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Oliver Sacks de 5 a 7

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Terminei de ler Oliver Sacks sobre a descoberta da morte batendo à porta e me pus imediatamente a pensar em Agnès Varda. Mais especificamente, um de seus primeiros filmes, Cléo de 5 à 7, de 1962, em que acompanhamos durante duas horas (das cinco às sete, justamente) uma jovem cantora que espera o resultado de um exame; ela tem certeza de que ele virá com a notícia do câncer incurável.

Oliver Sacks é um cientista de 81 anos, com um passado cheio de realizações. Mesmo assim, seu relato altivo e elegante me remeteu a Varda e Cléo. É que ambos tocam no mesmo ponto; um ponto que nos atinge a todos, constantemente, mesmo quando não estamos, nem acreditamos estar para morrer. O filme pode servir para iluminar o que há de mais intenso no breve artigo de Sacks. Graças às sequências filmadas décadas atrás, o texto publicado semana passada ganha uma dimensão ainda mais ampla e uma beleza ainda mais vívida.

Na ficção de Varda como na confidência de Sacks, temos a ocasião de vislumbrar uma nesga da imensidão inerente à vida, tanto maior quanto mais temos a experiência e, claro, a ciência da finitude individual. E aqui devo confessar que esse tema andava mesmo rondando a minha cabeça, tendo revisto há poucos dias o filme de Varda. Posso dizer que, a rigor, estou me aproveitando da metástase de Oliver Sacks, o que à primeira vista pareceria uma atitude vil, mas lembre-se que um dos componentes dessa imensidão, aliás dessa tendência ao infinito, é a possibilidade de fazer na vida coisas aproveitarão a outrem.

Sacks cita Hume sobre a proximidade da morte e a vontade de viver: nunca tanta disposição física, tanta curiosidade para os estudos quanto agora, bem pertinho do fim. Uma estranha liberdade, como se a certeza eliminasse a angústia do outro mundo. Junto com ela, Sacks fala de uma estranha capacidade para enxergar a vida passada como uma totalidade, vê-la como nunca foi vista antes, do alto, coerente e completa. Surpreendente serenidade perante o inevitável, que advém quando ele deixa de ser uma especulação existencial e se torna uma data no calendário.

Agnes Varda

Varda não é cientista, não faz citações (não nesse sentido). Ela é artista, faz imagens. Aliás, outro traço que deveria separá-los, mas estranhamente os une, é que, embora ela seja mais velha que ele (tem 86 anos), quando fez o filme contava 34 primaveras. Como eu disse, é um tema universal e ininterrupto. Aos olhos do velho cientista ou da jovem artista, finitude e eternidade, finitude perante a eternidade, finitude ensejando eternidade. Talvez só mesmo diante da morte os finitos reconheçam que são eternos, e eternos só porque são finitos.

Voltando às imagens: sem precisar dizer nada abertamente, o que seria de uma cafonice atroz (tem um ou outro momento assim, a bem dizer), as seqüências do filme expõem com serenidade a dilatação dos sentidos que dão movimento à vida, no instante em que a doença parece sugerir que a vida se resume à unidade frágil do corpo. No táxi, vemos as ruas de Paris que se sucedem diante do pára-brisas (num tempo em que a faixa de pedestres era marcada por semi-esferas de metal que pareciam cascos de tartaruga), enquanto a motorista ouve rádio e as passageiras (a cantora e sua camareira) fazem silêncio.

Como as ruas, as notícias se sucedem. A guerra na Argélia. As declarações de um ministro. Dois ou três faits divers. O cenário perfeito para o enfado. Mas junto com a sucessão de prédios e pequenos engarrafamentos, acompanhando a voz monótona do radialista, segue a personagem, em quem não consigo deixar de ver uma conexão, embora difusa, com tudo que aparece e tudo que é dito. Nem que seja pelo enfado, por uma reação de defesa, um bloqueio. Sem que ela soubesse, tudo aquilo sempre a afetou, como afeta a todos nós.

É claro, são afecções muito diferentes daquelas que povoam o dia-a-dia de qualquer um. Ainda assim, são inextirpáveis delas, porque o que as produz é o dia-a-dia levado ao limite, ao extremo. Se uma briga de casal na mesa vizinha do bar sempre parece algo constrangedor e muitas vezes mesquinho, como parecerá a alguém em conflito com o destino do próprio corpo? E como será para essa jovem mulher com dinheiro, já retratada como consumista e vaidosa, atravessar a cotoveladas um bulevar apinhado de lojas, em que todos os demais se dedicam à atividade do eterno consumo de objetos fugazes – fugazes como a moda que os criou? Um bulevar que ela mesmo deve ter atravessado tantas vezes a passo lento, saboreando as cores, as luzes, os chamados quase convincentes dos vendedores?

