capitalismo, costumes, economia, Ensaio, Filosofia, história, modernidade, opinião, Politica, prosa, reflexão, Sociedade

Aí está o século que previmos

Ao que parece, o século XXI começa agora. É o que leva a crer a leitura de tantas análises desta pandemia e tantas reflexões sobre suas consequências sociais e econômicas. E isto, venham de onde vierem: epidemiologistas, estatísticos, antropólogos, filósofos, historiadores, até mesmo economistas. Ou seja, o mundo não será o mesmo depois de meses com populações trancadas em casa, empresas e autônomos indo à falência, cadeias de valor rompidas, pacotes de estímulo governamentais, vigilância total (fundindo a tradicional vigilância sanitária com formas menos bem-intencionadas).

Talvez seja cedo para decretar algo tão drástico como a inauguração de uma era. A rigor, nada impede que o trauma acabe sendo curto, ao menos no campo da saúde (no econômico é um pouco mais difícil), e continuemos a operar como nas últimas, digamos, duas décadas. Mas isto seria só um outro adiamento: mais cedo ou mais tarde, o século XXI vai começar. Mesmo que – vamos supor – do dia para a noite as infecções e mortes mundo afora começassem a diminuir e desaparecessem, como parece ter sido o caso com outros vírus do passado. Então vale a pena simplesmente postular que esta pandemia é o marco inicial do século e explorar o que isto quer dizer.

*

HxB: 110.9 x 156.4 cm; Öl auf Leinwand; Inv. 1055

Mas que século XXI? Esta é mesmo a primeira pergunta: o que quer dizer uma passagem histórica, o início de um século, como tantos estão – estamos – prevendo? O que quer dizer isto que coloquei acima: “o mundo não será o mesmo”? E talvez ainda possamos ampliar a pergunta, deixá-la mais interessante e difícil de explorar: é mesmo o século XXI que está começando, por oposição a “século XX” ou “século XIX”, ou é algum outro tipo de período, talvez mais extenso, talvez mais restrito?

Temos o hábito de tratar 1914 como o início do século XX, porque foi quando Gavrilo Princip matou o arquiduque austríaco em Sarajevo e, na reação em cadeia, a ordem mundial pós-napoleônica, eurocêntrica e imperialista foi a pique. Essa é a cronologia famosa de Hobsbawm e ajuda muito a pensar em termos de transições súbitas e traumáticas. Mas é importante frisar que não foi só uma transição geopolítica. O Século XX começa com a Primeira Guerra Mundial também por ser o gesto inaugural dos fenômenos de massa – uma matança em massa! –, que se rebate nas funções e tipologias das técnicas e das instituições características do tempo que começava.

É claro que não dá para comparar uma doença que se espalha pelo planeta durante alguns meses, como tantas outras já fizeram, a uma guerra de mais de quatro anos que mata milhões, derruba impérios e força uma transformação profunda nas mentalidades. Mas essa é exatamente a comparação que estamos sendo forçados a fazer, então nada nos resta senão explorá-la. Que tipo de fenomenologia, que tipo de tecnologia, que geopolítica etc., estão em jogo se admitimos que o século XXI começa agora?

O cerne do problema está no seguinte ponto: o que se espera para o século XXI? E aqui é que chegamos ao que há de realmente desconfortável, aquilo que explica por que estamos entrando num mundo novo e incerto. E talvez explique também por que estamos tão impacientes para declará-lo inaugurado. Agora é a hora de encarar a evidência de que as perspectivas para as próximas décadas, na boca de quase todo mundo, por todo lado, são bastante sombrias. É assim no campo do clima, da agricultura, da economia, da política e também da saúde.

Seja qual for a atitude que temos no dia-a-dia em relação a todos esses campos, sugiro tomarmos como ponto de partida uma postura otimista. Por motivos puramente metodológicos: mesmo que você seja catastrofista e acredite que a humanidade (como espécie) ou a civilização (como forma de organização) não vão chegar até 2100, peço que deixe de lado por um momento essa filosofia e considere que, sim, vamos desenvolver tecnologias, sabedorias e práticas que nos ajudarão a contornar desafios como a mudança climática (e, se quiser, os exércitos de robôs superinteligentes e psicopatas), chegando saudáveis e prósperos ao próximo século.

Pois bem. Mesmo adotando essa perspectiva, o que se espera para o século XXI é que seja um período duro, eivado de catástrofes – ondas de calor, quebras de safra, pandemias, cidades inundadas, territórios ressecados, migrações forçadas, pragas, guerras por água e terra arável. Por um lado, sabemos que a lógica que orientou o grosso da atividade humana nos últimos séculos é incompatível com os sistemas naturais dos quais essa mesma lógica depende. Por outro, não temos ideia de como transitar para uma lógica compatível, embora alguns grupos tenham muitas, muitíssimas ideias para modos de vida diferentes. Acontece que a viabilidade da transição segue mais do que incerta.

Antes de avançar, podemos chegar a uma primeira resposta. Dizer que o século XXI começa com a pandemia do Sars-CoV-2, com uma doença de nome tão pouco impactante (Covid-19, uma porcaria duma sigla!), é dizer que estamos pela primeira vez encarando uma situação que, já esperávamos, será típica do nosso século. Estamos vendo, concretamente, nas nossas cidades, nos nossos bolsos e, para alguns, na própria carne, o que significa um mundo de desastres amplificados, multidimensionais, rapidamente disseminados em escala global, que inviabilizam a vida normal por períodos indeterminados.

Discutimos sobre estratégias de mitigação com um horizonte de possibilidades cada vez mais exíguo; preparamos formas de adaptação cada vez mais drásticas. Mas dificilmente conseguimos incluir no cômputo dessas atitudes todo o escopo das transformações necessárias, porque, no fim das contas, os piores cenários são praticamente inconcebíveis para nós. Pelo menos, porém, enquanto tentamos enfiar na cabeça a seriedade do que será o século XXI, podemos nos dedicar a alguns exercícios de pensamento.

I – A moldura moribunda

A primeira consequência de reconhecer a próxima etapa histórica como uma etapa de adaptação – conflituosa ou harmoniosa, tanto faz – a condições duras, já podemos ver, é que está ficando claro como as instituições montadas no século XX, ou mesmo nestas duas primeiras décadas de século XXI (no sentido cronológico estrito) são insuficientes para dar conta dos problemas que temos adiante. Mas me parece que o problema vai além do institucional. Estamos atados a um campo conceitual e mesmo categorial que não dá mais conta de recobrir nosso mundo com sentido.

Provavelmente nossa maior falha, como geração, tenha sido o parco aprendizado que tiramos de episódios como a crise financeira de 2008, as secas, inundações, queimadas e pragas, as milhares de mortes de refugiados no Mediterrâneo etc. No mínimo, o que essas catástrofes expõem é uma certa tendência inata nossa de fazer todo o possível para manter intactos os arranjos institucionais, modos de existir, formas de organização da vida em comum (chame como quiser) com que estamos acostumados. Mesmo quando já é patente que se tornaram obsoletos, inviáveis, até mesmo suicidas. Talvez isso aconteça porque o discurso e o próprio pensamento fluem e aportam em categorias moribundas.

Algumas pistas dessa morte anunciada: a chamada “ascensão do populismo” encarnada em Trump, Orbán e outros (que nem merecem menção) é muito mais a conclusão lógica desse esforço de manter os arranjos (ou as aparências) do que uma ruptura, como gostamos de pensar – ou mesmo um sintoma, já que ela não sinaliza o problema, ela dá sequência ao problema. Pensar que se trata de uma ruptura, isso sim é um sintoma: revela a crença voluntariamente ingênua de que “isto vai passar”, ou seja: de que vamos voltar aos arranjos civilizacionais em seu estado, por assim dizer, puro.

“Ascensão do populismo”, “volta do nacionalismo”, tudo isso são expressões anêmicas, eufemismos neuróticos, para a recusa em reconhecer as máquinas de guerra que estão se montando nas esferas de poder. Essas figuras todas professam um discurso negacionista do clima, mas na prática são menos negacionistas do que quem pensa que tem volta, que o mundo dos anos 2020 será um mundo de Clintons, Blairs, Merkels, Fernandos Henriques. Os poderes que orbitam em torno dos “líderes populistas” estão se preparando e armando para manter o acesso a recursos que, já está previsto, se tornarão cada vez mais escassos, enquanto o resto do mundo cai em pedaços. Exatamente como os “survivalists” ou “preppers” americanos que constróem bunkers, os enchem de enlatados e os cercam de metralhadoras. (Não por acaso, essas pessoas, em geral, dão apoio a esses líderes…)

Mas é isso que conduz ao seguinte problema: se 2020 inaugura o século XXI como um período de pessimismo e catástrofes em série, então o que se encerra com o século XX, ou esse intervalo que foram as últimas décadas (talvez desde a queda da União Soviética, se formos continuar seguindo a cronologia de Hobsbawm), é um período de grande otimismo. Se for assim, então a página a ser virada não é a de um século, mas de algo muito mais extenso, correspondente a toda a era de espírito expansivo, de crença na prosperidade e no progresso contínuos, material e espiritualmente. É um período que remete, pelo menos, ao século XVIII, era do Iluminismo, da industrialização, das revoluções na França, no Haiti e nas 13 colônias americanas.

É dessa era que herdamos o principal das nossas categorias de pensamento e parâmetros de ação; e, consequentemente, nossos arranjos institucionais na política, na economia e em tantos outros campos. Quase tudo que se disse, fez e pensou nesse período considerava que, dali por diante, as condições de vida só melhorariam – para os humanos, claro –, e com elas a humanidade como um todo, espiritualmente – ou melhor, a humanidade que subscrevesse às categorias de vida e pensamento disseminadas a partir da Europa. Estávamos “aprendendo a caminhar com as próprias pernas”, sem a tutela de autoridades espirituais ou seculares, pensava Kant. O saber se tornaria enciclopédico e acessível a todos, pensava Voltaire. A miséria seria eliminada, a democracia se tornaria dominante, a tecnologia avançaria tanto que a subsistência estaria garantida com 15 horas de trabalho por semana, chegou a pensar Keynes. Na década de 1990, além da ideia de “fim da história” que ficou marcada na testa de Francis Fukuyama para sempre, os economistas acreditaram, com um espírito que faz pensar nos delírios dos alquimistas, ter desenvolvido a fórmula da “grande moderação” – e, portanto, as recessões estavam superadas para sempre.

Vale dizer que o subtexto dos movimentos revolucionários de todo esse período, pelo menos a grande maioria deles, também era o da plena realização dos potenciais criativos da humanidade. A tomada dos meios de produção pelos trabalhadores não chegou a ser, na prática, uma ruptura com o passo faustiano da modernização. Ao contrário, desde Fourrier, Owen e Saint-Simon, sempre se colocou como decorrência dessa mesma modernização, necessária e conceitualmente demonstrada, para Marx (embora ele tivesse, assim como Engels, uma visão mais elaborada do que viria a ser a questão ecológica). Não é outro o espírito de Lênin quando fala do socialismo como “eletricidade e sovietes”, para dar um exemplo sonoro.

*

Evoquei todos esses nomes para dar estofo a um único argumento: estamos nos iludindo, um pouco como já nos iludimos depois de 2008, ao acreditar que a crise do coronavírus é um ponto de partida para a volta de políticas sociais, seguridade pública, uma nova era do Estado de Bem-Estar, uma espécie de keynesianismo-fordismo sem as amarras da produção fordista, ou seja, só com a conciliação de classes de inspiração keynesiana. Dizer que “o neoliberalismo morreu” porque os Estados Unidos, a Europa e vários países asiáticos estão dispostos a despejar trilhões de dólares no mercado, não apenas com afrouxamento monetário, mas com políticas fiscais e transferências diretas a trabalhadores e pequenos empresários, é um enorme exagero. Quem talvez vá parar na UTI é a globalização, ainda mais depois que os americanos saltaram para absorver toda a oferta de material hospitalar, numa demonstração de ausência de cooperação entre nações. Mas essa seria só uma decorrência pontual.

Podemos até esperar que alguns mecanismos emergenciais sejam perenizados, para fazer frente a outras situações de crise súbita, mas dificilmente passará disso. A resistência dos poderosos a responder à epidemia, seja com o isolamento social, seja com os pacotes de estímulo, é mais instrutiva do que o açodamento com que depois tiveram de correr atrás do prejuízo. As máquinas de mentiras que sustentaram medidas suicidas em várias partes, mas sobretudo nos Estados Unidos e ainda mais no Brasil, são instrumentos característicos de nosso tempo e isso não vai mudar tão facilmente.

Por sinal, as medidas de vigilância, para não dizer espionagem, usadas na Coreia do Sul e, em seguida, Israel, com a finalidade momentânea de traçar as linhas de transmissão do vírus, estarão disponíveis na condição de laboratório em tempo real, assim que o momento mais agudo da crise passar, para aperfeiçoamento e generalização por esses mesmos governos, e outros. A propósito, vale dizer que, no caso de Israel, o laboratório em tempo real já estava funcionando antes, ele foi apenas expandido para ficar de olho também na população israelense. Este é um ponto sensível, porque sabemos que todos os esforços da última década para denunciar os gigantescos esquemas de vigilância digital, envolvendo multinacionais e governos, foram fragorosamente derrotados: os “whistleblowers” da última década ou bem estão presos, como Julian Assange e Chelsea Manning, ou exilados, como Edward Snowden, ou mortos, como Aaron Swartz.

É tão absurdo imaginar que, depois da pandemia, vamos recuperar o papel socioeconômico dos governos ou a solidariedade entre cidadãos quanto crer, como coloquei acima, que a onda dos políticos xenófobos e estúpidos vai passar para dar lugar a novos anos 90. Trata-se de uma ingenuidade escolhida, porque a alternativa, pelo menos no curto prazo, é terrível. Pode-se analisar o fracasso de Corbyn e mesmo a perda de impulso de Sanders a partir dos erros que cometeram ou das conjunturas eleitorais de seus países, mas o fato é que seu papel histórico parece ser o de anteparos a forças terríveis, e os anteparos, por natureza, não vão muito longe.

Infelizmente, há um descompasso muito grande entre os incentivos para mudar a lógica da atividade humana – nem sequer se sabe ainda, ao certo, de que maneira – e os incentivos para recrudescer os esforços para encastelar-se (aqueles que podem) nos restos possíveis do século XX, adiando, contornando e terceirizando os grandes riscos e as grandes crises, reprimindo e, quando necessário, exterminando os focos de revolta e perturbação – o que inclui os migrantes. Por enquanto, ainda é muito fácil identificar perturbações e aniquilá-las (o termo da moda é “neutralizar”) antes que causem maiores danos, ou então lançá-las às costas de países e populações com menos capacidade de se defender. Por sinal, Saskia Sassen se refere a esse procedimento como “expulsões”, em livro de título homônimo.

*

FRIEDRICH, Caspar David_Barco de pesca entre dos rocas en una playa del Mar Báltico, c. 1830-1835_(CTB.1994.15)

Em geral, os analistas da geopolítica têm apostado que um resultado de toda essa crise será o recrudescimento do nacionalismo, do controle sobre as populações e das mensagens ditas “populistas”, contra a aparente volta da confiança na ciência, da solidariedade e das redes de proteção social. Ou seja, quem vai dar a letra são os Orban, Netanyahu e quejandos deste mundo. E nesse sentido, a recusa dos europeus em criar os tais “coronabonds” é péssimo sinal.

Nada de luz no fim do túnel, portanto? Acho que não é bem assim. O subtexto desse pessimismo é que a humanidade vai entrar no século XXI trabalhando com as mesmas categorias de interpretação de seu mundo e de orientação de sua ação com que atravessou os períodos anteriores, mas numa era em que as condições concretas do planeta são amplamente desfavoráveis a esses modos de proceder.

No curto prazo, essas análises parecem ter razão, já que a intenção de desenvolver novas categorias e formas de vida parece quase nula, restrita a nichos com pouquíssima reverberação. Mas é claro que estamos falando apenas do começo do século, ou do começo de uma época, podemos dizer; nada está escrito na pedra e a dissonância entre a estratégia de poder que passou do tempo e as pressões da realidade pode acabar se mostrando excessiva. Resta ver quanto tempo isso vai levar.

Ainda por cima, as projeções de uma perda maior de liberdade e de influência da sociedade civil ressoam com preocupações que já se ouviam, não só em relação às ações dos líderes mais retrógrados, tentando forçar a barra para manter ao máximo o equilíbrio de poder parecido com o anterior, mas também ao que poderiam fazer governos mais alinhados com os desafios do século. É o que leva André Gorz, por exemplo, a falar em “ecofascismo”, temendo que as restrições impostas por esses governos, num mundo que deixa de se expandir, exigissem chegar ao ponto do uso reiterado da força, em suma, ao autoritarismo, para pôr em prática as medidas necessárias de adaptação.

Em todo caso, todas essas previsões trabalham com a perspectiva de que as categorias tradicionais da economia, da política e da diplomacia se manterão intactas. Todo o problema reside aí. Também reside aí o alcance daquele exercício que sugeri no início: para poder ser otimista quanto ao estado em que estaremos no fim do século, vai ser preciso um trabalho cuidadoso sobre essas categorias, em todas as áreas da vida.

2 – O óbvio e o absurdo

Não faltarão referências para dizer que, apesar de algumas indicações pontuais em sentido contrário, a humanidade nunca viveu período melhor. É o que lemos, por exemplo, no livro de divulgação do badalado economista Angus Deaton, que faz uma ode da modernidade industrial e capitalista por meio da comparação com o mundo que veio antes, pré-industrial e pré-capitalista.

Sempre me pareceram estranhas essas defesas do capitalismo – que se apresentam, de fato, como defesas contra seus detratores – que o contrapõem à vida como era até o século XVIII. A estranheza vem do fato de que muito pouca gente estaria disposta a assumir uma postura de defesa da vida material tal como era, digamos, entre os séculos XV e XVIII, o que faz a apologia da modernidade soar como se ecoasse no vácuo. Além disso, não estamos na era clássica ou pré-moderna, de modo que nossos problemas e nossas escolhas nada têm a ver com o que foram naquele momento. Pouco importa o que a humanidade conseguiu fazer no tempo da máquina a vapor. Temos que enfrentar o que nos aflige hoje. Agora.

