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Imagens que não fizeram história (1): Nuremberg

Pense numa imagem – uma fotografia, digamos – poderosa, que prende o olhar, provoca emoções fortes, fica marcada na lembrança. De onde vem esse poder? Pode vir de muitas origens diferentes: o enquadramento, a composição, o tema, a iluminação, as cores, as personagens. Mas será que uma imagem em que nenhum desses fatores é particularmente notável pode ter seu poder também? Uma imagem pode ser completamente desprovida de força quando olhada da primeira vez, e só depois, quando encarada com calma, explodir de alguma maneira? Não haveria momentos em que o que há de mais poderoso numa imagem não resulta do que está ali, ou melhor, do que o fotógrafo quis colocar ali, mas de um rastro involuntário, de uma referência implícita, daquilo que falta ao enquadrado, ao visível, ao captado? Imagens que, por si só, não fazem história podem ser históricas à sua própria maneira?

Por exemplo:

tribunal de nuremberg

É fácil perceber que a fotografia aí em cima precisou de um tempo de exposição considerável para ser tirada. Sem poder recorrer a equipamento de iluminação e possivelmente também sem acesso ao filme mais adequado (ou talvez na época o filme a cores ainda não viesse em grãos muito grandes), o fotógrafo teve que abusar do intervalo de abertura para não deixar metade do tribunal fora de foco ou nas trevas.

Mas quanto tempo o obturador ficou aberto, exatamente?

Um chute: só duas pessoas se locomovem na imagem. Ao fundo, perto da porta, alguém que parece ser um intérprete, dá um único passo à frente. À direita, alguém apressado, talvez um mensageiro, imagino que um soldado da Polícia do Exército (Military Police), dá o que parecem ser quatro passos. Fiz o teste em casa e concluí que dificilmente alguém dá quatro passos em menos de [quase] dois segundos.

É um tempo de exposição notável e, a julgar pelo fato de que as lâmpadas, ao fundo, não estão com a luz estourada, posso imaginar que a iluminação não era das mais fortes – algo pouco surpreendente, para padrões europeus. Além disso, a atmosfera de penumbra combina com o espírito geral do momento.

São, pois, quase dois segundos. Esse intervalo está condensado no imediato da forma, mas sem a menor intenção estilística. O autor está documentando um julgamento. Não está “investigando” nada. Não é um artista que pretende épater le bourgeois e, para isso, sintetiza os microssegundos de movimentos, meros gestos, daquele punhado de gente dentro de uma sala, espalhando-os sobre as dimensões do enquadramento. Suas escolhas não são estéticas, seu formalismo é técnico e nada mais.

Mesmo assim, é o tempo de exposição, invisível ao olhar desatento, mas discretamente presente, que provê a ocasião para que a imagem seja expressiva. Graças à evidência de um corpo apressado que se desloca, um indivíduo que dá um passo, um punhado de folhas viradas, abaixo, na mesa ao centro, temos a oportunidade de experimentar um breve momento do tribunal de Nuremberg, em 1945 ou 1946.

Nem precisamos saber quem é o réu nessa sessão específica, nem qual o crime de guerra, nem o veredito. Só precisamos nos perguntar: o que se moveu durante esse quase par de segundos em que o obturador esteve aberto, para que uma chapa recebesse a luz de uma sala de mobília escura? Já não é mais questão do intérprete, do mensageiro ou dos autos folheados: quais são os gestos flagrados?

Tentei contar, na sala toda abarcada pela lente e apinhada de figuras sisudas, os rostos que saíram borrados. Só encontrei três. Um homem de uniforme militar, aparentemente nazista, na extrema direita. Deve ser réu, o que explicaria o que parecem ser movimentos laterais da cabeça. Um pouco abaixo dele, um homem parece coçar a testa ou limpar o suor, gesto parecido ao que faz a moça de cabelos negros na mesa do primeiro plano.

De resto, nas centenas de presentes, não encontrei lábios tremidos, ou olhos, ou mãos. Alguém fala, em algum lugar, e não podemos ver. Vemos apenas aqueles que escutam, silenciosos, imóveis, sisudos. Ninguém deixa o registro, na chapa do fotógrafo, de um comentário, um bocejo, um estalar de dedos, um coçar da nuca. No máximo, dois ou três homens com a cabeça apoiada na mão.

O que eles ouvem? Um relato do holocausto? As atrocidades das tropas SS? A sentença de morte de algum nazista? Isso, a imagem não diz. O que diz é outra coisa: a tensão dos lábios, a fixidez dos corpos, algo como um sabor travado de quem é confrontado com o indizível, o inacreditável, o inaceitável – mas como fato consumado. Tudo isso graças à baixa iluminação. À primeira vista, esta é um registro de tribunal. Olhando com mais calma, é uma imagem, em todos os muitos sentidos dessa palavra, do tribunal de Nuremberg.

*     *     *

PS: Os réus que aparecem nesta foto – no centro, à direita, fundo da sala – são Hermann Goering (à esquerda, de óculos escuros), Rudolf Hess, Joachim von Ribbentrop, Wilhelm Keitel (o único que está mexendo o rosto) e Ernst Kaltenbrunner. A foto é de 1946. Exceto Hess, que cumpriu pena de prisão perpétua na cadeia de Spandau, todos os demais foram condenados à morte. Goering suicidou-se antes que a sentença pudesse ser cumprida.

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Homenagem pessoal a Doug Williams

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Este texto foi publicado originalmente no Facebook, mas como a fugacidade daquele ambiente controlado e sufocante de “rede social” me exaspera, acho que vale transferir para cá. Afinal, trata daquele que provavelmente foi o primeiro ídolo que tive na vida.

Eis a história: falou-se muito de futebol americano na última semana, com as finais da AFC e da NFC – que não acompanhei, porque há muito perdi o interesse por esse esporte. Mas esse interesse todo acabou voltando de supetão, mais ou menos como as memórias do herói de Proust, quando surgiu a questão dos quarterbacks negros. Essa insuspeitada madeleine me trouxe imediatamente à mente a figura de Doug Williams, com sua história fabulosa que, certo dia, me levou das lágrimas incontroláveis – ora bolas, eu tinha seis anos – aos pinotes descontrolados. Tudo isso em pouco mais de uma hora.

Pois bem: Doug Williams foi o primeiro quarterback negro a chegar ao Super Bowl. E com dezoito jogadas instalou-se definitivamente na mitologia do “football”.

Sobre o Jogo

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Era janeiro de 1988 e o Super Bowl XXII (fechando a temporada de 1987) seria disputado em San Diego entre dois times formidáveis. De um lado, o Denver Broncos, que tinha perdido o SB do ano anterior para o New York Giants e vinha com sangue nos olhos. Por sinal, talvez os Broncos sejam o maior vice-campeão da história do SB (não verifiquei, estou chutando), deixando o time de Eurico Miranda para trás no ranking de maiores vices do mundo (num desconfortável segundo lugar, o que não deixa de ser um estranho paradoxo: segundo dentre os segundos…).

