saltando malas e evitando carrinhos de bebê. Entre o bêbado e o homem do jornal, segue o impasse. O café do cliente esfria na xícara que ele não ousa alcançar. A garçonete prefere ficar fora da questão para não levar um sopapo desnecessário. O agressivo orador já tem o braço erguido. O leitor se esconde debaixo das páginas. O assunto se estende por minutos e minutos. Nós outros, acovardados, não ousamos a menor intervenção.
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Um homem em camisa branca corre para junto do bêbado. Dirige-se a ele no tom brando dos negociadores. “Ah, finalmente!”, penso. Então a estação tem seguranças, não só soldados. Qual. Obtido o sucesso de convencer o bêbado a procurar diversão em outro canto, ele retorna para sua mesa, logo atrás do epicentro da crise. Era, afinal, apenas outro cliente do bar da estação, mais corajoso que o resto de nós. Trêmulo, o alvo das injúrias agradece timidamente. Até que enfim, pode esticar a mão para o café, a essa altura gelado. O autor das injúrias, camarada que teve ao menos o mérito de animar a tarde, vai cambaleando para uma das saídas. O alívio substituindo a tensão, a atmosfera recupera aos poucos seu caráter irreal.
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Desço para o banheiro. No caminho, ao pé da escada, os quatro soldados conversam sem animação. Um deles coça a orelha com o cano da metralhadora e não consigo deixar de ficar incomodado. Por curiosidade, ponho-me a olhar em volta: cá e lá, homens de camisa negra, postados diante de lojas e corredores, trazem nas costas a inscrição “Sécurité“. Não falta, ali, quem me transmita a impressão de vigilância, seja contra os seguidores de Mohammed Atta, seja contra sei lá que outros contraventores que os homens de preto estão lá para combater. Batedores de carteira, talvez? Bêbados, certamente não.
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Não vamos nos esquecer de que era uma estação de trem, em que tudo se mistura e não sabemos bem quem está indo, quem está vindo, quem persegue ou é perseguido. Nas minhas considerações de quando parto em viagem, penso apenas em como chegar aonde vou, nas maravilhas que vou visitar, sei lá eu. Meu sentimento de segurança só se manifesta em meio a essa névoa irreal de pequenos ladrões, grandes soldados, terroristas em potencial e seguranças que vestem preto. Por um momento, tenho dificuldade em distinguir quem está do meu lado e quem quer me atacar. Claro está que não é a melhor das sensações.
Sobre símbolos e eras
* Texto já um pouco antigo, mas que, creio eu, se tornou um pouco mais pertinente agora que os mercados caíram e o medo ficou explícito. É por isso que o republico. Ele apareceu originalmente no Le Monde Diplomatique, no final de 2007. *
Foto de Denise Límpias
Este texto, confesso, é resultado de uma recaída metafísica. Talvez seja culpa do inverno que vai terminando, levando consigo a escuridão carregada de símbolos e significados. Tão contraditórias entre si, essas imagens de penumbra, que o espírito inquieto se flagra envolvido em perguntas e mais perguntas. No meu caso, começo a me questionar sobre o mundo, nosso mundo. Nós, como humanos, não apenas vivemos no mundo, mas o construímos, o projetamos, antes até de viver. Gostaria de poder saber como se dá isso. Por enquanto, tenho para mim que cada mundo humano se tece ao redor de um punhado de certezas transcendentais, a exemplo do tempo e do espaço. Essas certezas, em geral vagas e quebradiças, precisam se concretizar diante de nossos olhos, em grandes símbolos encarnados. Símbolos assim emudecem os espíritos em suas perambulações. E mais: reforçam na grande alma coletiva os valores de suas certezas.