Deaton, em particular, faz a curiosa escolha de comparar o desenvolvimento econômico ao filme “The Great Escape” (Fugindo do Inferno), que narra a tentativa de fuga de prisioneiros de guerra americanos de um campo nazista. Escolha curiosa, mas ilustrativa: para o economista, ao inventar a produção industrial, as finanças modernas e tudo que vem junto, a humanidade teria escapado das amarras de uma natureza hostil. Posso até entender que se queira comparar o mundo sujeito aos rigores da natureza a uma prisão (nazista?!), mas se escapamos… escapamos para onde? Estaríamos então num mundo de puro espírito, descolado de qualquer determinante material? Ou será que simplesmente assumimos, nós mesmos, o papel de natureza hostil, encarnada numa monstruosidade que acreditou estar liberta da própria carne (e foi assim que se tornou monstruosa)? Sempre me surpreende que pessoas tão qualificadas possam repetir tanto uma argumentação tão pueril.

Mas não é preciso adotar esse simplismo apologético para reconhecer que a modernidade, naquilo que ela se propôs a fazer (sem querer antropomorfizá-la), foi muito bem-sucedida. Basta entrar nos indicadores da Agenda 2030, da ONU, para ver que a proporção de indivíduos passando fome no mundo nunca foi tão baixa, centenas de milhões de pessoas foram alçadas para fora das condições de miséria, doenças transmissíveis matam muito menos do que há um século, o analfabetismo está em baixa no mundo e assim por diante. Deixando de lado a constatação de que esses mesmos indicadores apontam um ligeiro retrocesso a partir de 2015, pode-se perfeitamente aceitar como verdadeira a avaliação otimista e, mesmo assim, manter-se pessimista quanto ao futuro. O primeiro motivo é evidente: todos esses indicadores falam sobre o passado e só dão sustentação ao espírito esperançoso da modernidade pós-Iluminismo. O segundo motivo é que justamente esses dados tão encorajadores podem estar na raiz de muitos dos problemas que esperamos enfrentar em breve – ou melhor, já estamos enfrentando, ainda que sem perceber. (E se a pandemia tivesse coincidido com a seca de 2014-2015?)

É neste segundo motivo que temos que nos concentrar. Assim como não é o caso de louvar os ganhos técnicos, econômicos, sociais e mesmo políticos dos últimos séculos, como se ainda estivéssemos enredados nos mesmos problemas, tampouco é o caso de deplorar as escolhas do passado, como se quem as fez estivesse mergulhado nos nossos problemas atuais. É importante não distorcer o passado, isto é, o caminho que nos trouxe até aqui, que é o que aconteceria se fôssemos julgá-lo com um olhar contaminado por tudo que estamos vivendo agora – ou, se preferir, por tudo que sabemos agora. Os excessos, as falhas, as crises daquilo que se encerra com esta eclosão do século XXI são precisamente aquilo que nos revela os desafios vindouros, porque as mudanças pelas quais nós passamos, e conosco nosso mundo, são as próprias fontes dos problemas que mudam e, com eles, as questões e, por fim, os conhecimentos.

Cabe ainda acrescentar uma outra pequena pergunta: não seriam os próprios indicadores dependentes de categorias cujos prazos de validade já começam a expirar? São, afinal, recortes do mundo que surgiram e se desenvolveram na era da modernidade otimista, ou seja, pertencem a ela. Neste caso, o problema estaria na insistência em tentar entender os desafios à frente com a lógica adequada a problemas e condições que ficaram para trás.

*

O que quer dizer, então, uma mudança de categorias? Pensemos nas palavras que mais usamos para entender ou avaliar o mundo em que vivemos; coisas como “eficiência”, “crescimento”, “desenvolvimento”, que associamos à economia; mas também palavras que usamos em outros contextos, como o par “democracia”/”ditadura”, “opinião pública”, “liberdade”, no ambiente político; e algumas noções mais híbridas, como “emprego”, “família”, “nação”; dá mesmo para entrar em mais detalhes, como “setor privado/público”, “exportação”, “aposentadoria”, “civilização”, “modernidade”, “produção”. E nem mencionei termos mais técnicos, como PIB, déficit público, inflação.

Sem usar palavras como essas, dificilmente conseguimos entender o que nos cerca, tomar decisões que afetam as nossas vidas e as dos outros, dialogar com quem quer que seja. É graças a essas noções que podemos diferenciar a mentalidade moderna como sendo “contratualista” e “individualista”, em vez de “comunitária” ou “hierárquica”. Isso mostra que não dá para separar o que entendemos por “nosso mundo” da linguagem que desenvolvemos para organizar nossa relação com ele – o que não quer dizer que a linguagem seja o ponto de partida do mundo ou sua fronteira, porque ela mesma vai tomando forma na medida dos problemas que aparecem na relação que constitui o mundo. A linguagem pode ser performativa, mas é ao mesmo tempo parte de individuações que a ultrapassam.

Daí a importância disso que estou chamando de “as categorias” – ou seja, ideias, ou melhor, conceitos – pelos quais é preciso passar para pensar de maneira estruturada nosso mundo e parametrar nossa ação nele. Elas são fundamentais e são razoavelmente rígidas, mas não totalmente. Basta ver como “democracia” deixou de ter o sentido de bagunça política (ainda empregado, por exemplo, pelos fundadores da democracia americana) e se tornou o nome de um sistema muito bem estruturado, termo carregado de valor altamente positivo, mesmo quando o exercício de um determinado regime com seu nome não lhe faça jus (i.e. sempre). A noção do “direito divino dos reis”, por exemplo, foi praticamente extinta, embora haja desvairados tentando ressuscitá-la, ou algo parecido com ela. A noção aristocrática de “honra” perdeu quase todo o peso que tinha no edifício das virtudes, enquanto as categorias econômicas de eficiência e produtividade se tornaram excelências, e por aí vai.

Agora, o que está sendo posto em questão são essas mesmas categorias que triunfaram sobre as mais ultrapassadas, como “honra”, “glória” e “direito divino dos reis”, mas também uma série de princípios feudais e eclesiásticos que hoje nem sequer fazem sentido para nós. Também vale lembrar que esses esquemas de pensamento suplantam outros, anteriores, mas às vezes recuperam ou retrabalham alguns de seus princípios. Quando a eficiência, o profissionalismo e outras noções semelhantes se tornam os alicerces da virtude, tomam o lugar de noções como justiça, temperança e bem-viver (eudaimonia, às vezes traduzida também simplesmente como “felicidade”), marcas de um mundo tão diferente que se tornou quase incompreensível.

Por que estou dizendo isso? Porque a força das categorias é parecerem óbvias, o que envolve tornar outros esquemas categoriais incompreensíveis e aparentemente absurdos. Pois bem, com o século XXI chega o momento de explorar alguns campos que nos soam absurdos, porque é o óbvio que está se tornando inconcebível.

Algo dessas mudanças já vem tomando corpo, sobretudo na maneira como o próprio conceito de civilização vem sendo posto em questão: em muitos meios, não carrega mais automaticamente um valor de incremento do espírito humano ou algo assim, passando a envolver boas doses de violência, um certo caráter ilusório, uma desmesura dos povos que subjugaram os demais e forçaram uma definição do curso adequado às vidas de todos. Cada vez mais, a noção de civilização carrega um subtexto de colonialismo, quando associada à história dos últimos quinhentos anos – e o próprio termo “colonialismo” passou a ter conotações negativas que, há um século, não tinha. Por sinal, ainda hoje é possível ouvir gente formada nas escolas de décadas atrás (muitas décadas) repetindo que as potências coloniais “levaram a civilização” a “povos atrasados”. São categorias que já se desvaneceram… e outras mais estão por fenecer.

3 – Mais do que uma economia

É sintomática, por exemplo, essa mórbida dicotomia entre “salvar a economia” e “salvar vidas”, que grassou por algumas semanas, na crítica às medidas de confinamento contra o avanço do vírus. Mas vamos deixar de lado a morbidade, por um momento, olhando só para o caráter sintomático. Pois é sintoma de quê, ao certo? De que colocamos a economia acima (ou à frente, se preferir) da vida? Ora, mas como isso foi possível, se é imediatamente evidente que só há qualquer tipo de economia se houver vida? Talvez seja mais, então, um sintoma de que perdemos a noção do que vem a ser uma economia.

Convenhamos que uma epidemia, manifestação escandalosa de uma doença, é algo inseparável da vida como um todo e, portanto, algo que precede e deve ser pressuposto por qualquer forma de organização da vida. Se uma pandemia é capaz de bloquear e comprometer o sistema dessa operação para além da duração de seus próprios surtos, então forçoso é constatar que há uma falha fundamental no mecanismo que sustenta nossas vidas em sua forma determinada corrente. Isto é evidente para além de qualquer comparação com épocas anteriores.

Falando em épocas anteriores, a experiência atual dá até vontade de voltar a pensar ao modo dos antigos fisiocratas (Turgot, Quesnay etc.), que consideravam o setor agrícola como sendo o único que gerava riqueza, de fato. Para eles, era assim porque só na agricultura se traduzia para o universo dos humanos algo do mundo natural que era a condição da vida. “Valor” designava a transferência do natural para o humano, a energia do sol e do solo concentrada no trigo e na cevada, por sua vez transubstanciados como alimento e como mercadoria. Os demais setores se limitavam a transformar esses elementos condicionantes da vida, fazendo-os circular, tornando-os mais complexos e diversos. No fundo, a tradicional teoria do valor-trabalho, sobrevivente hoje quase apenas entre marxistas, levava esse princípio adiante e o atualizava para a era industrial: valor nada mais é do que a transformação das energias do mundo, por meio dos corpos e das máquinas, em formas da vida social. Um metabolismo. Valor, no fim das contas, é uma noção poiética.

E no entanto chegamos ao ponto em que se tornou aceitável pensar que a economia é algo oposto à vida, ou pelo menos além da vida, mais ou menos como na imagem da “grande fuga” de gente como Deaton. Isto é que é enigmático. Uma adulteração lógica a examinar. Sem entrar em detalhes, parece ser o caso extremo da grande ilusão moderna apontada por Latour e Stengers, e mesmo antes, por Whitehead. Ela consiste em estabelecer uma cisão rígida (mas mediada) entre o mundo social dos humanos e o mundo natural, bruto; em termos científicos, consiste em isolar os fenômenos de toda valoração ou implicação que pudesse ser dita cósmica (nos termos de Bachelard, um obstáculo epistemológico), para revelar apenas suas relações diretas de causalidade.

Enquanto se trata apenas de método científico, vá lá; mas a atividade que dizemos econômica não é redutível à linearidade causal expressa no par produção/consumo, como quer a mentalidade moderna. Mesmo assim, ela não pensou duas vezes antes de aplicar a esse campo, equivocadamente, a mesma lógica que lhe serviu na epistemologia. Nesta última, de modo controlado, ou ao menos assim se acreditava. No mundo concreto, vivido, social, de modo brutal, cego, desmesurado.

E essa desmesura vai além, porque está na base de todo o maquinário de absorção, sujeição e aniquilamento que caracterizou a expansão colonial desde fins do século XV. Da expansão marítima ao fabuloso trabalho de engenheiros que cortavam ferrovias na selva e nas montanhas, marejando os olhos dos espíritos científicos ao mesmo tempo em que enchia os bolsos de quem financiou tamanhas aventuras, a experiência moderna sempre insistiu na cisão com o que lhe parecia ser meramente um mundo natural, para em seguida absorvê-lo como um buraco negro absorve a luz. E pensar que já Sófocles dizia não haver nada mais maravilhoso e temível quanto o ser humano…

*

Sem dúvida, uma parcela da explicação para nossa incapacidade de entender o que é uma economia está na confusão entre a variedade e sofisticação do que pode ser apropriadamente chamado de econômico e o enorme dispositivo técnico que foi montado para mobilizá-lo. Trocando em miúdos, aquilo que constitui uma economia (a elaboração dos modos de vida) foi soterrado por algo que podemos chamar de um gigantesco sistema de pagamentos e compromissos/promessas de pagamento – não no sentido usual da expressão, mas como toda a arquitetura da moeda e dos instrumentos financeiros que a orbitam.

Podemos observar, por exemplo, que na atual crise está intacta toda a infraestrutura necessária para tocar as necessidades da vida, isto é, o sistema econômico, produção, circulação e consumo. O que não está inteiramente de pé é o uso dessa infraestrutura, o que já é suficiente para ameaçar uma ruptura do sistema econômico em níveis sem precedentes, ainda que possivelmente por um período relativamente curto. Materialmente, não há nada que impeça a retomada do sistema tão logo a população se sinta segura. Ou seja, o uso dessa infraestrutura permanece disponível, do ponto de vista material. E mesmo enquanto durar o período de contágio, não há nada, materialmente, que impeça toda a população de viver com um nível de segurança suficiente, até mesmo um certo conforto, contanto que haja coordenação suficiente para tal.

A produção de alimentos e de energia não foi interrompida, as cadeias de distribuição tampouco, a não ser como medida de precaução. Na prática, o único elemento do sistema econômico que congelou, ao ponto da ruptura, com consequências palpáveis para além do momento da epidemia, é o sistema de pagamentos (sem falar, é claro, nos sistemas de saúde, cuja saturação não é primariamente um assunto econômico, embora tenha causas e consequências econômicas).

A rigor, as medidas necessárias para manter uma estabilidade social bem acima do mínimo, aliás bem próxima do satisfatório, estão muito aquém do que países estão preparados para fazer em situações críticas, até mesmo em guerras. Esses são momentos em que pontes, fábricas e cidades são destruídas. Pense em episódios tão diferentes quanto Fukushima ou a Batalha da Inglaterra. Nada disso é o caso agora. Tanto é que as medidas que os governos estão buscando dizem respeito, todas, ao problema dos pagamentos: redução de juros, adiantamento de créditos, títulos públicos com finalidade específica, pagamentos emergenciais a trabalhadores, pequenos empresários, autônomos etc., diferimento de impostos e aluguéis… Nada disso é mirabolante e é bem menos traumático do que os boletins de racionamento típicos dos períodos de guerra, que são, por sinal, um método de distribuição com eficácia limitada, particular a determinadas circunstâncias, como todos os demais. Mas chama a atenção esse detalhe significativo: ora, a metáfora que temos ouvido por aí, a começar pelo pronunciamento de Emmanuel Macron, é justamente a da guerra!

Ora, é nesse preciso ponto que faltam os mecanismos para lidar com interrupções, já que o “sistema de pagamentos” designa tudo que tem a ver com relações monetárias: aluguéis, salários, juros, impostos, ações. São relações que marcam distinções sociais, ritmos do tempo vivido, obrigações entre empresas, bancos e governos. Não é que a economia tenha um “lado real” e um “lado monetário”; assim como tudo que a humanidade faz, o real da economia (que não é um lado) só toma forma por meio de um imaginário codificado, que vincula a ação dos corpos e coletivos a uma modalidade técnica de sentido e propósito. Mas sendo assim, essa codificação é manuseável, como vemos sempre que há uma crise. Foi por perdermos de vista o caráter técnico e sociopolítico do dinheiro que pudemos nos enredar nessa bagunça, dizendo tolices como “dinheiro não dá em árvore”, e que temos tanta dificuldade em projetar medidas que respondam a um tempo de paralisia sem traumas desnecessários. Entre economistas, quem entendeu melhor esse ponto foram os “folclóricos MMTers”.

A parte fácil é entender que não deve mais ser considerado algo tão surpreendente que o ciclo habitual da atividade econômica seja interrompido de súbito, por períodos de meses a cada vez. Isto significa que, no mínimo, será preciso estabelecer mecanismos de “ligar/desligar” para os momentos de catástrofe. Desta vez, nem vamos precisar de um profeta para sonhar com vacas magras. Mas isso, por sua vez, implica uma ruptura com a crença tão disseminada de que um sistema econômico é uma espécie de máquina que funciona por conta própria, e que tem suas próprias leis, e que elas se manifestam em indicadores aritméticos, veladamente monetários. Este é o coração do problema das categorias, no campo econômico.

Isto significa que, como sistema complexo de natureza socio-técnica, nossa economia financeirizada é nada menos do que incompatível com o que o século XXI – esse que começa agora – promete ser. Neste exato momento, instantes iniciais do século, a questão de curto prazo posta à nossa frente pode bem ser essa que estamos discutindo nas últimas semanas: se a economia consegue sobreviver quando centenas de milhares de pessoas estão hospitalizadas, outras tantas morrendo, e muitas mais sob risco de ser infectadas e sobrecarregar os hospitais. A versão empobrecida desse dilema transparece nessa dúvida sobre se restringir a circulação das cidades derruba o sistema de pagamentos.

Mas a tendência é que essa pergunta seja potencializada em proporções terríveis: se a economia pode sobreviver quando centenas de milhares estão se afogando (imagine as cidades costeiras…), outros milhares estão sufocando (pense nas queimadas), centenas de milhões de agricultores perdem suas plantações, outros tantos ficam sem água, e isso sucessivamente, ano após ano. Toda essa lista trata de episódios que já vêm acontecendo, mas até agora a coordenação do sistema econômico-financeiro global – um sistema complexo e resiliente – foi capaz de conter possíveis danos à capacidade de pagamento em nível global. A pandemia do coronavírus foi a primeira vez que essa capacidade foi amplamente posta em questão.

*

Para muitos, a resposta a essa incompatibilidade consistiria em reinstalar mecanismos de solidariedade social mediados pelo Estado, à moda do período social-democrata do pós-guerra. Mas é preciso ir muito além, já que as categorias e instituições social-democratas têm os dois pés muito bem fincados na modernidade da grande indústria, estão baseadas na relação salarial, no emprego fabril e formalizado, na pura aritmética do nível de produto (ou, mais simplesmente, o PIB), das taxas de variação, uma capacidade produtiva inabalável. Em breve, já não será mais o caso de trabalhar com essas categorias.

Para se restringir aos momentos de ruptura, como o atual: seria preciso que houvesse mecanismos de interrupção de todas essas relações estabelecidas, para que os danos de uma catástrofe ficassem contidos em suas próprias fronteiras. Seria preciso que dívidas, juros, aluguéis, impostos, pagamentos de toda ordem, se congelassem e retomassem com o retorno à, digamos, normalidade. Mecanismos emergenciais como as rendas mínimas emergenciais teriam de ser disparados automaticamente, para não chegar à possibilidade ainda um tanto controversa de que se tornassem rendas universais, perenes. Seja como for, a consideração de tudo que se entende por econômico teria de passar inteiramente ao largo de categorias como o “nível de produto” e, com ele, do crescimento.