A realidade da duração eclode a cada seqüência de Cléo, com seus intervalos rigidamente e cronologicamente marcados. Uma duração que é sempre indefinida, porque remete tanto a memórias e marcas quanto a perspectivas e aspirações, mas em todo caso sempre envolve a percepção, a ação, o desejo da cantora angustiada. Nas suas relações, nas suas escolhas, nos seus caprichos, ela está sempre além das próprias fronteiras porque as partes de sua vida e de seu ser aparecem, se iluminam, pelo contato com o que está fora dela; e é aí mesmo que essas parcelas de realidade aparecem e se iluminam também, junto com ela.

A tal ponto que ela pode chegar a esquecer o que a angustia: porque apaixonou-se por um chapéu, porque um compositor lhe apresentou uma canção adorável, porque uma amiga a levou para o cinema. A visita ao ateliê em que essa amiga trabalha como modelo para escultores, onde o professor corrige com certa impaciência um aluno que não soube representar a curva do quadril. Ela esquece, mas o espectador não. E é no alívio do breve esquecimento, da alegria que sabemos fugaz, que se produz a beleza da narrativa de Varda e, com ela, um sabor a mais na vida como um todo.

É também pelo concurso de estímulos externos que retorna a lembrança do medo, da angústia, do diagnóstico. O chapéu preto, que lhe “cai muito bem”, juízo pronunciado em voz grave. Uma piada do músico que a faz sufocar no próprio apartamento e descambar rua afora. Um galanteador que, inadvertidamente, menciona o início do período de Câncer. Em cada um desses episódios, o alcance da vitalidade de Cléo se contrai novamente, a finitude deixa de ser a janela para um infinito virtual. A duração esmorece e o tempo volta a ser cronológico, uma prisão de sucessões que sufoca a personagem mais do que a angustia.

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Se pudermos fazer do filme de Agnès Varda um pano de fundo para como Oliver Sacks se refere a seu próprio “5 a 7”, o estoicismo do cientista talvez apareça sob uma nova luz, eu diria até que mais intensa. Tem algo a mais do que o mero “cabe a mim agora escolher como viver os meses que me restam; devo viver da maneira mais rica, profunda e produtiva que puder”, que ele diz. Isolado do resto do texto e sem o pano de fundo desse vínculo estreito entre finitude e eternidade, entre duração e tempo, esse trecho seria quase um truísmo – e bastante sintomático da mentalidade contemporânea, com sua ênfase na produtividade. (Note-se que em sua enumeração ele não inclui “compensadora”, “agradável”, “satisfatória”, “alegre”…)

O que tem a mais está adiante: a sensação de estar vivo “intensamente”, que também pode ser traduzido como “intensivamente”, se pensarmos no caráter de contração da finitude e de expansão da virtualidade: é alguém que vê o prazo (cronológico) curto para esticar os braços rumo a um mundo que não tem motivo para limitar-se, e quer esticar seus braços como se fosse um polvo e suas cabeças como se fosse uma Hidra. Cada vez menos cronologia, cada vez mais duração…

Como a passageira do táxi em sua ambígua relação com o noticiário, Sacks também se posiciona, mas intencionalmente, sobre o mundo com seu noticiário e suas politicagens. Diz que não vai mais prestar atenção no que ocorre no Oriente Médio e nos argumentos sobre aquecimento global, não porque tenha tenha deixado de se importar, mas porque essas coisas pertencem a um futuro do qual ele não fará parte. Sacks decidiu manusear a topologia do seu mundo, escolhendo ele mesmo seu formato e seu alcance. Uma eventual questão sobre a viabilidade dessa decisão é estéril, porque o mero gesto de aceitar ou recusar dimensões do mundo é uma expressão de duração, dessa eternidade inerente à finitude.

