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Moldar o homem

* Outro texto antigo, de janeiro de 2008, salvo do incêndio do Diplo. De lá pra cá, poucas coisas mudaram: o tal presidente já se casou com a tal modelo, já brigou com professores, já xingou um agricultor, já tentou colar sua imagem à de dois outros presidentes que estão muito na moda, já engrossou a voz pra cima dos vizinhos, já recorreu ao lado militar… e a popularidade continua caindo, caindo, caindo… *

A cidade já dorme, os jornais vivem a correria do último fechamento, a televisão passa programas mais ousados. Enquanto isso, uma última reunião ainda tem lugar; uma reunião de governo, mas importante demais para a indiscrição do palácio. Sendo assim, na sala de estar de um qualquer apartamento, com varandas que dão para um bulevar engarrafado, mais alto do que os postes e as copas das árvores, não é uma família que aproveita seu único momento de união para ver a novela, todos sentados no sofá; são homens e mulheres de testa franzida e braços cruzados, eles com gravatas coloridas, elas com cabelo cortado acima dos ombros. E discutem, nervosos, em torno de uma mesa de centro apinhada de papéis.

São jovens. Ninguém ali conta mais de quarenta e cinco anos. Alguns têm menos de trinta. Mesmo assim, são os assessores mais importantes do presidente. Mais, muito mais importantes do que a equipe econômica, para dar um exemplo que parece inverossímil. A economia vai bem, ora, quer dizer, mais ou menos. Isto é, vai bem para uns; para outros, vai mal. E mesmo que fosse mal para todos, no meio de uma depressão com inflação descontrolada, seriam esses os assessores que teriam a voz mais ativa na administração do Estado. Eles são basilares.

A reunião está marcada há tempos e deveria ser corriqueira. Mas começou no meio da tarde e até agora, quase madrugada, ainda vai se arrastando. O que era para ser uma mera vista de olhos sobre resultados felizes terminou como violenta lavagem de roupa suja. Desde as primeiras trocas de palavras. O tempo começara a fechar pouco antes da hora do almoço, quando chegou, via fax, a última pesquisa. Ao choque dos maus números, seguiu-se uma corrente de telefonemas e e-mails.

Você viu?

Vi. E agora?

Ou então:

Você viu?

Não. E aí?

C’est de la merde.

Os espíritos, a esta hora, já passaram da fase de exaltação, aquela em que uns e outros se acusam disso e daquilo, e é concreto o risco de passar às vias de fato. Agora, os espíritos já atingiram o ponto de suprema fadiga, em que a reunião se torna inútil, porque nada de racional poderá ser decidido. Mas ninguém quer admitir que é hora de interromper os debates. Amanhã, todos sabem, vão ouvir. Vão ouvir muito. De colegas, superiores, jornalistas e, claro, do próprio presidente, na figura de seu secretário particular.

Parece que as estratégias foram todas vãs. Os números insistem em associar a imagem do chefe de Estado a uma concepção antiquada da política: príncipe frio, distante, homem de puro cálculo e nenhum contato com a realidade do povo. Contra todos os esforços dessa equipe brilhante, formada pelas melhores cabeças das melhores escolas de marketing e recursos humanos, a população simplesmente não quer acreditar que está diante de um caso diferente. E agora?

Tudo já foi tentado. Ainda quando o hoje presidente era apenas um político ambicioso, decidiu-se voltar os canhões para o reclame de sua formação diferente. Ele não veio das mesmas escolas tradicionais de sempre, e isso é muito bom, porque significa que não terá as mesmas idéias tradicionais de sempre. Os mesmos vícios. Suas raízes não estão naqueles meios aristocráticos dos antecessores. É filho de imigrante, seu sobrenome logo o denuncia. Esse cara é novidade. Esse cara é renovação.