Ainda assim, como eu disse, era um time formidável. Alguns de seus jogadores tinham batido recordes na temporada, como os wide receivers Ricky Nattiel e Vance Johnson e o Running Back Gene Lang. Comandada por Joe Collier, a defesa daquele time era chamada de “Orange Crush” e se especializava em mandar quarterbacks para o chão.

Mas a jóia da coroa era mesmo o quarterback: o extraordinário John Elway, protótipo do “redneck dixie buck”, marrento e esnobe como tantos outros gênios do esporte (e vilões de Hollywood… Ele fazia pensar um pouco no Val Kilmer de Top Gun, aliás).

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Do outro lado, o time do Washington Redskins, comandado por um verdadeiro gênio, o técnico Joe Gibbs, que triunfou em nada menos que três Super Bowls – até hoje, os Redskins só ganharam com ele. A lenda Art Monk, o rolo compressor, o encouraçado vivo, provavelmente até hoje o maior wide receiver da história do esporte, estava em má fase (e nesse SB, de fato, mal apareceu).

E uma curiosidade: Monk é primo de terceiro grau de outro grande gênio, o pianista Thelonious Monk.

Art Monk

Mas alguns jovens promissores tinham mostrado seu valor ao longo da temporada: Gary Clark, Ricky Sanders, Kelvin Bryant.

O grande problema estava justamente na posição de quarterback. Não muito satisfeito com Jay Schroeder, jogador de enorme qualidade, mas incapaz de inspirar um time à vitória, sobretudo em momentos difíceis, Gibbs tentava preparar seu reserva para substituí-lo, pouco a pouco. Tratava-se de um jogador mais experiente, mas que não tinha conseguido se firmar e enfrentava o nariz torcido para QBs negros, considerados “intelectualmente insuficientes” para a função.

Esse era Doug Williams, vindo de uma carreira meio apagada no Tampa Bay e esperando sua vez em Washington.

Para resumir: de um lado, a fina flor dos WASP no esporte. Do outro, um pobre-diabo nascido na Louisiana dos anos 50 (o pré-jogo da CBS mostrou o casebre em que ele nasceu, mas não consegui mais achar esse video no Youtube. Sorte que tenho em DVD.)

O Gesto de Schroeder

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Sem espaço – Schroeder não deixaria nunca alguém lhe tomar o lugar –, Williams quase foi transferido no início da temporada para os Oakland Raiders [naquele tempo, na verdade, sediados em Los Angeles]. Mas quis o destino que o jogador tivesse coisas melhores a fazer na Califórnia… Gibbs precisava de um reserva que fosse bom e melou a transação. O jogador ficou decepcionado, pensando que ficaria no banco para sempre. Teve de engolir a decepção.

Sobretudo porque, no início da temporada de 1987, Williams ainda remoía um episódio humilhante do ano anterior, quando, no meio de uma terrível derrota, Schroeder se machucou e seu reserva imediato se preparou para entrar em campo. Vendo a aproximação do QB negro, Schroeder (outro típico WASP) simplesmente o dispensou com um gesto de mão. (A cena aparece nos vídeos abaixo.)

Mas esse gesto, ah, esse gesto, seria tão significativo quanto a cusparada na bola entoada por Nelson Rodrigues em uma de suas crônicas…

Ainda insatisfeito com Schroeder, Gibbs resolveu tentar com Williams. E seu desempenho foi bom. Nada de mais: só bom. Bom o suficiente para se tornar o primeiro QB negro a jogar um Super Bowl.

Nas entrevistas, ao longo da semana que anteceu a partida, todas as perguntas da mídia diziam a respeito à cor da sua pele, a ponto de deixar o QB irritado. A clássica não poderia faltar: “How long have you been a black quarterback?” E ele respondeu: “desde que me saí do esporte universitário. Até então, eu era só o quarterback de Grambling State.”

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John Elway

O primeiro lance em San Diego é um desastre para os Skins: os Broncos tomam a bola depois de um erro deplorável. No lance seguinte, John Elway, com toda sua marra e genialidade, faz “apenas” este lançamento:

Primeiro recorde batido nesse jogo: o touchdown mais rápido da história dos Super Bowls. No lance seguinte, mais um recorde: Elway foi o primeiro QB a receber um lançamento no SB.

Ao longo de todo o primeiro quarter, o massacre é patente e inquestionável. Os Redskins não conseguem completar nenhuma jogada. Nada. Nenhuma. O “Orange Crush” passeia sobre o ataque de D.C.

Ao final, os Broncos ainda fazem um field goal – 10 a 0.

Nunca algum time tinha virado um placar tão adverso desde que as conferências passaram a se enfrentar, 22 anos antes.

Um Joelho e a História

Pra tornar o quadro ainda mais trágico, no meio do primeiro quarter, Doug Williams recebeu uma bola, escorregou e torceu o joelho. Na confusão, os juízes tiveram dificuldade em decidir com que time a bola tinha ficado. Decidiram por Washington, mantendo o time vivo, embora arrasado.

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Mas a grande dúvida era: o QB vai conseguir ficar em campo? Se não ficasse, seria um desastre não só para o time dos Redskins, mas para Doug Williams pessoalmente e para todos os jogadores negros que ainda lutavam duramente por espaço no futebol americano (cf. documentário lincado abaixo).

Jay Schroeder, debaixo de suas longas madeixas louras, já se preparava para entrar em campo. Mas um minuto depois já estava fora: Doug Williams não aceitaria outra humilhação.

“The Quarter”

Paro de contar a história para que o leitor a veja com os próprios olhos. O que veio a seguir (pra usar a linguagem dos memes) ficou conhecido como “The Quarter”… ou então, “The Eighteen Plays”. Foram nada menos que 19 recordes batidos. Quase todos os TDs desse jogo foram de uma beleza plástica emocionante e, para quem gosta de acompanhar o funcionamento de uma equipe, tanto o ataque quanto a defesa foram perfeitos.

Para seu deleite (e em seguida, leia este link):

Outro vídeo:

Este documentário conta a história de Doug Williams a partir do min. 27. Bem interessante:

Aqui, um depoimento bacana:

E uma série de três episódios sobre as “18 plays” feita pela própria franquia dos Redskins. Mostra jogada por jogada, explicadinho, tintim por tintim. Para assistir, tem que passar direto pelas partes “contemporâneas”, mas vale a pena. Tinha uma versão mais condensada, mas acho que tiraram do Youtube:

 

Post scriptum sobre o WR atual

Já não acompanho o esporte faz tempo, mas sei que os Redskins de hoje não são nem a sombra do que o time foi de 1980 a 1992. Mas fico triste ao acompanhar a controvérsia em torno do nome: segundo consta, “redskins” não é considerado uma homenagem às populações indígenas, mas um termo depreciativo. Há uma campanha forte para que o time mude o nome que carrega desde a fundação, ainda em Boston, em 1932. Não vou entrar no mérito da questão, porque 1) estou completamente afastado; 2) até ser informado da campanha, não tinha idéia de que o termo era depreciativo, mas se os próprios indígenas dizem que é, então é (leio que também há controvérsia a esse respeito, então calo); e 3) cada país com histórico de genocídio indígena tem que lutar à sua própria maneira – aliás, nessa, nós é que estamos muito mal.