Essas convicções podem tomar uma infinidade de formas. Religiões, ideologias, línguas, configurações morais. Por um lado, elas servem ao propósito de limitar nosso campo de ação. Sem dúvida. É o preço a pagar para que possamos viver juntos, pelo menos por um tempo. A convicção indica, da melhor maneira que pode, uma certa direção ao olhar de cada um. Podemos obedecer com maior ou menor rigor, podemos nos rebelar, pouco importa. Ali, nesse direcionamento tácito, está o que o grosso de uma pluralidade humana qualquer considera ótimo, normal ou absurdo em algum momento e território. É isso que lhe dá uma face. Quanto aos símbolos, podem entrar nessa categoria todas as formas que o ser humano encontra para se espelhar na realidade, isto é, imprimir os contornos de seu rosto ao entorno. Como os cães, que, ao urinar nos postes, demarcam o mundo que é deles. Os humanos não empregam a amônia, felizmente; mas fazem coisa muito parecida, usando o corte das roupas, o ritmo das músicas, as idéias vulgares com que inteligências tíbias constroem seus discursos inflamados. É a dimensão estética que permeia cada fibra de nossa existência, o campo geral de nosso diálogo com o exterior. Assim, ao contemplar o leque de símbolos de uma gente, temos dela uma estranha compreensão, absolutamente silenciosa. Qualquer tradução em palavras lhe compromete o valor.
De todos os símbolos, o mais vistoso e eloqüente é, com certeza, o monumento. Primeiro, porque ele já é feito com a finalidade, nem sempre consciente, é claro, de simbolizar alguma feição da existência plural. Um vestido bem desenhado se costura para o uso de uma mulher; mesmo a tela de um grande mestre é objeto de transações no mercado, e enfeitará a sala de estar de algum homem poderoso. Já o monumento é construído com o fito único de ser monumental, estar ali, diante dos olhos das pessoas, cuspindo sobre elas um fogo cerrado de símbolos, ao mesmo tempo históricos, políticos e estéticos. Em segundo lugar, o monumento não tem escapatória. Ele está ali e ponto. Solene, quase sempre de uma solidez opressiva e, não raro, vertical até esfumaçar as retinas. Os monumentos de outros tempos e mundos se misturam e confundem pela cidade, como se o passado fosse um só, todo feito de obeliscos. Os de hoje, nós os elevamos com os olhos voltados para uma grandeza que o futuro, estamos convictos, saberá reconhecer. Nossos monumentos têm um rosto todo próprio, mas, de fato, sua função jamais é inteiramente diferente.
As grandes cidades do mundo estão coalhadas desses símbolos de pedra, terra e metal. A Europa, em particular, não sabe o que fazer com tanto monumento. Uma pilha de resquícios esfacelados dos impérios já caídos. Santuários de que se apropriaram os turistas, esses bárbaros modernos entupidos de dinheiro. Testemunhas de uma história que quase ninguém sabe contar.
Dentre essas fabulosas capitais, Paris é a que mais cultiva sua vocação para o monumental. É a cidade que encontra sua identidade justamente nas linhas de avenidas que conectam um marco a outro, como se tentassem desenhar uma estrela de incontáveis lados. Tudo pode cair aos pedaços na França; só os monumentos parisienses precisam ficar de pé. Eis a diretriz gaulesa.
Todos sabem qual é o monumento principal desta cidade; sete mil toneladas de ferro, em vigas amarradas umas às outras para escalar 324 metros de céu. Quase um milagre da engenharia de sua época, que, espalhado pela área enorme que ocupa, oprime o solo não mais do que um homem sentado. A torre planejada por Gustave Eiffel domina toda a cidade. Faz-se enxergar de qualquer canto, até mesmo alguns subúrbios distantes. A despeito da altura e do peso, sua forma esguia transmite uma leveza serena. Ocupa um volume considerável roubado ao ar, mas compõe-se majoritariamente de vazio. Puro nada, como o dos átomos, o dos bancos, o das multidões.
Eis aí uma das obras maiores e mais simbólicas de uma época encerrada sem notarmos, absortos que estávamos nos traumas que esse mundo se ofereceu. Um capitalismo escaldante, que o Ocidente superou ou preferiu esquecer. Uma força possante, irresistível. Arrasava tudo de vetusto e mesquinho, em nome de uma verticalidade que a torre Eiffel não encarna mais do que a teia negra de caminhos de ferro, a fumaça grossa dos navios a vapor, os primeiros movimentos vanguardistas da arte. Esse capitalismo, antes de querer derrubá-lo, o implacável Marx aplaudiu com efusão. Porque o teórico da revolução reconhecia ali um orgulho de si próprio inconcebível para nós, senão por seu legado: a torre; os palácios de exposição; as cidades gigantescas, irrefreáveis; os versos de louvor à máquina.