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Quando Sacks, na esteira de Hume, fala em desprendimento (termo com o qual estou traduzindo insatisfatoriamente “detachment”), ele transmite a idéia de que está deixando um legado e que, quando encontra jovens inteligentes, sente que “o futuro está em boas mãos”. Ele expressa com uma clarividência notável a noção de que sua própria individualidade, sua subjetividade, se podemos dizer assim, está tanto ou mais fora dele (de seu corpo, quero dizer) quanto dentro; ele, enquanto sujeito de um mundo, enquanto alguém que vive – pensa, sente, ama, deseja –, na verdade não é um corpo no espaço, embora sempre atravesse esse espaço do corpo. E seu tempo, naturalmente. Mas se seu tempo terminará certamente, sua duração não necessariamente. Existirá ainda uma porção de subjetividade dele na subjetividade dos outros, nas mãos do porvir, da dita posteridade.

Da mesma maneira, quando ele diz sentir que as mortes dos outros, na sua geração que “está de saída”, são como a perda de uma parte dele mesmo, poderia com até mais razão dizer o oposto: a morte dos outros deixa subsistir desses outros apenas aquilo que eles gravaram e deixaram em nós, nos demais, no mundo. O que não passou pelo outro é o que some.

Ou seja, quando Sacks escreve que os mortos deixam buracos que não podem ser preenchidos, na verdade ele está expressando o oposto: os buracos são seus próprios preenchimentos. Eles têm positividade, subsistência, talvez até mesmo existência. São presenças na forma de marcas, reminiscências, influências, sempre a postos para serem revividas quando alguém as busca e recupera. Essa é a natureza da singularidade absoluta que Sacks expressa ao fim do texto: a singularidade de uma duração, de uma intensividade, de um bailado eterno com o virtual.

Para concluir, volto a Cléo em Paris. Mas antes, um último comentário sobre Sacks. Como é lindo lê-lo a dizer que teve, como escritor e leitor, um “intercourse” especial com o mundo. Termo muito bem escolhido, porque expressa tão maravilhosamente o que pode ser a comunicação como gesto autopoiético e relacional que é usado para se referir ao sexo. Sacks está dizendo que sua relação com o mundo – ou seja, com a vida – foi, para todos os efeitos, carnal. Uma relação de tesão pelo mundo, à qual o mundo responde com tesão. E quando as relações envolvem tesão, elas tendem a criar algo a mais do que os indivíduos que entram nelas. Sacks deixa isso bem claro ao falar de si próprio.

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Agora sim, tenho todos os elementos para concluir com o filme de Varda. O que se pode afirmar, com leveza e alegria, é que a personagem é muito maior, mais viva, mais bela, mais forte, infinitamente mais interessante, ao final de sua jornada do que no início. As duas horas representadas pela cineasta são sem dúvida o principal intervalo da existência de Cléo, o período que mais valeu a pena ou melhor, as penas de caminhar sobre esta Terra.

Em que pese uma escorregada no romantismo barato ao final do filme (uma pena, mesmo…), essa súbita expansão da vida de Cléo perante a morte é resumida na primeira cena, que me parece ser um dos inícios de filme mais brilhantes da história do cinema. Na sala da cartomante, com a câmera fixa acima das mãos das personagens, contemplamos como, em dois minutos, aquilo que parecia ser a consulta de uma menina tola e sonhadora, querendo saber seu futuro amoroso, se transforma no percurso épico de uma mulher angustiada e torturada. É uma reviravolta brutal, executada magistralmente por uma cineasta então ainda iniciante.

Cléo teve de encarar de frente um tempo que lhe parecia curto para aceder à duração. Precisou que fosse rompido seu contato com as coisas do mundo para que o mundo fizesse enfim sentido para ela, tanto em seus objetos quanto em suas relações. Diante dos olhos do espectador, uma pessoa é puxada para além do imediato, esse que é fonte de tantas frustrações, sobretudo à medida que o tempo vai se esvaindo sem avisar.

Oliver Sacks, naturalmente, nunca foi alguém do mero imediato ou do eterno consumo do mesmo. Mas é notável como uma situação semelhante à da personagem de Varda foi o que o incentivou a expressar para o mundo, na imprensa, esse encontro com sua própria duração, no bailado entre finitude e eternidade. Não é por acaso que o texto deixou tanta gente tocada.

