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Os oprimidos somos nós. Augusto Boal: 1931-2009

Nem me lembrava de que Augusto Boal estava com leucemia. A notícia de sua morte acabou sendo uma surpresa, e reativou meu estranho gosto pelos obituários. Ainda não vi as matérias da imprensa brasileira sobre a partida do nosso velho mestre do engajamento teatral, e nem sei se devo. Me disseram que, no mais das vezes, foram só notas de rodapé; ademais, já sei que o máximo de profundidade que posso esperar é a constatação de que o Teatro do Oprimido tinha uma inspiração “de esquerda”. E é verdade, claro… até porque só na esquerda se fala em opressão. Os religiosos preferem o termo “exclusão”, e a direita, “marginalização”. Mistérios do idioma…

Opa, nada de digressões. O assunto, hoje, é o Boal, que não era um homem da política, embora fosse politizado e embora tenha sido vereador no Rio. Boal, formado e doutorado em química, era um homem do teatro. Perder-se em considerações sobre suas inclinações políticas, deixando de lado seu teatro, é nada menos do que cretinice. Sendo assim, o que interessa é perguntar: qual é o segredo de seu teatro, que o alçou à história?

Boal fazia parte daquele estranho grupo de artistas brasileiros que vivem um pouco no ostracismo no Brasil, mas são reverenciados no resto do mundo. Não sei se é por causa dos muitos anos de exílio de um sujeito que, enquanto a ditadura não conseguiu metê-lo no pau-de-arara, dirigiu o Show Opinião no Rio, comandou o Teatro de Arena em São Paulo e levou ao palco os textos mais contestadores de Vianinha e Gianfrancesco Guarnieri. Talvez, de fato, sua passagem por Argentina, Peru, Portugal e França, entre outros países, tenha disseminado tantos centros de Teatro do Oprimido por aí, que os brasileiros achem desnecessário comentar.

Pode ser. De qualquer forma, desmistifica aquela velha história de que o brasileiro só reconhece seus gênios depois que o estrangeiro os aplaudiu. Isso só é verdade, digamos assim, quando convém. Contudo, por algum motivo, alguém que vem interromper o curso normal da vida para colocar coisas em questão é qualquer coisa de muito exasperante para o brasileiro. Não convém… e é o caso do Boal; talvez isso explique melhor o silêncio em torno dele. Fico imaginando o que diriam certos articulistas e blogueiros se, no ano passado, ele tivesse ganho o Prêmio Nobel da Paz a que foi indicado.

O fato é que, com o Teatro do Oprimido, Boal foi aquele que conseguiu os melhores resultados, na arte do ator, para uma tendência que permeou talvez todas as formas de expressão artística a partir dos anos 60: sair à rua. Isso não é nada fácil e não deve ser confundido com apresentar-se na rua ou colher material e inspiração na rua, coisas que sempre existiram. Trata-se, na verdade, de introduzir a rua no campo da investigação estética. Por rua, entenda-se vida, porque a rua é o terreno do imprevisível, do anônimo, do fugaz. Justamente onde a vida é menos percebida e, por isso mesmo, mais latente.

Um bom exemplo é o do artista plástico francês Daniel Buren, que emprega sempre a mais banal das estratégias – listas brancas e coloridas ou negras, de tamanho definido e imutável há quarenta anos – para emoldurar as paisagens urbanas. Com isso, o transeunte, o cidadão, é levado por seu próprio inconsciente a se dar conta do lugar em que vive, de tudo aquilo que ele sempre tomou por irrelevante, invisível, indistinto no meio da percepção borrada que todos temos de nossa existência.

Se artistas como Buren transformam a cidade em arte pela introdução de uma moldura, Augusto Boal transformava o cidadão em ator pela reversão das expectativas. Ao mesmo tempo, o gesto simples de inventar situações apenas ligeiramente desviadas do banal transformava os artistas proponentes numa espécie de plateia. Em outras palavras, a separação milenar entre palco e público se desmaterializou pelo abraço de Boal. Um abraço perturbador, mas caloroso mesmo assim.

O oprimido em questão é, sim, em primeiro lugar, aquele que jamais teve voz no teatro, na política, na vida, em lugar algum. Em outras palavras, a imensa população do “andar de baixo”.  Mas não se limita a isso. Num ambiente urbano maquinal e racionalizado, onde o indivíduo está reduzido a um glóbulo vermelho na circulação incessante, cada um de nós é um oprimido. Por mais que falemos, critiquemos, peroremos, somos todos sem voz, como aqueles que Boal queria atingir. Talvez o mais perturbador, nas intervenções do Oprimido, seja essa constatação: o som que sai de nossas bocas no dia-a-dia nada mais é do que a reprodução desse dia-a-dia. Isso, claro, até que sejamos chamados a dar um passo fora da linha.

Levar o teatro para a rua (ou, melhor dizendo, para a vida real) não precisa nem de uma rua. A primeira experiência que levou ao Oprimido foi o Teatro-jornal, que Boal praticava no Arena de São Paulo no início dos anos 70. Para quem esqueceu, jornal brasileiro, nos anos 70, só publicava as notícias que interessavam à ditadura, quando e como lhe interessavam. Dramatizando essas notícias, numa sala de aula, num palco, em qualquer lugar, muito do que elas não diziam vinha à tona.