Mas tem um comentário que eu gostaria de fazer a respeito: o que me entristece em tudo isso é ver o nome dos Redskins associado a racismo, tornado objeto de desconfiança e desprezo. Preferiria mil vezes que a imagem do time estivesse associada a esse momento tão oposto que foi o Super Bowl XXII: o de afirmação contra o racismo, a prova cabal de que o quarterback negro, contra toda a pressão, assombrará os espectadores, pairando acima de adversários até então prepotentes, mas obrigados a reconhecer a genialidade com que ele pensa o jogo. Esse é que é o Washington Redskins da minha memória.

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Da série Citações: Aldous Huxley para George Orwell

Há algum tempo, circulou pela internet uma comparação entre as previsões distópicas desses dois autores, Huxley em Admirável Mundo Novo (de 1932) e Orwell em 1984 (de 1949). A conclusão era de que o universo previsto por Huxley era mais parecido com o mundo como ele é hoje do que o imaginado por Orwell.

No mundo de Huxley, a sedução, a hipnose e o prazer (em suma, a alienação) seriam os elementos nodais da dominação totalitária definitiva. No de Orwell, seriam a vigilância, o controle, o pavor. A diferença de datas de publicação não deixa de carregar uma parte da explicação para tamanha disparidade. Ao escrever, Huxley acompanhava o desmoronamento dos anos loucos anteriores à Grande Depressão, era do Fox Trot e dos americanos em Paris. Já Orwell, ao escrever, acabava de saber da existência de Auschwitz. Atroz seria escrever um livro depois de Auschwitz, a não ser que fosse 1984?

Na comparação que rodou a rede, o consumismo, a indústria cultural e a maior parte da internet eram apresentados como demonstrações do acerto de Huxley. Esse lance de terror, opressão e vigilância tinha ficado para trás, derrotado em Stalingrado e na Normandia.

Aí veio Obama, o homem dos drones e do Prism, o Bush de fala macia. E embaralhou tudo de novo. Minha tentação é dizer: ambos previram bem, mas parcialmente. Fazendo rodopiar incestuosamente a opressão e a sedução, o baile está garantido para o dominador.

E no meio disso tudo, encontro a carta que vai aí abaixo. No lançamento de 1984, Orwell pediu ao editor que mandasse um exemplar do livro para seu outrora professor de francês, Aldous Huxley. E Huxley respondeu. É interessante aprender de onde ele tirou a referência de sua sociedade da sedução, do Soma, do hedonismo Ikea. No mínimo uma curiosidade, enfim.

Wrightwood. Cal. 21 October, 1949

Dear Mr. Orwell,

It was very kind of you to tell your publishers to send me a copy of your book. It arrived as I was in the midst of a piece of work that required much reading and consulting of references; and since poor sight makes it necessary for me to ration my reading, I had to wait a long time before being able to embark on Nineteen Eighty-Four.

Agreeing with all that the critics have written of it, I need not tell you, yet once more, how fine and how profoundly important the book is. May I speak instead of the thing with which the book deals — the ultimate revolution? The first hints of a philosophy of the ultimate revolution — the revolution which lies beyond politics and economics, and which aims at total subversion of the individual’s psychology and physiology — are to be found in the Marquis de Sade, who regarded himself as the continuator, the consummator, of Robespierre and Babeuf. The philosophy of the ruling minority in Nineteen Eighty-Four is a sadism which has been carried to its logical conclusion by going beyond sex and denying it. Whether in actual fact the policy of the boot-on-the-face can go on indefinitely seems doubtful. My own belief is that the ruling oligarchy will find less arduous and wasteful ways of governing and of satisfying its lust for power, and these ways will resemble those which I described in Brave New World. I have had occasion recently to look into the history of animal magnetism and hypnotism, and have been greatly struck by the way in which, for a hundred and fifty years, the world has refused to take serious cognizance of the discoveries of Mesmer, Braid, Esdaile, and the rest.

Partly because of the prevailing materialism and partly because of prevailing respectability, nineteenth-century philosophers and men of science were not willing to investigate the odder facts of psychology for practical men, such as politicians, soldiers and policemen, to apply in the field of government. Thanks to the voluntary ignorance of our fathers, the advent of the ultimate revolution was delayed for five or six generations. Another lucky accident was Freud’s inability to hypnotize successfully and his consequent disparagement of hypnotism. This delayed the general application of hypnotism to psychiatry for at least forty years. But now psycho-analysis is being combined with hypnosis; and hypnosis has been made easy and indefinitely extensible through the use of barbiturates, which induce a hypnoid and suggestible state in even the most recalcitrant subjects.

Within the next generation I believe that the world’s rulers will discover that infant conditioning and narco-hypnosis are more efficient, as instruments of government, than clubs and prisons, and that the lust for power can be just as completely satisfied by suggesting people into loving their servitude as by flogging and kicking them into obedience. In other words, I feel that the nightmare of Nineteen Eighty-Four is destined to modulate into the nightmare of a world having more resemblance to that which I imagined in Brave New World. The change will be brought about as a result of a felt need for increased efficiency. Meanwhile, of course, there may be a large scale biological and atomic war — in which case we shall have nightmares of other and scarcely imaginable kinds.

Thank you once again for the book.

Yours sincerely,
Aldous Huxley

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É uma crônica, mas pode chamar de Brasil

A história do texto que segue copiado aí abaixo é, vamos dizer assim, tortuosa. Na semana passada, alguém achou na internet o conteúdo da nota de rodapé, essa da imagem, e o espalhou por aí. Achei o caso bem curioso e tratei de procurar a origem.

Resulta que era o livro de crônicas Verdades Indiscretas, de Antônio Torres. O dito Torres, autor mineiro e eventualmente diplomata, era um rival de João do Rio na imprensa carioca do início do último século. Eis uma biografia do referido. Continuar lendo

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FHC entre o povão e a contradição

Como é pobre a celeuma em torno do artigo de Fernando Henrique! Debater se o homem propõe ou não que o partido dele “abandone o povão” e se concentre na classe média, como se fosse algum absurdo haver partidos de classe média… Um texto inteiro poderia ser dedicado à preferência do brasileiro pela polêmica mesquinha, até mesmo na política, onde as discussões deveriam ser mais penetrantes e corajosas diante da aporia inescapável (sim, a política, enquanto arte, é o bailado numa pista de aporias). A algazarra em torno do texto fernandino é um claro exemplo dessa mediocridade escolhida. Valeria bem mais a pena, por ora, destrinchar o artigo, porque ele expõe o impasse em que se enreda, com muito gosto, o partido de que o autor é presidente de honra. Façamo-lo.