Já isto, hoje, parece inconcebível e inteiramente fora do nosso quadro de pensamento. Uma economia cuja moldura institucional levasse em conta a certeza de eventuais interrupções?! No entanto, estou falando apenas do que seria preciso para lidar de modo um pouco menos traumático com a série de interrupções do processo econômico esperadas para as próximas décadas. Ou seja, esse é o mínimo necessário para tentar responder às ameaças dentro do esquema conceitual com que estivemos acostumados, mantendo pelo menos os princípios da vida econômica que levamos desde o século XVIII.

Mas se a idéia for passar a uma vida conforme aos problemas concretos do século XXI, mais ou menos como a industrialização e o desenvolvimento das finanças lidaram com as condições e possibilidades do século XVIII, então vai ser preciso uma capacidade inventiva muito maior. Neste caso, para ficar no âmbito do pensamento econômico, os institucionalistas são uma fonte mais interessante do que as demais escolas, já que reconhecem as condições sociais e políticas para o funcionamento de qualquer sistema econômico, particularmente a tão incensada economia de mercado. Nada garante que o arcabouço institucionalista seja suficiente, mas será preciso pensar as condições para que mercados funcionassem de modo intermitente, subordinados às condições materiais e concretas de um mundo natural que, se dependesse do próprio mercado e de seus teóricos, seria abordado apenas pelo ângulo dos seguros (o relatório Brundtland já previa o encarecimento das apólices, por sinal) e das externalidades – este, aliás, é o primeiro conceito a ser sacrificado, já que, num sistema complexo em que a atividade econômica testou os limites do planeta, o que aparece como externo é simplesmente o que há de mais interno.

Seguindo por essa linha de raciocínio, mais ainda do que os institucionalistas, seria o caso de recuperar o “substantivismo” de Polanyi, aquele que aponta a inversão característica da modernidade: considerar o social como incorporado à economia, em vez do contrário. Para garantir condições de subsistência e conforto, o mecanismo de mercado é apenas um dos caminhos (Polanyi elencou outros dois, que denominou “formas de integração”: reciprocidade e redistribuição). Há condições necessárias para que funcionem: com muita incerteza – financeira, política ou, agora, ecológica –, o sistema de pagamentos pode entrar em colapso. Em funcionando, há condições necessárias para que os mercados sejam úteis: quando alguém como o governo americano pode desviar para si todos os bens mais essenciais só porque tem condições de pagar, há um problema grave. Assim como há um problema grave quando todos os incentivos do mercado vão na direção de uma promoção insuficiente da saúde. Essas são algumas das questões que vamos ter que enfrentar.

4 – Riscos existenciais

Quando se fala nas principais fontes de catástrofes e, de modo geral, perigos no século que ora se inicia, a lista costuma incluir os seguintes pontos: mudança climática, biotecnologia, inteligência artificial, poderio nuclear. Grosso modo, são esses os nossos principais “riscos existenciais”, para usar a expressão de Nick Bostrom. É importante ter em mente que cada um deles alimenta os demais, já que são componentes de um sistema cada vez mais integrado e complexo, que é o sistema do planeta (“Earth system”), hoje tão geofísico quanto econômico, tão ecológico quanto tecnocientífico.

É real, por vários motivos, o problema da complexidade dos sistemas geo-bio-físico e tecno-financeiro-econômico, cada vez mais indistinguíveis. O primeiro está na própria recursividade dos sistemas complexos: eles tendem a aumentar o próprio nível de complexidade. No caso da vida, isto acaba significando evolução, mas, no caso de sistemas técnicos, envolve igualmente uma perda de controle – e acho que não há muita controvérsia em dizer que é preferível poder controlar os sistemas técnicos. Mas também é uma característica de sistemas complexos que sejam mais “resilientes” (anglicismo que parece já ter sido plenamente adotado em português), porém ao mesmo tempo mais vulneráveis. É assim que sistemas ecológicos se adaptam a mudanças consideráveis, climáticas ou até mesmo internas a eles mesmos, transformando-se para isso, sem maiores traumas aparentes – isto é resiliência –, mas eventualmente chegam a um ponto de virada em que não podem mais subsistir, e entram em colapso – isso é vulnerabilidade. As extinções em massa ocorreram dessa maneira: foram rápidas e súbitas.

A relação entre resiliência e vulnerabilidade pode se explicar mais ou menos assim, tomando o caso de zoonoses e outros patógenos. No noticiário sobre o atual coronavírus, lemos que laboratórios mundo afora estão correndo atrás de vacinas e que, eventualmente, dentro de um ano e meio, talvez, teremos resultados. Lemos também que bactérias estão cada vez mais resistentes a antibióticos, mas que também estão sendo desenvolvidos novas classes de medicamentos contra essas superbactérias. Com a exceção de pessoas que seguramente não estão lendo este texto, sabemos todos que as vacinas foram fundamentais para controlar doenças como pólio, sarampo e varíola, e continuam sendo fundamentais para mantê-las sob controle. Sabemos que o saneamento nos protege do cólera e da febre tifóide. Sabemos que um bom urbanismo é fundamental contra o avanço da tuberculose e outras doenças respiratórias. Metrópoles superpovoadas são espaços ideais para a transmissão em massa de vírus como esse da atual pandemia, mas também são onde melhor se previnem as doenças e mais se tem acesso a tratamentos de saúde. Sabemos que o aumento da ingestão de calorias foi um fator na melhora dos indicadores de saúde e no aumento da expectativa de vida dos últimos séculos (deixando de lado o problema da má nutrição com o avanço recente dos alimentos ultraprocessados, sobretudo nos países ricos).

Pois bem, todos esses elementos estão profundamente conectados. Uma zoonose como o ebola ou o coronavírus não apaga a humanidade da face da Terra porque os sistemas de prevenção e tratamento dão conta de evitar os maiores estragos. Isto significa que podemos continuar avançando sobre florestas, escravizando animais e ampliando manchas urbanas sem constituir nenhum risco sistêmico. Microorganismos outrora assassinos que estão presentes no nosso organismo não nos afetam mais porque temos como combatê-los ou estão enfraquecidos. Não se pode mais separar nossa saúde, individual ou coletiva, dos dispositivos técnicos no interior dos quais vivemos e que constituem boa parte do nosso mundo.

*

A coisa vai mais longe, porém. Os laboratórios que investigam curas e vacinas são ou bem públicos, ou bem privados, e seja como for, dependem de financiamento, seja por meio de impostos, investimentos ou empréstimos (contra a perspectiva de lucros). Os sistemas de distribuição dependem igualmente de financiamento, mas também de transportes, que por sua vez dependem de energia extraída, ainda hoje, majoritariamente de combustíveis fósseis. O urbanismo e o saneamento que garantem boa parte da nossa saúde dependem, além do financiamento, da disponibilidade de mão-de-obra, o que implica sistemas de educação, distribuição de alimentos e – veja a recursividade – saúde, urbanismo etc. O acompanhamento e combate de qualquer doença, praga ou catástrofe depende de redes extensas de informação e comunicação, que dependem de computadores, satélites, pesquisadores, universidades, eletricidade…

Todo esse enorme conjunto de sistemas está integrados também aos ciclos ecológicos, o que significa todo tipo de coisa: chuva, vento, rotação e translação da Terra, efeito-estufa, correntes oceânicas. Mas, como vimos com os dados da poluição na China, depois na Europa, hoje nem mesmo essas variáveis podem ser desconectadas da ação humana – ação dita econômica, essa mesma que está soterrada no sistema de pagamentos que faz as vezes de economia.

Assim sendo, já se vê que o sistema é resiliente porque é capaz de enfrentar um sem-número de crises sem romper, mesmo que precise se transformar. “Sem-número” porque, de fato, é bastante indeterminado quanta crise esse sistema todo pode enfrentar e ainda se manter quase incólume. Mas não é uma infinidade. O problema de sistemas complexos como esse que envolve o planeta e a atividade humana é que, de uma hora para outra, o que eram dispositivos de compensação (e, portanto, estabilização), se convertem sem aviso em mecanismos de reforço, provocando uma reação em cadeia que é destrutiva e muito veloz. Este é o sentido da vulnerabilidade contraposta à resiliência.

Para ficar no exemplo da saúde, uma vez que entendemos o quanto a complexidade técnica, social e econômica nos protege contra eventuais doenças, também podemos entender o quanto estamos expostos uma vez que esses sistemas entrem em colapso. Se faltar financiamento para os laboratórios, os remédios e vacinas que nos mantêm saudáveis podem desaparecer de imediato. Nesse momento, também é provável que falte financiamento para os sistemas de tratamento. É provável que também falte para a produção de energia que alimenta os sistemas de transporte e distribuição que traziam os remédios e vacinas, mas também traziam o alimento. As redes de comunicação emudecem. Também fica comprometido o saneamento e, dentro em pouco, o mesmo acontece com o urbanismo, como foi quando a manutenção dos aquedutos se tornou inviável nas cidades do Império Romano decadente. Assim, em pouco tempo, nós, que estávamos tão bem protegidos contra novas doenças – e mesmo velhas doenças –, de súbito estamos completamente expostos.

Como cada um desses sistemas – inteligência artificial, biotecnologias, clima, nuclear, mas também finança, indústria etc. – é complexo por si só e todos estão conectados de múltiplas maneiras, constituindo um super-sistema-mundo, todas as tendências da complexidade se reforçam, da acelerada complexificação à resiliência e à vulnerabilidade. Muitas pequenas rupturas podem ocorrer sem derrubar o “sistema de sistemas”, muitas vezes inclusive reforçando-o, embora acumule resíduos que podem depois se revelar fatais.

Talvez o acúmulo dessas tensões, ao aumentar o estresse do sistema, leve ao seu colapso; talvez leve a uma supersaturação que induza à completa reconfiguração do sistema como um todo, levando a uma nova lógica, novos atratores, novas categorias, novas instituições etc. Esta é a maior esperança. J.-P. Dupuy, que cunhou a expressão “catastrofismo esclarecido” para designar a postura racional e esperançosa perante uma catástrofe já encomendada e que se torna cada vez mais palpável, teme que os sistemas em tensão acabem redundando em guerras que ponham tudo a perder. Pois bem, a corrida contra o tempo pode ser posta nesses termos: invenção ou guerra. Inventar novas categorias e parâmetros para novas configurações do sistema-mundo, antes que estejamos afogados num dilúvio de ferro, fogo e sangue.

5 – Para novas categorias

Com toda essa conversa de categorias que se tornam obsoletas, resta se perguntar sobre a emergência de novas categorias – aliás, “emergência” é um péssimo termo, já que se trata de um lento trabalho de invenção e amplificação, sem que nada pule “para fora” de nada. Ou seja, se o século nascente demanda uma passagem a novos conceitos de base, de onde eles virão?

Aqui é que reside toda a beleza das possibilidades abertas, da esperança e da coragem de viver – e viver consiste em construir as maneiras como essa vida vai se constituindo, se desenvolvendo, percolando pelas nossas relações conforme se desenvolvem. Aqui aparece novamente aquela proposta do começo do texto: se queremos fazer a aposta de que vamos chegar bem ao fim do século XXI, mesmo sabendo que será um período difícil, traumático, temos que ver quais são as condições para isso. Ou seja, explorar as possibilidades, examinar com cuidado o que parecia funcionar e não funciona, apontar as limitações das categorias usuais, investigar os potenciais de categorias concorrentes, vendo onde falham e onde prosperam… e assim por diante.

Seja o que for que vai constituir o esquema de interpretação do mundo no século XXI, o que parece seguro dizer é que seus principais elementos já estão flutuando pelas margens do mundo. Algum gaiato poderia dizer que essas figuras políticas monstruosas que vêm ganhando espaço também vêm das margens dos sistemas políticos estabelecidos. E esse gaiato teria razão, até certo ponto. Quando os modelos da era anterior começam a exibir trincas e pouco a pouco se põem a ruir, quem sai na frente são essas suas formas adulteradas, teratológicas, das margens do sistema estabelecido mas ainda orbitando nele e se alimentando dele. Mas elas só têm a oferecer o esforço violento de postergar qualquer invenção propriamente de fundo, tarefa que tende a se tornar cada vez mais trabalhosa, na medida em que requer volumes cavalares de recursos e energia. Além disso, é mesmo de se esperar que haja linhas de conflito e que justamente esses nomes monstruosos sejam a linha de frente do atraso.

Mas o que imposta é investigar de onde virão as invenções, que serão capazes de esvaziar essas forças do atraso. E aqui há uma miríade de possibilidades, é claro, já que são categorias da margem e é da natureza da margem multiplicar-se, variar infinitamente, provocar múltiplas diferenciações, algumas das quais se desvanecem logo em seguida, enquanto outras prosperam. Se as energias que circulam nas margens podem ser capturadas por essas figuras monstruosas e destrutivas, seu efeito é esfriá-las. Mas também podem ressoar umas com as outras e criar formas inesperadas, cuja fecundidade é impossível prever e depende das tendências mais amplas com as quais poderá se conectar.

Isto posto, é difícil escapar à tentação de fazer um arrazoado de iniciativas que introduzem novas lógicas (ou lógicas marginais) e, com elas, o potencial de uma reconstrução de categorias. Sem procurar muito longe, basta falar em princípios como a permacultura, os laboratórios maker, os circuitos de troca, que funcionam nos interstícios das cadeias globais de valor, em canais que resistem a traumas que seriam – e são – capazes de romper os vínculos de escala maior. Ainda no plano da produção/circulação/consumo, pululam mundo afora esquemas de comércio justo (ou “equitável”), moedas complementares, bancos comunitários, que permitem um manejo muito mais adaptável e fluido da distribuição dos meios necessários à vida, bem como sistemas de pagamento mais controláveis e sujeitos ao imperativo do bem-estar ou bem-viver.

Recuando um pouco, para poder avançar melhor: em momentos como o desta pandemia, vemos como essas categorias são maleáveis, ainda que busquem se manter rígidas. De um lado, governos e outras instituições abrindo exceções em suas maiores crenças, mas a muito contragosto: auxílios aos desempregados e pequenos empresários, rendas básicas emergenciais etc. De outro, o reforço ou ressurgimento, sobretudo nas periferias, de redes de solidariedade que se acreditava terem sido soterradas ou tornadas obsoletas pela modernidade individualista, contratual. Redes como essas podem até mesmo ser capazes, no fim das contas, de evitar o cenário apocalíptico esboçado por muitos, com roubos a supermercados e famílias pobres levadas a passar fome. Não estou dizendo, valha-me Deus, que basta contar com redes de solidariedade e podemos ficar tranqüilos a respeito das categorias que organizam nosso mundo. O que estou dizendo é que podemos aprender com elas, enxergar nelas elementos de novas dinâmicas sociais, políticas e econômicas.

*

Como sabemos, o coronavírus, assim como, antes dele, o ebola, o HIV e vários tipos de influenza, é uma zoonose, ou seja, patógeno que transita dos animais para os humanos. Não deixa de oferecer uma ocasião propícia para especular sobre outras instâncias de um trânsito entre mundos que nos forçamos a pensar como separados; a zoonose, como a queimada, a praga, a inundação e, muitas vezes, o câncer, apareceria então como um mediador, um viajante, um diplomata cujas mensagens (Botschaft, diriam os alemães) são a morte, a doença ou, se for o caso, misérias de outros tipos. Naturalmente, só pode nos parecer assim porque imaginamos essa divisão absolutamente ficcional.

Não há propriamente um trânsito, se entendermos que a relação entre mundo humano e mundo animal é uma questão de mera topologia, nada mais do que os movimentos forçados que a lógica divisora da modernidade impôs às dinâmicas que a ultrapassam. Mas o mais relevante é notar que o agente dessa comunicação das doenças entre humanos, morcegos, porcos, frangos e outros bichos, esse minúsculo xamã da morbidade, é um ente microscópico, tão simples, tão estranho – um vírus! Um pedaço de código genético encapado que nem sequer conseguimos determinar como sendo vivo – ou melhor, como sendo um ser vivo de pleno direito (direito!). Um ente que só pode existir com alguma clareza nas conexões, de um corpo a outro, de uma espécie a outra, sendo parte da vida só quando salta entre os infectados.

Existe um curioso paralelismo entre o simples vírus e toda a complexidade do aparato tecnológico humano. A diferença é que o primeiro nos lembra da nossa inserção inescapável (e bem tentamos escapar!) nas dinâmicas naturais – ou cósmicas, para empregar um termo mais carregado de implicações. Enquanto isso, o aparato técnico, mesmo ao operar justamente na mediação física e psíquica com o meio associado, tem nos servido mais para esquecer de seus dinamismos necessários, patentes, inescapáveis, fazendo parecer que nos isola deles.

Na verdade, boa parte da reconstrução das categorias sociais, políticas e econômicas consistirá em refundar a lógica dos dispositivos técnicos, para que sejam os operadores da tarefa de enxergar nossa inserção nos dinamismos naturais, ampliar os modos dessa inserção, reforçar a conexão entre nosso metabolismo e os demais. Também isto existe nas margens, aparece em filigrana nas ciências do clima e do sistema-Terra mais amplamente. De um modo mais próximo ao quotidiano, aparece no esquema de Kate Raworth com os círculos concêntricos da economia possível, que ela compara a uma rosquinha (Donut Economics). Por sinal, o subtítulo do livro dela é: “pensar como um economista do século XXI”, o que só reforça a ideia de que este era um século ainda por começar.

Aparece também na paulatina reemergência de tantos saberes subordinados (expressão de Foucault), que foram suprimidos ou absorvidos pelo saber magno do “espírito científico” moderno, objetivante, isolante, triunfal ao silenciar sobre valores e vínculos cósmicos, enquanto agia tecnicamente sobre esses mesmos valores e vínculos. Pelo menos, vejo assim a retomada de interesse em pachamama, sankofa, ubuntu, motainai, candomblé.

Desnecessário dizer que este é um trabalho árduo e de longo prazo, que só pode ser levado a cabo por meio de muita reflexão, mobilização e articulação. A seguir no exercício de pensamento em que reconhecemos na pandemia do coronavírus um verdadeiro evento, um ponto de virada, ato fundador, chame como quiser, o que se apresenta diante de nós é um chamado à invenção. O mundo passou a última década, pelo menos, postergando transformações cuja necessidade estava patente. Sem reação digna de nota, assistimos à perpetuação de uma mecânica econômico-financeira fracassada, suicida, reconhecidamente alienada – isto é, desconectada de seus próprios princípios. Pasmos, mortificados, acompanhamos a ascensão irresistível de figuras políticas doentias, alimentadas por medos, vergonhas e dores indefiníveis. Uma autêntica necropolítica, engordando com a perspectiva do mortífero.