Depois, com o Teatro Invisível, um peteleco de situação inesperada transforma o espaço-tempo do esquecimento diário num espetáculo de improviso e consciência. Ironicamente, pelo fato de ser invisível, o teatro de Boal tem o poder de tornar visíveis todas aquelas coisas que normalmente não vemos ou não queremos ver. Nesse intuito, assim como para Daniel Buren bastam listas alvinegras, para Boal bastava uma fagulha banal – uma discussão de casal, uma carteira perdida, um pedido de ajuda – e o mundo inteiro se tornava arte, da noite para o dia. Numa metáfora um pouco pobre, Augusto Boal foi o escultor que se despreocupou do velho hábito de talhar o mármore e preferiu esculpir um magnífico pedestal, com que atraiu a atenção para o mundo em que realmente vivemos.

Agora, o pulo do gato: por que será que somos – nós, os brasileiros – sempre tentados a considerar qualquer iniciativa de deslocar o eixo da percepção individual como uma perigosa atitude esquerdista-subversiva-revolucionária? Será possível que toda busca de uma consciência de si e do mundo, fora do quadro corrente das nossas condições de vida, seja um atentado à ordem social? Esqueçamos, por um momento, a posição política que Augusto Boal, de fato, possuía. Será que qualquer indivíduo, sendo levado a olhar para sua vida e seu dia-a-dia de uma outra maneira – e uma maneira produzida pela sua própria racionalidade –, é um candidato a derrubar os fundamentos da sociedade?

É o que parece indicar a desconfiança que muita gente dedica ao trabalho de Boal. Porém, se isso for verdade, nada mais é do que um sintoma de que algo vai mal. Se a ascensão de pessoas comuns a uma compreensão mais autônoma de sua própria existência implica um risco para a sociedade, então essa sociedade é assustadoramente instável. Deve estar assentada sobre bases um tanto frágeis, para não dizer inviáveis. Não precisa ser nenhum revolucionário para se dar conta disso, mas devemos a Boal a possibilidade de constatá-lo. A Boal e, claro, à arte.

Mais sobre Boal e o Teatro do Oprimido:

CTO Rio

Itaú Cultural

Sobre a morte de Boal

Wikipédia (inglês)

Núcleo de TO em Porto Alegre

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alemanha, Brasil, crônica, descoberta, férias, frança, história, inglaterra, inglês, ironia, Itália, London, opinião, paris, parque, passado, passeio, praça, prosa, reflexão, Rio de Janeiro, saudade, São Paulo, tempo, trem, tristeza, viagem, vida

Das cidades, como do amor

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Certo amigo costuma dizer que nossa relação com as cidades é como as relações amorosas. Ele diz, por exemplo, que Roma é cidade para namorar; Paris, para casar. Não peça explicações para seu julgamento, por favor! Essas coisas, todo mundo sabe, são o que há de mais pessoal. Sendo assim, minha opinião e a dele têm lá suas diferenças, como era de se esperar, mas não posso negar que a analogia tem sentido.

Jamais, para ilustrar, eu me meteria num namoro com Roma. Eis aí, ouso dizer, uma cidade a ser tratada com toda a cafajestagem que faz a má fama dos homens, isto é, a velha trinca: álcool aos litros, elogios absurdos e telefone falso. Já Paris, é difícil dizer; anos atrás, talvez eu também pensasse nela como uma cidade para casamento, filhos e aposentadoria. Sempre, claro, com separação de bens, que seguro morreu de velho e o europeu é tudo, menos confiável.

Mas, passados dois anos e meio, vejo que esta é uma cidade com que se pode ter no máximo um relacionamento razoavelmente durável, feito de passeios e conversas deliciosas, ou de exibi-la como prenda para saborear a inveja nos olhares todos que se voltam para sua companheira. É que esses invejosos não têm idéia do que possa ser a vida com a prima donna que compartilha de sua intimidade. As pequenas irritações, manias e exigências. O egoísmo de quem foi criada para só merecer admiração e cuidados. A distância insolente de quem pensa ser sempre precisada e nunca precisar. Essa é Paris, a cocotte.

Desenvolvendo a analogia suscitada por meu amigo, venho pensando nas muitas relações diferentes que mantenho com as cidades que conheci, e mesmo com algumas em que nunca estive, no que poderia ser classificado, para seguir na linha amorosa, como fantasias. É sempre tão irracional, circunstancial, acidental, quanto tudo o mais na nossa vida, menos aquilo que, ainda irracionalmente, acreditamos tratar com a razão. E o curioso é que, ao contrário das relações que um sujeito normal pode ter com mulheres no longo prazo, com as cidades é possível viver dezenas de romances simultâneos, na imaginação como na carne. Afinal, a não ser que seja mitologicamente histérica, a cidade em que está fincado nosso lar jamais terá ciúmes de uma visitinha que façamos a alguma outra nas férias ou no fim-de-semana. Turismo, neste caso, não é adultério.

Minhas relações mais complicadas são, é claro, com as cidades brasileiras. Estive nelas a maior parte da vida, balancei entre umas e outras, em tantas briguei e amei, com tantas rompi e reatei. Por sinal, já falei um pouco disso em outros cantos. Agora é hora de pensar nas estrangeiras, que, além de tudo que uma cidade já normalmente significa, têm ainda o mistério da outra cultura, da diferença, da variação infinita dos povos.

Buenos Aires, a misteriosa cigana sentada a uma mesa no fundo do salão, que dirá coisas absurdas ao ser abordada, rirá em desvario de enunciados que nem terão sido piadas, mas levará o parceiro à loucura em mais de um sentido. Lisboa, sempre à espera, para amolecer os membros e as articulações pela mera força de seu olhar de melancolia e devaneio. Barcelona, fulgor sufocante de um caso de verão regado a música e boa bebida, papos despretensiosos sobre arte que não entendemos, mas amamos, depois uma despedida sem tristeza. Berlim, divina e altiva, sempre sedutora e simpática, mas brilhante demais, muito poderosa e difícil, a ponto de não termos nem coragem de tentar uma aproximação. E assim por diante.

