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Os oprimidos somos nós. Augusto Boal: 1931-2009

Nem me lembrava de que Augusto Boal estava com leucemia. A notícia de sua morte acabou sendo uma surpresa, e reativou meu estranho gosto pelos obituários. Ainda não vi as matérias da imprensa brasileira sobre a partida do nosso velho mestre do engajamento teatral, e nem sei se devo. Me disseram que, no mais das vezes, foram só notas de rodapé; ademais, já sei que o máximo de profundidade que posso esperar é a constatação de que o Teatro do Oprimido tinha uma inspiração “de esquerda”. E é verdade, claro… até porque só na esquerda se fala em opressão. Os religiosos preferem o termo “exclusão”, e a direita, “marginalização”. Mistérios do idioma…

Opa, nada de digressões. O assunto, hoje, é o Boal, que não era um homem da política, embora fosse politizado e embora tenha sido vereador no Rio. Boal, formado e doutorado em química, era um homem do teatro. Perder-se em considerações sobre suas inclinações políticas, deixando de lado seu teatro, é nada menos do que cretinice. Sendo assim, o que interessa é perguntar: qual é o segredo de seu teatro, que o alçou à história?

Boal fazia parte daquele estranho grupo de artistas brasileiros que vivem um pouco no ostracismo no Brasil, mas são reverenciados no resto do mundo. Não sei se é por causa dos muitos anos de exílio de um sujeito que, enquanto a ditadura não conseguiu metê-lo no pau-de-arara, dirigiu o Show Opinião no Rio, comandou o Teatro de Arena em São Paulo e levou ao palco os textos mais contestadores de Vianinha e Gianfrancesco Guarnieri. Talvez, de fato, sua passagem por Argentina, Peru, Portugal e França, entre outros países, tenha disseminado tantos centros de Teatro do Oprimido por aí, que os brasileiros achem desnecessário comentar.

Pode ser. De qualquer forma, desmistifica aquela velha história de que o brasileiro só reconhece seus gênios depois que o estrangeiro os aplaudiu. Isso só é verdade, digamos assim, quando convém. Contudo, por algum motivo, alguém que vem interromper o curso normal da vida para colocar coisas em questão é qualquer coisa de muito exasperante para o brasileiro. Não convém… e é o caso do Boal; talvez isso explique melhor o silêncio em torno dele. Fico imaginando o que diriam certos articulistas e blogueiros se, no ano passado, ele tivesse ganho o Prêmio Nobel da Paz a que foi indicado.

O fato é que, com o Teatro do Oprimido, Boal foi aquele que conseguiu os melhores resultados, na arte do ator, para uma tendência que permeou talvez todas as formas de expressão artística a partir dos anos 60: sair à rua. Isso não é nada fácil e não deve ser confundido com apresentar-se na rua ou colher material e inspiração na rua, coisas que sempre existiram. Trata-se, na verdade, de introduzir a rua no campo da investigação estética. Por rua, entenda-se vida, porque a rua é o terreno do imprevisível, do anônimo, do fugaz. Justamente onde a vida é menos percebida e, por isso mesmo, mais latente.

Um bom exemplo é o do artista plástico francês Daniel Buren, que emprega sempre a mais banal das estratégias – listas brancas e coloridas ou negras, de tamanho definido e imutável há quarenta anos – para emoldurar as paisagens urbanas. Com isso, o transeunte, o cidadão, é levado por seu próprio inconsciente a se dar conta do lugar em que vive, de tudo aquilo que ele sempre tomou por irrelevante, invisível, indistinto no meio da percepção borrada que todos temos de nossa existência.

Se artistas como Buren transformam a cidade em arte pela introdução de uma moldura, Augusto Boal transformava o cidadão em ator pela reversão das expectativas. Ao mesmo tempo, o gesto simples de inventar situações apenas ligeiramente desviadas do banal transformava os artistas proponentes numa espécie de plateia. Em outras palavras, a separação milenar entre palco e público se desmaterializou pelo abraço de Boal. Um abraço perturbador, mas caloroso mesmo assim.

O oprimido em questão é, sim, em primeiro lugar, aquele que jamais teve voz no teatro, na política, na vida, em lugar algum. Em outras palavras, a imensa população do “andar de baixo”.  Mas não se limita a isso. Num ambiente urbano maquinal e racionalizado, onde o indivíduo está reduzido a um glóbulo vermelho na circulação incessante, cada um de nós é um oprimido. Por mais que falemos, critiquemos, peroremos, somos todos sem voz, como aqueles que Boal queria atingir. Talvez o mais perturbador, nas intervenções do Oprimido, seja essa constatação: o som que sai de nossas bocas no dia-a-dia nada mais é do que a reprodução desse dia-a-dia. Isso, claro, até que sejamos chamados a dar um passo fora da linha.

