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45 minutos de um início de século

Decido esticar um pouco mais o motor, abusar da energia que resta ao fim de uma jornada já intensa, aproveitar que os olhos e os neurônios ainda estão embalados para trabalhar até a pane no sistema nervoso. Um erro, nem preciso dizer: não bastasse a epopéia de encontrar uma porta aberta para deixar o edifício, é subúrbio, é noite, e em meio de semana há menos trens. Um quarto de hora na plataforma, à espera da composição, acompanhando o vapor que minha respiração lança no ar, dificilmente constitui um prazer. São nove horas.

Já a meio caminho ouço à distância – na verdade, não tão longe – o buzinaço. Cinco para as nove, provavelmente. Sigo meu caminho. De imediato, imagino que seja o trânsito na via expressa, agravado por um acidente, quem sabe. Mas essa interpretação é tola e logo se dissipa: não buzinas, buzinaço. Coisa muito diferente. Só pode ser futebol, percebo, corrigindo-me. Lembro de uma notícia lida pela manhã: é noite de jogo da França e os autóctones estão exasperados, temerosos de ficar fora da Copa. Está esclarecido o mistério, julgo, e me engano novamente. Prossegue a barulheira. Estremeço como Proust (com o perdão do paralelo) estremeceu ao sentir o pavimento irregular da rua e ser atirado em memórias de Veneza e Balbec. Quanto a mim, é como se estivesse diante de uma UERJ da vida. Em noite de gala.

Por um momento, me perco da realidade. Faltando dois para as nove, sou despertado por um berro agudo. Percebo que já subo a rampa da estação e uma motoca com dois molecotes vem descendo bem rápido e em ziguezague. O berro é da buzina, desagradável mas ridícula, descontado o risco de atropelamento. Salto de lado, desejando secretamente esticar a pasta para causar um acidente. Deve ser o mesmo desejo secreto da pequena senhora que, poucos passos atrás de mim, também dá um pulo e dirige à motoca um palavrão. Já vão longe os meninos, empunhando uma bandeira que, no escuro, não consigo divisar.

Uma tela azul informa que o próximo trem só chega às nove e quinze. Suspiros meus e de quem mais tenha visto a informação. Desço as escadas e conto, por falta do que fazer, os gatos-pingados que esperam sob a luz tíbia das lâmpadas parcas. São 21; mas sou mais um, não posso esquecer de contar a mim mesmo: somos 22. Segue o buzinaço. Os franceses, imagino, vão animados para o Stade de France . Nove e cinco.

Além do alambrado, escuto mais berros. Posso enxergar uma pequena multidão à distância e logo concluo que é mais gente a caminho do estádio. Surpreende-me, porém, o mantra entoado: nada de “Allez les bleus!”, mas algo diferente. Impossível decifrar, com a concorrência de um trem que passa vazio. Passa ao meu lado um menino, doze anos talvez, vestindo uma camiseta branca, com um escudo verde. Reconheço a bandeira da Argélia. Apuro o ouvido e consigo distinguir as palavras do canto: One, two, three! Vive l’Algérie! Uma rima bilíngüe, coisas da globalização, e de autoria de um povo que fala ainda um terceiro idioma. Nove e dez, o frio já trinca a minha mandíbula, o barulho dos torcedores embandeirados vai se aproximando. Seria então um França x Argélia? Seria no Stade de France? Nesse caso, que coragem demonstram os magrebinos. Vão atravessar a cidade torcendo contra o mandante! Ali no subúrbio, onde os conjuntos habitacionais escondem e contêm os tons de pele e as línguas menos estimados no país, eles estão seguros, diria mesmo que estão em casa. Mas no centro da capital, sabem os deuses o que pode suceder.

São nove e dez. O garoto uniformizado está mais uma vez por perto. Peço licença e pergunto com quem a Argélia vai jogar. Ele me encara como se eu viesse de cair da lua. Em poucas palavras, ele explica: já jogou, já ganhou, está na Copa e nós vamos comemorar em Saint Michel. Eu também me sinto como um alienígena. Parabenizo o rapaz e desejo sorte no Mundial. Meu inconsciente, enquanto isso, divide-se em duas ponderações. O menino fala um francês perfeito. Ele é francês. Certamente nasceu por aqui. Mas está identificado é com o país de seus ancestrais, como toda aquela multidão que vai se aproximando da estação, cada vez mais barulhenta.

Rumo a Saint Michel, a praça apinhada de turistas onde têm lugar todas as comemorações esportivas da cidade. Como quando os bleus ganharam da Nova Zelândia no rúgbi ou, hélas, do Brasil no futebol. Esta noite, outro país fará sua celebração de vitória, no coração da antiga capital imperial, diante da fonte onde o Arcanjo degola o dragão. Sabem os deuses, ainda, o que pode acontecer. Ponho-me a especular se não haveria um certo fundo político, de cunho étnico, histórico, sei lá eu, nessa manifestação esportiva. Pode ser. Mas certamente não para o menino afogueado e imberbe que se posta à minha frente. Tento parecer simpático e explico que não acompanho muito, na verdade quase nada, do futebol europeu ou, no caso, africano. Por outro lado, e a despeito de um amortecimento em mantas e cachecóis, também estou num espírito futebolístico. Meu time joga hoje, estou apreensivo, e ainda por cima o jogo cai no meio da madrugada, em função do fuso horário. O garoto não quer saber, está provavelmente incomodado por aquele sujeito – talvez até eu lhe apareça como um velho – que puxa assunto assim, sem mais, na plataforma do trem.

Ele não está para confraternizações. Não com brasileiros, ao menos. São nove e doze, o one-two-three já desce os degraus para tomar o trem que passa em três minutos. Mais uma vez, sinto como se fosse a estação Maracanã, aquela massa humana magnificada pelo próprio número, estapeando os painéis publicitários como se fossem tambores e provocando os poucos que permanecem alheios, fingindo ignorá-los. Nada no muito é mais importante do que o destino daquela equipe, é o que crêem os argelinos, como creram e seguirão crendo todos os torcedores em todos os tempos. Reis e generais não fazem a história, mas centroavantes e arqueiros. Acho curioso como eles falam em francês entre si, sem sotaque algum, afora as gírias do subúrbio. Estranha situação, penso. Estar ligado a uma terra pelo corpo e a outra pela alma. O imperialismo deixa suas chagas, não apenas nas colônias, mas na própria metrópole. Clemenceau dificilmente terá imaginado que um dia a juventude argelina tomaria de assalto a praça de Saint Michel. Pois é o que farão, esta noite, os netos e bisnetos de um povo que, naquele tempo, nada mais era do que carne para moer na luta contra o Kaiser.

Chega a composição às nove e quinze, numa surpreendente pontualidade. Os torcedores fazem também o trem de tambor. Pá Pá Pá! Os passageiros se assustam. O canto ainda é o mesmo: one-two-three, vive l’Algérie! Não sem um certo desprezo bairrista, concluo que o brasileiro é muito mais criativo, cheio de cantos diferentes, alguns brilhantes, outros dementes, incitando uma violência tão à toa quanto um jornal esportivo. Procuro um vagão com menos bandeiras e apitos, na esperança de viajar sentado. Qual. Sou obrigado a seguir em pé e o trem ainda vai lento, suponho que por causa dos torcedores, talvez se pendurando para fora ou qualquer coisa dessas que torcedores fazem, como sabemos. Na primeira parada, nove e vinte, entra uma moça de xador e bandeirola na mão. Ela agitará seu brinquedinho timidamente. Não deve ter o hábito do futebol.

Mais alguns minutos e estamos na estação central, onde vamos nos separar. Sigo ao norte, eles ao sul, rumo ao grande objetivo estratégico, a praça Saint Michel. Consigo descer mais rápido e avanço na direção das catracas e da esteira rolante. Nove e vinte e quatro, ouço à distância a aritmética anglo-saxã dos argelinos, felizes da vida. Mas já nada tenho com eles, ou pelo menos é o que creio.