O que mais causava horror a esse capitalismo da absoluta dinâmica era a estabilidade. Para seus heróis, a segurança que ela oferece era a morte; um atestado de mediocridade, eco de um passado aristocrático que manteve o mundo idêntico a si mesmo durante quase um milênio. Os grandes capitalistas daquela era, cujo maior herói era o engenheiro, declararam guerra à estabilidade e à segurança. Buscaram o risco, quase a loucura. Derrubar e construir, invadir e conquistar, a qualquer custo, sem respeito por nada, nem por ninguém. Um mote seco e claro. Quem vivia segundo outro espírito encheu-se de horror. Guy de Maupassant, reza a lenda, almoçava todos os dias no Jules Verne, restaurante do segundo andar da torre, porque era o único lugar da cidade de onde não era obrigado a vê-la. Considerava-a uma aberração deplorável. Verdade ou não, o fato é que de lá ele não podia se furtar a contemplar uma antiga cidade sendo arrasada para dar lugar a outra, veloz e vertiginosa; uma cidade que não temia a aniquilação imposta pelo capital a seu quotidiano milenar.
Tudo isso, porém, ficou no passado. Esse capitalismo das sucessivas maravilhas resultou em guerras, revoluções reacionárias (sic), bombas de dizimar gerações e gerações. O homem que sobreviveu ao paroxismo ensandecido do modernismo envergonhou-se de suas ambições desabridas. Depois de Auschwitz, fez-se necessário construir um novo mundo, com um paradigma que se substituísse à voracidade. Qual é esse paradigma? Ora, é o oposto do anterior. Ou seja, o receio. Nosso tempo, assim, abriu mão da verticalidade, a não ser aquela comportada, dos espigões perfilados. Alguns brilhantes, outros opacos, mas sempre executados de acordo com as regras mais seguras da engenharia, com vistas a uma eficiência indigitada. Gigantes de concreto e vidro, enfim, mas com as pernas muito bem fincadas no chão. O maior dos males, valha-me Deus!, para nosso tempo, é a instabilidade. Uma doença cuja expressão mais assustadora é a inflação. O dito dragão é o equivalente econômico da erosão, no domínio moral, dos valores de um passado recente. Uma ameaça constante. Exige postura alerta e agressiva. Um contexto fundado sobre o receio de perder não pode, em hipótese alguma, tolerar a inflação.
A ambição vertical e demolidora, que as potências do passado abandonaram nas últimas décadas, subsiste apenas em países que, até há pouco, eram considerados pobres e atrasados. O carro-chefe desse ideal sobrevivente é, sem novidades, a China. A terra das antigas dinastias retraça o caminho do Velho Continente. Uma usina gigantesca, monstruosa, que inunda países e desloca povos inteiros, misturando e desmanchando seus tantos dialetos e costumes. Eis onde querem buscar sua energia. Um estádio embrulhado em cordas sintéticas, indevassável, indefinível, irreconhecível. Um palácio de esportes para esconder o louvor da derrubada e reconstrução. São os orientais, hoje, que não respeitam nada do que já há; pensam no que ainda haverá, e interpretam o presente como mera matéria-prima, tão bruta e maleável como a areia da praia.
Retornemos à torre Eiffel, construída para celebrar a Exposição Universal de 1889, realizada em Paris. Nesse gênero de evento, típico da belle époque, cada país exibia suas novidades mais impressionantes, para escancarar, diante de rivais do mundo inteiro, como era veloz seu progresso técnico. Não há nada parecido em nosso mundo. Há, sim, grandes feiras temáticas, em que as empresas montam suas barracas e alardeiam seus produtos, no esforço de garantir a eles um confortável naco do mercado. Essas feiras são, também, repletas de novidades, por certo. Mas são horizontais, comportadas. Vastas áreas protegidas da chuva, por onde uma multidão de consumidores pode passear sem receio de levar algum susto.