Talvez faltasse engrenar o século XXI. Talvez estivéssemos meramente na fase de transição para ele. Mas com o coronavírus, mensageiro da vida indecidível, irrompe um século em que a vida, ela mesma, é uma questão de decidir. Se for assim, encerrou-se a década do impasse, com um chamado a encerrar a agonia da modernidade. Eventualmente vamos sair de casa e lá vai estar o século XXI, esperando por nós.

Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, cidade, direita, eleições, Ensaio, esquerda, fotografia, história, imagens, modernidade, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, Rio de Janeiro, Sociedade, tempo, tristeza, viagem, vida

Imagens que não fizeram história (4): a Brasília estourada

ff03b41748889cfc6390cf18edb569ef

Faz bastante tempo desde a última vez que me deu ganas de vir aqui para falar de imagens que “não fizeram história“. Quase dois anos. E por um desses acasos que acabam virando significação, quando volto ao tema é para tratar de uma fotografia de Brasília. No terceiro artigo desta série, comentei uma fotografia de Brasília, justamente. Eram índios debaixo de chuva, à frente do monumento conhecido como “aos candangos” (chama-se, na verdade, Os Guerreiros). Agora, é questão de uma fotografia de candangos visitando o Palácio do Planalto; e com o Congresso ao fundo.

A imagem tem essa potência notável de produzir seus próprio relatos, principalmente quando ultrapassa seu enquadramento particular e abraça outras imagens. Elas demarcam todo um território imagético, atravessando continentes ou gerações. Para além do aspecto indicial da imagem fotográfica, o “isto aconteceu” de Barthes, temos de reconhecer um outro caráter, mais assertivo, que diz “isto está acontecendo” ou “isto ainda acontece”. Um efeito de ilusão, direis, e pode ser mesmo. Mas é muito mais uma reverberação afetiva, sem a qual a fotografia provavelmente só valeria pelo seu caráter documental e não circularia pelas coletividades; ou pelas redes, como tem sido com esta.

Por isso, quando as pessoas se deparam com essa família (seus olhares de admiração, o modo apurado como se vestiram, a patente humildade debaixo dos monumentos de concreto), sentem algo suficientemente forte para deter o olhar. É algo sobre o passado, certamente, mas é na mesma medida, ou até mais, algo sobre o presente: isto ainda acontece, isto ainda está acontecendo, esta foto está sendo tirada agora. Está sendo tirada a cada vez que olho para ela. É graças a esse efeito, essa dobra nas décadas que Einstein não menciona, que esta imagem de René Burri pode se conectar com a dos índios, que circulou em 2015, ou com tantas outras tiradas em Brasília. Ou até em outras cidades, dependendo do território espaço-temporal que queremos delimitar.

* * *

E no entanto não foi nada disso que chamou minha atenção de imediato, ao ver pela primeira vez essa imagem, que apareceu um dia desses nas redes, nem sei bem por quê. A primeira coisa que me saltou aos olhos foi o fundo ligeiramente estourado, bem no centro do quadro, apagando os detalhes de alguns andares do prédio do Congresso e o pé da coluna do palácio. Acontece que René Burri, fotógrafo suíço morto em 2014 com um portfólio contendo retratos de Niemeyer, Fidel, Le Corbusier, De Gaulle e muitos outros, tirou centenas de fotos de Brasília. Não só durante a construção, mas também em 1977, em plena ditadura. Um bom número com caráter essencialmente documental; um bom número explorando a geometria modernista; outras tantas, como esta, lembrando a presença daqueles que de fato construíram a Novacap e que nem sempre são mencionados.

Fiquei encantado com esse ligeiro estouro, mas preciso dar uma breve informação: fui ao site da agência Magnum, que exibe em versão pequena todas as fotografias do livro de Burri sobre Brasília. A imagem, tal como a apresentam ali, não está tão estourada, mas também não tem tanto contraste e os rostos estão na penumbra. Não sei se a versão da agência foi “corrigida” ou se alguém resolveu aumentar o brilho ao postar a foto na internet. Cá entre nós, prefiro a versão com estouro, pressupondo que, de todos os seus cliques, o experiente fotógrafo suíço tenha escolhido este para deixar uma nesga de luz excessiva, chapada como é a luz, no meio do dia, em pleno planalto central deste país tropical.

Faço essa pressuposição, confesso, porque me convém, tanto pela narrativa que quero sobrepor à fotografia quanto pelos demais territórios que ela pode traçar. O que acontece é que lidar com a luz inclemente e brilhante demais, com sombras tão escuras que o contraste pode não ser administrável, sempre foi um problema para quem queria retratar esta parte do mundo. Ainda mais se tivesse no fundo da cabeça os padrões de luminosidade da pintura europeia. A maior parte das representações de paisagens brasileiras que conhecemos de séculos anteriores, de Franz Post a Debret, foram executadas pacientemente no começo da manhã ou no fim da tarde, dizem os livros de história da arte, para aproveitar uma luz mais suave e saturada. A grande exceção está na obra de João Batista da Costa, que fazia paisagens em pleno meio-dia justamente para marcar as diferenças das grandes áreas de cor. (Mais detalhes neste link.)

Refletindo sobre tudo isso, acabei pensando em Albert Camus. Nos textos do célebre existencialista pied-noir, as referências ao Mediterrâneo, Argélia em particular, sempre falam da luz ofuscante. Meursault menciona o sol opressivo e o reflexo cegante na praia diversas vezes, durante a narração que leva ao assassinato do árabe, em O Estrangeiro. No texto teatral O Mal-Entendido, a motivação declarada das assassinas é deixar o frio e passar a viver sob o sol. A imaginação européia sobre a luminosidade tropical é extensa e fértil. Posso mesmo imaginar a insolação que os primeiros exploradores tiveram ao desembarcar das caravelas.

Por isso me chamou a atenção esse pedacinho de luz estourada na fotografia de René Burri, que, afinal de contas, era mesmo um fotógrafo europeu, como Rugendas, Eckhout e Taunay foram pintores europeus. Na minha cabeça, Burri tinha se decidido a gravar a luz tal como é, em vez de procurar compensações, esconder o reflexo do sol atrás do corpo de alguém, algo assim. Como se fosse um comentário de fundo, de natureza técnica, para seu retrato da família, de natureza temática; como se quisesse sublinhar o fato de não estar apenas documentando, mas revelando algo sobre o que viera documentar.

É sempre inspirador testemunhar um encontro entre o tema e a técnica como este. Burri, afinal, deu de cara com o quê quando fotografou Brasília? Seu álbum tem inúmeros cliques de Niemeyer trabalhando, tem Juscelino em reunião com seu arquiteto, tem esqueletos de edifícios que sobem, tem vistas dos prédios prontos contra um território ainda dominado pelo barro, tem vistas dos acampamentos de peões. Tem até imagens de trabalhadores estrangeiros na obra, algo que eu nem sabia que tinha acontecido (são espanhóis). O que ele ouviu de cada grupo desses? Como avaliou o que diziam os políticos, os engenheiros, os jornalistas, os militares, os peões, suas famílias?

Talvez esta imagem revele um pouco disso: que postura tinha o fotógrafo diante daquilo que viera documentar. De quando veio acompanhar uma gigantesca obra de engenharia, com motivações políticas, neste país onde a luminosidade é tanta que se pode ter luz estourada e sombras profundas na mesma composição.

* * *

Em quase todas as fotografias, e também nos vídeos, da inauguração de Brasília, vemos gente vestida em sua melhor roupa. A mais famosa dessas fotografias, que tem inclusive uma versão colorida, é aquela em que Juscelino, com lenço na lapela, agita seu chapéu, sorrindo para além das próprias gengivas. Há também registros da esquadrilha da fumaça, de ginasiais fazendo demonstrações (talvez sejam colegiais, pouco importa), de tropas que desfilam, dos deputados tomando seu assento pela primeira vez (ou, pelo menos, oficialmente pela primeira vez, para as câmeras). Ninguém nessas imagens está vestido de qualquer jeito, ou com a roupa com que vai trabalhar no dia-a-dia.

Esta imagem de Burri não é exceção: também a família humilde (e a legenda, no site da Magnum, acrescenta: “worker from Nordeste”) está com sua melhor vestimenta, sua “roupa de domingo”. Vale a pena se deter nesse detalhe. A esposa do candango carrega, inclusive, um guarda-sol, que, além da óbvia utilidade prática (ainda mais para quem tem um bebê no colo), é um tradicional signo de elegância. O marido veste paletó claro, algo que, pelo visto, perdeu o direito de existir nas nossas cidades, apesar de todo o sol. Talvez a única coisa que destoe seja o colarinho do trabalhador, que não usa gravata. Curiosa ausência.

Em nome do contraste, pense nas imagens que temos dos operários que ergueram aquela cidade (enganosamente) austera no meio do nada. Algumas são tomadas à contra-luz, agigantando suas figuras de heróis anônimos de uma pátria pujante (etcétera e tal). Outras são tomadas distantes, mostrando-os como pontinhos frenéticos de um formigueiro, para expressar a grandiosidade de uma obra em que a figura humana chega a desaparecer. Há ainda as imagens mais jornalísticas, poderíamos até dizer de denúncia, mostrando caminhões apinhados que chegam ao Planalto Central, despejando gente no Areal ou em Ceilândia, ou ainda as instalações em que viviam os candangos. O álbum do próprio Burri fornece exemplares de ambos os tipos.

O que temos nesta imagem é outra coisa. O fotógrafo suíço acompanha a família, e não é uma tomada de surpresa; há outra foto em que eles aparecem por trás, caminhando. Eles exploram as construções monumentais e ainda nuas, não só no sentido físico de não estarem sendo usadas, ocupadas por escritórios e repartições, mas também no sentido simbólico: não carregam o peso das atividades que se desenrolarão ali dentro, e que o visitante ou espectador atual não pode se prevenir de ficar imaginando quando contempla cada uma dessas construções. Sabemos que o grupo está de pé no Palácio do Alvorada por uma única das colunas, que se ergue atrás deles com dimensões acachapantes. Aos olhos de quem se acostumou a ver essas colunas nos últimos 50 anos, associadas a todo tipo de evento triste, traumático e cruel, essas dimensões não podem ser tomadas como mero acaso.

Burri toma a foto ligeiramente de baixo, o que normalmente aumentaria as pessoas, daria a elas dimensões mais fortes e agressivas. Não é o caso de quem está debaixo dessas colunas, também alongadas pelo ângulo de tomada. O que temos são figuras um pouco deslocadas, todas olhando para cima, um pouco intimidadas, com exceção do bebê que dorme, indiferente; logo ele, que vai conviver com a imagem desses edifícios por uma parcela maior de sua vida…

* * *

Mesmo assim, é uma família que se vestiu com o melhor de suas roupas e saiu para passear. Estão ao largo das grandes cerimônias, mas nem por isso menos aprumados. Depois de um longo período de dificuldades, de trabalho duro, o descanso, o lazer. E, claro, a admiração, a reverência, diante das edificações monumentais  – erguidas ao longo de um eixo que carrega o mesmo nome.

A reverência diz muito. Pode-se ver que o operário e sua família têm respeito pelo palácio, em grande medida pelas próprias dimensões da obra arquitetônica, mas também pelo contexto em que foi feita, um contexto carregado de promessas e expectativas. É bem possível que também tenham orgulho da energia física e do “dispêndio de músculo e nervo” (uma definição marxiana para o trabalho) necessário para produzir aquele monumento. Certamente há um componente de esperança, que era o que prometia todo o projeto de desenvolvimento de Juscelino.

Seja lá de onde vem esse “worker from Nordeste”, ele não teria saído de casa se não imaginasse um incremento nas condições de vida em outra terra. Mesmo que, na verdade, ele tenha sido expulso, seja por um grileiro, seja pela seca, seja por ambos. O que quer que tenha acontecido, ele provavelmente nutria a esperança de que a Novacap representasse um país melhor. E isso quer dizer, de seu ponto de vista: um país onde se viveria melhor. Conhecemos uma boa parte da história, no entanto: atraídos pela possibilidade de fugir da miséria, retirantes “from Nordeste” como este trabalhador largaram o que restava de suas terras para tentar a inclusão na civilização, na sociedade de massas, ou de consumo, chame como quiser. Foram tratados como sempre são tratados os pobres, os mestiços, os trabalhadores no Brasil.

Por sinal, quando compartilhei esta fotografia nas redes sociais, uma amiga de cliques contou uma história familiar que não vou reproduzir aqui, porque cabe a ela contá-la, e não a mim. Mas é um relato que contém tudo que conhecemos da história do Brasil ao rés-do-chão: grilagem, jagunços, escravidão por dívida, golpes, violência e morte. Não dá para descolar a história da construção de Brasília da história das secas, das oligarquias, do arrasamento do território e de seus habitantes. Tanto quanto ressoa com a fotografia dos índios de 2015, a imagem de René Burri também ressoa com a pintura de Cândido Portinari, cuja Os Retirantes data de 1944.

retirantes

* * *

Repetindo o que eu disse no início, a fixidez da imagem lhe confere a característica curiosa de adquirir significações em retrospecto. Como captura de um intervalo no mais das vezes ínfimo, de uma fração de segundo, a fotografia pressupõe necessariamente o tempo que a precede e sucede. E se, nesse instante raptado graças à luz que refletiu, o filme (ou o sensor) foi impressionado com formas prenhes de sentido, pode pressupor ainda mais, muito mais. O operador que tem um dedo no disparador e outros dois na abertura do diafragma tem consciência de algumas dessas possibilidades, mas certamente não de todas. O autor é poderoso, mas a obra tem seus poderes também, que ele simplesmente não pode alcançar. E deve se alegrar por isso.

Mesmo que nada do que eu imaginei acima esteja correto e o Burri de 1960 quisesse apenas fotografar uma inauguração, o Burri de 1977, que retornou a Brasília num momento em que a ditadura já rateava, provavelmente tinha outra idéia. E é bem possível que tivesse outra idéia também sobre suas fotos de 1960. No fim da vida (ele morreu em 2014), talvez tivesse ainda mais uma outra idéia sobre o que portavam de significativo essas imagens de Brasília. É como se os personagens se movessem debaixo das colunas, na medida em que elas vão sendo impregnadas do significado histórico do que acontece entre elas e em volta delas. É como se, ainda hoje, quem passa por aí carregado de pastas (se é que por aí passa alguém) esbarrasse nos candangos extasiados.

Assim, para nós, hoje, esta imagem provavelmente evoca ilusões e desilusões, enganos e engodos, decepções, traições. Penso no bebê que dorme no colo da mãe e cujos pais talvez o imaginassem livre da miséria e da opressão, educado, trabalhando em bons empregos (públicos, talvez). Onde terá crescido essa criança? No Núcleo Bandeirante? Na Candangolândia? Teve acesso às benesses da civilização? Recebeu uma educação emancipadora? Teria idade para escapar dos eventos relatados em Branco Sai, Preto Fica, de Adirlei Queiroz? O que você acha? O que te parece mais provável?

O respeito que o operário tem pela construção, ou por quem a encomendou, dificilmente será recíproco. Depois de Getúlio, depois de Juscelino, depois de Lula, uma das coisas que podemos dizer sobre o Brasil, e que transparece nesta imagem e em tudo que ela pode nos dizer em retrospecto, é que todas as vezes que se vendeu a idéia de um grande impulso adiante para o país, caímos, depois de alguns anos, em retrocessos. Ou melhor, caímos na real. E tudo para descobrir que o grande impulso, o grande facho de esperanças e expectativas estava incompleto, porque continha muitas propostas e poucas rupturas; muita acomodação, muito acordo, e pouca revolução.

As imagens desta família, esta em particular, mostram um instante silencioso (porque, afinal, algumas fotografias, como muitas pinturas, têm som). O evento ocorre em um espaço praticamente vazio. O contraste que se impõe não diz respeito apenas às multidões estridentes que freqüentarão a Novacap daí por diante, preenchendo os ministérios com concursados, terceirizados e comissionados, as casas parlamentares com eleitos, assessores e jornalistas, os palácios com lobistas, solícitos líderes políticos e seus funcionários a servir café.

Mais ainda, o ambiente em que a família visita essa Brasília ainda quase mágica contrasta com o alarido da inauguração oficial, a festa de diplomatas e burocratas, o desfile de Nonô e os discursos de senadores e deputados. Terá sido no dia (e na noite) anterior? Pela ordem das fotografias, é o que parece. E vou admiti-lo, mais uma vez, porque convém à minha narrativa.

Lendo os relatos da época, a inauguração de Brasília foi a marcha triunfal de um país que vencia, batia na porta do clube dos civilizados, demonstrava ser capaz de qualquer coisa, mesmo os planos mais ousados e absurdos. Um país com os olhos voltados para o futuro. Quero dizer: o país do futuro, nada mais e nada menos. Mas quem assistia, das bancadas do plenário ou das galerias, ou mesmo pela televisão, um bem de consumo ainda relativamente raro em 1960, eram aqueles que garantiam os pés do país (eu deveria dizer: “da nação”) muito bem fincados na derrota, no passado, no fracasso, no clube dos expropriados.

René Burri mostra com esta família o dia seguinte desse alarido tão confortável, ou melhor, o silêncio em que se esconde aquela esperança quando recomeça o dia-a-dia. E mostra esse espaço dúbio, ambivalente, da maneira como divaguei até aqui. Com a luz ligeiramente estourada de um ambiente subtropical que não se deixa simplesmente apagar assim tão fácil (nem com os aparelhos de ar-condicionado dos ministérios). Com uma perspectiva de baixo para cima, paradoxalmente reduzindo os personagens ao amplificá-los. E com a constatação de uma reverência humilde perante as colunas em que Oscar Niemeyer revelou um naco de seu gênio (e de sua utopia).

* * *

Como sabemos, quatro anos depois de todo o alarido, nessa mesma cidade, Auro de Moura Andrade declarava vaga a presidência da República, que pouco depois seria tomada pelos militares e sua máquina de tortura, censura e retrocesso. Não consta que a família do “worker from Nordeste” tenha visitado o Alvorada nesse período. Pelo menos não tem fotos disso. Consta, por outro lado, que as tentativas fracassadas de estabilizar a economia depois das despesas com a construção do referido palácio e demais novidades da Novacap foram um fator determinante na queda de Jango e da democracia. É difícil imaginar uma fotografia que represente esse vínculo, exceto pelas imagens de arquivo mostrando Celso Furtado com olhar de cansaço, ou melhor, de derrota. A não ser que tentemos fazer da luz estourada no fundo deste clichê de René Burri uma espécie de alegoria dos estouros em geral, inclusive os estouros de orçamento. E por que não?