Deu certo. Na campanha, encarnou o jovem dinâmico e trabalhador, que entende as angústias de toda essa gente correta, que ganha a vida honestamente e não quer saber de confusão, insegurança, ameaças à humilde e digna mediocridade. Finalmente! Um candidato que torcia o nariz para aquela gente esquisita, com idéias esquisitas e ultrapassadas, aquela gente que dominava a política até então. Contra os velhos embates entre visões antagônicas do futuro, que ameaçavam arruinar a nação, apresentava-se alguém com a promessa única de construir o presente. E sobre quais bases? As da ordem a qualquer preço, da segurança em primeiro lugar, do trabalho acima de tudo. Pronto. Foi eleito.

O prestígio da equipe de mídia chegou ao ápice. A partir dali, eles teriam plenos poderes para decidir o que o presidente diria e faria; mas, principalmente, estava a cargo deles a definição de como o presidente diria e faria o que dissesse e fizesse. Anunciar maus resultados do consumo interno, por exemplo, nem pensar. Caberia ao velho ministro, ao jovem porta-voz, a qualquer um. Menos ao líder intocável. Este deveria trajar uma carapaça moral, para o bem da nação.

Logo após o feliz decreto das urnas, parecia uma boa idéia enviá-lo em férias – merecidas, diga-se – para uma ilha, em companhia de um grande empresário, admirado e invejado através do país. Parecia coisa que gente jovem, dinâmica, com a cabeça aberta, faz. Mas a população não entendeu assim. Pegou mal. Os jornais reclamaram muito. Vai saber, insinuavam, qual é o teor das conversas entre o novo presidente e uma raposa que investe em energia, transportes, mídia…

Passaram à tática seguinte para reforçar a imagem de saudável novidade que tentavam colar ao chefe. Quer dizer que o homem gosta de um jogging pela manhã? Pois então, vai correr diante das câmeras, vai discutir orçamento com a ministra da Cultura enquanto corre, vai convidar os presidentes de países vizinhos para acompanhá-lo na corrida, vai dar entrevistas entre um pique e outro. O importante é aparecer bastante no jornal do horário nobre, em roupas de ginástica e ao ar livre. Nada de se exercitar na academia do palácio, recluso, como faziam os outros!

Mais uma vez, face à desconfiança persistente do público, foi necessário alterar a estratégia. Um divórcio. Assim, escancarado. Quantos daqueles políticos tradicionais teriam coragem de se separar enquanto estivessem no cargo, arriscando o pescoço diante da opinião pública conservadora? Ora, nenhum. Pois um processo traumático desses ocuparia as manchetes, com certeza, por mais de um mês. Os índices de desemprego seriam relegados a uma nota de página par! Imagine, quanta identificação, quanta empatia, quando o povo soubesse que o presidente é tão normal, “como todo mundo”, que foi até traído pela mulher! Mas, estranhamente, houve pouco mais do que alguns comentários chistosos, nos botecos e nos cartuns, sobre o “reizinho corno”. E o assunto morreu.

Com poucos meses de governo, o presidente já foi visto comentando jogo de futebol, ensinando receita de batata assada, fazendo compras em supermercado. Cantou ao lado de seu ídolo, perdeu no tênis para o presidente do Congresso, pediu a um ditador africano, com educação, para que respeitasse os direitos humanos. Tudo detalhadamente noticiado, nos jornais, nas rádios, na televisão, na internet.

A última grande jogada, de que muito se orgulha o mais jovem dos membros da equipe, mentor da idéia, foi a manhã de domingo no parque de diversões. Quantas vezes um chefe de Estado, categoria humana grave e rígida, foi fotografado despencando em montanhas-russas ou abraçando o Pato Donald? Brilhante! Melhor do que isso, só mesmo aproveitar a ocasião para tornar público, como se sem querer, o namoro com uma manequim famosa-famosíssima. Genial. O mais indiferente dos públicos não escaparia.