Não serão esses eventos – tão bem organizados, eles – que haverão de proporcionar a ocasião do nascimento de algo monumental, como as exposições do século XIX nos legaram a torre Eiffel. Nem quero insinuar que deveriam! Essa aí é monumento, logo símbolo, de outro tempo. Hoje, é administrada, e com grande competência, por uma empresa de capital misto cujo gráfico de lucratividade apresenta, há anos, “bons números”. Garante ao país a estabilidade de uma renda turística regular e farta. E, naturalmente, do merchandising. Esse aí, sim, é um grande símbolo e monumento de nossa era.
Das cidades, como do amor
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Certo amigo costuma dizer que nossa relação com as cidades é como as relações amorosas. Ele diz, por exemplo, que Roma é cidade para namorar; Paris, para casar. Não peça explicações para seu julgamento, por favor! Essas coisas, todo mundo sabe, são o que há de mais pessoal. Sendo assim, minha opinião e a dele têm lá suas diferenças, como era de se esperar, mas não posso negar que a analogia tem sentido.
Jamais, para ilustrar, eu me meteria num namoro com Roma. Eis aí, ouso dizer, uma cidade a ser tratada com toda a cafajestagem que faz a má fama dos homens, isto é, a velha trinca: álcool aos litros, elogios absurdos e telefone falso. Já Paris, é difícil dizer; anos atrás, talvez eu também pensasse nela como uma cidade para casamento, filhos e aposentadoria. Sempre, claro, com separação de bens, que seguro morreu de velho e o europeu é tudo, menos confiável.
Mas, passados dois anos e meio, vejo que esta é uma cidade com que se pode ter no máximo um relacionamento razoavelmente durável, feito de passeios e conversas deliciosas, ou de exibi-la como prenda para saborear a inveja nos olhares todos que se voltam para sua companheira. É que esses invejosos não têm idéia do que possa ser a vida com a prima donna que compartilha de sua intimidade. As pequenas irritações, manias e exigências. O egoísmo de quem foi criada para só merecer admiração e cuidados. A distância insolente de quem pensa ser sempre precisada e nunca precisar. Essa é Paris, a cocotte.
Desenvolvendo a analogia suscitada por meu amigo, venho pensando nas muitas relações diferentes que mantenho com as cidades que conheci, e mesmo com algumas em que nunca estive, no que poderia ser classificado, para seguir na linha amorosa, como fantasias. É sempre tão irracional, circunstancial, acidental, quanto tudo o mais na nossa vida, menos aquilo que, ainda irracionalmente, acreditamos tratar com a razão. E o curioso é que, ao contrário das relações que um sujeito normal pode ter com mulheres no longo prazo, com as cidades é possível viver dezenas de romances simultâneos, na imaginação como na carne. Afinal, a não ser que seja mitologicamente histérica, a cidade em que está fincado nosso lar jamais terá ciúmes de uma visitinha que façamos a alguma outra nas férias ou no fim-de-semana. Turismo, neste caso, não é adultério.
Minhas relações mais complicadas são, é claro, com as cidades brasileiras. Estive nelas a maior parte da vida, balancei entre umas e outras, em tantas briguei e amei, com tantas rompi e reatei. Por sinal, já falei um pouco disso em outros cantos. Agora é hora de pensar nas estrangeiras, que, além de tudo que uma cidade já normalmente significa, têm ainda o mistério da outra cultura, da diferença, da variação infinita dos povos.
Buenos Aires, a misteriosa cigana sentada a uma mesa no fundo do salão, que dirá coisas absurdas ao ser abordada, rirá em desvario de enunciados que nem terão sido piadas, mas levará o parceiro à loucura em mais de um sentido. Lisboa, sempre à espera, para amolecer os membros e as articulações pela mera força de seu olhar de melancolia e devaneio. Barcelona, fulgor sufocante de um caso de verão regado a música e boa bebida, papos despretensiosos sobre arte que não entendemos, mas amamos, depois uma despedida sem tristeza. Berlim, divina e altiva, sempre sedutora e simpática, mas brilhante demais, muito poderosa e difícil, a ponto de não termos nem coragem de tentar uma aproximação. E assim por diante.