Mais veloz que eu, chega à esteira rolante uma pequena companhia de policiais. São sete. Caminham bem à minha frente. Como de hábito, ponho-me a considerar sua aparência ameaçadora. Todos grandes, fortes como colheitadeiras, com suas jaquetas e calças negras, estofadas para aumentar a impressão de musculatura. Nada que lembre os tradicionais e simpáticos uniformes da política francesa. São todos muito brancos e nenhum parece interessado na vitória da Argélia. Cabeças raspadas debaixo das boinas também negras e um cinto de utilidades à la Batman, com pistola, lanterna e um mostruário de bugigangas que não sei identificar. Com seus coturnos de sola grossa, são todos muito altos, e cada passo ribomba pelo subterrâneo. Quem passa no sentido oposto espia discretamente, com uma certa perplexidade e um grande receio de encarar diretamente aqueles agentes da, como se diz, ordem. Alguns olhares também se dirigem para mim. Esses deixam entrever uma certa pena, como se imaginassem que estou sendo detido.

Aquelas figuras, com seus cassetetes, suas luvas, suas algemas, também me incomodam. Espero poder me afastar deles assim que termine a esteira. Mas, para minha grande decepção, eles tomam o mesmo túnel que eu, sobem os mesmos degraus. Esmagam a escada rolante como se a quisessem escangalhar. Nem imagino de onde vem esse ódio. Nove e vinte e oito, estamos todos, os policiais e eu, na mesma plataforma do metrô. O que querem aqui? Para onde vão? E por que sete, cáspite?

A resposta aparece espontaneamente às nove e meia em ponto. Do outro lado, uma vibração abafada parece vir do túnel. Ela cresce e se transforma num som conhecido: one-two-three, vive l’Algérie. Em poucos instantes, a plataforma oposta está inundada de jovens em verde e branco, empunhando as bandeiras com o crescente – uma delas enorme –, pulando como crianças e fazendo desta vez as máquinas de refrigerante de tambores, que denunciam a falta de ritmo. (Nisso os brasileiros também somos melhores.) Notável, me dizem meus botões, como as torcidas se parecem no mundo inteiro.

Ao mesmo tempo, minha visão periférica capta um movimento rápido. São os policiais, que afastam os viajantes sem grande gentileza e se perfilam diante dos trilhos, olhos petrificados e fixos na pequena multidão festiva. Espinhas retesadas, todos. Alguns cruzam os braços, outros apóiam os punhos na cintura. O que para mim era uma torcida, para eles é um bando de baderneiros, pelo visto. Mas os baderneiros não dão bola para a posição de ataque dos predadores, separados da enorme presa por uma vala eletrificada. A festa continua, a cantoria, a barulheira. O poder de dissuasão dos mamutes públicos é nula diante do contentamento magrebino.

É nove e trinta e três quando chega o metrô para os torcedores e demais passageiros na direção contrária à minha. Eles embarcam sem conceder um mínimo olhar às hostes da repressão e da ordem, aos sete bravos touros que não deixam de encará-los, mesmo quando as portas se fecham. Não há contato, não há comunicação. A disparidade das emoções e intenções é tão radical que encerra os dois grupos em universos isolados. Ainda bem, concluo. Provocações de parte a parte não poderiam terminar bem.

Restabelecido o silêncio na estação, penso que os policiais vão retomar sua conversa ali mesmo. Qual nada. Mal partiu o trem, nove e trinta e cinco, o mais velho e provavelmente mais graduado dá um tapa ligeiro no ombro de um outro e sentencia: “pronto, podemos ir”. Como se abrissem uma comporta, todos relaxam. Os rostos de pedra se tornam milagrosamente humanos. Contando piadas e trocando receitas, eles viram as costas e partem, de volta para casa ou para o quartel – ou ambos, por que não? Eles estavam ali com o fito único de se revelar em ameaça diante da multidão de argelinos. Nada mais. Exercida a pressão, missão cumprida. Todos os presentes vão se lembrar de que, afinal de contas, não estamos seguros coisa nenhuma.

Finalmente, tudo está tranqüilo. Sem tambores, sem rimas bilíngües, sem tropa de choque. Reflexivo e algo entristecido, tomo o metrô às nove e trinta e seis. Às nove e quarenta, estou caminhando para casa. Não me encontro mais no subúrbio, mas ainda muitos carros passam na avenida como bandeiras alviverdes, crescentes, buzinaços, one-two-three e Yallah, yallah. Esfomeado e morto de frio, aperto o passo, mas só tenho um pensamento: oxalá a polícia não invente de ir à praça Saint Michel.

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Um episódio em parte real

Como quase tudo que me sucede por aqui, foi no metrô. Madrugada de sábado, uma das últimas composições, já quando o intervalo entre uma e outra passa dos dez minutos. A namorada e eu cansados pelo horário, um tanto altos, mas nem por isso bêbados, esperávamos no silêncio dos que não têm forças para falar. Enfim veio o trem. Havia lugares vagos, para alívio de ambos, e por milagre eram contíguos. Sentamo-nos, eu muito distraído, o olhar para fora da existência, recusando-se a fixar qualquer objeto. Teria continuado assim por toda a viagem, se não ouvisse o suspiro.
– Tadinho!

Virei o rosto para ver o que se passava. Era um homem muito velho, que tentava alcançar a porta. A lâmpada vermelha já piscava, o alarme soava anasalado e arrogante, mas o pobre ancião não tinha nem condição de se apressar, tal era seu estado de decadência física. Cortava o coração vê-lo ali, radicalmente encurvado, esticando os braços a um passo da porta, no esforço heróico de colocar um pé diante do outro. Elogios ao condutor, que, do outro lado da estação, avistou a cena pelo espelho e atrasou nossa partida. Imagine aquele senhor, tão castigado, tendo de esperar um quarto de hora, em pé na plataforma.

O atraso nos deu a oportunidade de agarrar seus braços e alçá-lo para dentro, eu e um outro sujeito igualmente distraído, absorto na música de seu aparelhinho. Foi só o tempo de ele entrar, a porta fechou-se e fomos postos em movimento. Mas como o trem sacudia, já que sacudir é da natureza dos trens, foi necessário ainda segurar o pobre velho desequilibrado, que não tinha forças de se agarrar ao poste de alumínio, nem contrariar o ímpeto da composição para chegar ao assento.
Ele nos agradecia, meneando a cabeça, enquanto o conduzíamos a sentar-se. Instalado, dobrou-se sobre si mesmo e se pôs a revirar o interior do paletó. Não foi surpresa alguma constatar que sua mão tremia com violência. Uma mão de ossos, pele seca e grandes manchas circulares.

Em nome da discrição que as boas maneiras prescrevem, retomei meu assento e meu ar distraído. Do que parecia um episódio terminado, guardava apenas o sentimento de ter realizado a boa ação do dia. Tão grande era minha distração que não acompanhei a seqüência dos movimentos do ancião e, quando ele me estendeu um pequeno objeto, tomei-o sem atentar para o que era.

Vejo agora que foi um erro. Se já não o tivesse entre os dedos, poderia apenas espalmar a mão para recusar o maço de dinheiro que me fora presenteado. Àquele ponto, a quantia era impossível de estimar. Um canudo grosso feito de notas de cinqüenta. Talvez houvesse mais de mil euros atados com um elástico.

Pasmado, ergui os olhos e percebi que muitos me encaravam com ar severo. Ao meu lado, a namorada apertava minha perna, as unhas enfiadas na carne. À frente, o outro rapaz transparecia o mesmo pensamento que o meu, também segurando um maço de notas, sem jeito, o dinheiro lhe queimando os dedos. Como eu, ele claramente não sabia o que fazer. Mas foi o primeiro a falar.

