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A minha nova inscrição

Desde que me instalei de novo em São Paulo, estive duas ou três vezes no Cidão, minúsculo bar de Pinheiros onde, às quintas, eu costumava ouvir tocar João Macacão e seu grupo. Claro, também ia em outros dias e vivi ali bons momentos (maus também). Mas João, para meu desgosto, não toca mais lá. Em seu lugar, músicos que não conheço e não me cumprimentam à entrada. O lugar que eu adorava se tornou hostil. Assim mesmo, num estalo.

O tempo não passa, ele despenca das alturas. Continuar lendo

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Brasil, capitalismo, costumes, crônica, descoberta, direita, economia, Ensaio, história, imprensa, ironia, modernidade, opinião, prosa, reflexão, Rio de Janeiro, roubo, tempo, trânsito, vida

O Brasil desenvolvido – esboço

O que segue foi escrito aos poucos, nos intervalos de uma semana tempestuosa. Não foi revisado e tenho certeza de que está uma bagunça, “longo demais” para a internet e por aí vai. Mas vai assim mesmo, para sair antes que o povo esqueça os assuntos das últimas semanas, e porque as ideias largadas aqui, de qualquer jeito, são importantes para mim.

Lembrei de Jamelão anunciando, em 1997, que 2004 era o sonho brasileiro: “De braços abertos sou o Rio de Janeiro…”. Pois 2004 passou, como passou Jamelão. De lá para cá, falou-se em 2008, 2012, poderíamos falar de 2040 se fosse necessário. Chegamos a 2016 ouvindo a mesma história de que Cesar Maia queria porque queria as Olimpíadas no Rio, depois do Pan de 2007 que rivalizou com a Eco-92 em maquiagem urbana. Ainda deu tempo de o alcaide maluquinho tirar uma onda com a Marta Suplicy e a velha rivalidade com São Paulo, evocando a frase de Vinícius – a beleza é fundamental, talvez a última coisa fundamental neste mundo. Mas bastou Cesar Maia desgrudar da poltrona para que o COI, provavelmente aliviado, abrir o envelope do sinal verde. Coincidência? Provavelmente. Deixeimos o Maluco Beleza para lá, que ele já não conta mais.

Na verdade, dir-se-ia – e agradeço aos céus pela existência da mesóclise – que o mundo está ficando mais esférico. As Olimpíadas no Rio são um indício disso, ao lado da Copa do Mundo na África do Sul e o Oscar para um quase-Bollywood. Parece que já ficou para trás o eurocentrismo do mundo colonial, a bipolaridade do pós-guerra, o choque unívoco de civilizações que Huntington, com sua mentalidade bipolar, esperava. Seria também o fim do Fim da História, se é que houve um começo. A profecia de um mundo de grandes blocos, de que ouvimos falar desde o início da década de 90, começa a se concretizar e não tem volta: nem mesmo o mais poderoso dos ex-impérios da era moderna pode vencer isoladamente, e é bom (para eles) que os britânicos entendam isso de uma vez por todas.

Aliás, os europeus de maneira geral só se dão conta da urgência de algutinar quando uma crise os aperta, como provam os irlandeses, esses adoráveis pinguços. Quando a coisa começa a melhorar um pouco, todo o continente perde de vista o correr da história e se fecha em nacionalismos anacrônicos e já algo ridículos. Sendo assim, vivam as crises! Ao mesmo tempo, os temíveis chineses se esforçam por espalhar contratos com o mundo inteiro, mas sempre de uma posição de dominância que talvez acabe revelando ser seu calcanhar de Aquiles. Afinal, eles empilham gente num território enorme, mas continuam dependendo de alguns apertos-de-mão para não se ver diante de uma massa bilionária de ex-camponeses esfaimados e revoltados. Já os americanos, que passaram oito anos tentando enfiar cubos quadrados em buracos triangulares, agora correm atrá do tempo perdido, acenam para tudo mundo, sorriem e tudo mais, enquanto, em casa, os mais atrasados continuam atirando dardos na efígie de Obama. Eis aí, em poucas palavras, um instantâneo geopolítico do mundo.