Dentre todas essas, há uma cidade que não consigo descrever nesses termos. Talvez seja aquela que conhecemos na primeira juventude, para um amor que ainda não consegue se reconhecer como grande ou pequeno, e depois perdemos de vista, para depois reencontrar um pouco mais tarde e sentir a mesma coisa, sabendo que é recíproco. E assim, sucessivamente, talvez pelo resto da vida, curtos momentos de pura felicidade, mas que não podem se estender, e que às vezes nem se concretizam, como quando há algum outro relacionamento em curso e não estamos dispostos a interrompê-lo.

É Londres, louca terra dos carros na esquerda, da polidez inquestionável polindo a superfície de uma frieza involuntária, dos preços altos para tudo que não seja cerveja. Capital de um império caído que ainda se vê em todas as caras, nas feições que os povos subjugados transmitiram ao opressor para toda a eternidade. Londres que divide os sonhos entre a glória austera dos tijolos vitorianos e e o brilho vertical de vidro que atesta o triunfo do século americano. Green grass, grey sky, God bless. Venha o que vier, serão sempre deliciosas as tortas e a geléia que acompanham o chá.

Mas não há modo de termos, London, London, nada mais, neste momento, do que isso que tivemos nas duas últimas semanas. As caminhadas no South Bank, o teatro esplêndido do West End, as bolas de neve no Green Park, de nome subitamente tão irônico debaixo da nevasca histórica que interrompeu o transporte através do Reino Unido. Tudo isso será inesquecível, como sempre foi. Mas a vida agora é além-túnel, além Mancha, naquilo que teus habitantes, ainda mais petulantes do que são excêntricos, chamam desdenhosamente de “Europa”. Mas Paris, minha cara, é o contra-exemplo de um diamante que não é eterno. Quem sabe o que traz velado o futuro?

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Brasil, cartola, Clara Nunes, costumes, crônica, direita, fotografia, história, imagens, línguas, música, opinião, passado, passeio, português, prosa, reflexão, Rio de Janeiro, saudade, São Paulo, tempo, tristeza, viagem, vida

Ao som do mar e à luz do céu profundo

É de manhã, vem o sol, mas os pingos da chuva que ontem caiu ainda estão a brilhar

É de manhã, vem o sol, mas os pingos da chuva que ontem caiu ainda estão a brilhar

Como todo mundo no Brasil, sempre fui de encarar as datas cívicas como desculpas para os feriados. Hoje, se estivesse em São Paulo, imprecaria contra os céus por encaixar o dia da pátria num domingo, quando não faz diferença e não dá para ir à praia.

Mas, bolas, nada como a distância para fazer de nossos cínicos uns sentimentalóides. Eis que me flagro com vontade de celebrar o sete de setembro. Nada grandioso. As patriotadas são coisa do passado ou de gente que sofreu a lavagem cerebral de uma educação anacrônica. Honestamente, me assustam, e fazem pensar no irracionalismo belicista de outros tempos e outras nações.

O sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo, e a natureza sorrindo, tingindo, tingindo

O sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo, e a natureza sorrindo, tingindo, tingindo

O verdadeiro patriotismo é coisa que praticamos com muita competência no Brasil, embora não pareça, embora nos tomemos todos por uns hipócritas entreguistas ou corruptos. É ter prazer em conversar em nossa própria língua, com nossos tantos sotaques. É salivar pelos pratos e quitutes de nossas culinárias, com intensidade particular, diferente do prazer em provar a comida dos outros. É admirar as paisagens, reconhecê-las e tirar delas lembranças e utopias. É conhecer uma infinidade de melodias e poemas, recitá-los, cantar junto.

Não porque, e isso é o mais importante, sejamos melhores do que os demais países em qualquer dessas coisas. Mesmo se, eventualmente, formos mesmo. Mas fundamentalmente porque são coisas nossas, são nossas coisas.

O verdadeiro patriota, portanto, deve entender que as maravilhas de seu país não caíram do céu, mas também ele não está condenado a seus defeitos.

Para o verdadeiro patriota, é sempre possível conceber seu país melhor do que é. O verdadeiro patriota pode imaginar, distante no futuro, a nação em outro patamar de civilização, sem que seus pares estejam autorizados a acusá-lo de desprezar o presente.

Por um motivo muito simples. O verdadeiro patriota é aquele que sabe que, para chegar aonde se deseja, há simplesmente que fazer por onde.

Um pouco de uma raça que não tem medo de fumaça e não se entrega não

Um pouco de uma raça que não tem medo de fumaça e não se entrega não

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arte, Brasil, direita, esquerda, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Informação e ânimos exaltados

Todos+os+homens+do+presidente+capa
Muito interessantes, as reações que causou o último texto. Em primeiro lugar, nunca tive tantas visitas, o que é algo a comemorar; por outro lado, o fato de que uma boa parte dessas visitas tenha chegado através do webmail do Ministério Público Federal de vários Estados é bem preocupante. Em segundo lugar, meu comentário (que se queria frio) sobre a baixa qualidade da reportagem produzida no Brasil, com um breve sumário de algumas de suas possíveis razões, foi recebido quase como um manifesto revolucionário. Parece que tocar no nome da revista Veja suscita paixões intempestivas nas pessoas. O quadro é mais ou menos assim: de um lado, há os que sorvem aquelas páginas coalhadas de adjetivos depreciativos como se fosse o néctar do Olimpo. De outro, há toda uma multidão de ex-leitores que só esperam a oportunidade para empastelar o carro-chefe dos Civita.