Levar o teatro para a rua (ou, melhor dizendo, para a vida real) não precisa nem de uma rua. A primeira experiência que levou ao Oprimido foi o Teatro-jornal, que Boal praticava no Arena de São Paulo no início dos anos 70. Para quem esqueceu, jornal brasileiro, nos anos 70, só publicava as notícias que interessavam à ditadura, quando e como lhe interessavam. Dramatizando essas notícias, numa sala de aula, num palco, em qualquer lugar, muito do que elas não diziam vinha à tona.

Depois, com o Teatro Invisível, um peteleco de situação inesperada transforma o espaço-tempo do esquecimento diário num espetáculo de improviso e consciência. Ironicamente, pelo fato de ser invisível, o teatro de Boal tem o poder de tornar visíveis todas aquelas coisas que normalmente não vemos ou não queremos ver. Nesse intuito, assim como para Daniel Buren bastam listas alvinegras, para Boal bastava uma fagulha banal – uma discussão de casal, uma carteira perdida, um pedido de ajuda – e o mundo inteiro se tornava arte, da noite para o dia. Numa metáfora um pouco pobre, Augusto Boal foi o escultor que se despreocupou do velho hábito de talhar o mármore e preferiu esculpir um magnífico pedestal, com que atraiu a atenção para o mundo em que realmente vivemos.

Agora, o pulo do gato: por que será que somos – nós, os brasileiros – sempre tentados a considerar qualquer iniciativa de deslocar o eixo da percepção individual como uma perigosa atitude esquerdista-subversiva-revolucionária? Será possível que toda busca de uma consciência de si e do mundo, fora do quadro corrente das nossas condições de vida, seja um atentado à ordem social? Esqueçamos, por um momento, a posição política que Augusto Boal, de fato, possuía. Será que qualquer indivíduo, sendo levado a olhar para sua vida e seu dia-a-dia de uma outra maneira – e uma maneira produzida pela sua própria racionalidade –, é um candidato a derrubar os fundamentos da sociedade?

É o que parece indicar a desconfiança que muita gente dedica ao trabalho de Boal. Porém, se isso for verdade, nada mais é do que um sintoma de que algo vai mal. Se a ascensão de pessoas comuns a uma compreensão mais autônoma de sua própria existência implica um risco para a sociedade, então essa sociedade é assustadoramente instável. Deve estar assentada sobre bases um tanto frágeis, para não dizer inviáveis. Não precisa ser nenhum revolucionário para se dar conta disso, mas devemos a Boal a possibilidade de constatá-lo. A Boal e, claro, à arte.

Mais sobre Boal e o Teatro do Oprimido:

CTO Rio

Itaú Cultural

Sobre a morte de Boal

Wikipédia (inglês)

Núcleo de TO em Porto Alegre

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Língua, etnia, origem, cor

Acho que ainda encarava com inocência as armadilhas da língua, quando reagi com naturalidade: “Você não vai ter problemas para renovar o visto”, disse o rapaz do guichê, em tom da mais natural constatação, “porque, bom, você é ocidental”. E eu assenti com a cabeça, querendo indicar que entendia o que ele queria dizer, mesmo que não concordasse. Só têm problemas com a polícia e o visto, traduzi mentalmente, as pessoas que vêm de países islâmicos, interpretados logo de cara como terroristas em potência. Aqueles que, por aqui, são chamados de “orientais” (esse termo designa os oriundos do Islã, grosso modo. Nossos “orientais”, aqui, são “asiáticos”.) Brasileiro pode ficar tranqüilo nesse ponto. Povo bacana, pacífico, alegre, fonte inesgotável de sorrisos, mulheres, dribles e gols. E, na minha cabeça, também ocidental, a julgar pelo que eu tinha entendido da afirmação do rapaz do guichê.

Mas, que o quê, eu não tinha entendido era nada. Primeiro, fui entender que o conceito de Ocidente passa longe, muito longe do Brasil. Quando ouvir um europeu se referir ao “Ocidente”, esteja certo de que os países em questão são os da Europa, ora, ocidental, a que se somam os Estados Unidos e o Canadá; em certas circunstâncias, até um australiano pode receber o título, embora seu país esteja cravado no outro hemisfério. Em outras palavras, aquela velha idéia de dividir o mundo em dois hemisférios é conversa fiada. O mundo, para o europeu, é segmentado numa meia-dúzia de compartimentos: Ocidente, Oriente, África, Ásia, russos e quetais. O brasileiro, nesse esquema, tem de se contentar com o carimbo de latino-americano. Mas é importante frisar que esta não é uma identificação cultural ou geográfica. Para o europeu, ela resulta da mais autêntica ontologia.

Agora, se é assim, como se explica o fato de que, para o digníssimo sujeito do outro lado do guichê, eu seja um ocidental, se ele sabia perfeitamente que sou brasileiro, “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes” (TM Belchior)? Tenho certeza de que pelo menos um de vocês dois que estão lendo o texto já tem a resposta na ponta da língua, mas vou enrolar um pouquinho mais.