Mas, como indica essa última pesquisa, nem o algodão-doce com a amada deu resultado. Para o cidadão médio, esse aí é igual a todos os presidentes anteriores. A mesmíssima coisa. Só um pouco mais saidinho. Não se sentem mais próximos de seu líder, nem sentem o líder mais próximo. E os brilhantes assessores se vêem sem resposta. Já passada a meia-noite, ninguém consegue pensar em nada. Sumiram as ideias. Todos estão exaustos. Olhos pesados, respiração curta. Ainda tentaram discutir mais uma resposta agressiva ao problema. Algo sobre um casamento. Com a modelo, é claro. Mas é impossível saber se a idéia é boa. Todas as outras pareciam ótimas, foram testadas no mercado internacional… enfim.

É tarde. Desistem. Os profissionais, cabisbaixos, tomam suas pastas e vão partindo. Um a um. Estão desanimados, nem procuram disfarçar as olheiras e os ombros encurvados. O que dizer desses consumidores? Ah, francamente! São imprevisíveis.

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Brasil, crônica, escândalo, ironia, lula, opinião, Politica, reflexão

O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

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direita, eleições, esquerda, frança, francês, história, imprensa, ironia, opinião, paris, Politica, reflexão, sarkozy

A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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arte, Brasil, direita, esquerda, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Informação e ânimos exaltados

Todos+os+homens+do+presidente+capa
Muito interessantes, as reações que causou o último texto. Em primeiro lugar, nunca tive tantas visitas, o que é algo a comemorar; por outro lado, o fato de que uma boa parte dessas visitas tenha chegado através do webmail do Ministério Público Federal de vários Estados é bem preocupante. Em segundo lugar, meu comentário (que se queria frio) sobre a baixa qualidade da reportagem produzida no Brasil, com um breve sumário de algumas de suas possíveis razões, foi recebido quase como um manifesto revolucionário. Parece que tocar no nome da revista Veja suscita paixões intempestivas nas pessoas. O quadro é mais ou menos assim: de um lado, há os que sorvem aquelas páginas coalhadas de adjetivos depreciativos como se fosse o néctar do Olimpo. De outro, há toda uma multidão de ex-leitores que só esperam a oportunidade para empastelar o carro-chefe dos Civita.

Houve gente que, comentando minha análise, falou em derrubada de ditaduras, o que me pareceu um tanto fora do contexto, mas, enfim, ninguém é obrigado a ler os textos que comenta. Ao mesmo tempo, alguns leitores aproveitaram a oportunidade para descarregar, numa enxurrada de palavrões, toda a raiva contida contra a revista. Aliás, agradeço aos que tiveram a discrição de fazê-lo por e-mail, em vez de baixar o nível na minha caixa de comentários. Aos demais, lamento não ter podido aprovar suas intervenções, e peço que as reescrevam em tom menos agressivo. A propósito, também seria adequado se aqueles que se irritaram com o que lhes pareceu uma ofensa à sua revista preferida se abstivessem de cumprir a promessa de atentar contra a integridade física do ofensor. O tempo de preparar a vingança seria melhor empregado na releitura do texto, com a cabeça mais fria.

Curiosamente, os comentários sobre o próprio Nassif foram parcos. Sobre seu trabalho de reportagem, quase nulos. A maior parte preferiu desviar o foco para seu caráter: para uns, um semi-deus. Para outros, um sujeitinho anti-ético, como mostraram as acusações de Diogo Mainardi (explicaram-me, mais tarde, que as tais acusações são, na verdade, um parágrafo de uma coluna na própria Veja, em que Mainardi insinua, sem afirmar peremptoriamente, que Nassif teria, quem sabe, sido favorecido pelo governo). Cá entre nós, não tenho a menor idéia do padrão ético do jornalista; jamais colocaria a mão no fogo por ele. Achava suas crônicas da Folha, enviadas sempre com atraso, terrivelmente sem graça. Também sou da opinião de que alguém que conhece a música de Danilo Brito não pode apreciar a técnica de Nassif ao bandolim. Mas repito o conteúdo do último texto: o trabalho de reportagem que ele vem fazendo nas suas catilinárias anti-Veja é de primeira qualidade, e todo esse debate ganharia muito se o outro lado se propusesse a agir da mesma forma.