Houve gente que, comentando minha análise, falou em derrubada de ditaduras, o que me pareceu um tanto fora do contexto, mas, enfim, ninguém é obrigado a ler os textos que comenta. Ao mesmo tempo, alguns leitores aproveitaram a oportunidade para descarregar, numa enxurrada de palavrões, toda a raiva contida contra a revista. Aliás, agradeço aos que tiveram a discrição de fazê-lo por e-mail, em vez de baixar o nível na minha caixa de comentários. Aos demais, lamento não ter podido aprovar suas intervenções, e peço que as reescrevam em tom menos agressivo. A propósito, também seria adequado se aqueles que se irritaram com o que lhes pareceu uma ofensa à sua revista preferida se abstivessem de cumprir a promessa de atentar contra a integridade física do ofensor. O tempo de preparar a vingança seria melhor empregado na releitura do texto, com a cabeça mais fria.

Curiosamente, os comentários sobre o próprio Nassif foram parcos. Sobre seu trabalho de reportagem, quase nulos. A maior parte preferiu desviar o foco para seu caráter: para uns, um semi-deus. Para outros, um sujeitinho anti-ético, como mostraram as acusações de Diogo Mainardi (explicaram-me, mais tarde, que as tais acusações são, na verdade, um parágrafo de uma coluna na própria Veja, em que Mainardi insinua, sem afirmar peremptoriamente, que Nassif teria, quem sabe, sido favorecido pelo governo). Cá entre nós, não tenho a menor idéia do padrão ético do jornalista; jamais colocaria a mão no fogo por ele. Achava suas crônicas da Folha, enviadas sempre com atraso, terrivelmente sem graça. Também sou da opinião de que alguém que conhece a música de Danilo Brito não pode apreciar a técnica de Nassif ao bandolim. Mas repito o conteúdo do último texto: o trabalho de reportagem que ele vem fazendo nas suas catilinárias anti-Veja é de primeira qualidade, e todo esse debate ganharia muito se o outro lado se propusesse a agir da mesma forma.

Certos comentários causaram reflexões que quero compartilhar. Antes de mais nada, preciso esclarecer um ponto fundamental. Um esperto homem de Marketing afirmará, sem dúvida, que os sentimentos suscitados por Veja depõem a seu favor. Mantêm a marca em evidência; são, no fundo, uma publicidade gratuita; podem até aumentar a circulação e fortalecem a posição do veículo como porta-voz das idéias de uma parcela da sociedade. Mas eu discordo inteiramente. Para mim, o irracionalismo que cerca a avaliação que o público tem de Veja é um indício de que ela não cumpre sua função como imprensa. Jornais e revistas não são feitos para serem amados e odiados. São feitos para serem respeitados e lidos. Sei que não é assim no Brasil, terra de Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues e Carlos Lacerda, mas em sociedades minimamente organizadas, respeito e leitores não se conquistam com sentimentos animalescos como os que Veja suscita, e sim com credibilidade. Credibilidade, um conceito que deveria ser fundamental na imprensa, mas que vou deixar para discutir mais adiante.

Agora, prefiro comentar um pedaço do aparte de meu amigo Leonardo: a Veja, segundo ele, deixou de ser um veículo de informação para ser um veículo de opinião. No entendimento de Leo, pelo que me pareceu, há aí dois erros: deixar de ser um veículo de informação e passar a ser um veículo de opinião. Se for isso mesmo, discordo. Para mim, só há um erro nessa frase, que é deixar de informar. Ser um veículo de opinião não é crime nenhum. Todos os grandes jornais do mundo são fortemente opinativos e deixam suas opiniões bem claras. O melhor exemplo é o da revista britânica The Economist. Sua posição é bem simples: a favor do liberalismo econômico e fim de papo. A Fox News é uma rede de televisão francamente favorável ao governo Bush, e isso não foi problema algum até o momento em que ficou claro que ela manipulava informações para isso. O New York Times nunca escondeu sua preferência pelo Partido Democrata. O Última Hora, de Samuel Wainer (cuja autobiografia merece um texto à parte), jamais escondeu sua linha getulista. A Carta Capital, quando das eleições de 2002, colocou-se, em editorial, claramente favorável a Lula. Quem, na França, não sabe que o Le Figaro é o jornal da direita tradicional, o Le Monde, da direita moderna, também conhecida como centro, e o Libération, um jornal francamente de esquerda? Tem também o famoso La Croix, que jamais precisou esconder o fato patente de que pertence à Igreja Católica.

A opinião está longe de ser proibida aos veículos de imprensa; aliás, muito pelo contrário. Redação nenhuma é habitada por almas cândidas, incapazes de parcialidade. No entanto, o trotskista mais ferrenho não cometerá a sandice de afirmar que a The Economist só tem “mentiras”. Será tomado por louco varrido, mesmo entre seus colegas, se o fizer. Mesmo um leitor republicano, um verdadeiro neocon, poderá ler o NYT sem medo de encontrar inverdades publicadas ali por motivos políticos. Quando um jornalista foi flagrado inventando matérias no jornal, e o assunto nem era política, foi sumariamente demitido. Mas o mais importante é que a edição seguinte do jornal continha um enorme mea culpa. Por que esse ato de contrição tão reforçado? Porque a pior coisa que poderia acontecer ao jornal seria perder sua credibilidade.

E, pronto, eis-nos de novo nela. A tal credibilidade. O trotskista respeita a The Economist porque sabe que o jornalismo feito ali é sério, ele o vê nas matérias. Sabe quais são as fontes, sabe quais são os documentos, tem acesso à redação. O republicano respeita o NYT pelo mesmo motivo. Aqui na França, jamais escutei de alguém de direita a frase: “Ah, deu no Libé [ou no Nouvel Observateur, por outra]? Então é mentira, eles são de esquerda!” Nem ouvi a proposição inversa da boca de um esquerdista, dispensando algo que tenha saído no Figaro. É como se isso só existisse no Brasil.