Se tivesse tempo e paciência, eu poderia enveredar a falar da turma que está pondo as manguinhas de fora militarmente: indianos, paquistaneses, iranianos, russos. Mas são iniciativas que não têm grande perspectiva de sucesso, porque é cada vez mais improdutivo negociar pela ameaça, particularmente a atômica. Lembremos que é sempre mais fácil ser atingido que atingir e o primeiro a lançar a bomba será também o primeiro a sumir do mapa – e isso vale tanto para Israel quanto para a Coréia do Norte.

Em vez disso, prefiro me concentrar no Brasil, esse país que todo mundo adora, à exceção dos agentes de imigração europeus e dos zagueiros da seleção argentina. Nosso acesso a esse mundo G-20 que nasce é particularmente auspicioso, como todos sabem. A economia cresce, os juros escorregam, a desigualdade começa a ceder, a diplomacia dá boas tacadas, voltamos a fazer o básico, qual seja, investir em pesquisa, ensino e transporte. No lugar de uma grande massa de funcionários públicos mal pagos e sem função, como outrora, temos ministérios e autarquias ocupados por técnicos qualificados como talvez nunca tenhamos tido.

E assim por diante. No mundo inteiro, jornalistas, analistas e todo tipo de gente que gosta de dar pitaco manifestam simpatia por nós. Um aponta o país como contrapeso aos EUA na América Latina. Outro se admira de nosso potencial energético renovável. Outro ainda louva a firmeza demonstrada perante a quartelada de Honduras. Muitos lembram a iniciativa de valorização do G-20, ponto culminante de uma idéia de não-alinhamento que começou há décadas mas, até hoje, tendia a só patinar. Parece que tudo vai muito bem para Pindorama – e esse apelido talvez esteja a caminho de desaparecer. Quem sabe?

É tentador dizer que estamos diante de uma oportunidade de desenvolvimento de uma dimensão que jamais conhecemos. Parece mesmo fantasiosa a ideia de um Brasil desenvolvido, rico e justo, não mais o país do futuro, mas um verdadeiro – como é mesmo que se diz? – global player. Mas a verdade é que já vivemos situações mais ou menos parecidas, sim. Oportunidades de subir alguns degraus na escala da História, tivemos algumas. Desde uma hipotética industrialização ainda no século XIX até a reforma agrária nos anos 60 e o controle da inflação em 94, deixamos todas pela metade. É por isso que, quando ouço Lula dizer que o Brasil deixou de ser um país de segunda classe para se tornar um país de primeira, logo penso: “Calma, presidente. Você está tomando por fato consumado o que não passa de potencial”.

Não quero soar pessimista. Não estou insinuando a existência de uma maldição de atraso que paira sobre as nossas cabeças. Mas quero, sim, chamar a atenção para o fato de que desenvolver-se envolve muito mais do que o crescimento econômico, o reconhecimento da mídia internacional e a esperança de “ética já” ou coisa que o valha, como se um salto de patamar trouxesse milagrosamente o fim “dessa roubalheira toda que está aí” e o início de uma vida de moleza, espelhada no que muita gente em nossa classe média pensa que acontece no “primeiro mundo”. Na verdade, passar à categoria de país desenvolvido, daqueles em que a desigualdade é pouca e a segurança muita, implica uma mudança radical na vida de um povo, algo de que o brasileiro terá de se mostrar capaz se quiser cumprir a profecia do presidente.

Nos anos 70, um analista do governo americano de nome Herman Kahn – uma figura estranha e interessantíssima, cheia de ideias heterodoxas sobre guerra nuclear, possivelmente um dos inspiradores do Dr. Fantástico de Kubrick – especulou que existiria uma curiosa lei da economia: a partir de um certo patamar de renda per capita, ou seja, com o enriquecimento de uma dada sociedade, as condições de vida da classe média alta se tornam “menos confortáveis”. Esse discreto desconforto resultaria do desaparecimento, ou pelo menos da restrição, de alguns serviços de luxo: babás, motoristas, contínuos (sim, existe uma palavra em português para office boy) e assim por diante. Todos esses passam a estar reservados apenas aos “muito ricos”, categoria bastante restrita, como se sabe.