Certos comentários causaram reflexões que quero compartilhar. Antes de mais nada, preciso esclarecer um ponto fundamental. Um esperto homem de Marketing afirmará, sem dúvida, que os sentimentos suscitados por Veja depõem a seu favor. Mantêm a marca em evidência; são, no fundo, uma publicidade gratuita; podem até aumentar a circulação e fortalecem a posição do veículo como porta-voz das idéias de uma parcela da sociedade. Mas eu discordo inteiramente. Para mim, o irracionalismo que cerca a avaliação que o público tem de Veja é um indício de que ela não cumpre sua função como imprensa. Jornais e revistas não são feitos para serem amados e odiados. São feitos para serem respeitados e lidos. Sei que não é assim no Brasil, terra de Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues e Carlos Lacerda, mas em sociedades minimamente organizadas, respeito e leitores não se conquistam com sentimentos animalescos como os que Veja suscita, e sim com credibilidade. Credibilidade, um conceito que deveria ser fundamental na imprensa, mas que vou deixar para discutir mais adiante.

Agora, prefiro comentar um pedaço do aparte de meu amigo Leonardo: a Veja, segundo ele, deixou de ser um veículo de informação para ser um veículo de opinião. No entendimento de Leo, pelo que me pareceu, há aí dois erros: deixar de ser um veículo de informação e passar a ser um veículo de opinião. Se for isso mesmo, discordo. Para mim, só há um erro nessa frase, que é deixar de informar. Ser um veículo de opinião não é crime nenhum. Todos os grandes jornais do mundo são fortemente opinativos e deixam suas opiniões bem claras. O melhor exemplo é o da revista britânica The Economist. Sua posição é bem simples: a favor do liberalismo econômico e fim de papo. A Fox News é uma rede de televisão francamente favorável ao governo Bush, e isso não foi problema algum até o momento em que ficou claro que ela manipulava informações para isso. O New York Times nunca escondeu sua preferência pelo Partido Democrata. O Última Hora, de Samuel Wainer (cuja autobiografia merece um texto à parte), jamais escondeu sua linha getulista. A Carta Capital, quando das eleições de 2002, colocou-se, em editorial, claramente favorável a Lula. Quem, na França, não sabe que o Le Figaro é o jornal da direita tradicional, o Le Monde, da direita moderna, também conhecida como centro, e o Libération, um jornal francamente de esquerda? Tem também o famoso La Croix, que jamais precisou esconder o fato patente de que pertence à Igreja Católica.

A opinião está longe de ser proibida aos veículos de imprensa; aliás, muito pelo contrário. Redação nenhuma é habitada por almas cândidas, incapazes de parcialidade. No entanto, o trotskista mais ferrenho não cometerá a sandice de afirmar que a The Economist só tem “mentiras”. Será tomado por louco varrido, mesmo entre seus colegas, se o fizer. Mesmo um leitor republicano, um verdadeiro neocon, poderá ler o NYT sem medo de encontrar inverdades publicadas ali por motivos políticos. Quando um jornalista foi flagrado inventando matérias no jornal, e o assunto nem era política, foi sumariamente demitido. Mas o mais importante é que a edição seguinte do jornal continha um enorme mea culpa. Por que esse ato de contrição tão reforçado? Porque a pior coisa que poderia acontecer ao jornal seria perder sua credibilidade.

E, pronto, eis-nos de novo nela. A tal credibilidade. O trotskista respeita a The Economist porque sabe que o jornalismo feito ali é sério, ele o vê nas matérias. Sabe quais são as fontes, sabe quais são os documentos, tem acesso à redação. O republicano respeita o NYT pelo mesmo motivo. Aqui na França, jamais escutei de alguém de direita a frase: “Ah, deu no Libé [ou no Nouvel Observateur, por outra]? Então é mentira, eles são de esquerda!” Nem ouvi a proposição inversa da boca de um esquerdista, dispensando algo que tenha saído no Figaro. É como se isso só existisse no Brasil.