Falando em Brasil, uma pergunta: que veículo em nosso país pode reclamar o título de credível? Penso, penso, penso, não encontro nenhum. A Veja está na berlinda por causa dos artigos de Nassif e por ser a revista de maior circulação. Mas, por exemplo, poderiam ser as Organizações Globo, condenadas pelo próprio passado. Tomando uma Veja entre as mãos, nunca sei se algo que esteja escrito ali é verdadeiro ou falso. Já houve casos em que a falsidade era evidente. Certa vez, topei com um diagrama que não citava, nem naquelas letras minúsculas que ninguém lê, qual foi o instituto que cedeu os dados. Se a incerteza pode chegar a esse ponto, como posso dar crédito a todo o resto? A dúvida paira sobre a totalidade do que está publicado na revista. O resultado é que mesmo os dados que eventualmente forem verdadeiros, e a grande maioria o é (pelo menos, espero que seja), recebem o selo amargo da desconfiança. É por isso que as pessoas de bom senso que conheço estão gradualmente abandonando a imprensa brasileira. É por isso que as empresas andam às voltas com problemas financeiros gravíssimos. É por isso que os melhores jornalistas migram para a internet em páginas pessoais. E seria muito pior, se o Brasil tivesse um público leitor que soubesse exigir credibilidade.

Para terminar, uma palavra sobre o conceito de “denúncia”. Quem acha que o jornalismo brasileiro, do qual Veja é um dos maiores expoentes, faz maravilhosas denúncias (sobretudo contra o governo) deveria buscar um livro chamado Todos os homens do presidente, de Bob Woodward e Carl Bernstein. Aos cultos, desculpe citar uma obviedade. Aos preguiçosos, não desanimem: há um filme homônimo, com Robert Redford e Dustin Hoffman. Eis ali um verdadeiro trabalho de reportagem investigativa que resultou, de fato, na derrubada de um presidente, graças à qualidade técnica com que foi realizada. Assim como acontece no Brasil, uma fonte interna deu a dica do caminho a seguir. Mas, ao contrário de nosso procedimento tupiniquim, em vez de botar a boca no trombone com o famoso “fontes ligadas ao palácio afirmam que…”, os dois americanos se enfiaram nos dados, nas conexões, nas entrevistas e nos telefonemas. Foram apoiados pelo editor-executivo, o célebre Ben Bradlee, apesar de todas as pressões que se podem imaginar. O que conseguiram, graças a um trabalho sério que mal conseguimos compreender no Brasil, foi mudar a história dos Estados Unidos. Sem precisar de piadinhas infames.

Paro por aqui, porque o texto está enorme. Espero ter deixado claro o que ficou obscuro no primeiro texto. Concordo com quem diz que a imprensa tem um papel de vigiar o poder, e acho impressionante como tanta gente esquece que existe uma maneira de fazer isso, e essa maneira se chama “jornalismo”. Não é de hoje que nossos veículos de comunicação deixaram para lá esse pequeno detalhe quando decidem bater no governo. Há muita gente que gostaria, por exemplo, de ver Lula sofrer um processo de impeachment, e se escandalizam porque os ataques da imprensa não conseguem derrubá-lo. Pois eu lanço aqui um balão de ensaio: certamente existem fatos e dados suficientes para justificar que o presidente seja afastado do cargo. Certamente esses fatos e dados estão acessíveis à imprensa. Concluindo: se a imprensa quiser, de fato, tirar Lula do poder, ela tem plena capacidade de fazê-lo. E lá vai a pergunta capital: por que os ataques ao presidente ficam só na retórica e não lançam mão de suas verdadeiras armas?