– Monsieur…

Do colega, meus olhos retornaram ao pobre ancião dobrado sobre o assento à minha frente. Observei-o como antes não quisera fazer. Se me referi a ele como “pobre”, não poderia ter escolhido adjetivo mais infeliz. Cada peça de sua roupa indicava o contrário. Os óculos espessos, de aro dourado, acusavam marca das mais cobiçadas. A gravata vermelha era de seda e estampava um padrão característico dos altos funcionários da burocracia francesa. Nos sapatos, no paletó, na carteira de couro, em tudo estava explícita a condição privilegiada daquele velho que nos causava tanta pena.

Imediatamente, assomou ao meu espírito a questão mais óbvia. Que será que o levara a andar de metrô na madrugada de sábado? Um homem em suas condições, rico e doente, quase inválido, poderia muito bem ter tomado um táxi, se não possuísse um carro próprio, conduzido por chofer de luvas brancas. Como fora parar ali? Formulei internamente uma resposta: a idade afetava sua capacidade de raciocínio. Era, sem dúvida, um senil. Isso explicaria não só sua presença, mas o dinheiro que ele metera em nossas mãos.

Já que o outro beneficiado não ia além do vocativo, eu mesmo tive de superar a surpresa e formular um protesto.

– Desculpe, o senhor se enganou. Não precisa dar recompensa, ajudamos por ajudar.

O outro concordou com a cabeça. Fiquei com a impressão de que ele estava aliviado. Mas o velho se recusou a recuperar o dinheiro.

– Não é recompensa. É presente.

Dessa vez, foi o outro que falou, argumentando com a típica linguagem empolada dos franceses.

– O senhor compreende que não é habitual receber somas de desconhecidos, sobretudo com um valor tão elevado…

Em voz baixa e sumida, firme ainda assim, o ancião interrompeu a declaração de recusa e se pôs a explicar, lentamente e em tom autoritário, por que nos deslizara os canudos de dinheiro. Anunciou que estava muito doente e, como podíamos perceber, muito velho. Sabia que seu futuro não contava mais do que um par de meses. Possuía dinheiro demais, pretendia distribuí-lo e se achava no direito de fazê-lo da maneira que escolhesse.

– Minha fortuna, podem acreditar, me serviu bastante, por décadas e décadas. Lutei muito por esse dinheiro, mas também aproveitei como ninguém. Agora chega. Passei no banco, tirei tudo que tinha no caixa. Vou fazer a mesma coisa amanhã e até o corpo não aguentar. Vocês dois me ajudaram, parecem bons garotos, façam o que quiserem com o dinheiro. Comprem alguma coisa, jantem no Alain Ducasse, a escolha é de vocês. Se quiserem uma dica, sugiro viajar. As viagens são a melhor coisa que o dinheiro pode oferecer.

Os olhares que até então me cobravam, agora só exalavam curiosidade, temperada de uma ligeira inveja. Eu cumprira meu dever, recusara o dinheiro. O que fizesse daí por diante não sofreria de carga moral. O mesmo valia para meu companheiro de berlinda, também observado e incomodado. Percebi que, de uma hora para outra, minhas decisões seriam tomadas diante de uma plateia. Como se vivêssemos um estranho programa de auditório gravado no último vagão do metrô, uma composição que seguia seu caminho a chacoalhar e guinchar, fingindo que em suas entranhas só acontecia o perfeitamente corriqueiro.

Sem recursos, fiz o que deveria ter feito em primeiro lugar. Busquei os olhos de minha companheira. Ali, ao meu lado, ainda apertando com força a minha perna, ela me encarava com uma espécie de piedade, ciente de que não há dor pior, para mim, do que ser observado. Em sua expressão, pude ler o desejo de que nada daquilo tivesse acontecido, que pudéssemos simplesmente chegar em casa, como todas as noites, conversando sobre os eventos do dia, depois ver um filme e dormir em paz. Pequenos, humildes, felizes, sem incômodo.

Fui dominado por um leque de sentimentos inconciliáveis. Quis saltar na primeira parada e correr para a rua, longe dos olhares, só eu e minha consciência abalada. Quis ofender o velho, atirar-lhe o dinheiro ao colo, vociferando que a origem só poderia ser suja, indigna, corrupta. Quis arrancar o elástico que prendia o cilindro e lançar o dinheiro para o alto, de modo a que os demais viajantes saíssem da confortável posição de audiência para o ridículo de disputar dinheiro.

E quis chorar, mas não chorei. Não sei por que quis chorar, não sei por que não o fiz. Nem sei dizer quanto tempo se passou antes que eu olhasse para meu duplo, a poucos passos de mim, e o surpreendesse também congelado, esperando minha reação como eu esperava a sua. Acho que ele se dava conta, ao mesmo tempo que eu, de um detalhe muito estranho.

Aquele dinheiro não tinha graça. Se, como sugerira o doador, eu comprasse um computador, um jantar caríssimo ou uma viagem deliciosa, seria uma aquisição morta, frustrante. E fugaz, porque alimentada por um capital de ilusão, alheio, casual. No dia seguinte, deixaria como legado um rastro de pobreza. Aquele papel valioso, de que ambos certamente temos necessidade, nenhum de nós o queria de verdade. Entretanto, ainda que não o quiséssemos, tampouco tínhamos coragem de devolvê-lo. Honra é honra, orgulho é orgulho, mas dinheiro, acima de tudo, é dinheiro.

No impasse, o elemento preponderante era, sem dúvida, a presença do público. Cheguei a desejar que fosse coisa da minha imaginação a idéia de que o vagão inteiro estava submerso no suspense, impaciente para acompanhar o final da história, pronto para apertar os celulares e votar na ação que os protagonistas deveriam seguir. Pois bem, os protagonistas éramos eu e o desconhecido que se tornara, de súbito, meu irmão.

Mas veio a prova de que estávamos, de fato, no centro das atenções. Chegamos a uma estação em que se cruzam quatro linhas de metrô e duas de trem. Onde centenas de milhares de pessoas trocam de direção a cada dia. Mas ninguém desceu, ainda que muitos já estivessem colocados diante das portas. Subiram boas duas dúzias de pessoas, que se espremeram no espaço que deveriam deixar os que saíssem. Não entenderam por que havia tanta gente e uma atmosfera tão pesada. Mas para mim foi uma ponta de alívio.

Só uma pessoa se mantinha alheia ao suspense. O velho, entregue à caquexia, olhava para os próprios joelhos. Balançava a cabeça, com seu cabelo esparso e espetado. Senti raiva, pensei divisar um sorriso de escárnio, tive ganas de agredi-lo como a um cão indefeso. Se o fizesse, como reagiria a plateia? Que me aplaudissem e louvassem, que me linchassem e vaiassem, não sei o que seria mais abjeto. Alguém, ali, talvez já tivesse uma câmera de vídeo empunhada, pronta para tornar a mim e ao outro rapaz estrelas da internet.

A não ser pelos recém-chegados, para quem tudo devia andar na mais perfeita normalidade, não havia conversas. Ouvíamos o tempo que me apertava o pescoço, sentíamos a fricção dos trilhos. O metrô já chegava à estação seguinte, a penúltima de nosso percurso programado, e eu ainda só conseguia pensar em desaparecer.

A claridade da plataforma invadiu as janelas, despertou-me do torpor. Freávamos. Novamente, busquei a opinião de meu colega de impasse. Percebi que ele tremia um pouco. Tive esperança de que seria ele a romper a teia e resolver a situação. Aguardei, olhos cravados nos seus. E ele não me decepcionou. Quando paramos, projetou-se para cima de mim, tão rápido que não tive tempo para o sobressalto, agarrou o dinheiro das minhas mãos, aproximou o rosto do meu, encarou-me com olhos fixos, olhos negros e decididos, e disse, mais ar do que voz:

– Je ne supporte plus!

Vendo que eu meneava, inteiramente de acordo, ele se ergueu e foi até a porta. O alarme se pôs a soar, mas o prazo curto só aumentou sua determinação. Ele ergueu a alavanca. Ouvimos o estrondo do metal, sentimos a brisa fresca e malcheirosa invadir o vagão, acompanhamos o gesto com que ele atirava ao longe os dois cilindros valiosos, grunhindo de raiva.