Padrão
arte, barbárie, Brasil, calor, capitalismo, crime, desespero, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, história, modernidade, morte, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, tempo, trabalho, transcendência, vida

Naturam expellas (parte 5)

[N.B.: esta é a quinta parte de um texto sobre a velha questão “homem/natureza”, inspirado no ecocídio de Mariana-MG e que está destruindo um dos nossos mais importantes rios – e agora também o mar! Nas partes anteriores, tratei de como foi conceitualizada a natureza no pensamento moderno, entre Bacon e Marx.  Depois, lidei com os desconfortos que a relação entre natureza e técnica causou no século XX. É sempre bom lembrar que “natureza” é um termo polissêmico, que se presta a muita manipulação: por isso, entro agora na parte que trata daqueles que tentam pensar esse conceito por um ângulo completamente diferente.]

Leia também a PARTE 1.

Leia também a Parte 2.

Leia também a Parte 3.

Leia também a Parte 4.

hokusai ondas e barco

A Inarredável

Com tudo isso, é preciso passar à segunda resposta possível para o sentido da impossível expulsão da natureza, retorcendo um pouquinho a idéia de que ela volta “triunfal”, “irrompendo vitoriosa contra o seu tolo desprezo”. Para tanto, vai ser necessário deixar de seguir Horácio e, principalmente, de navegar pela superfície desses discursos ocidentais clássicos. Aqui, não é mais questão de que a natureza “volta”. É questão de que a natureza simplesmente nunca foi embora.

Pode-se expulsar a natureza com um ancinho, com um ar condicionado, com um rigoroso planejamento logístico? Não, não se pode.

De certa forma, esse ponto fica subentendido, de um jeito ou de outro, em todas as doutrinas discutidas acima, mesmo quando elas tentavam teorizar a natureza como externa, expulsa, subjugada, sem direito de cidadania. A propósito, é bastante natural que, ao se exercitarem, as doutrinas sejam levadas a expelir com o suor os elementos que não conseguem absorver e, por isso, lhe aparecem como toxinas. O mesmo vale para qualquer sistema, a começar pelo sistema econômico…

Com isso, vemos que sempre existe algo de dúbio, como a liberdade que se constrói “por cima” da necessidade; ou o trabalho indispensável de nomear aquilo sobre o qual se exercerá um poder; ou ainda, a duplicidade em última instância insuperável das “naturezas”, primeira e segunda. Também fica evidente a impossibilidade de sustentar a cisão radical entre o “nosso” e o natural pela própria polissemia do termo: “natureza” às vezes se diz, inclusive, como sinônimo de “essência”, de modo que a cultura aparece como uma “segunda natureza”.

Cúmulo da dificuldade expressiva: seguindo por essa linha, pode-se afirmar até mesmo que “é da natureza” do ser humano… destruir a natureza.

Maurice Merleau-Ponty consagrou três cursos inteiros, entre 1956 e 1960, ao problema do conceito de natureza, na tradição filosófica e nas ciências. Seu objetivo, com tanto tempo dispensado a esse assunto, era incorporar à fenomenologia a necessidade de pensar de maneira integrada a linguagem, a natureza e, como ponto de convergência de ambos, o corpo.

Hoje, trabalhos como o de Bruno Latour, Isabelle Stengers e Michel Serres se dedicam a desmontar essa armadilha do, digamos assim, “dualismo natural” que vê na natureza o “outro” do humano. Especificamente para Stengers, essa assimetria (tomo aqui emprestado o termo de Latour) é fruto de verdadeiras catástrofes. Mais precisamente, essas que estamos vivendo.

E, por outro ângulo, pode-se enxergar também no perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro outro movimento que põe em xeque a certeza de que o Espírito (para usar o termo hegeliano por motivos que vão ficar claros em seguida) é que tem uma experiência formativa da realidade humana. Uma das coisas que aprendemos com o antropólogo carioca é que se para o europeu a civilização, a atividade humana, é da ordem do espiritual, e a natureza da ordem do “meramente” material, para o ameríndio ocorre o oposto.

Uma anedota que o antropólogo conta e em que particularmente achei graça (no sentido de prazer e interesse) é aquela que diz que, enquanto os espanhóis discutiam se os índios tinham alma, na famosa controvérsia de Valladolid (lindamente transformada em espetáculo teatral por Jean-Claude Carrière), os ameríndios afogavam espanhóis para descobrir se seus corpos eram reais e, conseqüentemente, apodreceriam.

* * *

davinci turbulencia1

Como podemos lidar com isso, do ponto de vista dos versos latinos de Horácio? Ora, tudo vai depender de como olhamos para “a natureza”, como empregamos este termo traduzido ao latim como natura (essa que aparece em Horácio) da já longínqua noção grega da physis. A natureza de energias, relações, potenciais, daquilo que cresce (phuo, o verbo de que deriva o termo “física” e também a palavra feto) e engendra. Mexer com a natureza é mexer com potências e intensidades, e não meramente com uma divindade plenamente individuada.

Assim entendido, o conceito de natureza é da ordem do que necessariamente se expande, se transforma, do que não é nada em particular, mas cada coisa e mais as virtualidades em que cada coisa está implicada. O virtual, o pré-individual, a intensidade. Construir a casa da qual se expulsarão as folhas (“a natureza”…), com ancinho ou sem, exige um trabalho (no sentido físico) com o peso dos tijolos, por sua vez feitos de um barro molhado e aquecido, fazendo passar o dinamismo do calor pela potência da argila e da água, tudo isso dentro de um molde de madeira ele mesmo dotado de seu próprio dinamismo…

Antes de mais nada, a turbulência. Antes da matéria, a energia. Antes do real, o virtual. Ninguém entendeu isso melhor do que Leonardo da Vinci, que passava horas e horas de seus dias a desenhar os diferentes turbilhões que surgiam na água de acordo com as barreiras que ela encontrava – e também de acordo com os encontros fortuitos (clinamen?) de suas próprias moléculas em fluxo. Ninguém representou isso melhor do que o grande gênio de Hokusai, o artista japonês. (Cuja influência, por sinal, é bastante visível na obra de Van Gogh, uma espécie de Leonardo da Vinci do pós-impressionismo.)

Modular, e não moldar, dirá Simondon, que também dá o exemplo da marcenaria que corta as tábuas segundo a estrutura energética da própria madeira, sob pena de fazer um corte completamente errado. Natureza contra natureza, potência diante de potência, só nesse cruzamento se dá a ver o objeto que, com certa leviandade, tomamos como unidade constitutiva do real (da natureza…).

Com isso, o momento singular da ação técnica (a expulsão com o ancinho, por exemplo) não é tanto um agenciamento do homem com a natureza, mas de dois momentos, dois fluxos, duas intensidades, ambos da natureza (ambos dinâmicos, capazes de crescer e engendrar), ainda que se possa apontar a presença de um deles na figura da madeira (entendida como natural porque não é humana) e a do outro no humano que performa o gesto.

Ou ainda o exemplo metalúrgico de Deleuze e Guattari (já que estou tratando de um recente desastre no setor econômico que extrai metais): a têmpera, o fogo, conduzindo o metal a seu estado de menor forma e maior potência, maior virtualidade, maior fluxo; a forja, em que esse fluxo é confrontado à dinâmica de outras forças, quais sejam, a do forjador: o objeto metálico como fruto do agenciamento entre dinâmicas intensivas de um corpo e de uma matéria com quase infinita virtualidade.

* * *

times square

Em suma, o gesto que produz o lixo e o gesto que ilumina Times Square não são capazes de conduzir a uma cisão pela qual de um lado está a natureza e, de outro, estamos nós. Ou, para falar como a linhagem alemã tratada em parágrafos anteriores, um lado para a necessidade e a vida animal, o outro para a liberdade e a ação propriamente humana.

Ou ainda, para que sejamos “como mestres e possessores” da natureza, porque, afinal de contas, como perceberam com muita perspicácia Adorno e Horkheimer, para isso é necessário que nos tornemos mestres e possessores… de nós mesmos! O que nos conduz, necessariamente, a alguma forma de totalitarismo, ainda que imperceptível.

É claro que os mestres da Escola de Frankfurt tinham outra coisa em mente, mas não podemos deixar de enxergar esse processo em várias das iniciativas de biotecnologias, simbiose homem-máquina, inteligência artificial e assim por diante, que estão se desenvolvendo atualmente sob a égide da subsunção a um imperativo venal e financeiro com conseqüências potencialmente muito funestas…9

A barreira rompida em Mariana não era um ancinho que expulsava a natureza, mas uma força que continha outra força, um agenciamento de um determinado tipo, que precisa ser tratado em mais detalhe. O problema é que nos acostumamos a vê-lo exatamente assim, como um ancinho mágico nas mãos do aprendiz de feiticeiro que leu errado o livro do mestre, pensando que era um livro de registros contábeis.

Extraímos bens valiosos das entranhas da terra, mas controlamos as “externalidades negativas” (não tenho palavras para descrever meu ódio a essa expressão, a mais funesta fórmula mágica dos tempos que correm). Com isso, perpetua-se uma ilusão, que vai nos corroendo por dentro: nossa alienação à própria potência técnica que molda nosso mundo é como um gigantesco tumor e a metástase, bem se vê, está disseminada. Essa alienação técnica é também, indissociavelmente, uma alienação quanto ao sentido dessa palavra que tanto usamos: “natureza”…

* * *

metalurgia

O que há de mais interessante no ponto que estou tentando levantar talvez seja esse descolamento entre o plano da interação e agenciamento entre energias e o da capacidade expressiva do que ocorre efetivamente. As forças da matéria rejeitada pela mina, em nome de uma seleção de forças cujo imperativo estava longe dali, acumularam-se cada vez mais intensamente no lago, como se não existissem, como se estivessem fora, expulsas de alguma maneira.

Mas é claro que não estavam expulsas coisa nenhuma. O que estavam era agenciadas de modo deturpado, iludido, perverso, porque a potência técnica que presidiu sobre esse processo estava ela mesma iludida e pervertida. Resta mais uma pergunta para nossa coleção, e que está relacionada a essa dupla alienação: como é possível deturpar os agenciamentos, se não existe a priori uma finalidade para o que devam ser esses agenciamentos?

Antes de tentar alguma resposta, mais um exemplo: afinal, o que vale para a mina de Mariana vale também para o gás carbônico que se acumula na atmosfera, e que dispõe rigorosamente da mesma potência de todo gás carbônico que jamais houve no universo. Mencionemos três delas: refletir os raios do sol; participar da fotossíntese; formar-se a partir da explosão de determinados combustíveis. (E mil outras poderiam ser lembradas.)

Pois, justamente, ao queimar os combustíveis em nome da potência das máquinas, avaliando-a e medindo-a por seus efeitos sobre as imagens simbólicas que compõem o PIB e o índice Dow Jones, a atividade técnica de nosso ancinho paradigmático não expulsa a natureza, mas seleciona e reorienta muitos de seus potenciais. Sem perceber, faz com que outros de seus potenciais se tornem tóxicos a ponto de inviabilizar nossa própria vida.

Não que “a natureza”, esse ente mítico e hipostasiado, esteja particularmente preocupada com a possibilidade de que nossa vida se torne inviável no planeta. Mas nós estamos… e se fomos capazes de hipostasiar um ente de nome “natureza”; se fomos capazes de enxergar nesse ente uma intencionalidade e uma profunda teleologia – ou, melhor dizendo, se fomos capazes de projetar nele nossa própria intencionalidade e propensão às teleologias –, então deveríamos ser capazes de entender que “deste jeito não dá mais”.

* * *

castelo de kafka

Em outras palavras, imaginemos uma visão de profundo cinismo; alguém querendo pensar para além de um ser humano que já estaria condenado à destruição que ele mesmo causou. Com essa visão, alguém poderia afirmar que, do ponto de vista da natureza ela mesma, com sua virtualidade, suas potências e sua ancoragem no pré-individual, essa destruição do humano não faz a menor diferença. Ou, melhor dizendo: que “tanto faz” – o ser humano “está sobrando” ou “só atrapalha”.

Acontece que esse cinismo todo nos joga numa espécie de círculo, porque, afinal de contas, a mesma potência figurativa e especulativa que nos leva a hipostasiar a natureza, projetando nela nossas próprias intenções, é uma virtualidade do corpo e, portanto, da natureza; e é também aquela que eventualmente nos conduz a esse cinismo.

Por isso, uma alternativa mais fecunda seria perguntar-se o que é que nos leva a estabelecer essa camada de desentendimento, de verdadeira alienação, que faz com que os agenciamentos singulares e reiterados, quotidianos e institucionalizados, que produzimos no mundo moderno, entre diferentes potencialidades e virtualidades da natureza (como physis), sejam auto-destrutivos, isto é, coloquem em risco nossa própria existência. Por que é que estamos rodando sem rumo, perdidos, iludidos pelas imagens de felicidades e bens que já sabemos destinados ao fracasso…

Um claro exemplo está na oposição que se faz entre a responsabilidade pelo meio ambiente (guardemos essa expressão enquanto não aparecer outra mais precisa) e a responsabilidade pela vida social, expressa na idéia de que, se formos resguardar o planeta abandonando determinadas atividades econômicas parasíticas, muitos empregos vão ser perdidos. Exemplo concreto é este que se vê em Minas Gerais: defensores das mineradoras envolvidas já admitem que elas são culpadas, mas, embora tenham que pagar pelo estrago que fizeram, isso tem que dar-se de uma maneira que não resulte em demissões.

Não se pode quebrar o município, apenas cobri-lo de arsênico, mercúrio e sabe-se lá que outras substâncias nocivas.

* * *

hephaistos e aquiles

O problema aqui está na estranha, até mesmo absurda oposição entre os “meios de vida” (o salário, diga-se) e a própria vida. Uma determinada atividade mata. Mas paga salário. Salário, uma soma em dinheiro que permite responder às exigências por outras somas em dinheiro: imagens cristalizadas, fenecidas, mortas, do desejo, da atividade, das relações contratuais. Então a escolha que está colocada é ao mesmo tempo simples e inverossímil: para manter-se vivo, é necessário provocar a morte – no limite, a própria morte.

Tome-se o exemplo da indústria petrolífera: ela é indispensável para uma gigantesca cadeia de produção, então não pode ser abandonada, para não comprometer os assalariados e, claro, toda a coletividade que vive dos impostos recolhidos. Mas ela provoca desastres como o da BP e, mais ainda, o próprio aquecimento do planeta: para não comprometer a economia global, é preciso sacrificar o globo…

É evidente e, de certa forma, já é assunto um tanto batido, a inversão das finalidades. Abra qualquer manual de economia e, nas primeiras páginas, você lerá que aquela doutrina (ciência, dirão seus apologetas) trata da alocação de bens e serviços, dada a limitação dos recursos. Você lerá também que as imagens monetárias que sustentam essa alocação são um auxiliar, um meio, um símbolo que permite comparações.

Mas abra qualquer jornal de economia e estará evidente que a relação é inversa: a atividade econômica e a alocação de bens servem para gerar as divisas. São, afinal, as divisas que pagam as dívidas, remuneram os acionistas, garantem as estatísticas, evitam as crises… A dimensão da atividade cristalizada, o dito “valor”, a imagem mortificada de um universo da virtualidade quase infinita, orienta os gestos que, ao redor do planeta, adulterarão por obra dos “mestres e possessores” o próprio universo da infinita virtualidade: a natureza.

Mestres e possessores alienados, subjugados ao sistema de suas próprias imagens-símbolos, organizados sob a égide de uma racionalidade instrumental da qual não conseguem se livrar, embora não entendam para além de uma formação cada vez mais restrita a uma “área de excelência”. Possessores, com certeza. Agora… “mestres”?

Mais uma vez, palmas para Adorno e Horkheimer, mas também palmas para Rousseau. O problema semiótico, a camada de linguagem mal colocada, reaparecem em todo seu fulgor. Estamos diante, mais uma vez, de uma limitação da capacidade de expressar aquilo que se efetiva. A estrutura do expressável, em outras palavars, não acompanha sua paralela, a estrutura do realizável. São agenciamentos mancos que se produzem aqui, acoplamentos empobrecidos.

Keynes, em seu célebre texto sobre a riqueza de seus netos (que é uma geração hoje na terceira idade, diga-se de passagem), demonstra preocupação com o fato de que um “amor desmedido ao dinheiro” (e Keynes não era nem monge, nem bolchevique) impeça a realização de sua visão utópica de pouco trabalho e muito lazer. Mas, ora, amor é da ordem do desejo e dinheiro é da ordem do símbolo: natureza e expressão.

* * *

beijing neblina

Ainda sobre natureza, expressão e também técnica, no mesmo texto em que tratam da metalurgia, Deleuze e Guattari escrevem algo que deveria segurar por um tempo nossa atenção:

(…) há uma relação essencial entre as ferramentas e os signos. É que o modelo trabalho, que define a ferramenta, pertence ao aparelho de Estado10. Com freqüência se disse que o homem das sociedades primitivas não trabalhava propriamente, mesmo se suas atividades eram muito coercitivas e regradas (…). O elemento técnico devém ferramenta quando se abstrai do território e se assenta sobre a terra enquanto objeto; mas é ao mesmo tempo que o signo deixa de inscrever-se sobre o corpo, e se escreve sobre uma matéria objetiva imóvel. Para que haja trabalho, é preciso uma captura da atividade pelo aparelho de Estado, uma semiotização da atividade pela escrita. Donde a afinidade de agenciamento signos-ferramentas, signos de escrita-organização de trabalho.

A dupla está apontando o dedo para a subsunção daquilo que poderíamos chamar generalizadamente de “atividade técnica”, agenciamento de corpos e territórios, gesto desejante, por uma “semiotização” que hierarquiza e controla. É a transformação dessa atividade em trabalho, orientando-a para finalidades que estão no horizonte, não no próprio desejo ou no próprio corpo.

Como diz Simondon, o trabalho é um caso particular da técnica, e não o contrário, mas construímos toda uma estrutura interpretativa para a atividade humana que nos faz crer exatamente no oposto: trabalha-se e esse trabalho contém técnicas.

Trabalha-se para quê, então? Diríamos, com Horácio, e lançando um olhar reprovador aos alemães que lemos acima: para “expulsar a natureza”, criar um reino impossível e ilusório de liberdade. Trabalha-se em nome da semiotização, dos nomes que demos às coisas por cima delas mesmas e das declarações performáticas que realizamos em seguida: “isto é meu”, “isto vale tanto”.