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Ele, um homem sem nome

Escultura+mulher+nua

Pelas cócegas leves que lhe causava o roçar dos pêlos, sentiu a mão que abandonava sua nuca para envolver a curvatura de um seio. Ao contato tão delicado dos dedos, a pele macia cedeu, afundou-se, e o calafrio que disparou por sua espinha a fez apertar os olhos e morder o lábio. Deixou escapar um som abafado. Passou os braços por trás da nuca dele. Pelos cabelos anelados, puxou sua cabeça para trás e assaltou com os seus aqueles lábios escancarados.
O movimento dos dois corpos engatava-se pela harmonia do ritmo. Ele aninhou a cabeça em seu colo, ela apertava com as panturrilhas os rins ligeiramente salientes por baixo das costas encurvadas em sua direção. Sentia como se seu corpo cozinhasse, dois suores se misturando pela fricção, membros que dançavam feito cobras enfeitiçadas. A cada vez que ela expirava, soltava todo o ar de seu interior, e era como se escapasse uma parte de sua alma, vaporosa, à temperatura de ebulição. Passou as unhas, com violência quase descontrolada, pelas costas do homem. Debaixo da pele úmida, a musculatura era tensa, entregue ao esforço de dar prazer. Ele tinha o rosto crispado, rilhava os dentes, grunhia como um urso. Ela teve um acesso de riso, espasmos graves, livres, sem pretensões. Sentia puxões involuntários nos músculos internos das coxas, e seus pés estavam esquecidos, frios, os dedos virados para dentro.
O prazer tomava corpo no passo lento em que os corpos balançavam. Ambos queriam prolongar ao máximo aqueles minutos de simbiose das carnes, sentados sobre um colchão desconhecido, ela por cima, a abraçá-lo com os quatro membros, um limitando o fôlego do outro. Mais cedo ou mais tarde, ela sabia, escaparia de seu bojo um facho elétrico, que apagaria de seu cérebro, por um momento, todo traço de consciência.
Porém, antes que pudesse ser arrebatada pelo orgasmo inevitável, ela percebeu que ele balançava a cabeça com violência, chocando-a contra seus ombros. Seu corpo todo se agitava, tremia, enquanto sua vontade frágil combatia o fluxo que ascendia, de prazer e vida. Foi em vão. Ela sentiu quando, de uma só vez, todo aquele corpo grande, coberto de uma penugem dourada, se deixou relaxar com uma sucessão de espasmos e mais grunhidos nervosos.
Foi impossível evitar o assédio da decepção. Não que o acusasse pela incontinência, mas já antevia a perda da excitação, o amolecimento do parceiro, o final abrupto da relação. Para não terminar o encontro sem o êxtase que merecia, e que chegou a parecer tão próximo, ela seria obrigada a continuar sozinha dali por diante, estimulando o próprio sexo e os sentidos, agarrada à fantasia do que quase havia sido. Não seria uma satisfação tão grande quanto o prazer de ser levada ao gozo pela agressividade habilidosa do parceiro. Porém, se ele não conseguisse evitar de recolher seu estandarte, seria a única alternativa à frustração de não gozar.
Surpreendentemente, ele ainda conseguia. Envolveu sua cintura entre os braços, deitou-a de costas sobre os lençóis e, numa respiração penosa, acelerada, continuou a se movimentar por dentro dela, com afinco redobrado. Não era um atitude natural. Era evidente que, ao contrário, ele obrigava seu corpo a um quase sacrifício, combatendo a tendência fisiológica, que ela bem conhecia, de largar-se e dormir profundamente. Mas ela também sabia que o esforço não daria resultado por muito mais tempo. Se ela não atingisse logo seu próprio ponto de sublimação, ele perderia seu tônus, os órgãos não responderiam e a virilidade de seu membro desmancharia em flacidez. Ela teria de se unir ao esforço do homem para que ele obtivesse algum êxito.
Ela se sentia confusa, mas emocionada. Tocava-a o fato de que ele ainda se preocupasse com a satisfação da parceira, mesmo já tendo obtido a própria. Não é a regra entre os homens, dizia-lhe sua experiência amorosa de quase das décadas. Tratando-se de um namorado, um marido, um amante, o caso seria outro, mas não muito. O homem verdadeiramente amoroso cuidará que seu júbilo não seja solitário. Se também for consciente das volições do amor, tratará de levar a mulher ao zênite do arrebatamento, nem que seja por temor de que ela encontre um outro que o faça.
Mas não era esse, ela pensou, o caso do homem que resfolegava por cima de seu corpo. Seu altruísmo era, sem sombra de dúvida, desvinculado de emoções estáveis. A relação dois dois estava submetida a um contrato rigoroso, em que ficava acordado que não seria mais do que um encontro fugaz, uma noite de prazer sem conseqüências que só teria lugar porque uma atração irresistível os colocara um diante do outro. Um acaso, pois. Que tenham se encontrado, e iniciado uma conversa, durante um vernissage a que nenhum dos dois planejara comparecer. Mas compareceram ambos e, simples assim, travaram conhecimento. Enfeitiçaram-se um pelo outro, e não era efeito do álcool oferecido com fausto, nem de suscetibilidade emocional.
Ele, suprema desgraça, era casado. Eis ali seu anel, que não permitiria uma mentira ou disfarce. Ela, recém-separada, acreditava estar livre do desejo, pelo menos por mais alguns meses. Tomara asco do gênero masculino e vangloriava-se das portas abertas que tinha para cuidar da própria vida. Talvez tenham sido justamente essas barreiras a empurrá-los um para o outro. Como saber? Não seria o matrimônio forte o suficiente para apagar o verdadeiro vulcão de testosterona que corroía as estruturas morais do homem, nem as convicções velariam à percepção da mulher a força telúrica dos olhares penetrantes que ele lhe lançava.
Por longas horas, ainda tentaram conter nas raias da civilização presumida o desejo mútuo que praticava seus caprichos sobre os dois espíritos. Mas não demorou até que algo acontecesse, um resvalar involuntário dos dedos, um ato falho da linguagem, qualquer coisa, e o instinto acabasse assomando à superfície. Ele se apressou em deixar claro que não tinha intenção nenhuma de abandonar sua família, nem ao menos de colocá-la em risco. Ela respondeu que jamais esperaria ou exigiria dele nada parecido. Explicou sua situação, sua misandria recentemente desenvolvida, a repulsa a qualquer forma de vínculo estável com um homem naquele instante. Desse ponto, chegaram a um acordo sobre suas intenções, que lhes permitiria partir para a relação livre sem a perspectiva da culpa ou do remorso.