Enquanto meu novo amigo recuperava o fôlego, acompanhando o dinheiro que rolava para o canto da plataforma, as portas se fecharam novamente diante de seu nariz, velozes como lâminas de guilhotina. Quanto à fortuna, ela seria de quem a encontrasse, provavelmente um mendigo ou um gari. Nossa, não seria.

Cheguei a fantasiar que o catalisador de toda a história desapareceria de repente ou revelaria ser um demônio, um duende, qualquer ser sobrenatural. Mas qual, o velho continuou encalacrado, olhos nos joelhos, como se nada se passasse à sua volta. Uma frieza tamanha me causou calafrios e reforçou minha convicção de que algo ali não podia ser humano.

Recebi um abraço da namorada e pude perceber que ela passara os últimos instantes com a respiração presa. Eu também. De volta à calma, também veio o outro, o corajoso, para me cumprimentar. Pus-me de pé e apertamos as mãos. Mas aquele não poderia ser um cumprimento formal, desses que se dão no início das reuniões de negócios. Apesar de nem sabermos o nome um do outro, trocamos um abraço forte, com tapa nas costas, como se fosse no Brasil.

Logo, porém, fomos lembrados de que não estávamos sós e o episódio escapava à nossa esfera. Antes que nos afastássemos, alguém começou a bater palmas. Em um segundo, todo o vagão aplaudia, até mesmo algumas das pessoas que vinham de entrar e praticamente não acompanharam o ocorrido. O ancião continuava atento a seus joelhos.

O desconforto voltou de um golpe. Tudo começara por causa de uma figura surgida do nada, e de repente queriam me fazer de celebridade. Esperavam sorrisos, um aceno, mais abraços e cumprimentos, fotografias, talvez até autógrafos. Mas eu não tinha escolhido, não queria nada assim. Só pensava em deixar aquele ambiente claustrofóbico e ser esquecido por todos eles. Uma hora da manhã de um sábado qualquer, mas era como se apresentássemos um programa de televisão. Desconhecidos sorriam para nós, faziam perguntas, espoucavam flashes indiscretos. E não teríamos mais nem ao menos o consolo de uma viagem luxuosa ou um jantar elegante.

Pareceu uma eternidade até que a estação chegasse. Enfim, era a nossa. Descemos. Junto conosco, vieram meu bravo companheiro e uma multidão insuportável, incluindo sem dúvida muita gente que já deveria ter saltado. O doador senil continuou na mesma posição, olhos nos joelhos.

O trem partiu, a turba se dissolveu, o pesadelo acabou.

Perguntei ao novo amigo:

– Você também mora no bairro?
– Não – ele respondeu, com seriedade quase solene. – Moro no final da linha, mas acho que prefiro pegar o próximo trem.

Jamais compreendi tão bem uma decisão quanto aquela, apesar dos doze minutos de espera que ele teria pela frente. Pensei que poderíamos lhe fazer companhia, mas os olhos da namorada já mal se mantinham abertos e minhas próprias pernas bambeavam.

Cumprimentei-o mais uma vez e, sem outras palavras, nos separamos. Apesar do episódio intenso que nos uniu, espero que jamais tornemos a nos encontrar.

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Conhecido entre os traços

Fotograma do primeiro filme da série O Poderoso Chefão, com um close do ator Robert Duvall

Executa seu caminho no meio de outros tantos corpos, sóbrios no vestir e no pisar o pavimento, cada um em respeito solene ao próprio traçado e nada mais. A tarefa não exige esforço algum, como nunca exigiu, se não for a observação estrita do acordado, do decidido há tempos.

A única novidade é quase nada. Uma força esquisita que empurra para trás. Um pouco incômoda. Está presente, insidiosa, desde os primeiros passos, ainda sobre o carpete da sala de estar. Nunca tinha acontecido, essa energia pesada, negativa, que chega sem anúncio, vinda não se sabe de onde.

Com ela, abafando o som dos outros corpos, a percussão das solas e saltos, os grunhidos da cidade a acertar a disposição apropriada, só ascende à consciência a vibração de um pensamento: a repetição monótona de uma expressão vulgar. O palavrão se valoriza ao raspar, áspero, uma garganta imaginária. As idéias que vêm do fundo permanecem insondáveis. Misteriosos como o empuxo que se opõe ao impulso adequado.

Nada de notável.

Sim, sem dúvida, condições objetivas existem. Questões pragmáticas. Uma pequena coleção de falhas, lado a lado com a lista humilde de sucessos, e o equilíbrio pende discretamente para o lado pessimista. Sem esquecer o inevitável; dessintonia conjugal, fantasias capciosas, contratos rompidos, o sucesso profissional postergado, perspectivas sufocadas.

Uma inclinação do momento, coisa de hormônio, conjunção astral, seja o que for, provê a condição que desequilibra a balança. O prato mais pesado é o que verga de amargura. Na liga, entremeados, o cansaço das férias por tirar, a frustração de estar aquém das ambições sexuais, a dificuldade em aceitar que o tempo se arrasta, como sempre se arrastou para todos.

Entre a força anônima e a imagem difusa de todos os nomes, a mente equilibrada se vê na obrigação de decidir uma estratégia. Pois a retirada é uma estratégia sensata. Vergonhosa, mas sensata. Antes retroceder a ser carregado pelos ventos. Cobrir com as mãos o rosto é melhor, muito mais digno, do que arrancar os olhos para seguir na ofensiva.

Encontra uma superfície horizontal para largar o peso do corpo. Fria, seja o que for, exerce bem o papel de um banco. Então basta para retomar o ânimo, que escapara em algum momento do percurso, sem se dar a perceber.

Ao lado, um outro homem. No turbilhão dos vetores que disputavam um corpo, a cegueira temporária o ocultara. Mas ele esteve sempre ali. Deitado, encolhido, abraçado aos próprios ombros como à última posse que lhe resta. Finge dormir.

Observa-o. Um mendigo. Com todos os atributos de quem vive na rua, procurando a cada noite um novo abrigo. Andarilho debaixo do sol, encalacrado sob as estrelas, eis sua única certeza. Um homem que se apropria da cidade sem que nada na cidade lhe seja próprio.

Estranha figura. Um rosto familiar. A tal ponto que os olhos se fixam sobre os traços e rechaçam o esforço de afastamento. Feições que poderiam ser reconhecidas debaixo da escuridão mais profunda. A familiaridade produz um calafrio. As pontas dos dedos gelam, os pelos do braço eriçam. Quer tocar o vizinho, pousar os dedos sobre seu ombro, depois sentir a textura da pele, devagar. Não ousa. Mas não é asco. Não é nada. Apenas encara.

O homem sente que é observado. Sacode-se bruscamente, não a ponto de assustar. Abre enorme a boca, como para escarrar um grito. Desiste. Emite apenas o hálito de álcool. Põe-se sentado, lentamente, na calma de quem não acompanha as centenas de trajetórias riscadas pouco adiante. Desperto, seu rosto é jovem. Terrivelmente familiar. Alguém do passado, talvez. Impossível não fitar. Um olhar fixo assim deveria incomodar, deveria ofender, mas o homem não deixa ler sua opinião. Apenas exibe a face, os traços que parecem os mesmos de algum sempre.

Passado um instante, o homem desvia sua face conhecida. Lentamente, apóia-se nas duas mãos para se erguer. Como um velho. E se põe em marcha. Termina cada passo antes de começar o seguinte. Cambaleia, mas projeta o corpo e conquista o espaço. Desloca-se em curva, pende para um lado, deixa a impressão constante de que vai cair.

Mas o homem segue. Uma atenção aflita o acompanha à distância. Guarda no inconsciente a linha imaginária que o corpo descreve, no menor detalhe de sua irregularidade. O arabesco intercepta os riscos deixados pelos outros pares de pés, como se os conspurcasse. Desenho livre, atinge as trajetórias de todas as direções e não pede licença. Insolente, a figura.