Dentre todas essas, há uma cidade que não consigo descrever nesses termos. Talvez seja aquela que conhecemos na primeira juventude, para um amor que ainda não consegue se reconhecer como grande ou pequeno, e depois perdemos de vista, para depois reencontrar um pouco mais tarde e sentir a mesma coisa, sabendo que é recíproco. E assim, sucessivamente, talvez pelo resto da vida, curtos momentos de pura felicidade, mas que não podem se estender, e que às vezes nem se concretizam, como quando há algum outro relacionamento em curso e não estamos dispostos a interrompê-lo.
É Londres, louca terra dos carros na esquerda, da polidez inquestionável polindo a superfície de uma frieza involuntária, dos preços altos para tudo que não seja cerveja. Capital de um império caído que ainda se vê em todas as caras, nas feições que os povos subjugados transmitiram ao opressor para toda a eternidade. Londres que divide os sonhos entre a glória austera dos tijolos vitorianos e e o brilho vertical de vidro que atesta o triunfo do século americano. Green grass, grey sky, God bless. Venha o que vier, serão sempre deliciosas as tortas e a geléia que acompanham o chá.
Mas não há modo de termos, London, London, nada mais, neste momento, do que isso que tivemos nas duas últimas semanas. As caminhadas no South Bank, o teatro esplêndido do West End, as bolas de neve no Green Park, de nome subitamente tão irônico debaixo da nevasca histórica que interrompeu o transporte através do Reino Unido. Tudo isso será inesquecível, como sempre foi. Mas a vida agora é além-túnel, além Mancha, naquilo que teus habitantes, ainda mais petulantes do que são excêntricos, chamam desdenhosamente de “Europa”. Mas Paris, minha cara, é o contra-exemplo de um diamante que não é eterno. Quem sabe o que traz velado o futuro?
Paris não tem segredos
… E logo, logo, nenhuma cidade terá. Veja bem. Isso que aparece na fotografia acima são as duas janelas de minha casa. A da esquerda é o quarto de dormir, com as cortinas vermelhas, improvisadas, que instalei para substituir as originais, também encarnadas, mas bem mais grossas e eficientes, que caíram com um estrondo patético na primeira noite em que tentei fechá-las. À esquerda, a sala, com a cortina original, cor de creme, e dois vasos, um com flores, o outro com uma pimenteira. Os vasos já existem desde o ano passado. Estiveram vazios durante todo o último inverno, a maior parte da primavera, também. As flores, comprei para substituir as antigas, que estavam mortas. Foi no início de agosto, salvo engano. A flor mais alta, violeta, ainda estava fechada, só foi se abrir no final do mês. A fotografia, portanto, só pode ter sido tirada na última semana de agosto ou nas primeiras de setembro.
Quem gerou essa imagem não foi minha máquina fotográfica. Encontrei-a depois de baixar o Google Earth, pensando que seria a ferramenta ideal para me ajudar a preparar as viagens que, queira Deus, ainda farei. E será, sem sombra de dúvida. Navegando por suas telas, passeei virtualmente pela Unter den Linden de Berlim e pela Gamla Stan de Estocolmo. Vi de perto a distância entre o museu Ermitage e a avenida Nevski, tantas vezes evocada no desespero transcrito de Dostoievski. Fui a Roma, que tenho boca, baixei a aplicação que reproduz a capital do império no tempo de Constantino e me esbaldei de passear por suas construções, monumentos e edifícios, descobrindo a aparência intocada das ruínas que conheci há mais de um ano. O Google, novo Constantino ou novo César, como queira, me concedeu a graça que os administradores do turismo italiano me negaram.