Não perguntariam um ao outro nem mesmo como se chamavam. Sairiam dali diretamente para um motel, em carros separados, com um intervalo de tempo, após despedidas de naturalidade inquestionável aos demais presentes. Fariam amor, diriam adeus, e nunca mais. O acordo contava com a concordância irrestrita das partes envolvidas. Portanto, ela estava certa de que não seria por efeito de algum sentimento de estima que ele prosseguia em sua insistência de fazê-la gozar.
Seria, pois, uma manifestação de altruísmo, de consideração e respeito. Mas não era o momento de se perder em conjecturas. O fôlego do homem se esgotava. Se ela não conseguisse atingir o orgasmo nos instantes seguintes, todo o esforço seria perdido. Concentrou-se. Reforçou os movimentos, contraiu seus músculos para tornar a fricção mais intensa. Dali a pouco, pôde perceber um latejamento leve, e uma sensação que parecia uma longa nota de clarinete que vibrasse em seu corpo de baixo para cima, da vulva à nuca. Seus músculos contraíam-se e distendiam-se sem um comando seu. Ela conseguira. Queria demonstrá-lo ao parceiro, revelar que seu esforço tivera uma
recompensa digna, que ele poderia baixar a guarda. Gemeu, gritou, enfiou os dentes no pescoço salgado e vermelho do homem, com suas veias e tendões saltados.
Não seria o mais intenso de seus orgasmos, mas o que experimentava era, ainda assim, muito agradável. Foi tomada por uma calma que lhe parecia da amplidão do universo. Suspirou. Sentiu que o corpo do homem abandonava sua posição sobre ela para largar-se, exausto, a seu lado, mas ainda com o braço passando por cima de seu ventre. Abriu os olhos porque sentiu o desconforto do vento frio que ocupava o espaço deixado pelo corpo grande e pesado sobre o dela. Num movimento lento, voltou o rosto para o lado e encarou seu parceiro, que ainda tinha as faces ruborizadas pela força que fizera. Mas já estava adormecido.
Ela continuou observando seu rosto. Prestava atenção na respiração forte do adormecido ainda ofegante, no tronco que subia a cada inspiração e descia gentilmente para expulsar de volta o ar, na expressão de tranqüilidade imaculada. Um novo pensamento a assaltou. Todo aquele sacrifício seria mesmo apenas uma demonstração de consideração? Não teria acontecido algo a mais naquele intervalo de tempo em que estiveram juntos? A atração, ora, não pode ser apenas química. E mesmo que seja, é inconcebível que as ligações químicas de um momento não se reproduzam através do tempo. Os corpos, afinal, são os mesmos.
Presa pelo braço do parceiro, atravessado por cima de seu umbigo, ela não podia se levantar para ir ao banheiro, como desejava, para limpar-se e tomar uma ducha gelada. Pensou em empurrá-lo, afastar o braço, forçar a saída, mas decidiu deixar os movimentos drásticos para mais tarde. O homem dormia profundamente, ressonava, e o som de seu quase ronco transmitia uma vontade curiosa de também adormecer. Ela acompanhou com o olhar os traços do rosto, as rugas, as pequenas pontas de barba que ameaçavam nascer, os cabelos que já sofriam a invasão de alguns fios brancos e grossos.
Assaltou-lhe uma curiosidade terrível de saber quem era aquele homem, como se chamava, o que se passava em sua cabeça. Para todos os efeitos, era um adúltero. Levou para a cama uma mulher que não é a sua. Mas não parou nisso. Foi até as últimas conseqüências, no esforço de proporcionar-lhe um orgasmo, ainda que tardio. Como seria seu casamento? Terrível? Talvez a mulher não lhe despertasse mais desejo algum, talvez ele não sentisse por ela mais do que uma estima carinhosa e fria. Ou talvez ainda a desejasse como sempre a desejara, mas fosse incapaz de afastar do pensamento as fantasias com outras mulheres. Era um homem, não? E os homens querem todos, por natureza, ser polígamos, não? Eis aí um, deitado ao seu lado, que conseguiu sua pequena migalha de poligamia, sua escapadela travessa e segura, livre de culpa ou medo de revelação, graças a um contrato verbal de cláusulas claras e invioláveis.
Uma escapadela, mas onde o prazer da fêmea não foi negligenciado, nem mesmo pela crueldade que muitos homens manifestam de ignorar as necessidades da parceira apenas para exercer uma forma distorcida de superioridade. Para ela, que tantas memórias ruins carregava dos homens que a haviam amado de maneira insatisfatória, até desrespeitosa, aquele sujeito anônimo era quase um herói. Atravessou sua mente, como um pássaro que ela se apressou em expulsar, a idéia de que era injusto, muito injusto, que ela o tivesse encontrado naquelas condições, e não antes do outro, de todos aqueles outros, e também não antes que ele encontrasse alguma mulher para se casar. Talvez sua vida amorosa tivesse sido mais alegre, quem sabe?
Talvez ele tivesse sido o homem certo. Mas agora já estava perdido. Ela não estava disposta a romper o pacto, correr atrás dele, vasculhar seus bolsos para descobrir seu nome e endereço. Agir assim seria, na sua maneira de ver as coisas, bancar a louca. Isso, jamais. O mero pensamento a perturbava de tal maneira que ela precisou sair dali, afastar aquelas bobagens da cabeça, fugir das idéias que formulava contra a própria vontade. Juntou as forças, empurrou o braço do homem e se levantou da cama, nua, ainda sentindo a umidade do suor, do sêmen e de seus próprios fluidos. Ele, porém, nada mais fez do que se ajeitar de outra maneira, numa posição mais confortável para dormir. Antes de se afastar, ela ainda lhe lançou mais um olhar, num gesto que logo considerou um erro. Ele parecia uma criança, agarrando com ambos os braços o travesseiro, as pernas dobradas, o rosto escondido.