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Brasil, crônica, escândalo, ironia, lula, opinião, Politica, reflexão

O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

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arte, Brasil, direita, esquerda, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Informação e ânimos exaltados

Todos+os+homens+do+presidente+capa
Muito interessantes, as reações que causou o último texto. Em primeiro lugar, nunca tive tantas visitas, o que é algo a comemorar; por outro lado, o fato de que uma boa parte dessas visitas tenha chegado através do webmail do Ministério Público Federal de vários Estados é bem preocupante. Em segundo lugar, meu comentário (que se queria frio) sobre a baixa qualidade da reportagem produzida no Brasil, com um breve sumário de algumas de suas possíveis razões, foi recebido quase como um manifesto revolucionário. Parece que tocar no nome da revista Veja suscita paixões intempestivas nas pessoas. O quadro é mais ou menos assim: de um lado, há os que sorvem aquelas páginas coalhadas de adjetivos depreciativos como se fosse o néctar do Olimpo. De outro, há toda uma multidão de ex-leitores que só esperam a oportunidade para empastelar o carro-chefe dos Civita.

Houve gente que, comentando minha análise, falou em derrubada de ditaduras, o que me pareceu um tanto fora do contexto, mas, enfim, ninguém é obrigado a ler os textos que comenta. Ao mesmo tempo, alguns leitores aproveitaram a oportunidade para descarregar, numa enxurrada de palavrões, toda a raiva contida contra a revista. Aliás, agradeço aos que tiveram a discrição de fazê-lo por e-mail, em vez de baixar o nível na minha caixa de comentários. Aos demais, lamento não ter podido aprovar suas intervenções, e peço que as reescrevam em tom menos agressivo. A propósito, também seria adequado se aqueles que se irritaram com o que lhes pareceu uma ofensa à sua revista preferida se abstivessem de cumprir a promessa de atentar contra a integridade física do ofensor. O tempo de preparar a vingança seria melhor empregado na releitura do texto, com a cabeça mais fria.

Curiosamente, os comentários sobre o próprio Nassif foram parcos. Sobre seu trabalho de reportagem, quase nulos. A maior parte preferiu desviar o foco para seu caráter: para uns, um semi-deus. Para outros, um sujeitinho anti-ético, como mostraram as acusações de Diogo Mainardi (explicaram-me, mais tarde, que as tais acusações são, na verdade, um parágrafo de uma coluna na própria Veja, em que Mainardi insinua, sem afirmar peremptoriamente, que Nassif teria, quem sabe, sido favorecido pelo governo). Cá entre nós, não tenho a menor idéia do padrão ético do jornalista; jamais colocaria a mão no fogo por ele. Achava suas crônicas da Folha, enviadas sempre com atraso, terrivelmente sem graça. Também sou da opinião de que alguém que conhece a música de Danilo Brito não pode apreciar a técnica de Nassif ao bandolim. Mas repito o conteúdo do último texto: o trabalho de reportagem que ele vem fazendo nas suas catilinárias anti-Veja é de primeira qualidade, e todo esse debate ganharia muito se o outro lado se propusesse a agir da mesma forma.

Certos comentários causaram reflexões que quero compartilhar. Antes de mais nada, preciso esclarecer um ponto fundamental. Um esperto homem de Marketing afirmará, sem dúvida, que os sentimentos suscitados por Veja depõem a seu favor. Mantêm a marca em evidência; são, no fundo, uma publicidade gratuita; podem até aumentar a circulação e fortalecem a posição do veículo como porta-voz das idéias de uma parcela da sociedade. Mas eu discordo inteiramente. Para mim, o irracionalismo que cerca a avaliação que o público tem de Veja é um indício de que ela não cumpre sua função como imprensa. Jornais e revistas não são feitos para serem amados e odiados. São feitos para serem respeitados e lidos. Sei que não é assim no Brasil, terra de Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues e Carlos Lacerda, mas em sociedades minimamente organizadas, respeito e leitores não se conquistam com sentimentos animalescos como os que Veja suscita, e sim com credibilidade. Credibilidade, um conceito que deveria ser fundamental na imprensa, mas que vou deixar para discutir mais adiante.

Agora, prefiro comentar um pedaço do aparte de meu amigo Leonardo: a Veja, segundo ele, deixou de ser um veículo de informação para ser um veículo de opinião. No entendimento de Leo, pelo que me pareceu, há aí dois erros: deixar de ser um veículo de informação e passar a ser um veículo de opinião. Se for isso mesmo, discordo. Para mim, só há um erro nessa frase, que é deixar de informar. Ser um veículo de opinião não é crime nenhum. Todos os grandes jornais do mundo são fortemente opinativos e deixam suas opiniões bem claras. O melhor exemplo é o da revista britânica The Economist. Sua posição é bem simples: a favor do liberalismo econômico e fim de papo. A Fox News é uma rede de televisão francamente favorável ao governo Bush, e isso não foi problema algum até o momento em que ficou claro que ela manipulava informações para isso. O New York Times nunca escondeu sua preferência pelo Partido Democrata. O Última Hora, de Samuel Wainer (cuja autobiografia merece um texto à parte), jamais escondeu sua linha getulista. A Carta Capital, quando das eleições de 2002, colocou-se, em editorial, claramente favorável a Lula. Quem, na França, não sabe que o Le Figaro é o jornal da direita tradicional, o Le Monde, da direita moderna, também conhecida como centro, e o Libération, um jornal francamente de esquerda? Tem também o famoso La Croix, que jamais precisou esconder o fato patente de que pertence à Igreja Católica.