A experiência é muito traumática e provoca uma sensação algo esquizofrênica em quem a atravessa: a impressão de ao mesmo tempo enriquecer e empobrecer, se é que algo assim é possível. Grande parte das convulsões sociais de 1800-1970 na Europa, por exemplo, podem ser interpretadas assim: gente de nariz empinado que não aceitava a ideia de que seus criados e lacaios acedessem a uma condição de relevância social, leia-se política. Em muitas ocasiões, ganhou quem queria segurar a marcha do desenvolvimento (1848 na Alemanha, 1871 na França); em outras, ganhou quem queria acelerá-lo (um bom exemplo não é europeu, mas pouco importa: a guerra civil americana).

Se for verdade que estamos em pleno salto para o desenvolvimento (e há controvérsias), terá então chegado a hora e a vez do Brasil (nessas horas chego até a simpatizar com Galvão Bueno: Brasil-sil-sil-sil!). Fico me perguntando se conseguiremos fazer essa auto-transposição para um país em que as famílias não “têm” empregada e quem lava a louça são as crianças. Em que “eu estou pagando” não é argumento para justificar abusos mesquinhos de poder. Em que quem serve as mesas nos restaurantes são jovens não necessariamente “desfavorecidos”, que financiam seus estudos pelo trabalho mas nem por isso acham essa condição humilhante ou degradante, muito pelo contrário. Imagine, o Brasil um país em que usar o transporte público é normal e até preferível, por muito mais prático do que se submeter ao trânsito, às multas, ao estacionamento caro. Imagine, o carro já não mais aquele símbolo de status tão paradigmático…

Tudo isso parece muito longe de acontecer no Brasil, é claro. Mas o problema, porque o choque de mentalidades é sim um problema, já começa a se esboçar. Quando, por exemplo, nossa diplomacia começa a ter um peso em decisões de interesse mundial, é preciso que a opinião pública, em casa, tenha acesso às verdadeiras questões que estão em jogo – função da imprensa – e possa se posicionar de acordo com essas questões; e como, repito, são questões de interesse mundial, é preciso que esse posicionamento tenha em vista essa dimensão maior, e não um mero partidarismo de fundo de quintal. Afinal, como sabemos, o alcance da política de um país desenvolvido ou quase desenvolvido transborda largamente suas próprias fronteiras. Sim, isso pode vir a acontecer: a opinião pública brasileira influindo de verdade. Mas para isso será preciso que ela seja de fato uma opinião, e não só um amálgama de impressões dispersas e predominantemente emotivas. Será preciso que ela se baseie em algo estável, ou seja, um ambiente político em que todas as vozes têm peso – sim, porque num país desses, o conceito de “excluído” é vergonhoso.

O caso das Olimpíadas no Rio é sintomático, portanto o catalisador desta breve reflexão (não tão breve, considerando que está num blog). À parte as avaliações objetivas do evento – se é verdade que traz benefícios de longo prazo, se é mais estorvo que bênção etc. –, podemos dividir em dois campos as reações à notícia. De um lado, a euforia com o “triunfo”, com o reconhecimento de nossos esforços, com a integração da América do Sul à festa do esporte. Do outro, a velha história de que, até hoje, tudo em nosso país foi superfaturado e resultou em serviços frustrantes, a começar pelos jogos panamericanos no próprio Rio há dois anos.

Retomando o argumento das exigências de um país que pretende se desenvolver, posso afirmar sem risco de engano que é preciso superar o pensamento de ambos os campos. Não vou ser frio a ponto de deplorar a alegria de ter realizado em 2009 um “sonho brasileiro” declamado em 1997 pela bateria da Mangueira, nem alienado a ponto de fingir que o desvio de verbas não é uma modalidade em que somos medalha de ouro. Mas acredito que não mereço ser lapidado por lembrar que tanto o bom funcionamento dos jogos quanto o bom uso do dinheiro, mais quaisquer benefícios que o evento possa trazer, dependem de nós e apenas de nós.