Em Roma, encontrei um instrumento magnífico. A princípio, pelo menos. Pequenos ícones que retratam câmeras fotográficas. Clica-se sobre eles e se é atirado dentro da cidade, numa fotografia tridimensional tirada sabe-se lá por quem, sabe-se lá quando. (Era certamente verão.) Da primeira vez, acreditei que seriam só os grandes entroncamentos, os pontos turísticos, os centros importantes da cidade eterna. Qual o quê. A cada número da rua, vê-se um outro ícone, depois outro e outro mais. É possível inventar caminhos por todos os cantos de Roma, como quem anda a pé, mas sem se cansar, sem sentir o calor, sem ser ofendido por algum italiano grosseiro, só de clicar sucessivamente nas máquinas intermináveis que vão se apresentando à sua frente.
Rostos e placas de carro, enfim, tudo que possa identificar alguém, são desfocados. Anda-se por avenidas e vielas onde ninguém tem face, figuras congeladas em seus trajes, poses e caminhos, mas desprovidas de olhos, lábios, expressões. É um passeio em que o vento é morto de uma morte estranha, ainda capaz de inclinar as árvores, mas não balançá-las. Onde os sinais vermelhos se recusam a passar ao verde, mas os motoristas não se impacientam. Onde o pequeno trânsito irritante, causado por algum caminhão parado em fila dupla, é eterno enquanto assim o mantiver o gestor desse programa do Google. É a presença física numa cidade estrangeira, tão física quanto pode ser uma presença virtual.
Cansado da vista de Roma, deixei-me invadir pela curiosidade. Quão bem fotografada seria Paris? Considerando, claro, que, para além do universo Google, é a cidade mais retratada do mundo, logo à frente do nosso malemolente Rio de Janeiro. Os bairros mais afastados teriam o mesmo privilégio do centro? Os mais feios? Os mais sujos? Os mais castigados pela criminalidade? No espaço de um segundo, com o esforço concentrado de digitar as cinco letras do nome da cidade e um Enter decidido, vi-me a sobrevoar esta outra capital, mais nova, mas nem por isso menos célebre que o lar dos papas e imperadores.
Posicionei o cursor sobre meu bairro. Aproximei a imagem e esperei enquanto ela se tornava mais nítida. Aos poucos, pude identificar a praça, a rua de trás, o carrossel das crianças, a fileira de árvores no larguinho. Apareceram, um depois do outro, os ícones de máquina fotográfica. Cliquei no que parecia mais próximo do meu prédio. Não era, havia outros, mas pude ler as insígnias das lojas, dos correios, do restaurante chinês, onde almoço quando a pressa fala mais alto que a saúde. De câmera em câmera, fui me achegando de minha pequena rua. Entrei à direita. Bem à frente, li o nome do estacionamento enorme que é responsável por mais de metade do barulho que às vezes me impede de dormir.
Fui avançando até chegar na imagem que registrei acima. Minhas janelas, visíveis por qualquer um, em qualquer parte do mundo. No meu caso, era quase um espelho. O verdadeiro observador, do lado de cá, no outono, quase inverno, aquecido pelo gás, em plena escuridão. Do lado de lá, minha presença virtual, flutuando pela rua nas últimas semanas do verão, com flores radiantes, essas que, para o verdadeiro eu, de carne, que escreve e não flutua, já estão amarelecidas e sem pétalas.