Um último episódio (último nada, quem dera) veio confirmar minhas suspeitas. Um lauto jantar, bem à francesa, de gastronomia refinada e a nata do vinho nacional (piada velha). À mesa, um cândido rapaz, quase diáfano, contava sua traumática experiência de visitar uma periferia bem ao norte de Paris. Deve ter sido terrível caminhar por ruas desconhecidas e numeradas, em vez de nomeadas. Tantas janelas, tantas crianças, tantos olhares desconfiados. E o mais assustador, ele concluiu: “para qualquer lado que eu olhasse, não encontraria um único ocidental”.

Eis aquela palavra, mais uma vez. E agora entendemos o que ela quer dizer, na boca de um indivíduo civilizado e de mente aberta da Europa. “Ocidental”, afinal de contas, nada mais é do que um sinônimo para “branco”. O que me disse o funcionário público que comigo conversou no guichê, afinal de contas, foi que a polícia francesa não colocaria empecilhos à minha permanência em seu território porque sou branco. Tenho a pele, a cabeleira e o par de olhos ideais do Ocidente.

Ou seja, a língua não é nada inocente. Inocente era eu. A justaposição da classificação geográfica sobre a étnica (ou racial, para dar um tom mais agressivo ao contexto) alivia a carga pesada e negativa de sentir-se um discriminador. O europeu não quer mais ser racista. A lembrança de crimes como a “Solução Final” (que é como os nazistas chamavam o extermínio de judeus), a escravidão e a guerra da Argélia ainda é muito próxima no inconsciente coletivo. É preciso ser civilizado, pois esses são os ditos “valores ocidentais” – e eis que reaparece a fatídica palavra. Não se deve julgar e, na seqüência, rejeitar alguém pela etnia. Um indivíduo democrático, justo e civilizado da Europa não faz esse tipo de coisa. Certo?

Acontece que lutar contra as próprias inclinações impõe algumas dificuldades. Quando os netos de quem outrora oprimiu vêm viver em seu país e pedir para compartilhar de sua nacionalidade; pior, quando já nascem no solo da antiga metrópole, do antigo império, e têm direito imediato a se considerar um cidadão; ou ainda, quando a pronúncia, a música e a indumentária se alteram radicalmente em plena capital do país, haja força de vontade para o ocidental não se sentir acuado, ameaçado e, falemos abertamente, ofendido. Para reerguer a barreira, mas sutilmente, sem recaída fascista, nada mais adequado que a terminologia bem escolhida.

Resultado, consegue-se estabelecer a fronteira entre o “nós”, que se refere aos que, a pele denuncia, descendem dos bárbaros que colonizaram esta terra, e o “eles”, todo mundo mais, com uma preferência acentuada pelos magrebinos e árabes em geral, além dos negros (desculpe, africanos). Só que, como toda estratégia, essa também tem seus furos, por onde esguicha com violência uma água corrosiva. Concebida para afastar os povos menos nobres do banquete da riqueza européia, corre o risco de funcionar bem demais. Seria como se, vamos supor, os serviçais desaparecessem da saturnal levando a comida, os talheres, a louça e a toalha da mesa.

Há coisa de duas semanas, a seleção da Tunísia veio jogar na França. Começou a tocar a Marselhesa e, suprema surpresa, supremo acinte, milhares de adolescentes começaram a assoviar e vaiar. Foi o caos. A imprensa se rasgou nos editoriais. O onipresente Sarkozy ameaçou: da próxima vez, não vai ter jogo. Os intelectuais, sempre atentos, aproveitaram para encher laudas e laudas de perguntas sobre o significado do evento. Nas escolas dos subúrbios, os professores foram instruídos a verificar com a garotada se eles se sentiam franceses. Muitos disseram que não. Preferem se identificar com o país dos pais, mesmo sem jamais terem posto o pé por lá.

Esse é o grande furo da estratégia lingüística de discriminar sem segregar. Há um mundo para além da língua, ao contrário do que pode crer uma parcela bastante significativa das correntes de pensamento do último século. Ao criar, no coração da região que escolheu chamar a si própria de Ocidente, uma legião de cidadãos que não são ocidentais, o ocidental que se considera herdeiro dessa cidadania corre o sério risco de berçar um contingente incontável de ocidentais que nem aspiram a ser cidadãos. E, como nós, brasileiros, sabemos muito bem, quem se vê privado em definitivo da cidadania sente que não tem obrigação nenhuma para com a sociedade.

PS: Eu pretendia continuar com uma comparação com o problema da discriminação social e racial no Brasil, porque, afinal de contas, meu país me interessa muito mais do que os dos outros. Mas ia ficar grande demais, então prefiro continuar em outro artigo, que deve chegar nos próximos dias. Se você tiver um bom coração, me diga que o aguarda com ansiedade. Nem que seja só para me agradar…

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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