Salta quando crê que o homem vai ao chão. Ensaia apoiá-lo com o braço, mas interrompe o gesto em pleno ar. Assim permanece, um passo atrás do rosto familiar, sem a ousadia de aproximar-se. O reconhecimento, que atraía, agora repele, com intensidade parelha. Porque a posição é outra; ou porque, junto com o mendigo, o universo se deslocou; ou porque algo emergiu à consciência.

Está claro, mas não nítido, por que o desgraçado é assim tão familiar. As paralelas que deveriam se encontrar no infinito podem sofrer desvios. Podem chocar-se ainda no tempo. Eventualmente, acontece.

Põe-se a correr. Correr é a saída. As funções mecânicas assumem o leme da mente e a recolocam no trajeto planejado, sem empuxo que arraste, sem força alguma conclamando a retroceder. Quando dá por si, já está em pleno destino, agachado, apertando os olhos para escapar à claridade.

Da experiência, somente uma convicção que se insinuara. A desgraça é livre, é fascinante e familiar. Ei-la, a verdade. Parece temível, a desgraça. Mas dá o poder de interromper e cortar todas as trajetórias com a mera vontade.

Só que as trajetórias, conforme é ensinado, acordado e decidido, são sagradas.

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Da urna aos muros

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Quarta-feira, cinco de novembro, oito horas da noite. Entranhas da Gare Saint-Lazare, estação do oitavo arrondissement de Paris. Uma mulher de meia-idade, cabelos brancos e bem curtos, destaca-se da multidão, quase despercebida. Ela escreve com uma caneta pilot negra sobre o fundo branco de um painel publicitário, em movimentos tranqüilos e seguros. Ninguém a incomoda.

Tendo-a avistado à distância, logo penso se tratar de um membro do grupo anarquista que ataca propagandas por toda a cidade, na missão de denunciar o consumismo e a lavagem cerebral. Mas é uma surpresa: eu pensava que os ativistas underground fossem todos muito jovens. Ao menos o são os que, vez em quando, acabam apanhados pela segurança e sofrem processos por dano a propriedade.

A corrente de viajantes vai passando aos encontrões, sem espiar a mulher resoluta em seu discreto vandalismo. Um fluxo penoso, sem ritmo, mil rumos sem direção. Como sangue empurrado por um coração fora de compasso.

Entre pastas, meias de seda e capotes, só uma pessoa interrompe a marcha para ler a mensagem: outra mulher de meia-idade, mas de cabelos anelados, tingidos de vermelho berrante.

Quando a ativista termina seu texto, estou quase perto o bastante para ler. A fulva espectadora sorri de leve. A autora anui de um gesto brusco da cabeça. Um sorriso e ela tampa a caneta. Está claramente satisfeita com o serviço. Pode voltar a seu caminho.

Já estou bastante próximo para enxergar a mensagem. Sobre o anúncio de sapatos elegantes, lê-se:

À quand un Obama ici?

Uma constatação de como a onda azul está espalhada pelo mundo. A onda que venceu, como não venceu a verde, de Gabeira, no Rio. A francesa engajada, figura tão peculiar deste país, queria um Obama para seu país.

Nações diferentes, histórias diferentes, contextos diferentes. Um Obama na França teria de cair realmente do céu, mas pouco importa. A grafiteira do metrô não quer um presidente jovem, inteligente, carismático e negro.

Ela quer o símbolo, a imagem. O Obama dos cartazes, não o do Salão Oval. Ela quer o nome ao qual está associado tudo que se pode esperar de bom e revolucionário neste nosso começo de século, que parecia tão conformista e reacionário.

“Quando teremos um Obama aqui?”, ela quer saber.

Minha senhora, nesse sentido em que a senhora está pensando, já temos.

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abril, costumes, crônica, descoberta, escultura, Estocolmo, férias, Florença, flores, folhas, fotografia, frança, história, imagens, inglês, modernidade, opinião, paris, passeio, praça, primavera, prosa, reflexão, Suécia, tempo, verão, viagem, vida

Ainda mais ao norte

Carl Xiii
Nenhum dia na Suécia é igual ao anterior. Tão violenta é a variação das horas de luz e trevas, que os suecos não conseguem conter o comichão de comentar o assunto, quando a curva da primavera vai se tornando mais e mais aguda: “nesta época”, eles informam, cúmplices de contentamento, “são cinco minutos de sol a mais por dia”. E o dado confere com o que aprendemos na véspera.

Não sei quem foi que convencionou as datas que marcam a virada das estações, seguindo os solstícios e equinócios. É provável que tenha sido a academia de ciências da França, como sempre, no mesmo golpe em que foram inventados o metro, o quilo e todo o resto das medidas rigidamente decimais, às quais só os anglo-saxões ainda tentam resistir. Em todo caso, certamente não foram os suecos. O dia se equipara em duração à noite na penúltima semana de março; na última, tem início o horário de verão. Mas é final de abril e não há sinal de verão em Estocolmo. Difícil topar com uma árvore já pontilhada de brotinhos de folhas. Enquanto em Paris as sakura já murcham e passam do rosa ao verde, na Escandinávia ainda abrem os primeiros botões de cerejeira.

Os cariocas dizem que o Rio de Janeiro conta com só duas estações: verão e inferno. Piada antiga. Na Suécia, pode-se dizer algo parecido: há o inverno, inferno oposto ao fluminense, e o “não-inverno”. Em julho, o termômetro eventualmente bate nos trinta e os nórdicos derretem. Hoje, domingo, primeiro dia no ano com céu em puro azul, temperatura positiva já ao amanhecer e mais de dez graus no princípio da tarde. A cidade inteira se lança à rua, redescobrindo os territórios que deixou vazios desde setembro. Coisa linda de se ver. Para nós, é muito frio, mas eles aproveitam para deixar braços e pernas finalmente nus. Não os pescoços, cabe alertar: só um louco sairia sem cachecol antes de maio, arriscando uma pneumonia que o deixe prostrado na cama por todo o verão. Nem pensar.

Pergunte a um sueco como ele consegue viver num lugar coberto de neve de setembro até abril. Faça isso a título de experimento antropológico. Há aqueles, com alma de esquimó, que consideram insuportável de tão quente o inverno de outros países europeus, como a Alemanha. Mas é minoria. Há boas chances de que a resposta seja um suspiro, seguido da confissão: “não sei”. Muitos têm o sonho de se mudar para um país mais ameno, para não dizer quente. Alguns citam a Jamaica, porque é tropical e fala-se inglês. E todo sueco é fluente em inglês, com uma pronúncia muito mais agradável do que a dos nativos, sejam britânicos, americanos, australianos, indianos… Ao final de outra pausa, longa e melancólica, o entrevistado responderá em tom de profecia, mais do que de descoberta: “Suporto o inverno para esperar o verão”.

Concluo que o frio extremo é, antes de mais nada, um grande aprendizado. Com a sucessão dos anos, a espera pia por um verão curto e apenas fresco ensina os jovens a se tornarem pacientes. Talvez isso explique o nível de civilização do país e do povo. A Suécia é tudo que dela se diz. ônibus não atrasam, lixo nas ruas é lenda das terras bárbaras ao sul (e praticamente o mundo inteiro está ao sul), mendigo é coisa do passado. Covardia comparar a Suécia à França. A falta de educação parisiense, o mau humor, a frieza, a empáfia, tudo isso passa longe de Estocolmo. Ou seja, aqueles que atribuem ao frio a nuvem negra sobre as cabeças francesas estão apenas muito enganados. Os fatos indicam coisa bem diversa. Aqui, transeuntes sorriem quando abordados, comerciantes são solícitos e dão informações, ninguém se compraz em destratar os outros. Para quem vive no meio de gauleses, conviver com os temíveis vikings é um alívio.