Estranha sensação. Um sem-número de fotografias tiradas, rostos apagados com esmero, imagens consolidadas e inseridas no enorme sistema de mapas da NASA que o Google transformou em fantástico brinquedinho. Em breve, será assim no mundo todo. Qualquer pessoa que já me enviou uma correspondência, ou qualquer um a quem já enviei meu currículo, poderá ficar curioso de saber onde e, mais ou menos, como moro. Bastará entrar no programa para descobrir. Não imagino que tipo de resultado isso possa ter. Conjecturo, mesmo, que talvez não possa causar nada, seja perfeitamente neutro, não mude coisa alguma no mundo ou só o mude para melhor…
Enfim, não há nada de racional nisso, mas a verdade é que fiquei incomodado, diria mesmo intimidado. Metralhei-me com perguntas: como se produziu a imagem das minhas janelas, pelos céus!? Alguém foi contratado para passear pela cidade inteira, em vários lugares do mundo, visitando ruela por ruela, bairro por bairro, a tirar fotografias tridimensionais a cada três ou quatro passos? Ou teria o Google comprado os registros das câmeras de segurança da prefeitura, que, por sinal, nem são tantas assim…
Essas fotos em que minhas cortinas aparecem fechadas poderiam ter sido tiradas poucas horas antes, ou depois, e as cortinas estariam abertas, meus móveis à vista, as fotografias da parede, essas bem pessoais, expostas. Nesse caso, estou certo, o Google, novo Nero, novo Caracala, teria borrado a visão de minha vida pessoal, ou melhor, da parte mais pessoal da minha vida, antes de lançá-la a público em seu programa. Mesmo assim, segue que o fotógrafo terá visto. O programador, idem. A imagem original talvez ficasse guardada no HD da empresa, como numa gaveta de jornal, esperando para ser descartada ou redescoberta, indefinidamente. Indefinidamente…
Eu disse em algum lugar, talvez até no título deste texto, que Paris não tem mais segredos. Mas se fosse só isso, ora, que é que tem! A tendência é, cada vez mais, que tudo se saiba, tudo se veja, tudo se conheça e esqueça tão rápido quanto acontece. Certo? Boa pergunta, não sei dizer. Mas eu, cá no meu canto devassado pelo Google, bem que gostaria de ter um ou outro segredinho todo meu. E antes que me acusem de ser dissimulado, antiquado, inadaptado, já digo que não é nada disso. Nem se trata de fazer charme. Timidez, talvez seja. Mas pode ser uma mania idiota, coisa de quem não consegue apenas viver no próprio mundo. Talvez seja pedir demais, mas eu gostaria muito se, para ter uma visão das minhas janelas, alguém tivesse de vir até aqui.
A sublime impotência de não ter palavras
Alguns anos atrás, nem sei quantos, uma imagem me marcou a ferro. É claro, sim, que muitas imagens me marcaram na vida. Mas esse caso me convenceu de que deve haver um compartimento específico e muito íntimo na memória, em que só caiba a lembrança de uma única fotografia. É lá que ficou guardada essa imagem que jamais esqueci. Mas se minha hipótese estiver furada e esse tal compartimento não existir, então não sei como foi acontecer. Uma dessas coisas, suponho, que se dão por mágica.
Era uma paisagem. Tomada do alto, provavelmente de um helicóptero. À direita, uma planície retalhada em grandes quadrados, verdes e de um amarelo acinzentado. À esquerda, o mar, numa baía rasa e arenosa, onde o curso das marés desenhava volutas aqui e ali cintilantes de sol. Ao centro, uma ilha redonda, um volume de pedra isolado entre dois ambientes aflitivamente planos, como a recusa extensa ao achatamento do horizonte.
Já um belo canto do planeta, certamente. Mas não particularmente memorável, sem o dedo do homem. Os medievais, em seu raciocínio transcendental, entenderam que aquela não era uma ilha qualquer. Só podia ser um canto que Deus queria mais próximo de si, para erguê-lo assim, sozinho, perdido na baía. Era evidente que deveriam construir ali um mosteiro, e assim procederam. Depois, deram-se conta de que não só estavam mais perto de Deus lá no alto, como estavam muito bem protegidos contra os vikings, a atacar cá debaixo. As obras foram expandidas. Muralhas, paredes, uma vila de pedra. A igrejinha do mosteiro, em poucos séculos, se fez catedral exuberante.
Eis o Mont Saint-Michel, a imagem agarrada à minha lembrança. Eu só queria descobrir onde ficava e como chegar. Quando desembarquei no aeroporto Charles de Gaulle, assim que o funcionário da imigração liberou minha entrada, ataquei: “por onde é o Mont Saint-Michel? Mas ele não estava no auge de seu humor e se limitou a indicar com a mão: “por ali”, e me dispensou.
<img class="alignnone" src="http://farm4.static.flickr.com/3176/2831151742_410b57592c.jpg?v=0" alt="Pedras amareladas do mosteiro do Mont Saint-Michel com a ba
O cartão nosso de cada dia
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.
Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.
Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:
1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.
2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.
Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.
Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)
Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?
Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”
Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.