Nosso ex-presidente entende seu texto como um raio-x das insuficiências da oposição, especificamente o PSDB, e uma proposta de reorientação. Entre circunlóquios, lugares-comuns e interpretações bem livres da história recente do país, FHC acaba dizendo, um pouco sem querer, algumas coisas bastante verdadeiras. Se fossem ditas por querer, seriam talvez dolorosas demais para os tucanos e seus correligionários, porque revelam em filigrana que as diretrizes peremptórias que FHC delineia para seu partido, ora, são simplesmente o que o partido, tal como se organiza hoje, não poderá nunca realizar. Em outras palavras, Fernando Henrique atirou no que viu e acertou no que não viu. Só que, como estamos falando de política, o “ver” significa “querer ver”­ – é uma maneira de recortar a realidade de um universo político, tornando-a um discurso coerente, mas coerente segundo determinados pressupostos – e o “não ver” significa “recusar terminantemente, a ponto de não poder ver”. Continuar lendo

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O leitor, terrorista internacional

Aconteceu duas vezes. Primeiro em Copenhagen, depois em Guarulhos. O sinal: bagagem ou casaco na esteira do raio-x, olhos apertados e sobrancelha alçada na pessoa de uniforme, a exigência de separar o objeto suspeito para um exame mais próximo, com direito a luvas de borracha e tom de voz imperioso. Até segunda ordem, o viajante é um terrorista em potência ou, na melhor das hipóteses, um mísero traficante internacional.

Algo ali chamou a atenção dos “agentes de segurança” aeroportuários. São os responsáveis por evitar que a Al Qaeda risque os céus, mas também por manter constantemente vivo na consciência de cada passageiro a lembrança de que a Al Qaeda existe e a sensação de que está por todo lado. Aos olhos do poder, principalmente os funcionários mais baixos do poder, a Al Qaeda está por todo lado. Por todo lado. E, noves fora os americanos velhos de guerra, ninguém está mais seguro disso do que os dinamarqueses.

Uma palavrinha sobre os dinamarqueses. Continuar lendo

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Assuntos que passaram

Quando se esgotaram minhas forças – e isso deve fazer umas duas semanas, pouco mais, pouco menos – logo vi que a primeira vítima seria o blog. Eu estava certo. Assunto vinha, assunto ia; a vontade de escrever vibrava entre as orelhas, mas desfalecia entre a mão e o lápis (que digo? É o teclado…). O coeficiente de crescimento do desânimo, como não podia deixar de ser, era proporcional ao acúmulo de eventos ao redor dos meus olhos e sentidos. O mundo é assim mesmo: ou você gira com ele, ou aceita a frustração. (Não há nada errado em aceitar a frustração; é melhor do que se deprimir à toa.)

Foi assim que, nesse meio-tempo, eu quis comentar uma infinidade de coisas, mas não o fiz. Em muitos casos, a escolha foi acertada: outros o fizeram melhor do que eu jamais faria, e uma humilhação evitada não deixa de contar ponto a favor. Talvez essa máxima contrarie o espírito blogueiro, mas é assim, não há o que fazer. Em outros casos, perdi a chance: nem me lembro mais das reflexões simpáticas que me causou a vista de uma meia-dúzia de bolas de futebol, gastas e esfarrapadas, boiando em meio à sujeira, numa curva do rio.

Seja como for, listo aqui algumas das idéias que deveria ter desenvolvido em postagens específicas. Qual é o interesse para você que me visita desses parágrafos curtos sobre coisas que mereciam páginas e páginas? Ora, os links, claro. Pois vamos:

1) No último fim-de-semana, passou um documentário alemão no canal Arte sobre Dennis Hopper, com o tristemente premonitório título de “Spiel (oder stirb)”: crie ou morra. Pois bem, três dias depois ele modulou o verbo. Não obstante, recomendo a todos o filme, em que o ator conta sua vida com uma sinceridade e uma naturalidade marcantes. Em seus últimos anos, Hopper se dedicava às artes plásticas, com um interesse particular por fotografar grafites de gangues em Los Angeles, na tentativa de decriptá-los. Eis um trecho, eis outro. Eu poderia mencionar que ele era um personagem fantástico e um ator fenomenal, mas isso, todo mundo já sabe. Então me contenho em sugerir: procurem o documentário.

2) Mais uma sobre morte, um de meus velhos temas preferidos neste blog: Louise Bourgeois não chegou ao centenário, o que certamente teria sido tema para uma escultura e escritos carregados de ironia. Como no caso de Dennis Hopper, eu poderia mencionar que ela era uma personagem fantástica e uma artista fenomenal, mas isso, todo mundo já sabe. Então me contenho em recomendar um espetáculo sobre ela, obra da sempre maravilhosa Denise Stoklos. Ela tende a rodar o país apresentando diversos de seus monólogos, e “Faço, Desfaço, Refaço” costuma estar no meio deles. Ou seja, seu dever, visitante, é ficar atento à agenda da moça. Mais cedo ou mais tarde, ela vai passar pela sua cidade. Encontrei poucas coisas na internet sobre esse espetáculo, em que Stoklos incorpora Bourgeois através de seus escritos, mas eis dois links possíveis: este e este.

3) Um dos assuntos que não ouso abordar é a questão da Terra Santa (dizem que o sangue purifica, o que explica a santidade daquele deserto). Há muita coisa em jogo, uma história enrolada demais e um jogo de retórica e pressões em que os culpados são muitos e a vítima é uma só: a população que preferia poder só tocar a vida. Aliás, Brecht tinha razão. Quem tenta não se interessar por política é massacrado (desculpe a citação imprecisa) por quem se interessa. Em todo caso, algumas reflexões se fazem necessárias, sobretudo depois que o governo israelense foi mais longe do que o longe demais a que já tinha ido.

A primeira delas: não consigo entender como um país cuja fundação remete ao trauma do genocídio e ao racismo sistemáticos pode agir, meros sessenta anos depois, de forma sistematicamente genocida e racista. Acho que só conseguirei produzir um texto a respeito quando tiver entendido isso, ou seja, nunca.

A segunda: O risco de cair no fascismo começa quando alguém resolve substancializar um povo, um governo e os atos de um e outro, para em seguida identificá-los. Tenho visto muita gente tratando como anti-semitismo toda e qualquer crítica às atitudes criminosas do governo israelense: muro, bloqueio de Gaza, bombardeios de hospitais, assassinato de ativistas e por aí vai. Com o risco de cair numa comparação de Godwin, lembro que Goebbels considerava qualquer crítica a Hitler como “anti-alemã” (Sophie Scholl perdeu a cabeça por isso); Jdanov considerava qualquer arte independente como anti-revolucionária (está lá a Sibéria que não me deixa mentir); e, em nossas terras tropicais, o lema era “Ame-o (pode parecer que é o Brasil, mas é o regime, ou seja, a ditadura) ou deixe-o (pode parecer que é o Brasil, mas é o mundo dos vivos)”. Quem identifica críticas a Israel com o ódio ao judaísmo está a dois passos de se tornar um fascista, se é que já não se tornou, e o governo israelense está de braços abertos para essa categoria humana.

A terceira: Robert Fisk tem toda razão: são covardes aqueles que não condenam o ataque israelense à flotilha humanitária. E os mais covardes são os governos “ocidentais” (já disse que odeio essa expressão), aqueles que ou sentiram o fascismo na carne, ou lutaram contra ele, ou ambos, e deveriam atuar para que coisas assim não pudessem se repetir.