Queria, embora não admitisse, saber tudo sobre ele. Teria filhos? Se tivesse, como seria seu relacionamento com eles? Ela leva as mãos ao rosto, meneia a cabeça, repete para si mesma que não, não, não. Caminha até o banheiro. Qual seria a coisa certa a fazer? Tentar algum movimento, para conduzir a situação ao rompimento do acordo? E se ele não quisesse? Não seria ainda mais doloroso? De repente, ela descobriu que não sabia em que termos ele pensaria nela quando acordasse. Talvez não pensasse em termo algum, desse apenas um tchau cordial, dissesse que gostara muito de conhecê-la, e esperasse dela a mesma postura em relação a ele. Mas poderia, também, acordar arrependido, sentindo-se sujo, um adúltero miserável nas mãos de uma mulher manipuladora. Talvez a tratasse como uma prostituta, ou uma conquista, uma mulher fácil. E essa última hipótese era a menos desconfortável, porque derrubaria no mesmo segundo toda a fantasia que ela construíra em torno dele.
Deu-se conta, então, de que a situação já estava ainda mais longe do que esperava, se estava preocupada com a opinião que ele pudesse ter. Jamais dera importância à opinião dos homens sobre ela. Era uma mulher livre e independente. Quem não gostasse dela, tanto pior. De súbito, havia um homem, um homem sem nome, cuja opinião contava. Era demais para sua suscetibilidade. Sem mais um pensamento, ela correu até o banheiro, fechou a porta e se deixou ficar parada diante do espelho, a cabeça baixa e as mãos agarradas à pia.
Quando reergueu os olhos, não reconheceu imediatamente o próprio rosto. Estranhou os olhos entristecidos, a boca, as faces. Encontrou uma marca de expressão em que jamais reparara, e que concluiu ter surgido poucas horas antes. O tempo não perdoa. Ela estava ficando mais velha, sentia-se assim e sua imagem reproduzia o que sua imaginação formulava.
Perfilou-se diante do espelho. Seu corpo ainda era atraente? Talvez jamais o tivesse sido, e os homens que se aproximavam dela o fizessem por compaixão ou, pior, porque não eram capazes de conquistar mulheres mais belas, perfeitas, com curvas traçadas a compasso e sem os pequenos defeitos que lhe saltavam aos olhos. Seus seios lhe pareceram desalinhados e acanhados. Havia uma acumulação de gordura logo abaixo do umbigo, que a fazia sentir-se barriguda, e que não ia embora por nada neste mundo. As nádegas não eram mais tão redondas quanto um dia chegaram a ser. Era impossível disfarçar as concavidades de celulite e os pontos vermelhos de irritação da pele. Que espécie de homem largaria a esposa por uma mulher assim?
Uma certeza se formou em sua mente. “Não sou sedutora, não sou sedutora”, pensou em voz alta, sussurrando no tom de uma sentença de morte. Escapou-lhe o fato de que, poucas horas antes, seduzira aquele mesmo homem que dormia na cama do quarto. Mas sentia-se tão feia e desprovida de encantos que a memória quase se apagara de sua mente. Ele estava ali por alguma espécie de acaso. As ondas de seus cabelos castanhos, que costumava cultivar como uma arma de feminilidade agressiva, traduziam para ela, naquele momento, apenas falta de escova. Passou a mão pelo rosto, e ele lhe pareceu menos liso do que se lembrava.
Percebeu que seus pensamentos a traíam, influenciados por uma perturbação que a ocupara sem motivo, que ela não merecia, mas de que tinha consciência. Revo
ltou-se. Aquilo não poderia continuar assim. Abriu a torneira, molhou as mãos, mergulhou o rosto bruscamente na água fria. O corpo inteiro estremeceu. Tomou ar, estufou o peito. A verdade, disso não tinha nenhuma dúvida, era que não queria alterar o curso de sua vida. Tinha a obrigação de impedir qualquer movimento que a conduzisse nessa direção. Estava decidida: não permitiria que um homem desconhecido lhe negasse o direito de conduzir sua própria vida da maneira como tinha planejado.
Abriu novamente a porta, com o máximo possível de cuidado para não fazer barulho. O homem ainda dormia, e não precisava se preocupar com que ele acordasse: seus roncos cresciam em intensidade, o que era mesmo um bom sinal, uma vez que ela tinha horror a homens que roncam. Pé ante pé, ela buscou suas roupas, espalhadas pelo chão e por cima da cama. Por sorte, nenhuma debaixo do corpo adormecido. Vestiu-se sem olhar para a pele fresca do homem estirado tão perto. Retornou ao espelho, ajeitou-se inteira, os cabelos, o vestido, a maquiagem. A beleza era um componente inseparável de seu amor-próprio.
Ainda sentia no corpo os resquícios do prazer do homem, que a obrigaram a estancar o dilúvio com um papel dobrado. Aquele elemento viscoso de memória quase a abalou, mas sua força de vontade era maior. Tomou sua bolsa, verificou por alto que não deixava nada para trás, atravessou a porta e foi até o carro. Desceu as escadas sentindo o incômodo do sêmen rebelde, mas ignorou-o com galhardia. Deu a partida com um suspiro de alívio e, na saída do motel, fez questão de pagar a conta inteira, como uma última forma de afirmar seu poder individual.
Tomou a avenida no rumo de sua casa. Precisava dormir, não sem antes tomar um último drinque. Mas a determinação que a conduzira para fora do quarto se esvaecia paulatinamente, à medida em que os quilômetros avançavam e a história ia ficando para trás. Não conseguia mais escapar ao ponto mais profundo de sua veleidade: precisava telefonar para a melhor amiga, contar-lhe do ocorrido, de tudo que pensara, do que se passara em seu interior. Sem tirar a mão esquerda do volante, esticou a direita para o banco dos passageiros, abriu a bolsa e a vasculhou em busca do telefone celular. Era uma bolsa pequena, mas seus dedos não topavam com o aparelho. Irritada, ela esvaziou o conteúdo da bolsa sobre o banco. Ele não estava lá.
Percebeu a ironia do fato. Riu, depois sentiu o sangue subir à cabeça. Quase causou um acidente quando golpeou o painel do automóvel. Depois, acalmou-se e riu novamente. Disparou um ligeiro palavrão, suspirou e mordeu o lábio. A vida, pensou, é isso aí. E prosseguiu no caminho para sua própria casa e sua própria cama.
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