Falando em Brasil, uma pergunta: que veículo em nosso país pode reclamar o título de credível? Penso, penso, penso, não encontro nenhum. A Veja está na berlinda por causa dos artigos de Nassif e por ser a revista de maior circulação. Mas, por exemplo, poderiam ser as Organizações Globo, condenadas pelo próprio passado. Tomando uma Veja entre as mãos, nunca sei se algo que esteja escrito ali é verdadeiro ou falso. Já houve casos em que a falsidade era evidente. Certa vez, topei com um diagrama que não citava, nem naquelas letras minúsculas que ninguém lê, qual foi o instituto que cedeu os dados. Se a incerteza pode chegar a esse ponto, como posso dar crédito a todo o resto? A dúvida paira sobre a totalidade do que está publicado na revista. O resultado é que mesmo os dados que eventualmente forem verdadeiros, e a grande maioria o é (pelo menos, espero que seja), recebem o selo amargo da desconfiança. É por isso que as pessoas de bom senso que conheço estão gradualmente abandonando a imprensa brasileira. É por isso que as empresas andam às voltas com problemas financeiros gravíssimos. É por isso que os melhores jornalistas migram para a internet em páginas pessoais. E seria muito pior, se o Brasil tivesse um público leitor que soubesse exigir credibilidade.

Para terminar, uma palavra sobre o conceito de “denúncia”. Quem acha que o jornalismo brasileiro, do qual Veja é um dos maiores expoentes, faz maravilhosas denúncias (sobretudo contra o governo) deveria buscar um livro chamado Todos os homens do presidente, de Bob Woodward e Carl Bernstein. Aos cultos, desculpe citar uma obviedade. Aos preguiçosos, não desanimem: há um filme homônimo, com Robert Redford e Dustin Hoffman. Eis ali um verdadeiro trabalho de reportagem investigativa que resultou, de fato, na derrubada de um presidente, graças à qualidade técnica com que foi realizada. Assim como acontece no Brasil, uma fonte interna deu a dica do caminho a seguir. Mas, ao contrário de nosso procedimento tupiniquim, em vez de botar a boca no trombone com o famoso “fontes ligadas ao palácio afirmam que…”, os dois americanos se enfiaram nos dados, nas conexões, nas entrevistas e nos telefonemas. Foram apoiados pelo editor-executivo, o célebre Ben Bradlee, apesar de todas as pressões que se podem imaginar. O que conseguiram, graças a um trabalho sério que mal conseguimos compreender no Brasil, foi mudar a história dos Estados Unidos. Sem precisar de piadinhas infames.

Paro por aqui, porque o texto está enorme. Espero ter deixado claro o que ficou obscuro no primeiro texto. Concordo com quem diz que a imprensa tem um papel de vigiar o poder, e acho impressionante como tanta gente esquece que existe uma maneira de fazer isso, e essa maneira se chama “jornalismo”. Não é de hoje que nossos veículos de comunicação deixaram para lá esse pequeno detalhe quando decidem bater no governo. Há muita gente que gostaria, por exemplo, de ver Lula sofrer um processo de impeachment, e se escandalizam porque os ataques da imprensa não conseguem derrubá-lo. Pois eu lanço aqui um balão de ensaio: certamente existem fatos e dados suficientes para justificar que o presidente seja afastado do cargo. Certamente esses fatos e dados estão acessíveis à imprensa. Concluindo: se a imprensa quiser, de fato, tirar Lula do poder, ela tem plena capacidade de fazê-lo. E lá vai a pergunta capital: por que os ataques ao presidente ficam só na retórica e não lançam mão de suas verdadeiras armas?

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