Uma palavra sobre a capital: Estocolmo é a cidade mais linda da Europa, pelo menos entre as que conheço. Uma pena que só se possa vê-la em todo seu esplendor a partir de maio, até setembro no máximo. Fora dessa janela, não bastassem a escuridão e o frio, muita coisa nem abre. Mas quando há luz, não existe delícia maior do que bordejar a linha d’água, entre pessoas tranqüilas sobre suas bicicletas, sem multidões, sem turistas berrando, sem excursões de japoneses, americanos e brasileiros.

Posso ofender muitas sensibilidades ao dizer que Estocolmo é mais bela do que Paris, Roma, Florença, Praga. Não é culpa minha. Na comparação, as cidades italianas não dão nem para o começo. Fora os museus e monumentos, são mais sujas do que o aterro de Gramacho. Praga poderia rivalizar, mas perde pelo tamanho e porque o adversário é mesmo muito difícil. Quanto a Paris, a incensada, é mesmo muito bela, mas cansa rápido. De sua arquitetura toda haussmannienne, cinzenta e retilínea, resulta uma cidade monótona, monocromática, monocórdia. Estocolmo é colorida, espalhada, ampla. Sua arquitetura é imaginativa, sabe misturar diferentes épocas e escolas, quase sempre sem ruído. Belíssima cidade, repito.

Mas este é apenas um texto introdutório. Lanço aqui uma seqüência quase desconexa de primeiras impressões. Coisas assim são o que vi na capital gostosa de um país nórdico desde que cheguei, dois dias atrás. Mas há muito a dizer nas próximas crônicas, se a internet parar de me pregar peças.

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abril

A grande transformação*

Gente Sentada No Parque
Novamente sobre o Primeiro de Abril, quando saí de casa em busca de uma mentira e não encontrei. Como já expliquei no último texto, aliás. Por outro lado, e para meu grande espanto, o que encontrei foi uma nova cidade. Absorto na minha busca infrutífera, ganhei a rua, mas antes mesmo de atingir a esquina, já me sentia deslocado. Esta não é a mesma Paris de ontem, isto é, 30 de março; estes não são os mesmos parisienses. Terei atravessado um portal místico ao empurrar as cinco toneladas da porta do edifício? Terei sido transportado para outra realidade, outro país? Meu humor anda assim tão bom, que vejo tudo de outra forma?

Rumo ao pequeno parque escondido nos fundos do bairro, percorro as ruas do quotidiano como se explorasse as veredas de Atlântida. Mesmo os mendigos, encalacrados pelos últimos meses nas soleiras e nas escadarias do metrô, têm o ar de quem toma sol. Sentados em banquinhos de três pés, pedem seus trocados com gentileza, numa subversão tão perturbadora do desespero do inverno, que chega a parecer artifício. Um motorista com vocação para Nakajima quase atropela um motociclista, mas nem por isso um xinga o outro. Ao contrário, produz-se ali a Segunda Revolução Francesa: um pede desculpas ao outro e segue sua vida.

Quanto às moças, as célebres patricinhas francesas, elas trocaram seus cachecóis felpudos e brilhantes por coques estilizados. Chego a perder um minuto observando uma dessas estruturas de melenas: parece projetado por Calder, tamanha a delicadeza do equilíbrio, sob a ameaça da primeira brisa. É abril. Adeus botas de saltos mais altos que os canos, olá saias curtas e sandálias.

Descrito assim, pode parecer caso de dia ensolarado, mais quente do que os anteriores, irreversível final do inverno. Ledo engano. Primeiro de abril não foi mais quente do que 30 de março. Talvez a média tenha ficado até um ou dois graus mais baixa. Sol, houve. Menos do que no dia anterior, mais do que no seguinte. O horário de verão já vige desde o dia 21. Oficialmente, já temos quase duas semanas de primavera. Lanço a pergunta: que raios, afinal, mudou tanto de segunda para terça-feira?

Resposta singela, mas verdadeira: o mês. Nada mais. Não há ato psicológico mais forte que arrancar uma página de calendário. Abril é quando se fica mais alegre e se vestem roupas mais leves, certo? Pois bem: alcançamos abril, então é hora de inverter o guarda-roupa. Se eu disser que o francês deixa a condução de sua vida, em muito vasta medida, a cargo de datas, horas e outras funções matemáticas, vai certamente parecer exagero. Mas afirmo que, se for, é por muito pouco. A metamorfose está aí que não me deixa mentir. A mudança do vestuário não aconteceu gradualmente, tampouco a do humor. Foi, literalmente, de um dia para o outro.

É a regra. O mesmo acontece, por exemplo, no início do inverno. Os imóveis que têm aquecimento central automático o ativam, todos, quase sem exceção, em 15 de outubro. Eis o dia em que se começa a sentir frio. E, de fato, é o dia em que os casacos aparecem. Pouco importa que esteja muito mais quente que no dia 14. O dia 14 não é o dia em que se começa a sentir frio. É o dia 15, esse sim. Eis o dia, repito. Ponto final.

Cheguei a desenvolver uma teoria sobre o Primeiro de Abril. Assim como é a data em que as roupas se tornam leves (sob o risco de tiritar, não nos esqueçamos), é também o momento de começar a demonstrar alguma alegria, de vez em quando. Os sorrisos guardados no fundo do armário podem sair, empoeirados e cobertos de um ligeiro bolor. Daí a idéia de instituir a data de zombaria sobre os outros, de ser maldoso, mentir, pregar peças. É mais um pretexto para dar risadas; afinal de contas, os europeus precisam de fortes incentivos para gargalhar e, quando o fazem, normalmente exageram. Ainda hei de publicar uma tese a respeito.

Quanto ao que há de extraordinário e acintosamente belo na primavera de Paris, especificamente em abril, prefiro me ater ao texto do ano passado e à música que, naquele momento, embalou meus dias.

Na semana que vem, os plátanos prometidos!

* Título plagiado da obra magistral de Karl Polanyi.

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Brasil, descoberta, economia, história, ironia, opinião, reflexão, São Paulo, trânsito, tristeza

Se um estoura, estouram todos (ou O Sapo de La Fontaine)

Sapo gordo prestes a estourar (La Fontaine)
É feio dizer “eu avisei” ou “eu já sabia”; mas acontece que, bem, eu avisei. E eu já sabia. Com as ferramentas rudimentares do raciocínio econômico que tinha aprendido a manusear ao final de uma formação quase involuntária, consegui provar por A+B que, não importa em que direção aponte o gráfico de crescimento do PIB brasileiro, a cidade de São Paulo caminhava com destino certo para o colapso definitivo. Isso, perdoe reiterar, é o que eu dizia há coisa de cinco anos. Mas só hoje, ao tentar discutir soluções para o problema do trânsito, a sociedade e seus governantes percebem o óbvio.

Bem que tento conter o impulso de me vangloriar. Mas lembro dos fins-de-tarde nos botecos da Augusta, contemplando a guerra entre carros, motos e ônibus, tomando cerveja gelada enquanto os afoitos profissionais derretiam na tentativa de voltar a casa; lembro dos amigos a rir, já altos, da exposição detalhada de minha teoria. Lembro que eles consideravam impossível duas tendências opostas darem o mesmo resultado. Enfim, só quero lembrar a eles que estava tudo previsto.

Aqueles meus cálculos contemplavam duas possibilidades, ou seja, um Brasil em franco crescimento econômico, digamos, quase um novo milagre; ou um Brasil estagnado, irremediavelmente estagnado, pior ainda do que foi nos anos 80 e 90. Em ambos os casos, a própria concentração pantagruélica de riqueza na terra que um dia teve garoa se encarregaria de sufocá-la. Vejamos, em primeiro lugar, o que aconteceria se o país não conseguisse retomar o crescimento:

À primeira vista, a idéia não parece má para a vida paulistana. Sem crescimento econômico, vendem-se menos carros, constroem-se menos arranha-céus, menos pessoas se espremem nas plataformas do metrô, menos aviões chegam e partem de Congonhas. Olhando assim, não parece terrível, para a cidade de São Paulo, que o país siga estagnado. Acontece que, como de hábito, a coisa não é tão simples. Mesmo estagnado, o país produz novas pessoas; é gente que precisa encontrar trabalho e, como já se viu durante décadas em nosso país, vai atrás dele onde ele está. Conseqüência: o fluxo de gente em desespero, fugindo da miséria, que chegaria em São Paulo em busca de emprego não deixaria de aumentar. A cidade ficaria ainda mais apinhada, mais favelizada, mais desigual e, bem provavelmente, mais violenta. Em duas palavras, ela sufocaria.