Em outras palavras, a primeira vítima de um Brasil desenvolvido (a esse ponto ainda profundamente hipotético, não vamos perder de vista) será esse velho fatalismo que nada mais é, na verdade, do que conservadorismo disfarçado. Uso aqui conservadorismo num sentido talvez errado: não é o ser conservador no sentido de defender antigos valores morais, sociais, políticos, econômicos – alguns dirão “ser de direita” –, mas de agir, talvez inconscientemente, para manter mesmo aquilo que em nossa sociedade é vício e reconhecemos como tal. Isso inclui o ódio rancoroso contra “os países ricos” que, mal disfarçado, está por trás da euforia de muitos, a começar pelo presidente, com o “Rio 2016”.

Mas é mais manifesto nesse tal fatalismo, cujas principais vertentes são, por um lado o “todo político é ladrão” e, por outro, o “todo favelado (ou pobre, se preferir) é ladrão”. A primeira frase é mencionada com uma frequência razoável e não está tão longe da verdade. Mas, embora poucas pessoas não-fanáticas entrem para a vida política sem querer tirar um benefício pessoal, uma declaração tão peremtória acaba não servindo a outro propósito senão justificar a alienação voluntária. Sabendo que “todo político é ladrão”, temos uma boa razão para não nos metermos nisso. Ficamos cuidando da nossa vida e, quando passamos nas Cinelândias da vida, deploramos aqueles grupos de pessoas mal-intencionadas com seus cartazes e buzinas diante da Assembleia. Sim, porque, se estão dialogando com políticos, só podem ser mal-intencionados…

A vertente oposta é menos evidente, já que não pega muito bem dizer que “todo favelado é ladrão”. Mas é o que pensa muita gente na classe média, que não poupa nem a própria empregada doméstica, “lá em casa há 20 anos” mas vigiada bem de perto. Mesmo quem, muito pudico, não afirma que “todo pobre é ladrão” imediatamente presume que o carro de alguém com “cara de favelado” (sic) só pode ser roubado ou comprado com dinheiro de origem duvidosa. Esse sentimento difuso, mas bem real, é consequência de uma configuração social em que “pobre” é um conceito que vai muito além de “pessoa com renda baixa” e implica de fato uma outra categoria humana, outra casta, outra classe de seres humanos. Coisa de antigamente, aliás, o mundo inteiro foi assim pela História quase inteira. Mesmo o uso da língua é diferente entre essas classes; os de dentro zombam do “falar errado” dos de fora, que, por sua vez, tentam caprichar quando se comunicam com seus “superiores” e acabam só produzindo mais motivo para chacota. Quem não reconhece, nisso, o Brasil? Pois bem, somando tudo, temos que “todo político é pilantra, todo pobre é ladrão, fala errado e tem que saber o seu lugar”.

Pois bem, não poderá existir “o lugar do pobre” num Brasil que se pretenderá desenvolvido. Tomando “lugar” no sentido literal, desfavelizar é fundamental mas é pouco e teleféricos não vão apagar esse que é um dos maiores símbolos da nossa fratura social (o termo é um galicismo, mas funciona). Num país desenvolvido, a diferença entre ricos, pobres e classe média é quase inteiramente quantitativa, em vez de qualitativa. É uma diferença enorme, claro, mas bem mais fluida e menos cruel. Paralelamente, não pode haver lugar em nosso imaginário Brasil desenvolvido (ou qualquer outro país, aliás) para o dar de ombros político: exultar com qualquer piada ridícula que ironize o dedo perdido do presidente e lamentar que seja possível uma ação governamental justa e adequada, a não ser as que me beneficiem direta e particularmente. A emergência de novos interesses e opiniões, novos pontos de vista, novas exigências de gente que até então não tinha nem voz, nem perspectiva, nem visibilidade, transforma o jogo político numa roleta com incontáveis casas. Para todos os grupos, o interesse e a participação políticos, seja na forma de reivindicações, seja pela administração, tornam-se imprescindíveis, para não dizer inescapáveis. O espaço público organizado (ou seja, a política) é o meio de interação de sociedades “desenvolvidas”, da mesma forma como o Bope e congêneres são o meio de interação de sociedades atrasadas.