A ante-penúltima: o fascismo também tende a achar que consegue fazer todo mundo de otário, não sei por que razão ; em 1o de setembro de 1939, os alemães vestiram cadáveres com uniformes poloneses e acusaram o país vizinho de atacar uma estação de rádio sua, tentando justificar o início da Segunda Guerra (ninguém caiu, claro). Nossos ditadores tentaram fazer crer que Vladimir Herzog tinha se enforcado na cela (e teve gente que caiu, a começar por alguns órgãos de imprensa). Agora o governo israelense mostra vídeos de estilingues (!!!), bolas de gude (!!!) e pedaços de madeira como prova de que seus pobres comandos foram atacados por hordas de pacifistas. Bem que Einstein (por sinal, judeu) avisou: a quarta guerra mundial vai ser lutada com paus e pedras…

A penúltima: mais covarde ainda é o governo (ditatorial, aliás) egípcio, pouco mencionado em todo esse imbróglio, mas que também deixa fechado seu acesso à faixa de Gaza. E isso porque é uma nação muçulmana, que se pretende líder do mundo árabe, e que já esteve mais de uma vez em guerra com Israel.

A última: se eu vivesse no Oriente Médio ou perto dele, provavelmente estaria louco atrás de uma bomba atômica também. Afinal, quem é capaz de transformar um canto de terra num gigantesco campo de concentração é capaz de qualquer coisa. Os únicos detentores da famigerada arma na região têm se revelado uns autênticos lunáticos.

4) Outro assunto que não ouso abordar: eleições. E os motivos são vários. Estando fora do Brasil, quem sou eu para discutir mais este emocionante embate PT X PSDB? As informações que chegam aqui sobre o Brasil são bastante positivas: crescimento econômico, estabilidade financeira, redução da miséria e da desigualdade, investimentos em infra-estrutura, expansão do comércio, medidas anti-cíclicas perante o risco de recessão, desfavelização, recuperação da pesquisa científica… Mas como meus amigos tucanos seguem se descabelando, concedo-lhes o benefício da dúvida: talvez haja mesmo estatísticas secretas provando que o país ruma célere para o desastre.

Mas não posso deixar de levantar algumas hipóteses que me têm martelado a cabeça.

A primeira: muita estranheza me causa essa guinada à direita do PSDB, particularmente de Serra, nos últimos anos. De sua origem na luta intelectual contra a ditadura, o partido de Montoro e Covas foi parar nos braços da Arena, nem bem passado um quarto de século. O PSDB, que um dia chegou a se apresentar como núcleo do progressismo nacional, tornou-se um ninho para Azeredos e Guerras deste mundo.

Como explicar? Dois indícios parecem oferecer uma possibilidade de compreensão desse estranho fenômeno. Primeiro, o movimento irreversível e consistente do PT para o centro, ou melhor, para longe da esquerda (o que não necessariamente é a mesma coisa, se levarmos em conta a miríade de sentidos possíveis para o termo “esquerda”). Acontece que o PT é um partido com uma base mil vezes mais sólida que a do PSDB, porque são movimentos sociais que existem de fato e não estão apenas nas conversas de apartamentos de Higienópolis, nem entre as mesas do Massimo. Em outras palavras, essa migração do PT parece traduzir um movimento consistente da sociedade brasileira (cujos descontentes deságuam no PSol), o que deixa o PSDB um tanto sem argumentos ou bandeiras.

O segundo indício é a derrocada dos partidos conservadores tradicionais; o ex-Arena tentou até a velha estratégia de assumir um nome contraditório (“Democratas”), mas não deu certo. Só alguns poucos malucos ainda crêem que Demóstenes Torres e Kátia Abreu têm algo de construtivo a oferecer para o país. Ou seja, mesmo a parcela mais conservadora da sociedade está menos radicalizada, embora ainda apareça muita gente disposta a ter saudade da ditadura e chamar o combate a ela de “terrorismo”. Enquanto o clã dos Maias e Magalhães vai afundando, o antigo partido “social-democrata” (se é que eles jamais o foram) ocupa seu lugar. Isso para não mencionar a turma do Maluf, claro. Não deixa de ser uma evolução da mentalidade do país e uma prova de que não estamos indo tanto para o buraco quanto querem fazer crer os e-mails descabelados que tenho recebido…

A segunda, na verdade um corolário da primeira: conforme temos podido ver, o candidato dos tucanos à presidência, que dispensa apresentações, parece ter ido pelo mesmo caminho. Quem leu os artigos e comentários de “Brasil sem milagres”, escritos entre 78 e 86, tem dificuldade em reconhecer o homem que hoje inibe a pesquisa e o ensino em São Paulo e manda ver a metralhadora giratória contra países vizinhos e pessoas com pensamento menos monolítico que o de seu partido. Pois é, uma das poucas vantagens que tiro de ser formado em economia é ter lido artigos publicados nos anos 70 por gente que, hoje, pode preferir queimar seus antigos escritos (não, não estou falando de FHC).

A grande questão é: para quem vai o discurso raivoso? Para quem vão factóides como o Ministério da Segurança e a cocaína boliviana? Afinal, se considerarmos que tanto o problema da violência quanto o das drogas, embora ainda fortíssimos no Brasil, estão muito menores do que eram há dez anos, dá para perceber um descompasso estranho entre o que berra a oposição e o que percebem os eleitores. Ora, nem preciso dizer o quanto isso é improvável num tempo em que o marketing político está tão profissionalizado. Portanto, a pergunta pode ser reformulada assim: se eles não esperam conquistar eleitores novos com o discurso raivoso e descolado da realidade, o que eles esperam?

Minha hipótese é a seguinte: nem Serra, nem o PSDB têm esperança de vencer as próximas eleições presidenciais. A brigas deles, portanto, não é com o PT pelo Planalto, mas com o PFL, pela população conservadora. Se o PDS continuar sua derrocada, o PSDB se consolida como partido conservador brasileiro (o que não deixa de ser uma evolução, convenhamos), empurrando ainda mais a Arena para o esquecimento. Com isso, o estranho discurso da campanha de Serra não seria pela conquista de novos eleitores, que poderiam lhe dar uma vitória já aparentemente impossível, mas pela consolidação dos velhos eleitores. Enfim, é só uma hipótese.

A última: tenho razões para crer que Folha e Globo estão derrubando o último bastião do jornalismo independente com circulação generalizada no país. A observar de perto!

5) Sobre isto aqui, que continua aqui, ainda pretendo fazer um texto mais extenso. Quando ousei fazer críticas à pretensa panacéia do hipertexto, alguns anos atrás, me tomaram por um dinossauro – não importa se foi num blog pra lá de moderno (sic) como o Cálculo Renal. Pois bem, Carr é famoso, então neguinho vai ter que escutar. Aliás, é até irônico dizer algo assim justamente numa postagem cheia de links…

6) Não posso ir embora sem lincar um texto breve, mas preciso de meu amigo Leonardo. Quando eu falei que havia casos em que me dei bem por não escrever e evitar a humilhação de ver alguém dizer algo muito melhor do que eu diria, era nisto que estava pensando. Lelec manda muito bem ao escancarar o abuso do pretérito do futuro, que se tornou o único tempo verbal de uma imprensa tornada inútil e anódina. O contexto está no artigo anterior de Leonardo, que merece muito ser lido, em seu blog ou no Amálgama, onde a caixa de comentários pegou fogo.