A linguagem chegou a um ponto em que está toda contaminada com essas fórmulas do trabalho, do tornar-se “mestre e possessor”, do ancinho iludido. Li por esses dias no jornal que o Brasil já não é mais um “mercado emergente”, mas um mercado “submergente”; por causa da crise, você sabe. Mas em nenhum momento alguém parece ter estranhado que se identifique assim tão facilmente um território habitado por pessoas que falam a mesma língua a “um mercado”.

Já não se diz mais “o mercado brasileiro” para designar a atividade econômica que ocorre no Brasil ou entre o Brasil e outros países (digo, outros mercados). Agora se diz: “o Brasil é um mercado… outros mercados estão crescendo mais / crescendo menos”; e por aí afora. É o mesmo vício de linguagem que nos leva a dizer que a Samarco é “vítima” do rompimento da barragem porque seus lucros vão ser prejudicados, ou que o importante é “não colocar em risco os empregos”. Quem está soterrado pela lama não tem emprego, ora.

* * *

fritz lang trabalhadores

Também é por isso, em grande medida, que parece tão difícil chegar a algum acordo nas cúpulas do clima, mesmo para a já altamente arriscada meta de um aquecimento global de “apenas” dois graus. A transição energética não pode acontecer rapidamente o suficiente sem comprometer “o crescimento”, que por sua vez, no discurso oficial, comprometeria “o emprego” de bilhões de pessoas.

Mas não é só isso: afinal, a maioria dos países envolvidos têm compromissos com dívidas públicas (e privadas, diga-se) que se tornariam inviáveis sem “o crescimento”, de modo que parece mais confortável rumar para o suicídio do que comprometer o sistema de signos e contrações do tempo em que consiste o sistema de dívidas, investimentos e ações.

Simplesmente, o acoplamento desse sistema semiótico, enquanto potência de figuração, racionalidade e imaginação, com as dinâmicas do carbono, dos metais e da atividade dos corpos (sob a forma de trabalho), está conduzindo a um agenciamento climático que, no longo prazo, exclui a presença da humanidade, tal como a conhecemos.

Aquele sujeito imaginário, de atitude cínica, que mencionei acima como exemplo, poderia dar de ombros e simplesmente esperar a chegada da morte, como na música de Raul Seixas. Mas esse também seria um caso de linguagem e imagens em rota de abolição com o desejo, porque o desejo, como tal, é potência de vida e não se presta a esperar a morte chegar.

E é isso que traz a reflexão toda para o último problema: haveria outros agenciamentos possíveis ainda disponíveis para nós? Maneiras de promover a cópula de diferentes potências, de dinâmicas físicas, porções de natureza, que não envolvessem essa alienação do trabalho, essa subsunção a uma linguagem hierarquizante do valor e da propriedade?

Continua na Parte 6.

Notas

vangogh turbulencia

9. No Brasil, a obra de Laymert Garcia dos Santos é recheada com bons exemplos a esse respeito. Recomendo em particular a coletânea de título Politizar as Novas Tecnologias (Editora 34).

10Uma breve advertência: é bom lembrar que quando a dupla fala em aparelho de Estado, não estão se referindo àquilo que hoje se tornou comum, a dicotomia entre “o Estado” (sinônimo de governo) e “o indivíduo” ou “o mercado”. Estado, aqui, designa uma forma de organização, controle, disciplina e poder que é vertical, rígida, edipiana. Portanto, inclui aquilo que os auto-intitulados libertários denominam “o mercado”, reino de uma liberdade definida de maneira um tanto quanto ad hoc.

Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, cidade, costumes, crônica, Ensaio, escultura, fotografia, história, humor, imagens, ironia, modernidade, passado, Politica, tempo, transcendência, vida

Imagens que não fizeram história (3): candangos e índios

A terceira fotografia da série de “imagens que não fizeram história” – e eu aqui pensando que iam ser só duas! – talvez cause um certo estranhamento; afinal, é uma fotografia muito recente, que nem “fez história”, nem deixou de fazer. Posso tentar contornar esse estranhamento dizendo que a imagem “ainda” não “fez história”, mas fará, por tais e tais motivos. Então este texto é uma aposta? Não faz mal, que seja. Estou disposto a apostar de vez em quando.

11159509_983596108318892_815772551864418032_n

Por outro lado, tudo gira em torno dos jogos que se possam fazer com essa fórmula: “fazer história”, que é dúbia e ainda mais maleável quando a usamos no negativo: “não fez”! Seja como for, quando dizemos que uma imagem “fez” história, geralmente estamos ressaltando seu caráter icônico, ao sintetizar nosso conceito de um determinado período ou acontecimento, esse sim “essencialmente” histórico. A imagem em questão é, portanto, a imagem visual referente a uma imagem mental de valor coletivo. A imagem que efetivamente “fez” história é aquela que aparece nos manuais escolares, nas retrospectivas dos telejornais, nas páginas não-numeradas, impressas em papel mais caro, de livros editados décadas depois, mas só para reforçar uma outra imagem e uma outra narrativa, da história que “se fez”, retratada ou não.

Então “fazer história”, no fundo, significa nada mais do que reaparecer a cada vez que alguém quer pontuar a memória social e, para isso, recorre ao ícone mais à mão. “Renúncia de Jânio”; “Guerra do Vietnã”; “Exército Soviético em Berlim”: para cada um desses sintagmas, imediatamente aflora na mente do leitor uma determinada imagem. E dificilmente vou perder dinheiro se apostar, para cada caso, que imagem será essa.

Se a fotografia que escolhi, como imagem, não fez história ainda, porque acabou de ser tirada; mas intimamente sentimos que está em sua essência um certo “fazer história”, será que estamos falando do mesmo caráter icônico?


Valter Campanato, da Agência Brasil, é o profissional responsável por esta peça tão linda. Na terça-feira, a manifestação de 1500 lideranças indígenas contra a PEC 215, no eixo monumental, acabara de ser interrompida por um temporal. Temporais, como sabemos, não são exatamente o evento mais corriqueiro em Brasília. Mas este grupo de índios (algo entre 12 e 14) continuou a fazer a dança ritual que estava fazendo como parte do protesto.

O fotógrafo capturou a dança na chuva bem quando ela passava diante do Monumento aos Candangos, que parece reverberar, na vertical, a marcha dos índios. O pé d’água, que borra as figuras, deixa impassível o bronze do monumento, mas aproxima ambas as formas por realçar seus contornos e esconder os detalhes. Passam a ser índios tão abstratos quanto aquelas duas figuras estilizadas, supostamente representando os construtores da “novacap”, tantos deles vítimas fatais do delírio de ocupação do Planalto Central…

Os candangos que empunham cajados; os índios que empunham armas. Alinhados em cruz, como se buscassem sinalizar uma simetria histórica. Com isso, a própria composição se torna o vetor pelo qual a imagem lança seu apelo ao passado e situa-se na história, fazendo-se perante a história e, se não propriamente “fazendo história”, pelo menos fazendo da história alguma outra coisa.

Ou melhor, para ficar menos enigmático, talvez seja o caso de inverter a exposição: enquadrados diante da simbologia presente de figuras do passado (o Monumento aos Candangos), os índios trazem o que “já foi” para junto do que “está sendo”, fazendo-os colidir, transformando-os em uma terceira coisa.

Uma constelação, como diria Benjamin?

Afinal, o que é um candango? O que é um índio? Em mais de um sentido, o candango (não o morador de Brasília, bem entendido, mas seu construtor) é o paradigma do lugar reservado ao índio, e não só a ele, no projeto nacional brasileiro. A mão-de-obra precária, depauperada, aculturada (esse talvez seja o traço mais essencial), disposta a deslocar-se em péssimas condições pelo território, na medida do avanço do extrativismo e demais atividades que reproduzem sua lógica. Disposta a morrer por acidentes de trabalho, por doenças que resultam da insalubridade, por violência.

É o mestiço, mas não segundo a perspectiva brilhosa de um amalgamento das raças ou coisa que o valha, e sim pelo esvaziamento das identidades (étnicas, raciais, lingüísticas) do colonizado e/ou escravizado. Esvaziamento que se opera enquanto é barrado o acesso à identidade do colonizador: o branco, europeizado, herdeiro de Dom Antônio de Mariz. É o “pardo”, aquele de cujo rosto não se desenham nem se esculpem os traços, como no monumento que o homenageia na Praça dos Três Poderes. A imagem nítida da construção de Brasília, que guardamos como ícone no fundo da memória, é a do rosto sorridente de Juscelino Kubitschek, acenando à frente de um Congresso cercado de andaimes.

Já o índio é o oposto disso: o obstinado caiapó, ashaninka, tukano, ianomâmi. É o muro em que esbarra o projeto nacional, naquele momento surpreendente em que alguém insiste na autodeterminação. É o desmentido de Rondon. É o rosto cujos traços a chuva pode borrar numa fotografia, mas o escultor não borrará no monumento. Se lá atrás o bronze dos candangos pesa sobre a Praça dos Três Poderes, com seus oito metros de altura – como uma sentença, podemos dizer –, aqui na frente a dúzia, pouco mais, de índios a atravessa, com a leveza realçada pela chuva.

Talvez seja esse o motivo pelo qual muita gente fica tão horrorizada e perturbada quando vê um índio de bermuda ou com a camisa do São Cristóvão. Ali está, materializada, a assinatura da aculturação. Então por que a recusa em admiti-la? A bermuda não é, nesse raciocínio, objeto de uso, mas mercadoria; não pode ser vista como concessão do mundo civilizado, só como porta de entrada ao sistema produtivo e à cultura que passou a lhe servir de penduricalho. O renitente índio que aceita a bermuda mas não aceita ser “pejotizado”, que continua empunhando seu arco mas não quer ir para a favela empunhar um .38 contra a polícia, está enfiando seu tacape bem no meio da engrenagem dos tempos modernos. Ou seria dos Tempos Modernos?


Mas… se é possível enxergar na fotografia um vetor de conexão cronológica, nada impede de procurar nela também um vínculo topológico, afirmando que a imagem é capaz de operar uma amarração que ressignifica a geografia. E se fizer isso, ela também dá um novo sentido ao território, com seus conflitos internos e seu enraizamento no planeta, do qual aparentemente não é tão fácil escapar. Acho que é possível ler essa imagem assim, mas vai ser necessária uma certa dose de sarcasmo. Não que isso me incomode!

O olho treinado pela televisão – que é o meu e, muito provavelmente, o seu também – quase certamente fará a imediata associação entre índios avançando em grupo debaixo de um toró e a expressão “dança da chuva”. Para o olho treinado pela televisão, o que é um índio? Ora, é alguém que faz uma dança da chuva. Porque quem dança “na” chuva não é o índio, é Gene Kelly, mas só porque tem uma câmara na frente, a chuva é de mangueira e a cantoria vem em playback.

Sem essa tecnologia toda, prossegue o raciocínio, o índio convoca a chuva dançando. E assim o reconhecemos como índio, com nosso olhar formado pela televisão. Digna de nota é a poesia embutida na idéia de convocar a chuva com uma dança: o moderno, o branco, o tecnológico, o civilizado, convoca a chuva bombardeando nuvens. Um bombardeio, pois: notória invenção do moderno, branco, tecnológico, civilizado.

Mas às vezes nem o bombardeio funciona, então é preciso recorrer… à dança? Parece ser o que fez o governo de São Paulo – moderno, branco, tecnológico e civilizado – no fim do ano passado, quando, a crer na imprensa local, entrou em contato com a Fundação Cacique Cobra Coral para ver se fazem chover em São Paulo. A fundação em questão não é indígena; é espírita, mas parte da premissa de que sua presidente recebe o espírito do cacique Cobra Coral (do qual temos poucas informações, senão que seu espírito também teria sido [sic] o de Galileu Galilei e Abraham Lincoln, o que me deixa intrigado, porque não vejo a relação desses dois senhores com a chuva). Pois esse cacique “tem poderes para interferir em fenômenos meteorológicos”, ou seja, faz chover.

Trocando em miúdos: enquanto o grupo de índios dava uma de Gene Kelly (que era moderno, branco, tecnológico, civilizado) e dançava “na” chuva, o branco e nem tão moderno, vagamente tecnológico e nada civilizado governador de São Paulo convocava uma dança “da” chuva.

Eu disse que seria preciso sarcasmo, e acho que esse sarcasmo começa a partir de agora. Afinal, São Paulo define-se como o “Estado bandeirante”, como testemunham os nomes de tantas de suas ruas e rodovias, sem falar na estátua de célebre mau gosto na avenida Santo Amaro. Mas o que é um bandeirante, senão um brutamontes descalço que leva a vida a se embrenhar pela mata para escravizar índios – e matar, estuprar…? Senão aquele cuja função histórica era limpar o terreno para a emergência de uma população aculturada e depauperada, ou seja, destinada a se tornar alguma das variantes daquele fenômeno do candango, homenageado no monumento de Brasília?

Que divina ironia! O líder político do “Estado bandeirante” recorre ao espírito de um índio para ter a chuva, enquanto os índios que conseguiram escapar à escravização e à proletarização, na capital do país, interrompem um protesto pela própria sobrevivência por causa… da chuva! E passeiam nela, dançam nela, e parecem mesmo estar se deleitando, esses maledettos nietzscheanos!


Está bom de ironia? Calma que tem mais. Se estou tratando de uma imagem e das conexões que ela é capaz de fazer, não posso deixar de citar um dos maiores marcos do “bandeirantismo” do Estado em questão. É também uma escultura, como o Monumento aos Candangos: o mais que famoso cartão-postal paulistano, o “empurra-empurra”, que pretendia ser conhecido como “Monumento às Bandeiras”.

Lá está ele, no meio do engarrafamento, retratando os maiores heróis do genocídio em traços enrijecidos, angulosos, um descarado flerte de Victor Brecheret com a estética fascista que florescia em seu tempo (há muito disso em São Paulo, a começar pelo Pacaembu). E não é que, debaixo do toró, os índios de 2015 lembram vagamente o formato da escultura-símbolo da ressecada capital paulista? De um lado, os corpos vivos, com membros flexionados; do outro, a postura marcial e os corpos de pedra.

De um lado, o protesto pela sobrevivência; do outro, a conquista do território e das populações. De um lado, o toró; do outro, o volume morto.

Em constelação, como diria Benjamin?

Resta ainda uma última questão, que não consegui identificar, com meus olhos formados pela televisão: de que etnia são esses índios? Vêm de que parte do Brasil? Sei que em Brasília, nesta semana, estiveram índios dos quatro cantos do território. Mas e esses em particular? Por sorte, posso ser preguiçoso e recorrer a meus olhos formados pela televisão, repetindo com meus confrades de televisionismo: “se é índio, deve ser da Amazônia”.

Então, em nome da poesia que pode haver nas imagens, vou simplesmente pressupor que o olhar formado pela televisão está certo, desta vez, e que os índios em questão são de uma etnia amazônica. Simplesmente porque isso convém à minha retórica: se eles vêm da Amazônia, então vivem na região do país de onde saem os rios voadores que irrigam com chuvas abundantes grande parte do resto do país… a começar por São Paulo.

Assim sendo, o que a imagem mostra é uma espécie de dança triunfal que sintetiza as contradições fundamentais do Brasil, tal como elas se manifestam hoje: o índio que protesta para garantir a sua sobrevivência e a de sua terra também é aquele cuja terra fornece o elemento indispensável à sobrevivência de todos os demais. E notadamente dos que querem forçar a aprovação da PEC que põe em risco o território dos índios. Como pano de fundo, temos a informação de que a demarcação de terras indígenas é um poderoso instrumento para frear o desmatamento, cuja consequência mais imediatamente visível para metade da população, que vive longe da floresta, é a paulatina diminuição das chuvas.

A história que se faz quase por conta própria nesta fotografia pode ser descrita como a materialização de uma anti-história do Brasil, em que o primeiro plano apresenta aqueles que são ao mesmo tempo anti-candangos e anti-bandeirantes em plena procissão triunfal, justamente no instante em que mais estão ameaçados. E quem é que vem fornecer as condições para que tudo isso seja sintetizado num único enquadramento, numa composição com basicamente dois elementos, muito pouco contraste de cor e uma simplicidade formal deliciosa? Ora, ninguém menos que a chuva. Terá sido mandada pelo cacique Cobra Coral, em resposta à convocação dos paulistas?

Padrão
arte, cinema, comunicação, descoberta, desespero, doença, Filosofia, frança, morte, paris, reflexão, tempo, transcendência, vida

Oliver Sacks de 5 a 7

257664

Terminei de ler Oliver Sacks sobre a descoberta da morte batendo à porta e me pus imediatamente a pensar em Agnès Varda. Mais especificamente, um de seus primeiros filmes, Cléo de 5 à 7, de 1962, em que acompanhamos durante duas horas (das cinco às sete, justamente) uma jovem cantora que espera o resultado de um exame; ela tem certeza de que ele virá com a notícia do câncer incurável.

Oliver Sacks é um cientista de 81 anos, com um passado cheio de realizações. Mesmo assim, seu relato altivo e elegante me remeteu a Varda e Cléo. É que ambos tocam no mesmo ponto; um ponto que nos atinge a todos, constantemente, mesmo quando não estamos, nem acreditamos estar para morrer. O filme pode servir para iluminar o que há de mais intenso no breve artigo de Sacks. Graças às sequências filmadas décadas atrás, o texto publicado semana passada ganha uma dimensão ainda mais ampla e uma beleza ainda mais vívida.

Na ficção de Varda como na confidência de Sacks, temos a ocasião de vislumbrar uma nesga da imensidão inerente à vida, tanto maior quanto mais temos a experiência e, claro, a ciência da finitude individual. E aqui devo confessar que esse tema andava mesmo rondando a minha cabeça, tendo revisto há poucos dias o filme de Varda. Posso dizer que, a rigor, estou me aproveitando da metástase de Oliver Sacks, o que à primeira vista pareceria uma atitude vil, mas lembre-se que um dos componentes dessa imensidão, aliás dessa tendência ao infinito, é a possibilidade de fazer na vida coisas aproveitarão a outrem.

Sacks cita Hume sobre a proximidade da morte e a vontade de viver: nunca tanta disposição física, tanta curiosidade para os estudos quanto agora, bem pertinho do fim. Uma estranha liberdade, como se a certeza eliminasse a angústia do outro mundo. Junto com ela, Sacks fala de uma estranha capacidade para enxergar a vida passada como uma totalidade, vê-la como nunca foi vista antes, do alto, coerente e completa. Surpreendente serenidade perante o inevitável, que advém quando ele deixa de ser uma especulação existencial e se torna uma data no calendário.