A opinião está longe de ser proibida aos veículos de imprensa; aliás, muito pelo contrário. Redação nenhuma é habitada por almas cândidas, incapazes de parcialidade. No entanto, o trotskista mais ferrenho não cometerá a sandice de afirmar que a The Economist só tem “mentiras”. Será tomado por louco varrido, mesmo entre seus colegas, se o fizer. Mesmo um leitor republicano, um verdadeiro neocon, poderá ler o NYT sem medo de encontrar inverdades publicadas ali por motivos políticos. Quando um jornalista foi flagrado inventando matérias no jornal, e o assunto nem era política, foi sumariamente demitido. Mas o mais importante é que a edição seguinte do jornal continha um enorme mea culpa. Por que esse ato de contrição tão reforçado? Porque a pior coisa que poderia acontecer ao jornal seria perder sua credibilidade.

E, pronto, eis-nos de novo nela. A tal credibilidade. O trotskista respeita a The Economist porque sabe que o jornalismo feito ali é sério, ele o vê nas matérias. Sabe quais são as fontes, sabe quais são os documentos, tem acesso à redação. O republicano respeita o NYT pelo mesmo motivo. Aqui na França, jamais escutei de alguém de direita a frase: “Ah, deu no Libé [ou no Nouvel Observateur, por outra]? Então é mentira, eles são de esquerda!” Nem ouvi a proposição inversa da boca de um esquerdista, dispensando algo que tenha saído no Figaro. É como se isso só existisse no Brasil.

Falando em Brasil, uma pergunta: que veículo em nosso país pode reclamar o título de credível? Penso, penso, penso, não encontro nenhum. A Veja está na berlinda por causa dos artigos de Nassif e por ser a revista de maior circulação. Mas, por exemplo, poderiam ser as Organizações Globo, condenadas pelo próprio passado. Tomando uma Veja entre as mãos, nunca sei se algo que esteja escrito ali é verdadeiro ou falso. Já houve casos em que a falsidade era evidente. Certa vez, topei com um diagrama que não citava, nem naquelas letras minúsculas que ninguém lê, qual foi o instituto que cedeu os dados. Se a incerteza pode chegar a esse ponto, como posso dar crédito a todo o resto? A dúvida paira sobre a totalidade do que está publicado na revista. O resultado é que mesmo os dados que eventualmente forem verdadeiros, e a grande maioria o é (pelo menos, espero que seja), recebem o selo amargo da desconfiança. É por isso que as pessoas de bom senso que conheço estão gradualmente abandonando a imprensa brasileira. É por isso que as empresas andam às voltas com problemas financeiros gravíssimos. É por isso que os melhores jornalistas migram para a internet em páginas pessoais. E seria muito pior, se o Brasil tivesse um público leitor que soubesse exigir credibilidade.

Para terminar, uma palavra sobre o conceito de “denúncia”. Quem acha que o jornalismo brasileiro, do qual Veja é um dos maiores expoentes, faz maravilhosas denúncias (sobretudo contra o governo) deveria buscar um livro chamado Todos os homens do presidente, de Bob Woodward e Carl Bernstein. Aos cultos, desculpe citar uma obviedade. Aos preguiçosos, não desanimem: há um filme homônimo, com Robert Redford e Dustin Hoffman. Eis ali um verdadeiro trabalho de reportagem investigativa que resultou, de fato, na derrubada de um presidente, graças à qualidade técnica com que foi realizada. Assim como acontece no Brasil, uma fonte interna deu a dica do caminho a seguir. Mas, ao contrário de nosso procedimento tupiniquim, em vez de botar a boca no trombone com o famoso “fontes ligadas ao palácio afirmam que…”, os dois americanos se enfiaram nos dados, nas conexões, nas entrevistas e nos telefonemas. Foram apoiados pelo editor-executivo, o célebre Ben Bradlee, apesar de todas as pressões que se podem imaginar. O que conseguiram, graças a um trabalho sério que mal conseguimos compreender no Brasil, foi mudar a história dos Estados Unidos. Sem precisar de piadinhas infames.