Era isso… obrigado pela atenção!

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A inteligência do anti-intelectualismo

Dizem que o mundo está emburrecendo. Alguém passa os olhos pela televisão, vê o tipo de programa que se anda transmitindo e constata: o mundo está emburrecendo. E segue: a erudição é coisa do passado; a cultura vai se transformar em um enorme reality show; a ortografia foi pras cucuias; e é muito provável que nossos netos (e alguns de nossos filhos) sejam todos iletrados, treinados apenas para trocar fotografias pornográficas pelo celular. Prevêem todo tipo de atrocidades e há algumas reações típicas para esse prognóstico catastrofista: o conformismo, que consiste em lamentar que ninguém leia mais Olavo Bilac; a adesão pura e simples, que talvez seja a mais honesta de todas; o recolhimento erudito, ou seja, trancar-se numa torre para estudar grego jônio e sânscrito, auto-intitulando-se último dos sábios.

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Outra reação razoavelmente comum é negar que esse emburrecimento exista e lembrar que sempre houve muito mais estupidez do que lucidez sobre a Terra. Simplesmente não havia um mercado de massa tão desenvolvido para a estupidez e só os lúcidos conseguiam se financiar, quando encontravam um posto de preceptor na corte de um rei qualquer. A burrice passou a ser visível no último século, segue o raciocínio, mas não é propriamente uma novidade. Mais equilibrada que o alarmismo, essa me parece uma visão até realista, não fosse por um detalhe.

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Há outro componente no problema, e é um componente capcioso. Tenho lido as crônicas de Braulio Tavares, publicadas no Jornal da Paraíba e republicadas com mais ou menos um ano de intervalo no blog Mundo Fantasmo. Uma que me chamou a atenção diz respeito ao anti-intelectualismo (desculpe ainda usar o hífen, gosto assim, aliás o autor idem) que vai se espalhando por todos os níveis da sociedade, no Brasil, no mundo, em Marte. O público da arte está se tornando anti-intelectual. A chamada “elite pensante” já o é há tempos. Os jornalistas, que ecoam qualquer murmúrio, já deram para condenar tudo que pareça pensar com uma nesga a mais de rigor. Já vejo pipocar até um certo número de intelectuais anti-intelectualistas, o que pode ser paradoxal, mas não chega a surpreender, considerando que intelectual nunca foi muito chegado a esprit de corps.

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Argumentar, evocar referências, debater conceitos: tudo isso está virando anátema. Pelo visto, dirão os alarmistas, o emburrecimento do mundo já absorveu até seu maior inimigo, a lucidez. Pois bem, a inteligência está morta, viva a inteligência! – gritam os mártires no boteco.

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Mas, atenção! Munido daquela velha mania de ser do contra, aviso que tudo isso está errado. O anti-intelectualismo não é a última etapa do emburrecimento do mundo. O anti-intelectualismo é o cerne de uma estratégia muito, mas muito inteligente. Estratégia de quem? Com que objetivo? Boa pergunta, vamos tentar descobrir. Mas já posso adiantar que tinha razão Jean Cocteau (aquele colaboracionista) quando disse que nossa época – ele se referia aos anos 1920, mas não passou tanto tempo assim – é a mais assustadora de todas, porque “o drama é que a burrice pensa”. Esqueça a idéia de um inocente emburrecimento; a burrice não é a marca de uma derrota, ela é uma inimiga poderosa, e pensa.

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Qual é o inimigo do anti-intelectualismo? O intelectualismo, talvez. Mas isso existe? Não, é claro que não. O que existe é o intelecto e o fato de usá-lo (ou deixar de usá-lo). O que se faz com o intelecto, então? Ora, com ele avaliamos se nossa própria maneira de enxergar o mundo (o mundo nada mais é do que a realidade em que estamos imersos… em outras palavras, o mundo é nossa vida, nada mais) faz sentido ou não, vale a pena ou não. É a potência que todo ser humano tem de se projetar em outras situações, construir outros universos e atribuir a eles a coerência necessária para que não sejam meros delírios. Nossa cabeça, como um todo, vê relações em tudo e não consegue evitar um pulo fora do imediato: sempre generaliza, sempre supõe a existência de leis e analogias, sempre inventa causas para tudo que vê. Já o intelecto, que está lá dentro, muitas vezes escondido, cada vez mais acuado, serve para triar tudo isso da embalagem e descobrir o que presta aí dentro e o que não presta.

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Mais de uma vez, em conversas com amigos, tudo ia bem até que eu caí no erro de apontar uma incoerência na linha de pensamento do interlocutor. Pra quê! O resultado é sempre o mesmo. O outro se põe a invectivar contra o intelectualismo, o racionalismo, a filosofia e por aí vai. Achando-se um Aristófanes, reclama que “esses cabeções” andam olhando para as nuvens e correm o risco de cair em algum buraco. Exige que eu, definido como “especulativo”, saia de dentro da própria cabeça e “volte” para o mundo real. Enquanto divagam em suas poltronas, esses meus amigos estão plenamente convencidos de que se ancoram no mundo real, no quotidiano, no palpável, enquanto “os intelectuais” viajam pelos confins do universo. Me parece notável como a realidade palpável se adequa a suas vontades e vicissitudes, já levando em conta as incoerências que ninguém tem o direito de apontar.

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Na verdade, o mundo real é bem difícil e arredio a qualquer tipo de discurso e generalização. Todo discurso geral é falho, incompleto, errado em grande medida, mesmo o mais cuidadoso. Só o que resta a fazer para o intelecto é reduzir esses erros ao máximo, assumindo que o discurso é só isso, um discurso, e não a reprodução infalível de eventos captados por nossa formidável percepção. Ou seja, a mente é um balão cujo hélio inesgotável é a linguagem. Sem os sacos de areia que chamamos de intelecto ou razão (eu prefiro lucidez, um termo mais elegante para se referir ao bom e velho semancol), esse balão pode muito bem ir orbitar em Júpiter. Nada mais comum, aliás, como um rápido passeio pela blogosfera politizada ou religiosa pode provar.

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Daí a genialidade da estratégia do anti-intelectualismo. Rejeitando sistematicamente o recurso a esse antídoto que é a lucidez, qualquer veneno pode se espalhar como piolho em colégio interno. Digo “sistematicamente” porque não é um fenômeno isolado, como se alguns preguiçosos tivessem simplesmente escolhido encher o mundo de regras peremptórias, excludentes e falsas. Aliás, Bernard Stiegler, filósofo francês e ex-assaltante, usa o termo “burrice sistêmica” para definir o modus operandi da indústria cultural de nosso tempo, e de fato a coisa é sistêmica. Não existe emburrecimento do mundo. O que acontece é a escolha de um modo burro de agir e de ser (porque, afinal de contas, ser é agir): na burrice, qualquer coisa se impõe, contanto que seja apetitosa e sedutora.