Agnes Varda

Varda não é cientista, não faz citações (não nesse sentido). Ela é artista, faz imagens. Aliás, outro traço que deveria separá-los, mas estranhamente os une, é que, embora ela seja mais velha que ele (tem 86 anos), quando fez o filme contava 34 primaveras. Como eu disse, é um tema universal e ininterrupto. Aos olhos do velho cientista ou da jovem artista, finitude e eternidade, finitude perante a eternidade, finitude ensejando eternidade. Talvez só mesmo diante da morte os finitos reconheçam que são eternos, e eternos só porque são finitos.

Voltando às imagens: sem precisar dizer nada abertamente, o que seria de uma cafonice atroz (tem um ou outro momento assim, a bem dizer), as seqüências do filme expõem com serenidade a dilatação dos sentidos que dão movimento à vida, no instante em que a doença parece sugerir que a vida se resume à unidade frágil do corpo. No táxi, vemos as ruas de Paris que se sucedem diante do pára-brisas (num tempo em que a faixa de pedestres era marcada por semi-esferas de metal que pareciam cascos de tartaruga), enquanto a motorista ouve rádio e as passageiras (a cantora e sua camareira) fazem silêncio.

Como as ruas, as notícias se sucedem. A guerra na Argélia. As declarações de um ministro. Dois ou três faits divers. O cenário perfeito para o enfado. Mas junto com a sucessão de prédios e pequenos engarrafamentos, acompanhando a voz monótona do radialista, segue a personagem, em quem não consigo deixar de ver uma conexão, embora difusa, com tudo que aparece e tudo que é dito. Nem que seja pelo enfado, por uma reação de defesa, um bloqueio. Sem que ela soubesse, tudo aquilo sempre a afetou, como afeta a todos nós.

É claro, são afecções muito diferentes daquelas que povoam o dia-a-dia de qualquer um. Ainda assim, são inextirpáveis delas, porque o que as produz é o dia-a-dia levado ao limite, ao extremo. Se uma briga de casal na mesa vizinha do bar sempre parece algo constrangedor e muitas vezes mesquinho, como parecerá a alguém em conflito com o destino do próprio corpo? E como será para essa jovem mulher com dinheiro, já retratada como consumista e vaidosa, atravessar a cotoveladas um bulevar apinhado de lojas, em que todos os demais se dedicam à atividade do eterno consumo de objetos fugazes – fugazes como a moda que os criou? Um bulevar que ela mesmo deve ter atravessado tantas vezes a passo lento, saboreando as cores, as luzes, os chamados quase convincentes dos vendedores?

A realidade da duração eclode a cada seqüência de Cléo, com seus intervalos rigidamente e cronologicamente marcados. Uma duração que é sempre indefinida, porque remete tanto a memórias e marcas quanto a perspectivas e aspirações, mas em todo caso sempre envolve a percepção, a ação, o desejo da cantora angustiada. Nas suas relações, nas suas escolhas, nos seus caprichos, ela está sempre além das próprias fronteiras porque as partes de sua vida e de seu ser aparecem, se iluminam, pelo contato com o que está fora dela; e é aí mesmo que essas parcelas de realidade aparecem e se iluminam também, junto com ela.

A tal ponto que ela pode chegar a esquecer o que a angustia: porque apaixonou-se por um chapéu, porque um compositor lhe apresentou uma canção adorável, porque uma amiga a levou para o cinema. A visita ao ateliê em que essa amiga trabalha como modelo para escultores, onde o professor corrige com certa impaciência um aluno que não soube representar a curva do quadril. Ela esquece, mas o espectador não. E é no alívio do breve esquecimento, da alegria que sabemos fugaz, que se produz a beleza da narrativa de Varda e, com ela, um sabor a mais na vida como um todo.

É também pelo concurso de estímulos externos que retorna a lembrança do medo, da angústia, do diagnóstico. O chapéu preto, que lhe “cai muito bem”, juízo pronunciado em voz grave. Uma piada do músico que a faz sufocar no próprio apartamento e descambar rua afora. Um galanteador que, inadvertidamente, menciona o início do período de Câncer. Em cada um desses episódios, o alcance da vitalidade de Cléo se contrai novamente, a finitude deixa de ser a janela para um infinito virtual. A duração esmorece e o tempo volta a ser cronológico, uma prisão de sucessões que sufoca a personagem mais do que a angustia.

OliverSacks

Se pudermos fazer do filme de Agnès Varda um pano de fundo para como Oliver Sacks se refere a seu próprio “5 a 7”, o estoicismo do cientista talvez apareça sob uma nova luz, eu diria até que mais intensa. Tem algo a mais do que o mero “cabe a mim agora escolher como viver os meses que me restam; devo viver da maneira mais rica, profunda e produtiva que puder”, que ele diz. Isolado do resto do texto e sem o pano de fundo desse vínculo estreito entre finitude e eternidade, entre duração e tempo, esse trecho seria quase um truísmo – e bastante sintomático da mentalidade contemporânea, com sua ênfase na produtividade. (Note-se que em sua enumeração ele não inclui “compensadora”, “agradável”, “satisfatória”, “alegre”…)

O que tem a mais está adiante: a sensação de estar vivo “intensamente”, que também pode ser traduzido como “intensivamente”, se pensarmos no caráter de contração da finitude e de expansão da virtualidade: é alguém que vê o prazo (cronológico) curto para esticar os braços rumo a um mundo que não tem motivo para limitar-se, e quer esticar seus braços como se fosse um polvo e suas cabeças como se fosse uma Hidra. Cada vez menos cronologia, cada vez mais duração…

Como a passageira do táxi em sua ambígua relação com o noticiário, Sacks também se posiciona, mas intencionalmente, sobre o mundo com seu noticiário e suas politicagens. Diz que não vai mais prestar atenção no que ocorre no Oriente Médio e nos argumentos sobre aquecimento global, não porque tenha tenha deixado de se importar, mas porque essas coisas pertencem a um futuro do qual ele não fará parte. Sacks decidiu manusear a topologia do seu mundo, escolhendo ele mesmo seu formato e seu alcance. Uma eventual questão sobre a viabilidade dessa decisão é estéril, porque o mero gesto de aceitar ou recusar dimensões do mundo é uma expressão de duração, dessa eternidade inerente à finitude.

116069039_sacks_354030c

Quando Sacks, na esteira de Hume, fala em desprendimento (termo com o qual estou traduzindo insatisfatoriamente “detachment”), ele transmite a idéia de que está deixando um legado e que, quando encontra jovens inteligentes, sente que “o futuro está em boas mãos”. Ele expressa com uma clarividência notável a noção de que sua própria individualidade, sua subjetividade, se podemos dizer assim, está tanto ou mais fora dele (de seu corpo, quero dizer) quanto dentro; ele, enquanto sujeito de um mundo, enquanto alguém que vive – pensa, sente, ama, deseja –, na verdade não é um corpo no espaço, embora sempre atravesse esse espaço do corpo. E seu tempo, naturalmente. Mas se seu tempo terminará certamente, sua duração não necessariamente. Existirá ainda uma porção de subjetividade dele na subjetividade dos outros, nas mãos do porvir, da dita posteridade.

Da mesma maneira, quando ele diz sentir que as mortes dos outros, na sua geração que “está de saída”, são como a perda de uma parte dele mesmo, poderia com até mais razão dizer o oposto: a morte dos outros deixa subsistir desses outros apenas aquilo que eles gravaram e deixaram em nós, nos demais, no mundo. O que não passou pelo outro é o que some.

Ou seja, quando Sacks escreve que os mortos deixam buracos que não podem ser preenchidos, na verdade ele está expressando o oposto: os buracos são seus próprios preenchimentos. Eles têm positividade, subsistência, talvez até mesmo existência. São presenças na forma de marcas, reminiscências, influências, sempre a postos para serem revividas quando alguém as busca e recupera. Essa é a natureza da singularidade absoluta que Sacks expressa ao fim do texto: a singularidade de uma duração, de uma intensividade, de um bailado eterno com o virtual.

Para concluir, volto a Cléo em Paris. Mas antes, um último comentário sobre Sacks. Como é lindo lê-lo a dizer que teve, como escritor e leitor, um “intercourse” especial com o mundo. Termo muito bem escolhido, porque expressa tão maravilhosamente o que pode ser a comunicação como gesto autopoiético e relacional que é usado para se referir ao sexo. Sacks está dizendo que sua relação com o mundo – ou seja, com a vida – foi, para todos os efeitos, carnal. Uma relação de tesão pelo mundo, à qual o mundo responde com tesão. E quando as relações envolvem tesão, elas tendem a criar algo a mais do que os indivíduos que entram nelas. Sacks deixa isso bem claro ao falar de si próprio.

Cleo-01

Agora sim, tenho todos os elementos para concluir com o filme de Varda. O que se pode afirmar, com leveza e alegria, é que a personagem é muito maior, mais viva, mais bela, mais forte, infinitamente mais interessante, ao final de sua jornada do que no início. As duas horas representadas pela cineasta são sem dúvida o principal intervalo da existência de Cléo, o período que mais valeu a pena ou melhor, as penas de caminhar sobre esta Terra.

Em que pese uma escorregada no romantismo barato ao final do filme (uma pena, mesmo…), essa súbita expansão da vida de Cléo perante a morte é resumida na primeira cena, que me parece ser um dos inícios de filme mais brilhantes da história do cinema. Na sala da cartomante, com a câmera fixa acima das mãos das personagens, contemplamos como, em dois minutos, aquilo que parecia ser a consulta de uma menina tola e sonhadora, querendo saber seu futuro amoroso, se transforma no percurso épico de uma mulher angustiada e torturada. É uma reviravolta brutal, executada magistralmente por uma cineasta então ainda iniciante.

Cléo teve de encarar de frente um tempo que lhe parecia curto para aceder à duração. Precisou que fosse rompido seu contato com as coisas do mundo para que o mundo fizesse enfim sentido para ela, tanto em seus objetos quanto em suas relações. Diante dos olhos do espectador, uma pessoa é puxada para além do imediato, esse que é fonte de tantas frustrações, sobretudo à medida que o tempo vai se esvaindo sem avisar.

Oliver Sacks, naturalmente, nunca foi alguém do mero imediato ou do eterno consumo do mesmo. Mas é notável como uma situação semelhante à da personagem de Varda foi o que o incentivou a expressar para o mundo, na imprensa, esse encontro com sua própria duração, no bailado entre finitude e eternidade. Não é por acaso que o texto deixou tanta gente tocada.

Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, costumes, crime, doença, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, modernidade, morte, obrigações, opinião, Politica, reflexão, Sociedade, tempo, trabalho, tristeza, vida

O Inconcebível

3077-digital_art_3d_earth_and_moon_wallpaper

“Colapso”. Nossas conversas do dia-a-dia, aquelas do bar, da calçada, do elevador, ganharam agora uma nova palavra, um novo clichê. Colapso, como quando as fundações de um prédio se rompem e ele cai, ou quando um sistema complexo se revela mal planejado e ele entra em parafuso. Ou quando a defesa de algum time bate cabeça e toma uma goleada.

Dizemos assim: daqui a pouco a água acaba em São Paulo e a cidade vai entrar em colapso. Às vezes avançamos no raciocínio, citando que a estiagem veio para ficar, por causa da mudança climática e do desmatamento – afinal, já faz anos que tem chovido paulatinamente menos. Então toda a economia do Sudeste vai entrar em colapso: sem chuvas e com tanto calor, as hidrelétricas não agüentam.

Ocasionalmente, tendo mencionado o clima, o pensamento continua avançando e dizemos: se não fizerem algo, o mundo todo é que vai entrar em colapso. E, de fato, é pequena a probabilidade de “fazerem” alguma coisa, uma vez que, vivendo de abstrações, a humanidade, essa que poderia fazer alguma coisa, passou as últimas décadas espoliando o planeta. No máximo, dá para contar com alguns arranjos perfeitamente dribláveis por quem tem imaginação – coisa que não falta aos empreendedores mundo afora.

Às Últimas Conseqüências

SECA-SP-3

Esse termo, “colapso”, merece um olhar mais atento. Escutando suas três sílabas, percebo que saímos pronunciando a palavra de modo um pouco leviano, como diria o senador Neves. Quantas vezes não afirmei por aí, para puxar papo com um vizinho ou o porteiro, que “o colapso” está ficando cada vez mais provável? Mas será que eu consigo imaginar o que essa expressão implica realmente? Será que sou capaz de representar na minha cabeça o que é o tal colapso? Acho que não. Continuar lendo

Padrão
barbárie, Brasil, costumes, desespero, deus, direita, doença, escândalo, Filosofia, história, modernidade, opinião, passado, Politica, reflexão, religião, vida

A batalha perdida do pastor

A polêmica suscitada pela entrevista de Silas Malafaia a Marília Gabriela é uma daquelas oportunidades de ouro para levantarmos hipóteses igualmente polêmicas, com as quais tentamos chamar a atenção. No meu caso, não pretendo fazer uma análise detalhada das opiniões do pastor, como fez, por exemplo, o biólogo Eli Vieira. Meu escopo é mais abstrato e minha hipótese trata das diatribes de Malafaia no contexto de um fenômeno ainda vago, mas já repisado: “a volta da religiosidade”. O que quero sugerir é que a luta de Malafaia é uma luta vã, isto é, uma luta que só pode vir a acontecer porque sua premissa fundamental é uma admissão de derrota. Malafaia conduz uma briga perdida, provavelmente por querer.

Antes de mais nada, é preciso estabelecer um ponto, sem o qual estou só gastando meu tempo ao escrever e o seu ao ler. É preciso conceder ao pastor o benefício da dúvida e considerar, sem embargo de quaisquer evidências (contrárias ou favoráveis), que ele fala com seriedade e honestamente acredita tanto em seus métodos quanto em seus argumentos. Este postulado é indispensável, porque não foram poucos na história aqueles que adotaram posições extremadas, sobretudo perante a mídia, com o intuito exclusivo de criar para si próprios uma imagem socialmente relevante. Hoje, não são poucos a pensar que Malafaia se encontra nesse grupo. Mas, para efeito de argumento, suponho que não seja o caso, ainda que, como os mencionados, ele tenda a tratar argumentos, evidências e teses com uma leviandade espantosa.

À hipótese, então: parece-me que Malafaia luta (com sinceridade e galhardia, ainda que histriônicas) uma batalha perdida de partida. A grande questão é que ele se dirige a um público bastante particular e, diria eu, provavelmente numeroso, com proporção considerável entre seus fiéis. Não me parece que ele esteja se dirigindo a uma malta histérica e sanguinária de fundamentalistas religiosos, como levaria a crer seu tom de voz e a já referida leviandade. Para justificar sua condenação dos homossexuais, ao contrário, Malafaia busca justificativas na ciência: explicações comportamentais, dados genéticos, origens sociais e ambientais… Ele fala em cromossomos, em traumas, um vocabulário, cá entre nós, bem pouco teológico. (Volto à questão da teologia mais tarde.) E se ele faz isso, ora, é porque o público ao qual se dirige tem algum nível de exigência por explicações como essas, ou seja, faz questão de fundamentar suas opiniões e crenças em dados empíricos. De fato, pesquisas e mais pesquisas reiteram que, para a infelicidade de Silas e tantos outros, o público evangélico não é nem tão homogêneo, nem muito menos tão intolerante quanto costumam pintá-lo.

Troca de papéis

Observe que Malafaia não recorre à ciência simplesmente como citação. Contra Jean Wyllys, por exemplo, que é historiador por formação, o pastor tenta a carteirada do argumento de autoridade: “eu sou psicólogo”. Ele se coloca na discussão não como pastor, não como intérprete ou defensor das Escrituras, mas como psicólogo, ou seja, como autoridade científica! Sim, verdade, um psicólogo de formação não é necessariamente um cientista; pode muito bem, por exemplo, ser um profissional de RH ou trabalhar com marketing. Mas não é como Malafaia se apresenta: ele busca usar sua condição de bacharel em psicologia para se passar por cientista, ainda que isso, normalmente, exigisse publicações na área, entre outras coisas.

Mas a discussão, neste texto, não é sobre as qualificações acadêmicas do homem. O crucial, neste momento, é entender a dimensão dessa troca de papéis: Malafaia, por sua própria iniciativa, apresenta como credencial não a espiritualidade, mas a ciência. “A razão”, poderíamos dizer, se estivéssemos com pressa de fazer juízos. Mas não estamos com pressa. Por enquanto, tudo que quero expressar é que, ao se colocar como homem de ciência, ainda que pseudo-ciência, um indivíduo, pastor ou não, se submete de livre e espontânea vontade ao risco de refutação e à exigência de rigor metodológico. Isso é verdade mesmo para alguém que, paralelamente, ainda pode tentar a carteirada inversa, ou seja, reafirmar-se como autoridade religiosa, com uma posição inicial inflexível que coloca, desde o início, fora do alcance o tal rigor metodológico. Isso é extraordinário, porque é uma situação paradoxal, um beco sem saída em que ninguém o obrigou a entrar.

Esse é o elemento central da “batalha perdida” de que falei, mas ainda é preciso desenvolver. Lembremo-nos de que Silas Malafaia é pastor da Assembléia de Deus Vitória em Cristo, uma igreja herdeira dos avivamentos do século XIX, nos EUA e, por isso mesmo, uma religião de culto, ou seja, da experiência direta e individual do divino. Essas religiões, pentecostais e neo-pentecostais, recusam tanto quanto possível as exigências de discussão teológica, do estabelecimento de dogmáticas e da observância estrita de liturgias – elementos vigorosamente criticados nas religiões à época já estabelecidas. Nesse contexto, Malafaia é um líder espiritual, de fato e de direito, numa estrutura em que o direito decorre imediatamente do fato. Em outras palavras, ele tem seguidores, por isso é líder. Não há chancela de autoridade formal e hierarquizada, como no caso do catolicismo, por exemplo. Essa posição de líder espiritual, nem preciso dizer, é muito forte.