O que tem de especial no “sonho brasileiro” que Jamelão cantou não é a perspectiva de que se torne realidade. Essa, sempre tivemos e sempre frustramos, porque o Bope continua sendo mais fácil do que a política, principalmente para quem comanda as bordoadas em vez de levá-las. A diferença, pelo menos até onde posso senti-la, é um pouco mais de interesse, um pouco mais de exigência, para que o futuro de fato se torne presente, como se tem falado. Organizar jogos olímpicos é um pálido exemplo disso. Pálido, mas com enorme cartaz. Sem uma gestão competente, fruto de uma determinada capacidade de organização coletiva (leia-se política), é certo que o evento não decola. Velhas perdas de tempo, como o fatalismo já mencionado, o bairrismo e o espírito de porco de quem prefere puxar papo pelas reclamações, deixam de ser excentricidade nacional para se revelarem os estorvos que realmente são. Só por isso, a perspectiva do “Rio 2016” já é, pelo menos potencialmente, algo a celebrar.

De maneira geral, o que me deixa razoavelmente otimista não é nem o pré-sal, nem a Copa, nem as Olimpíadas, nem a política externa, nem o PAC, nem o editorial do Clarín, do FT ou do NYT. É, sim, uma percepção difusa de que as gerações mais jovens, no país, têm um interesse maior na administração da coisa pública, no planejamento urbano, em projetos de desenvolvimento de longo prazo. Na esfera federal como em Estados e municípios, começam a ser ouvidos os grupos de estudo e os gestores qualificados, que antes viviam abafados pelo fatalismo político e os lobbies dos aproveitadores de sempre. Quanto tempo isso vai durar, nem imagino, mas é um momento auspicioso, embora longe da panaceia que o Planalto quer fazer crer. Resta ver se não vamos querer sabotar mais uma vez nosso próprio futuro, como já é nosso hábito.

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A saudar Iemanjá

Mais uma jangada saiu pro mar. Vai navegando nela, provavelmente a assoviar uma de suas próprias canções, o homem que cantou a Bahia e as baianas. Cantou Doralice e Dora, rainha do frevo e do maracatu. Cantou Rosa, com a rosa no cabelo e o olhar de moça prosa. Cantou Marina, morena Marina, que ousou se pintar, ela que já é bonita com o que Deus lhe deu. Vai sumindo no horizonte a jangada do trovador Caymmi. Vai se despedindo de seus personagens, os trabalhadores do litoral, curtidos pelo sol. E quando a jangada voltar só, é porque, como ele mesmo já disse, o mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito.

Com ele, aprendemos sobre o canoeiro que joga a rede no mar, puxa a corda, colhe a rede. Com ele, aprendemos que quem não tem balangandãs não vai ao Bonfim, e olha que quem vai ao Bonfim nunca mais quer voltar. Aprendemos também que o pescador tem dois amores: o bem da terra, o bem do mar. O bem da terra é aquela que fica na beira da praia, que chora e faz que não chora quando ele sai. O bem do mar é o mar, que carrega nas ondas pra ele pescar. Em poucas palavras, aprendemos que tudo na Bahia faz a gente querer bem.

Dorival, depois de muito matutar em sua rede, concluiu que era hora de levantar e partir para uma outra Maracangalha, de uniforme branco e chapéu de palha, para encontrar Anália e os velhos amigos, Tom Jobim, Jorge Amado, Vinícius de Moraes. Alguém, depois de tanto esperar, deve ter cobrado. “Ei, Dorival! Deixa de lado essa pose e vem pro samba! Vem sambar, que o pessoal está cansado de esperar!” E ele, que não é ruim da cabeça, nem doente do pé, levanta e vai, copo na mão e o corpo mole, que é assim que o samba deixa a gente. Ora, quando se dança, todo mundo bole, é ou não é?