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O anti-intelectualismo é central nessa diabólica investida contra a lucidez, porque ele nada mais é do que a supressão de qualquer critério, ou busca de critério, que poderia se opor à simples incorporação daquilo que é sedutor. Anti-intelectualizadas as cabeças, os tumores da estupidez se tornam imunes à radioterapia da lucidez. O intelecto aparece primeiro como chato, querendo estragar um prazer; depois como inconveniente, querendo propor alternativas ao que está oferecido de mão beijada; mais à frente, como ridículo, porque a facilidade com que se impõem generalidades fabricadas faz com que elas pareçam imediatas, logo mais “reais” e “palpáveis” do que a própria realidade; finalmente, quando a coisa realmente esquenta, começam as acusações de que a lucidez é demoníaca. Nessa hora, meu amigo, cuidado.

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Das perguntas do quinto parágrafo, falta responder o “quem”. Mas deixo essa para que você mesmo reflita. “Quem” tem músculo suficiente para imprimir ao mundo essa postura generalizada de preferência pelo impensado? Eu, certamente não.

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Os bastidores da Apollo 11

Um diálogo curto, para dar um pitaco na efeméride do momento: homem na lua.

É que Neil Armstrong sempre me pareceu meio reticente ao pronunciar sua famosa frase. Como se ele não estivesse muito contente com o que dizia. É evidente que o astronauta não pensou o texto na hora, nem foi ele que o preparou. Mas até que ponto ele concordava com o famoso “it’s one small step for a man, one giant leap for mankind”? Talvez lhe parecesse cafona.

Imagino Neil na cafeteria, de manhã bem cedinho, tomando seu chafé com bacon e ovos, discutindo detalhes da missão com Buzz Aldrin e the other guy. Eles estão se fazendo de relaxados, rindo nervosos, contando piadas ruins. Entra um homem jovem, engravatado e engomado, carregando uma pasta. Ele dá bom-dia a todos, todos respondem em tom arrastado: “Bom dia, Al”.

Ninguém gosta desse Al. É um almofadinha.

Al coloca a pasta sobre a mesa e tira uns papéis. Pergunta aos três: quem vai ser o primeiro? Buzz e the other guy apontam para Neil, que ergue o dedo, fingindo que seu orgulho é fingido. Al, timidamente, se dirige a ele e lhe passa uma folha.

– Seu discurso está pronto.

Neil faz cara de amuado, mas toma o papel e um gole de chafé, cada um com uma mão, e lê o que está escrito.

– Você não quer que eu diga isso, quer?

– Nossos melhores redatores passaram semanas preparando o texto.

Incrédulo, Neil retoma a leitura:

– “Um pequeno passo para um homem…” que ridículo! Vai estar na cara que é ensaiado.

– Não faz mal.

– Eu vou me sentir um idiota.

– Não faz mal.

Naturalmente, o futuro primeiro homem na lua se exalta. Está afogueado e os perdigotos que solta atingem Aldrin e the other guy.

– Como é que é?
– É pela América. Os vermelhos vão ver só. Você é nosso herói, man!

-Pela América, my ass!

O herói nacional levanta-se. Al dá um passo atrás. Os outros dois astronautas ficam preocupados.

-É uma frase para a história, Neil.

-É, Neil, fica frio! (é a tradução que daria a dublagem da Globo.)

– Pra história, é? Então é pra falar com voz empostada? Um pe-que-no pas-so pa-ra um ho-mem… é isso?

– Vai ficar horrível.

– Vai ficar horrível de qualquer maneira. Deveria ser meu dia de glória! Pisar na lua! Buzz, não quer ser o primeiro?

– Tô fora! Você acha que eu vou fazer o discurso cafona?

– Al, por favor…

– Houston já decidiu. Agora, se me dão licença…

Al faz uma curta reverência e se retira. De costas, os astronautas não vêem seu ar triunfal, como o de um garotinho que acaba de fazer uma travessura. Mal sabe Neil, aquele presunçoso, quem foi que inventou a tal frase. Atrás dele, ainda dá para ouvir os impropérios do primeiro homem na lua:

– Goddamn!

Buzz Aldrin intervém, preocupado:

– Olha as suas coronárias, Neil…

The other guy está alarmado. Corre para o telefone:

– Houston, we have a problem

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Elvis e Michael: do extrativo ao industrial

Agora que passou um pouco a comoção em torno do maior dos reis do Pop, acho que posso especular a respeito sem risco de levar tijoladas na testa. Prudência nunca é demais, mesmo quando o assunto é Michael Jackson, cujos receptores de hormônios prudentes eram para lá de atrofiados… Difícil é escolher o aspecto mais fecundo desse falecimento lastimável, mas longe de surpreendente.

Poderia ser a triste ironia de que todo o aparato medical, as máscaras, a hipocondria, eram resultado de uma intenção declarada do cantor de atingir os cem anos: não só o projeto fracassou, mas fracassou exatamente na metade do período. Prova de que a fixação com a longevidade é só mais um dos pequenos auto-enganos que nos impedem de simplesmente viver a vida. Também se pode enveredar pelo caminho que é, sem dúvida, o mais explorado: Michael como vítima do massacre da mídia, da ebriedade com o sucesso, das relações familiares doentias. Mas isso é notícia velha, não precisávamos de um cadáver para saber que a indústria cultural tem o poder de esfarelar uma vida, sobretudo a de alguém talentoso e desequilibrado como o caçula dos Jackson.

E já que foi evocada a tal indústria cultural, lembro que a morte súbita e inesperada (mais ou menos) de Jacko foi comparada à de Elvis Presley, mais de trinta anos antes, tão súbita e inesperada quanto. E as semelhanças são várias: ambos haviam sido “os reis”. Elvis do rock nos anos 50, depois da canção melosa e romântica; Michael, do pop nos anos 80, aquele que se atravessava no cruzamento entre o soul negro e o que viriam a ser os ritmos eletrônicos. Ambos foram belos e luminosos na juventude; no final da vida, tornaram-se estranhos, até repulsivos. Ambos ficaram conhecidos por passos de dança arrojados e revolucionários. Ambos marcaram a história da música popular americana: Elvis por ter sido o branco que “invadiu” o gueto e se apropriou de seu novo ritmo; Michael porque, enquanto negro, foi um ídolo universal, acima das questões de raça, à parte a mudança de cor.

Todas essas semelhanças são notáveis, claro; mas a diferença é mais fundamental e reveladora. Essa diferença se refere à época em que cada um viveu e atuou. Não tanto pelo período histórico em si, mas porque Elvis e Michael encarnam e são produtos de fases diversas do desenvolvimento histórico da tal indústria cultural. Para simplificar as coisas, podemos dizer que Elvis pertence à era da “indústria cultural extrativa”, enquanto Michael representa a “indústria cultural industrial”… Soa estranho? Tanto melhor, continue a leitura.