Sem embrago de toda essa força, Malafaia não consegue se bastar nessa posição. Ele precisa buscar combustível, munição e mantimentos fora da área espiritual. Eis um fato surpreendente. Se ele precisa fazer isso, é porque a autoridade da religião não basta mais para orientar o comportamento, nem mesmo a convicção, em certas áreas cruciais, como a sexualidade. Sem esquecer, é claro, que Malafaia, pelo histórico de sua religião, não pode recorrer àquelas formulações teológicas que renderam tantos embates, até guerras, entre protestantes e católicos, católicos e católicos, protestantes e protestantes. Como resultado, Malafaia, ao se entregar a incursões clamorosas no debate público, flutua entre inúmeros campos distintos, sem conseguir ancorar-se a nenhum deles: o pentecostal, o teológico-dogmático, o psicológico, o cromossômico… Se ainda fosse líder apenas espiritual, especificamente no estilo de John Newton ou Luigi Francescon, ele poderia deixar de lado o recurso à genética e fazer valer sua visão de mundo pela força da autoridade religiosa. Mas não é o que acontece, provavelmente porque já não são muitos os que estão dispostos a discriminar vizinhos só porque alguém poderoso diz que deve ser assim.

Por outro lado, também poderíamos perguntar que aspecto tem essa batalha perdida de Malafaia, quando a colocamos no contexto da anunciada volta do sentimento religioso. Aqui, para poder apresentar as tonalidades do problema, é preciso fazer um breve excurso. Quando falamos em retorno do sentimento religioso, geralmente não sabemos muito bem que sentimento religioso é esse que está voltando. Mas se colocamos isso em questão, a dúvida passa a ser relativa à idéia de que algo esteja mesmo voltando, isto é, que uma religiosidade do passado saiu de cena, mas agora retorna tal e qual. Afinal, se encararmos as manifestações religiosas de hoje, será que enxergamos um retrato fiel da religiosidade de meio século atrás – ou um século inteiro, ou dois…? E não basta responder que não, porque seria igualmente possível entender o retorno do religioso como o renascimento do espírito místico inerente ao humano, ou seja, sua atração pelo transcendente.

Ora, será que esse espírito esteve mesmo tão adormecido? É claro que não. A sede, o sonho de transcendência, pode manifestar-se de uma infinidade de maneiras. Nas catedrais góticas, nas construções harmônicas de Bach, nos sacrifícios de São Francisco de Assis, na voz dos pastores que entoam spirituals; mas também na conquista do espaço infinito, no desejo de dominar o mundo, no patriotismo cego, na fé inabalável de que são objeto o progresso, a propriedade, o mercado, a revolução. E o misticismo pode tanto ser monacal quanto pentecostal quanto psicodélico quanto druídico quanto futebolístico…

Ciência e fé

De que se trata, então? É aqui que retorna o tema Malafaia… Falei de um homem disposto a subordinar sua autoridade religiosa à chancela da ciência, ou de algo que se pareça com ciência, e reafirmei que isso continua sendo verdade ainda que ele esteja disposto a virar de cabeça para baixo o que dizem os estudos dessa mesma ciência. Não se trata de um homem qualquer, mas um homem que poderia perfeitamente abrir mão dessa chancela e cujo programa televisivo, ainda por cima, é acompanhado por centenas de milhares de telespectadores – de fiéis, por sinal. Estamos, então, diante de um caso de preceitos religiosos que buscam, porque precisam, se justificar na ciência… E pensar que, por séculos e séculos, o mecanismo das relações entre ciência e religião se orientou por uma lógica rigorosamente inversa! Mesmo com todas as suas revoluções, suas acusações de heresia, da Idade Média até fins do século XVIII o que impulsionou a ciência foi a submissão a Deus, declarada e irrenunciável!

O cientista trabalhava para explicitar a glória da Criação, para narrar o poema épico da obra de Deus. Mesmo Galileu, que teve de se retratar para não sofrer a mesma sorte trágica de Giordano Bruno, trabalhava para demonstrar que “Deus escreveu o livro do mundo em linguagem matemática”… Cientistas como ele só estavam dispostos a enfrentar o caos aparente para se aproximar de Deus, cuja perfeição transmitia segurança quanto à eficácia dos cálculos. Leibniz, por exemplo, desenvolveu o cálculo infinitesimal não para romper com religião alguma, mas para colocar à prova suas idéias sobre a Graça divina, como resposta ao inextinguível problema da teodicéia e do mal. Mesmo a física newtoniana se propunha a ser um tributo a Deus.

Tudo isso, todo esse esforço de séculos, foi feito sob o signo da submissão a Deus e ao tal sentimento religioso. Afinal, entender as leis da natureza era uma forma de aproximar-se da Vontade d’Ele. Ou seja, se o sábio, como o vulgar, mas em plena consciência, submete-se aos mecanismos da física, por exemplo, é porque ele se submete aos comandos da Divina Providência. Melhor entendê-la é melhor louvá-la. Mas o ponto é que a autoridade espiritual vinha sempre em primeiro lugar, fosse como dogma, fosse como teologia e metafísica. E a ciência que se orientasse por esse gigantesco farol sobre as consciências. Porque a verdade era uma verdade revelada, era ela que fundamentava todas as verdades particulares. Poucos eram os que se dispunham a questionar essa construção tão sólida.

É claro que houve gente disposta a questionar a submissão do método científico ao dogma religioso. Desde o espinosismo proscrito – que, ainda assim, se colocava como um caminho para a beatitude – até Voltaire, houve também o conflito aberto da religião com a ciência. Darwin está aí que não me deixa mentir: até hoje, para muitos líderes religiosos, rejeitar a teoria da evolução é questão de honra, Malafaia entre eles. Um episódio famoso a esse respeito envolveu o matemático Laplace e o imperador Napoleão. Laplace, inspirado em Newton, mas também de seus rivais teóricos Descartes e Leibniz, escreveu um “Sistema do Mundo” em que tudo, até mesmo a lei da gravitação universal, consistia em forças naturais. (Para Newton, ironicamente, a gravidade era uma prova da existência de Deus, ou, ao menos, do sobrenatural.) Pois Napoleão folheou o texto e perguntou ao sábio: “Qual é o papel de Deus?” E o cientista respondeu: “Majestade, não precisei dessa hipótese”. A essa altura, a autoridade espiritual e a religiosa estavam em campos opostos ou, no máximo, perfeitamente independentes, como era o caso das críticas de Kant à metafísica.

O retorno

Mas uma oposição não é uma submissão. Fala-se em retorno do sentimento religioso como uma reversão no processo de “desencantamento do mundo” de que falava Weber. O mundo foi se tornando mais e mais secular, num processo que teve seu ápice na segunda metade do último século. As igrejas começaram a se esvaziar e pareceu que todas as respostas seriam buscadas na pesquisa empírica, ou melhor, nas soluções de mercado, ou melhor, nas lutas políticas… Mas basta reler a frase anterior para perceber que essas respostas são animadas, ainda, pela mesma busca do transcendente que sempre alimentou o sentimento religioso. Seja o que for que foi embora, não foi um sentimento. Terá sido, antes, uma realidade física e palpável, uma forma de autoridade, portanto uma manifestação política, que dava solidez a esse sentimento. Ainda que se possa dizer que essa solidez, de tão sólida, era sufocante. Era a autoridade espiritual que Malafaia – mas não só ele; também o papa, por exemplo – não pode mais encarnar sem problemas. Uma autoridade que sustenta, entre tantas outras coisas, o impulso científico. Ou então, que se opõe a esse impulso, quando ele resolve escapar do recipiente que lhe é destinado. Mas que jamais se submete a ele.

Ou seja, a posição subalterna em que Malafaia a coloca é estranha à religião em qualquer campo, sobretudo no comportamento, esse de que se tratou na entrevista a Marília Gabriela. A religião, e isso é particularmente verdadeiro em relação aos monoteísmos como o de Malafaia, só se sente verdadeiramente à vontade e só pode funcionar a contento quando tem condições de afirmar, sem desmentidos à altura: eu sou a fonte de todas as verdades fundamentais, seja em cosmogonia, em moral, em escatologia, até em política. Por sinal, essa condição se reflete na frase que João atribui a Jesus: “eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Há, na religião, um componente muito mais amplo do que a fé, entendida meramente como a convicção de um fiel de que sua salvação ou seu consolo passam por aquela doutrina. É difícil imaginar uma religião que não seja normativa. Poderia ir longe, de verdade, uma religião que afirmasse, em vez da sentença acima: “trago conforto aos que sofrem, contanto que não precise desdizer os cientistas, nem as cosmogonias, morais, escatologias, políticas, dogmáticas e liturgias de religiões concorrentes”? Que potência decisória teria essa religião, na hora em que um fiel precisasse aplicar a doutrina em sua vida quotidiana? Algo assim é impensável, pelo menos no quadro dos nossos monoteísmos do “Deus ciumento”, ainda que esse mesmo Deus seja considerado também amoroso e misericordioso. Afinal, a misericórdia é o atributo de quem está em posição superior, jamais subalterna.

Quando leio sobre a participação de religiosos nos debates em torno de casamento homoafetivo, aborto, eutanásia e assim por diante, sempre me vem à mente o célebre trecho de Mateus com o “a César o que é de César”. Belo preceito do cristianismo, que faz grande falta a outras religiões semelhantes. Mas muito difícil de cumprir. Tudo vai bem quando César e Deus estão, ou parecem estar, lado a lado, seja num Estado teocrático, seja a partir da crença, absolutamente majoritária até o século XVII, de que o poder do soberano emana diretamente de Deus. Em outras situações, o cumprimento é bem mais difícil, porque exige do fiel que tome atitudes que vão frontalmente de encontro a suas convicções. Ou, pelo menos, que ele aceite, e até apóie, legislação que contradiga suas crenças. Haja autonomia de pensamento para agir dessa forma! Mesmo o convívio pacífico entre religiões me parece menos a regra e mais a exceção. Depende de um certo equilíbrio de forças entre grupos de fiéis e a comunidade como um todo, algo que nem sempre se verifica…

Ouço Malafaia argumentar que a homossexualidade não é um fenômeno determinado geneticamente, mas comportamental. O determinismo do pastor é primitivo e terrivelmente perigoso, mas não está no escopo da minha hipótese criticá-lo. O biólogo citado no início já o fez. A questão, aqui, é outra. Estamos diante de um líder religioso que, ao menos implicitamente, afirma: “se ficar demonstrado que a homossexualidade é um fenômeno genético, ainda que parcialmente, então eu aceito que ela não é condenada por Deus, já que o código genético é parte da Criação”. Provavelmente isso não é verdade, quero dizer, provavelmente o pastor encontraria um jeito de manter sua condenação ainda que o determinismo genético, tal e qual, ficasse mesmo provado. Ele encontraria um jeito de dizer que a prova não é válida ou que, na verdade, era outra coisa que ele queria dizer. A rigor, ele provavelmente está mais do que ciente de que nenhum cientista sério jamais vai afirmar categoricamente que “a homossexualidade é um fenômeno determinado geneticamente”, já que um determinismo tão forte não pode existir em sistemas complexos como o psicossocial.

Mas isso não é o mais importante, e sim que tal postura, sincera ou não (e estou assumindo que ela é sincera, não vamos nos esquecer), é um atestado de que a batalha de Malafaia é, como eu disse, uma batalha perdida. Porque uma religião que aceita assumir essa posição subalterna não tem como cumprir seu papel. É inverossímil que uma religião afirme: “cremos que Deus determinou tal e tal, mas talvez não seja assim, pode ser que a ciência ou a experiência demonstrem o oposto”. Malafaia se faz o porta-voz de um grupo que, mesmo mantendo todo o misticismo que as religiões tão belamente trabalham, está disposto a subjugar seus dogmas fundamentais a evidências desencavadas pelo trabalho científico. Isso não é pouca coisa. Em outros casos, pode-se chegar a alguma forma de acomodação. Por exemplo, quanto à origem do universo, com seus quinze bilhões de anos, em vez de seis mil. Pode-se dizer que o tempo, como tal, não existe para o Ser Supremo; pode-se dizer que o texto sagrado é metafórico; pode-se mesmo dizer que o tempo tem outro ritmo no mundo espiritual. Ou então, o conflito: “isso é só uma teoria”, que é o caminho escolhido por muitos religiosos radicais com relação à evolução. O que não funciona é jogar fora a parte cosmogônica da religião e ficar só com a parte moral. Mesmo esta parte, provavelmente a mais útil, precisa de um fundamento ontológico, ou melhor, onto-teológico, a não ser no campo de uma ética puramente imanente, algo difícil de imaginar para uma religião como os nossos monoteísmos.

Contra-exemplos

Agora que já apresentei a hipótese, surgiu uma dúvida pessoal. Como seria uma postura religiosa forte neste caso? É evidente que a mais “forte”, no sentido de inabalável, seria aquela que afirmasse: “Esses estudos todos, frutos da vã razão humana, não valem de nada. Ai de ti, mortal, se te dobrares ao pecado, à tentação de um confronto racional com a Palavra!” No passado, essa postura fortíssima bastaria para satisfazer à grande maioria dos ouvintes. Mas parece não ser mais o caso, não majoritariamente. Cada vez menos os fiéis aceitam esse tipo de resposta. Eles não esperam mais da religião uma resposta inflexível, definitiva e autoritária, ao contrário do que pode parecer para quem se mantém à distância, amargamente, balançando a cabeça diante do que lhe parece ser o retorno dos bárbaros fundamentalistas. Os fatos parecem demonstrar que os bárbaros fundamentalistas, em que pese todo o barulho que são capazes de fazer, são menos comuns na religião do que no futebol, na política e, se bobear, até mesmo na ciência.

Penso em outra postura, também forte, mas não no sentido da potência impositiva, e sim no sentido do pleno gozo do poder normativo que uma religião pode ter e do qual, a bem da verdade, não pode abdicar. Lutero, por exemplo, quando jovem monge, tinha dificuldade em entender por que sua carne era tão propensa ao pecado. Ele cobiçava, invejava monges mais santos que ele, desejava mulheres, tinha uma queda pela boa alimentação que não condizia com o estoicismo monástico. Tudo isso apesar de suas orações e boas obras. Então ele desenvolveu a célebre doutrina do “sola fides, sola gratia…” O pecado estava nele para que a graça divina pudesse se manifestar de maneira mais gloriosa. Alguém que quisesse manter a condenação ao amor homoafetivo sem abdicar de sua espiritualidade monoteísta poderia seguir essa linha. Aceitaria que esse amor possa estar inscrito, ainda que parcialmente, nos genes e reproduzido nas estruturas psíquicas que as neurociências seriam capazes de ler no cérebro. Mas afirmaria, na linha de Lutero, mas também com uma pitada de Leibniz: Deus inscreveu no código mais profundo da vida um comportamento que ele mesmo condena (o mal, portanto), para que sua graça possa se manifestar, através da fé e das orações, naturalmente, naquele corpo. Uma versão católica desse argumento acrescentaria mortificações e a purificação da carne, exercícios espirituais, aconselhamento com sacerdotes e assim por diante. Mas a essência provavelmente não seria muito diversa.

Em qualquer de suas vertentes, esta é mais uma forma de solucionar o problema da teodicéia, desta vez com o recurso à genética. É, também, uma forma de acondicionar as evidências científicas ao dogma. É, ainda, uma maneira de tentar resgatar o “a César o que é de César”. É, em todo caso, uma postura muito diferente da que vemos em Malafaia. Uma espécie de meio-termo é o estranhíssimo fenômeno da “cura da homossexualidade” (ou do homossexualismo, como dizem), proposta por auto-intitulados psicólogos. É mais uma forma de se colocar no meio do caminho entre a força normativa da religião e a potência empírica das evidências científicas. Afinal, não fica claro até que ponto a cura em questão é espiritual ou propriamente psicossomática; o fato é que, se esses psicólogos se dispõem a considerar a homossexualidade como patologia, não estão falando nela como pecado, mesmo que, paralelamente, usem esse termo dentro dos templos. Ou seja, estão também aceitando que considerações racionais, científicas, ainda que integralmente equivocadas, sejam postas acima das escrituras. Mas, ora, como já vimos, pelo próprio conteúdo do conceito de sagrado ou de divino, as Escrituras, do ponto de vista do fiel, deveriam estar acima de qualquer outro argumento, de qualquer evidência. É, também, portanto, uma batalha perdida.

Como fica, então, o retorno do sentimento religioso? Continuo não sabendo. Para mim, o sentimento religioso jamais deixou de existir, enquanto entendemos que as religiões se nutrem de um sentimento que consiste em desejar ardentemente a transcendência, o infinito, o eterno, o imutável, o perfeito, o absoluto. O divino, em suma. Por outro lado, se entendemos que o que está voltando não é exatamente um sentimento, mas um fato de ordem política, um poder normativo atribuído às religiões, então me parece que posturas como a de Malafaia, dos psicólogos curadores de homossexuais e até, muitas vezes, do Vaticano – como quando, por exemplo, padres tentam argumentar que estupros não provocam gravidez, ou quando encíclicas papais insistem na interdependência estreita entre fé e razão – desmentem essa noção. Algo fundamental para o funcionamento de um tal poder parece ter se quebrado, dentro mesmo da mente dos fiéis, no comportamento daqueles que crêem. Eu diria que é a disposição para remover do caminho do dogma tudo que tenha qualquer outra fonte de legitimação. É esse campo minado que tentam atravessar os Malafaia da vida, com suas batalhas inviáveis.

Padrão
arte, barbárie, Brasil, calor, capitalismo, centro, cidade, comunicação, costumes, crônica, descoberta, desespero, doença, Ensaio, escultura, Filosofia, fotografia, imagens, jornalismo, modernidade, opinião, passeio, Politica, praça, primavera, prosa, reflexão, São Paulo, tempo, trabalho, transcendência, trânsito, vida

O pedestal

Este é alguém que fabricou para si um pedestal. É alguém que, na gramática usual, não pode grande coisa. É o estereótipo do impotente. No dia-a-dia, precisa fabricar ou garimpar tudo que usa, mas seus poderes terminam aí. E um pedestal não é algo que se use, simplesmente. Continuar lendo

Padrão
arte, música, transcendência, vida

Enquanto vou fechando: Nina Simone

Eu queria escrever uma postagem dedicada a ela.

Sobre como sua voz me perturba, tão suja e tão precisa ao mesmo tempo, e não permite uma audição desleixada.

Sobre como seu rosto impassível, duro, forte, corresponde à potência de seu fôlego, mas esconde o esforço. E como isso me perturba.

Sobre o porte altivo que freqüentemente desliza para a superioridade — e é melhor quando desliza.

Volto a Nina Simonde sempre que algo está desalinhado. Sempre há algo desalinhado.

Na falta de tempo e energia, em vez de um texto dedicado a Nina Simone, é melhor postar simplesmente Nina Simone.

Padrão