Tudo isso, então, por saudade dos amigos. Ah, insensato coração! Mas se ter saudade é ter algum defeito, como em outros tempos Dorival teve da Bahia, então que lhe reservem o direito de ter alguém com quem se confessar. Se confessar e conversar, claro, sobre as sacadas dos sobrados da velha São Salvador, com as lembranças de donzelas de outros tempos, e tudo mais que há naquela terra, o vatapá, o mugunzá, o caruru. Realmente, a Bahia tem um jeito que nenhuma terra tem.

Muita gente quis conhecer a areia e a morena de Itapoã, mas voltou decepcionado. Eu mesmo ardia de curiosidade pela lagoa escura do Abaeté e fiz muxoxo diante de um lago urbano perfeitamente normal, arrodeado de areia não tão branca, nada branca. Na minha estultície, demorei a entender o óbvio. Que não é aquela a Itapoã de tantas saudades, nem o Abaeté onde lavadeiras se benzem ao ouvir a zoada do batucajé. Como a Pasárgada de Bandeira, as paisagens de Dorival Caymmi não são referências geográficas, mas poéticas. Não existem sobre a terra, só no vento dos versos e em nenhum outro lugar. Melhor assim, claro. Muito melhor assim.

Foram precisos 93 anos para apagar a voz límpida, de clareza ímpar, grave como poucas, enorme desafio para os operadores de som do último século. Da boca que emitia as vibrações intermináveis, mas suaves, vinha sempre também o sorriso amistoso de quem está de bem com a vida, não teria por que não estar. Era alguém que sabia dos momentos na vida em que, se a noite é de lua, a vontade é contar mentira e se espreguiçar. Dorival Caymmi nasceu pequenininho, como todo mundo nasceu, depois tornou-se o porta-voz de uma Bahia que deixa saudades em seus filhos. E de trabalhadores que se arriscavam no mar, enquanto suas negas rezavam pra ter bom tempo e faziam suas caminhas perfumadas de alecrim.

As composições de Dorival tinham um despojamento calculado que associamos normalmente à Bossa Nova. Não à toa, claro. Foi um dos primeiros autores a merecer gravações na batida inovadora de seu quase conterrâneo e também gênio, João Gilberto. A música corria com tanta força no sangue desse baiano pacífico da cabeleira branca, que jorrou em notas sobre toda a descendência. Eis aí a dinastia formada e firme, tantos bons músicos, Dori, Nana, Danilo.

Está certo o compositor, é impossível estacionar aqui para sempre. Muita coisa boa, muita coisa a fazer, a aproveitar, a cantar, pois é. Mas não há bem que não se acabe. Assim adormece esse homem que nunca precisou dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo do que a sua terra. Foi assim que mais uma incelença entrou no paraíso. Adeus, mestre, adeus. Até o dia do juízo. E que descanse bem, porque é doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar.

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Vista assim do alto (1913-2008)