Paro por aqui, porque o texto está enorme. Espero ter deixado claro o que ficou obscuro no primeiro texto. Concordo com quem diz que a imprensa tem um papel de vigiar o poder, e acho impressionante como tanta gente esquece que existe uma maneira de fazer isso, e essa maneira se chama “jornalismo”. Não é de hoje que nossos veículos de comunicação deixaram para lá esse pequeno detalhe quando decidem bater no governo. Há muita gente que gostaria, por exemplo, de ver Lula sofrer um processo de impeachment, e se escandalizam porque os ataques da imprensa não conseguem derrubá-lo. Pois eu lanço aqui um balão de ensaio: certamente existem fatos e dados suficientes para justificar que o presidente seja afastado do cargo. Certamente esses fatos e dados estão acessíveis à imprensa. Concluindo: se a imprensa quiser, de fato, tirar Lula do poder, ela tem plena capacidade de fazê-lo. E lá vai a pergunta capital: por que os ataques ao presidente ficam só na retórica e não lançam mão de suas verdadeiras armas?

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Os bombons de quarta-feira

Belas+pernas+de+bailarina
Na primeira, primeiríssima vez, você já acertou. Com louvor. Trouxe bombons pra mim, justamente dos que mais gosto. Logo concluí que deveria te segurar de todo jeito. Virou minha meta e minha fixação. Enquanto viessem os bombons, eu não veria motivo pra sugerir um divórcio, insinuar uma gravidez, ter crises de ciúme. Os bombons foram seu salvo-conduto.

A semana inteira, eu esperava as quartas-feiras, em que soaria o interfone esganiçado e você subiria. Você, seu terno riscado e minha caixa de bombons. Eu atravessava a sala aos pinotes, abria a porta e pulava no seu pescoço. Eu gargalhava. Você só fazia charme. Sorria com o canto da boca. Eu ficava ansiosa e deixava aflorar meu lado cocote, normalmente tão bem escondido. Então, eu arrancava o pacote que você trazia debaixo do braço, rasgava o papel e me atirava no sofá.

Você vinha lentamente, tirando o paletó, enquanto eu enfiava os dentes no recheio. Era doce, escorria pelos lábios. Eu fazia biquinho pra parecer sexy. Quando sentia o gosto do licor, sacudia a cabeça como uma idiotinha. Até que você chegava, quente e descontrolado. Pronto, eu te abraçava com minhas pernas firmes, minhas pernas de bailarina (meu orgulho particular, você sabe).

Se você sufocasse, azar. Mas nunca aconteceu. Meus músculos te apertavam e prendiam durante horas. Até você admitir que não agüentava mais, dizendo que era hora de ir embora. Um beijo de despedida, um banho quente. De roupão, eu me largava na frente da TV com o que sobrava dos bombons. Eles não duravam mais do que uma noite. E eu ficava pensando que você deveria vir mais vezes.

Sim, descontrolada, sim, sim. Fiquei nervosa e irritada quando você veio apenas com o terno riscado, sem pacote debaixo do braço. A doceria fechou, você disse, como se fosse uma fatalidade e eu tivesse de me conformar. Pois sim. A doceria fechou e você não procurou outra, nem outra marca de bombons, nem outro sabor. Você não quis se dar a um pequeno trabalho por alguém que fez tanto sacrifício por você. Não trouxe nada, mas queria levar tudo.

Você se desculpou. Mas na mesma hora eu entendi o que você queria dizer. Entendi que você tinha feito sua escolha, e não nego sua razão. Já passei por isso. Sou cascuda, aprendi a levar foras com dignidade. Mas se te digo que sentirei mais saudades dos bombons que de você, não leve a mal. É um exagero. Uma flecha lançada contra o seu amor-próprio. Coisa de menininha.

Você nega que a decisão esteja tomada. Seu mentiroso. Eu disse que não precisava voltar sem presentinho. Sem presentinho, você não voltou, mesmo. Assim seja. Será que você não percebia que meus pinotes e risadinhas eram jogo de cena feminino? Agora, pode deixar. Eu compro meus próprios bombons, quando tiver vontade.

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