E se o país enriquecesse, (sem redistribuir a economia pelo território)? Nesse caso, o crescimento dos investimentos, o aumento da renda, a queda do desemprego, a pressão por novos empreendimentos – em resumo, tudo que acompanha o crescimento econômico vigoroso – tornaria a cidade intransitável em dois segundos. E irrespirável, naturalmente. O horizonte sumiria de vez, as aeronaves se chocariam, tentando pousar no meio da cidade, o barulho de helicópteros ficaria insuportável; no metrô, um grito de “fogo”, “rato” ou “tarado” causaria uma onda de choque que atiraria os cidadãos mais próximos da linha sobre os trilhos eletrificados (já é assim). O caos, que estava evidente para qualquer um com o mínimo senso de civilização, ficaria patente.

Na última semana, li diversos comentários sobre os recordes de engarrafamento em São Paulo. 180 quilômetros, 190, 200, 220. O metrô teria sido uma solução, mas é tarde, não dá tempo. Tampouco bastaria a proposta de pedágio urbano: por falta de opções, os carros pagariam, mas continuariam circulando quase tanto quanto hoje. Há mais de dez anos, li que o prejuízo com o trânsito, só em São Paulo, passava da casa do bilhão e meio de dólares por ano. Hoje, deve ser o triplo disso. Já era uma cidade em que eu não conseguia trabalhar direito, porque já chegava “no serviço” (como se diz) esgotado. Hoje, tremo de lembrar.

A única solução para São Paulo e, de maneira geral, para o Brasil e suas metrópoles, é repensar nossa lógica econômica. Precisamos tomar consciência de nossa dificuldade em romper com a tradição do Convênio de Taubaté. Eis o ponto-chave nefasto de nossa história, que escancarou, em papel passado, nossa escolha pelo latifúndio. Passamos dos cafeicultores aos industriais, depois aos bancos, mas ainda somos os mesmos. Queremos concentrar a lavoura (em sentido metafórico), queremos crescer com a energia que sugamos dos vizinhos, e ainda acreditamos demais em superlativos: de que vale termos o maior estádio, a segunda maior frota de automóveis e terceira de helicópteros, a maior sala de concertos, as maiores cidades? Do outro lado, o país ainda produz miséria, ignorância e barbárie em profusão. Voltando à realidade de São Paulo, temos uma Berrini que vai se verticalizando, enquanto, ao nível do solo, a vida é, há tempos, insuportável. Má escolha.

Sem desconcentrar a economia, integrar o país e desenvolver as regiões, ou seja, o território como um todo, o país e sua maior cidade estão condenados. É o anátema da cobiça. Mas isso é apenas o evidente. São Paulo, primeiro, cresceu como centro industrial e era um modelo para o resto do país; locomotiva, dizia-se. No meio do caminho, o maquinista parece ter exagerado no carvão; achacado pelo espírito do Convênio de Taubaté, depenou das tábuas os demais vagões, para continuar acelerando. A cidade se pôs a concentrar o setor financeiro, o cultural, o varejista, o esportivo, o editorial, o aéreo…

Faz lembrar o sapo da fábula de La Fontaine, que queria ficar do tamanho de um boi. Foi se enchendo de ar, cresceu, cresceu, até que estourou. No caso de Sampa, o maior problema é que tem um país em volta. Se um sapo estoura, estouram todos. Parece que a barriga do bicho já apresenta algumas rachaduras preocupantes. E as perspectivas de crescimento para o PIB brasileiro em 2008 vão além dos 5% de 2007. Não tem metrô, pedágio ou rodízio que sirva de esparadrapo para um sapo tão inchado.

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arte, Clara Nunes, crônica, música, prosa

A vida emoldurada

Torres Azuis Bizarras Noite San Giminiano
Ia andando pela rua dos fundos, atrás de um qualquer coisa que pudesse passar por jantar. Descia uma chuva de alfinete, vagarosa e desagradável. Ainda não era bem noite, mas já fazia escuro e parecia que a cidade se escondia. Todo mundo foge da temperatura que cai bruscamente; em vez de visitar os amigos ou a família, vale mais terminar o domingo com um filme da televisão. No meu caso, foi a necessidade que deu a última palavra. Comer é preciso. Saí. Para me proteger da água e das lâminas do ar, a manta grossa e, principalmente, a música que os fones de ouvido sussurravam.

Quando fiz a curva e embiquei pela rua maior, a faixa mudou. Os acordes em staccato de um cavaco e a voz de Clara Nunes fazendo um aperto de saudade no seu tamborim: Tristeza e Pé no Chão. No mesmo instante, deu-se alguma coisa. Fui invadido por um desconforto que não podia explicar, como se minha cabeça entrasse em conflito consigo mesma. Ou melhor, como se meu corpo visse o mundo à sua frente, mas se reconhecesse em outro canto, outro plano, outro universo. Estranha sensação, caminhar tremendo de frio por uma rua deserta e brilhosa, com tantãs e ganzás como trilha sonora, gingando na celebração de uma voz divina.

Culpa do aparelhinho que me atirava a música direto nos tímpanos. Quem segue seus caminhos ao som da pura realidade, buzinas, berros e motores desregulados, talvez não me entenda. Mas, palavra, é assim. Quando inventaram o walkman, o diskman, o celular que capta FM, o toca-fitas de carro e o famigerado iPod, inventaram ao mesmo tempo a vida com trilha sonora. Para muita gente, o próprio fato de existir passou a ser pontuado pelas emoções que melodias transmitem e batidas impõem.

Tanta gente no metrô com cabos pendurados, caindo pelos lados do pescoço como madeixas de plástico! São garotos, não têm a habilidade de controlar o volume. Um vagão inteiro submetido ao bate-estaca. Seus olhares se perdem no desprezo pelo universo, nem consigo supor que imagem podem ter do mundo, da cidade, das pessoas, enquadrados pela batida agressiva das pistas de dança. Não pode ser a mesma face que eu vejo, por trás de minha música diferente.

Meu caso começou como fuga. Tinha pânico dos vendilhões da Paulista, precisava de um pretexto para não escutar suas vozes, não precisar grunhir um “não” a cada passo. Certo dia, captei a Rádio Cultura pelo celular; examinar os rostos suados e sérios ao som do Stabat Mater de Pergolesi me incutiu a certeza de que todos à minha volta eram infelizes. Compreendi a profunda desgraça de todo aquele ambiente e quis escapar. Claro, a culpa não cabe inteira à música, mas ela tem parte.

Onde foi que li? Um ensaio sobre como mudou nossa relação com a música no último século. Pode ter sido Adorno, o do contra, ou Nikolaus Harnoncourt, ou qualquer outro. Primeiro foi o fonógrafo, que deu à humanidade o controle sobre as harmonias. Qualquer caixinha poderia tocar como uma orquestra. Depois, o rádio espalhou pelo mundo as mensagens sonoras determinadas por alguém em algum lugar, seja lá quem for. Pois era um certo encanto que se quebrava. Tirar melodias de um objeto inanimado perdeu seu verniz de mágica. A música, daí por diante, seria outra.

O golpe de misericórdia foi dado, com certeza, pelo cinema falado. “O grande culpado da transformação”, já dizia Noel Rosa, filósofo malgré soi. Na tela, a música enquadrou a vida real. O herói enlaça a mocinha ao som dos violinos, o assassino dá suas estocadas com um fundo de trítonos secos. O público se deixa envolver. O público somos nós. Nós acreditamos. E transferimos a necessidade de trilha sonora para nossa própria existência. Sem querer.