Michael Jackson foi produzido, em mais de um sentido, pelo pai. Junto com os irmãos mais velhos, foi talhado e moldado para o sucesso. Sendo, por natureza, o mais talentoso de todos, foi também o alvo do maior esforço de caracterização. Desde pequeno, inculcaram-lhe a máxima a que ele seria fiel, talvez contra a própria vontade, pelo resto de sua conturbada e curta vida: qualquer resquício de humanidade seria um estorvo para o produto midiático que ele deveria ser a todo instante. Michael Jackson tornou-se, com isso, uma marca. Uma máquina forçada a adaptar-se ao mercado caprichoso dos gostos juvenis, para continuar a produzir uma torrente volumosa de lucros e dividendos.

A falha trágica de Michael foi jamais ter conseguido demarcar a fronteira entre a commodity midiática e o indivíduo verdadeiro. O sucesso de Thriller se tornou uma obsessão tão grande que ele precisou pensar em si mesmo como monumento e imagem de capa de disco, talvez até mesmo quando estivesse dormindo em Neverland. Falando no rancho, creio que um junguiano o retrataria como tentativa desesperada do inconsciente do ídolo para retornar a uma era em que ele era verdadeiramente humano, apenas uma pessoa como todos nós: o tempo de sua primeira infância. Mas é melhor pular essa parte.

O caso de Michael se torna ainda mais chocante quando o comparamos a Madonna, sua contemporânea como ídolo pop. Ela, como ninguém, sabe ser um produto, capaz de se renovar a cada repique do mercado, capaz de chamar a atenção e, claro, os holofotes, de todas as formas possíveis, seja via sexualidade, maternidade ou musculatura. Mas ela também sabe ser a dona do produto, a detentora da marca, a empresária, a investidora. Michael Jackson jamais teve essa sapiência, daí sua desgraça.

Mas a comparação que queremos fazer é com Elvis, que também veio de baixo, também tinha questões familiares (o pai dava pequenos golpes na praça e chegou a ser preso por isso; a mãe tinha tendência ao alcoolismo e morreu bebendo). Também teve um sucesso retumbante: vendeu tanto quanto os Beatles, ou quase. E também morreu cedo, irreconhecível, decadente, infeliz, afogado em barbitúricos e outras drogas.

Ao contrário de Michael, Elvis jamais foi talhado para o sucesso. Seus pais o prepararam para uma vida dura de americano sulista; o maior mérito de sua mãe foi tirá-lo de um emprego para não prejudicar demais os estudos. Mas era um garoto mimado, isolado, que gostava de usar roupas e penteados diferentes, aprendeu alguns acordes tortos no violão e passava tardes inteiras ouvindo cantores gospel pelas igrejas de Memphis, Tennessee.

Um pouco mais crescido, montou uma bandinha para tocar os ritmos do tempo. O movimento diferente de seu corpo, aliado à mistura única de influências em seu canto, hipnotizava as plateias e chamou a atenção de um executivo da Sun Records. Era 1953. Em 1955, ele estava na RCA com um contrato de primeiro time, rumo a se tornar o Rei do Rock. Arrumaram-lhe um (péssimo) empresário; inventaram golpes de marketing. Mudaram um pouco seu som e sua aparência. Exploraram o movimento de seus quadris (Elvis the Pelvis, lembra dessa?). Levaram-no à televisão e ao cinema. Graças a ele, muita gente encheu o bucho de grana. Como ocorreria, mais tarde, com Michael Jackson.

Só que, no caso e no tempo de Elvis, ele só passava a ser moldado e formatado depois de descoberto. Michael nunca foi descoberto: ele foi feito. Foi fabricado nas oficinas da Motown pelo artífice que era seu pai. Daí o caráter exemplar da comparação entre os dois ídolos. O período em que viveu Elvis era extrativista no sentido em que as gravadoras procuravam o talento bruto, perdido no coração da América rural ou nos subúrbios das metrópoles, nos cantos esquecidos. Em todo lugar, enfim, de onde poderiam sair jovens, tímidos e desajeitados, mas com novas misturas rítmicas, novos passos de dança, figuras potenciais de um frenesi midiático. Em seguida, é claro que havia uma cadeia industrial instalada e a respeitar: as gravações, as composições encomendadas, as capas de disco, as polêmicas forjadas, tudo que os últimos 60 anos souberam estabelecer e reproduzir tão bem.

Essa cadeia é que evoluiu com o tempo. Primeiro, foram os profissionais que tentaram se adaptar a ela, para melhor explorar seus potenciais: é o caso de Jimmy Page, que foi músico de estúdio antes de ser ídolo nos Yardbirds e, claro, no Led Zeppelin. Ele conhecia em profundidade o funcionamento da indústria do disco e foi o primeiro a calcular com precisão a dinâmica das faixas. A lendária banda que ele formou com John Paul Jones, John Bonham e Robert Plant nada mais era, no princípio, do que a aplicação desse conhecimento de Page. Por que não chamar a essa fase da indústria cultural “fabril”?

Pois enquanto o Led estava no auge, surgia na Motown – aquela grande fábrica de sucessos e ídolos – a banda dos irmãos Jackson, em mais uma fase da indústria cultural. Em vez de simplesmente reproduzir na cadeia produtiva da cultura (no caso, da música) uma série de técnicas de sucesso comprovado, como na era fabril, passou-se a inserir técnicas novas de sedução do público, desenvolvidas em laboratório, a partir de testes e estatísticas. Assim, o retorno dos investimentos seria mais garantido: o produto cultural que resultasse do processo de fabricação seria impecável, irresistível, um triunfo assegurado. Pura tecnologia industrial.

Madonna e Michael Jackson são, como eu já disse, os exemplos mais fecundos de produtos dessa fase “industrial” da indústria cultural. Mas, enquanto Madonna soube ser ao mesmo tempo investimento e investidor, Michael confundiu os dois lados e não foi capaz de aproveitar os rendimentos de sua própria produção. Com isso, ele enfraqueceu sua posição no mercado e não é à toa que, na última década de sua vida, tenha rolado constantemente ladeira abaixo, sempre a tentar recuperar seu valor em bolsa.

Como tudo no mundo, a indústria cultural continua a evoluir. Todos sabemos como as gravadoras estão sofrendo com as mudanças nos gostos e nos hábitos do público. Hoje, quem quer se fazer conhecer posta, por exemplo, vídeos no Youtube e músicas no Facebook. Um exemplo límpido é o sujeito que compôs músicas como Hey, Paul Krugman , e foi citado pela net inteira.

A princípio, para muita gente, essa nova fase parece uma volta ao período extrativista. Mas isso é enganador. Há tantos métodos e fórmulas nas redes sociais quanto em qualquer outra configuração da produção cultural. Resta aos produtores a tarefa de descobri-las e lucrar com elas. Não tenho dúvidas de que a era das redes sociais produzirá seus Elvis Presley, John Bonham e Michael Jackson, cujas histórias gloriosas e trágicas serão contadas pelos jornalistas de amanhã. Seja lá como forem esses jornalistas…

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