Daí meu estranhamento, na noite de domingo, enfrentando o frio e a chuva embalado pelo surdo, a cuíca e a voz de Clara Nunes. A máquina que eu trazia no bolso não entende nada. Não sabe escolher o fundo que se adequa por natureza a cada ocasião. Era momento para o quase silêncio de Eric Satie, as lamentações de Robert Johnson ou a cantilena da quinta Bachiana Brasileira de Villa-Lobos. Lágrimas na avenida, um desfile marcado para a quarta-feira? Impossível.

Só fui capaz de retornar ao corpo quando abandonei toda pretensão a uma trilha sonora. O mundo se recompôs, terrível como é: um silêncio de cripta gótica, motores à distância, o eterno chiado urbano que nunca sei de onde vem. Crueza e crueldade do ar que não vibra segundo o acordo das vozes. O ar desobediente que existe além dos meus fones.

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barbárie, Brasil, calor, crônica, descoberta, desespero, doença, férias, frança, ironia, passeio, prosa, tempo, verão, viagem

O mal que vem dos Trópicos

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Quase uma confusão terrível. Por pouco, não sou tomado por um risco à saúde pública. Do jeito que a turma anda neurótica por estas bandas, uma quarentena seguida de deportação não estaria inteiramente fora de questão. Durante alguns momentos, estive na berlinda, confundido com uma aberração doentia; lepra, micose, varíola, sei lá o que pensaram que eu tinha. Mas é profundamente desconfortável a sensação que dá quando as pessoas, no máximo de discrição de que são capazes, afastam suas cadeiras de você. O isolamento é doloroso, eu digo. E não passava, claro, de um pequeno mal-entendido.

Melhor começar pelo princípio, manda a prudência. Pois bem. Uma sala de aula ocupada por inteiro, três dezenas de pessoas espremidas em algo como 15 metros quadrados. Lá fora, a temperatura oscila entre frações de grau negativo e uns quebrados positivos. Dentro, a calefação automática exala seu ar pesado e mal-cheiroso, relegado à redundância pelas quase trinta respirações simultâneas. Alguém sugere abrir as janelas, mas os outros recusam. Medo do vento gelado e da chuva fina que às vezes cai.

O professor discorre sobre fenômenos, númens e coisas em si. É bom prestar atenção, para não perder o raciocínio. Difícil, com as alfinetadas do calor debaixo das três ou quatro camadas de roupa; entre a primeira e a pele, o suor se dissemina, desconfortável. Nada pior do que suar no inverno. Tentando não incomodar os demais, liberto-me do paletó opressor. Poucos minutos mais tarde, também parte o colete. É pena, mas tirar a camisa seria passar do limite. O máximo permitido é arregaçar – ou melhor, enrolar – as mangas. Eis o erro.

Área perigosa. Segunda fileira, posição central, bem diante dos olhos do professor. Enquanto transcrevo suas explicações intrincadas, ele lança um olhar involuntário para meu braço. Faz uma pausa, engole em seco, titubeia para voltar ao discurso. Mas é experiente e recupera o fio. À direita, um arrastar de cadeira. À esquerda, outro, um pouco mais violento. Buchichos; o mestre se irrita um pouco. Demoro a entender que a culpa é minha, mesmo quando dá a hora e todos se levantam.

Enquanto visto de volta as peças que arrancara em desespero, aproxima-se meu velho amigo Germain. Com a delicadeza que lhe é particular, tenta sorrir. Ofereço-lhe a mão para um cumprimento, mas ele, embaraçado, faz de conta que tem as suas ocupadas. Um ato desajeitado, que só fez sentido mais tarde. Tento não demonstrar que entendi. Germain, esforçando-se por não se aproximar demais, acompanha meus gestos com os olhos esbugalhados. Confesso-lhe minhas dificuldades com a aula. Ele não ouve; ao contrário, emenda uma questão envergonhada, em seu estilo pouco natural de falar, cheio de volteios literários e eufemismos estilísticos.

– Caro amigo, desculpe perguntar; quando você visitou seu país [ele sempre chama o Brasil de “meu país”], parece que cometeu uma pequena imprudência…

Nem preciso dizer que fiquei surpreso.

– Que imprudência, Germain?

– Estou certo de que existem avisos nas praias, para informar quando estiverem impróprias para o banho… Sua saudade era tão grande assim, a ponto de mergulhar em águas poluídas?

Só pude sorrir. Contei-lhe que não mergulhei em praia nenhuma. Nem própria, nem imprópria. Passei ao largo do fato de que os avisos aos banhistas só vêm pelos jornais e, mesmo assim, sem grande clareza. Expliquei que choveu o tempo inteiro nessas duas semanas, não deu praia, para meu desespero. Aliás, não me lembro que expressão usei para “dar praia”. Deve ter sido algo como “as condições não eram propícias”.

Germain alçou as sobrancelhas. Duvidava de mim. Sua incredulidade foi mais surpreendente do que ofensiva. Jamais ele havia colocado restrições a alguma declaração minha. Parecia absurdo que, de repente, ele resolvesse descrer assim. Percebi um movimento em seus lábios. De bem conhecê-lo, soube, desde o primeiro momento, que ele ruminava uma maneira de abordar o assunto incômodo sem causar ferimentos em minha sensibilidade.

– Desculpe, erro meu; pensei isso por causa da doença que te aflige…

Não há doença alguma que me aflija neste momento. Germain percebeu a interrogação desenhada entre meus olhos e se embaraçou. Gaguejou acintosamente e enrubesceu. Jamais eu o vira nesse estado. Quando, condoído, resolvi partir em seu socorro, ele se adiantou, inspirou profundamente e retomou o prumo. Delicadamente, admitiu a origem de sua idéia.

– Quando você enrolou a manga, pude ver o estado da pele… É terrível, quero que você saiba o quanto sou solidário!

Não foi de imediato que liguei os fatos. Quando o fiz, caí na risada. O professor, ainda na sala, me encarou, assustado, e escorregou para fora num instante. A expressão de Germain era toda enigma. Nas duas semanas em que estive no Brasil, de fato não deu praia; houve um único dia de sol. Nesse dia, eu estava nas montanhas. Sol de montanha, bem se sabe, é terrível. Fiquei vermelho, meus ombros ardiam, o peito do pé doía enormemente.

E como explicar para Germain que eu estava apenas descascando? Nem conheço a palavra francesa para “descascar”, nem, pelo visto, o sol da Côte d’Azur, do país basco e da Bretanha são capazes de fazer um banhista trocar de pele no dia seguinte. Tentei lhe explicar o princípio do descascamento: o sol bate, a gente esqueceu a loção 30, a pele vai escurecendo, às vezes fica vermelha, não passamos hidratante (bom, alguns passam…). Dá uns dias, a pele forma umas bolhas, pronto: descasca. Perfeitamente natural.

As sobrancelhas de meu amigo seguiam arqueadas; em sinal de dúvida, sim, mas sobretudo de asco. Esse papo de pele que descasca é coisa de bárbaros tropicais. As epidermes européias podem ficar encardidas, ásperas ou transparentes, mas, pelos céus!, jamais descascam. Nada disso ele formulou explicitamente, claro, mas pude ler por trás de seus olhos cinzentos. Era algo que ele preferia jamais ter aprendido. A esse ponto, eu já me divertia como uma criança; como uma criança, decidi torturá-lo.

Arregacei a manga novamente e anunciei: “vou te mostrar…” Germain é ágil, não me deu nem sequer o tempo de puxar a primeira pontinha de pele morta. Agradeceu, lembrou-se de algum compromisso e projetou-se porta afora, deixando-me de pé, sozinho na sala, brincando de descascar e rindo até cair no chão. Só consegui me controlar muito tempo depois, quando lembrei do professor: a essa hora, o sinistro filósofo poderia estar ao telefone, denunciando um aluno contaminado para o Ministério da Saúde.

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