Mangueira seu cenário é uma beleza
De madrugada, o diálogo que ninguém escutou.
– Me levar? Como assim, me levar? Não vai me levar coisa nenhuma.
– Desculpe, Seu Bispo, temos que ir.
Seu Bispo não quis saber. Fechou a cara e cruzou os braços. Turrão daquele jeito, ninguém poderia obrigá-lo a fazer o que não quisesse. Aliás, todo mundo sempre soube disso.
Só que dever é dever.
– Vamos, Seu Bispo, está na hora.
– Você me respeite. Eu sou pai de família. Tenho noventa e cinco anos e não sou obrigado a ouvir desaforo!
E Seu Bispo enterrou o queixo no peito, franziu o cenho, afundou os ombros no travesseiro verde-claro que as enfermeiras vinham trocar a cada manhã.
Quietos ficaram, imóveis, os interlocutores. O impasse era um triunfo para o velho orgulhoso, mesmo na doença, mesmo preso ao leito da clínica. As carnes negras do rosto, mais que cansadas, lhe caíam pelas bochechas. Por baixo, ele tentava disfarçar um sorriso. Mais uma vez, seu famoso mau humor haveria de prevalecer.
De pé, paciente como são os de sua estirpe, o belo anjo negro se contentava em ser o último a encarar os lábios que sorriam. Aquela magnífica boca que, durante tantas décadas, preenchera o ar dos salões onde casais dançavam de rostos colados, e depois fora animar as multidões na avenida, a voz encorpada pairando acima dos três mil tambores.
Pois a voz soou de repente, imperativa e irresistível:
– E vai me levar pra onde?
Um pouco intimidado, apesar de imortal, o anjo só respondeu apontando para o alto.
– Pro céu? Mas não vou.
– Seu Bispo…
– Que papo é esse? Obrigado se vocês lá em cima pensam que eu sou uma boa pessoa, mas não vou. Fico por aqui mesmo.
– Olha, infelizmente não é possível…
– Aqui, que não é possível! Uma hora, estou com uns probleminhas no rim, na bacia, derrame, coisa e tal. Na outra, já vem neguinho querendo me levar pro céu. Vê se pode…
Tudo isso, José Clementino dizia ainda com os braços cruzados, a papada negra esparramada sobre a camisa branca, a cara amarrada.
– Não, não.
O anjo adocicou ainda mais a voz. Aquele não era qualquer mortal, era alguém que, chegando ao céu, receberia no mesmo instante um lugar de destaque entre santos e orixás.
Nada de ferir seus sentimentos.
– Desculpe, Seu Bispo, eu não posso esperar mais…
– Quer parar de me chamar assim? Ninguém nunca me chama assim!
– … Seu Jamelão, estão esperando o senhor para puxar uns sambinhas em homenagem a seu Angenor e seu Natal.
A explicação teve efeito contrário ao desejado pelo anjo. Uma falha inaceitável, para um ser eterno e que sabe de tudo. Jamelão quase rolou para fora do leito. Explodiu, abriu os braços, berrou com uma força difícil de conceber em um homem tão velho e tão fragilizado.
– Quantas vezes vou ter que falar? Eu não sou puxador de samba! Puxador é maconheiro ou ladrão de carro!
Desorientado, o anjo tentou contemporizar. Levou as mãos aos ombros do cantor e o empurrou de volta para o travesseiro, com toda sua delicadeza de anjo.
– É que, lá em cima, está todo mundo com saudades do senhor. Cartola, Paulo da Portela, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, todo mundo quer ouvir a sua voz. Estão preparando uma roda lá em cima, com vista para a Mangueira e o Rio. O senhor sabe, Seu Jamelão, a cidade, vista assim do alto, mais parece um céu no chão…
O cantor já parecia mais calmo. Talvez fosse o esforço que o cansasse, ou a lembrança dos amigos.
– E os daqui, seu Jamelão, ainda vão poder escutar os seus discos.
Jamelão fechou os olhos. Sua respiração era um fio, a expressão no rosto era tranqüila, nada parecida com a cara de poucos amigos quase tão célebre quanto a voz enorme.
– Vem comigo, dá a mão, vem…
Ao amanhecer deste sábado, o Brasil soube que Jamelão não era mais.

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O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do olvido da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos:

Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai!

Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar da mulher que acantoa uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo “simplesmente” no meio de seu poema (sim, asseguro que é um poema), o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: “as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca”. Se, no lugar do “simplesmente”, o autor cometesse algo como “inversamente”, “ao contrário” ou “em vez disso”, a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é.

Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

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Informação e ânimos exaltados

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Muito interessantes, as reações que causou o último texto. Em primeiro lugar, nunca tive tantas visitas, o que é algo a comemorar; por outro lado, o fato de que uma boa parte dessas visitas tenha chegado através do webmail do Ministério Público Federal de vários Estados é bem preocupante. Em segundo lugar, meu comentário (que se queria frio) sobre a baixa qualidade da reportagem produzida no Brasil, com um breve sumário de algumas de suas possíveis razões, foi recebido quase como um manifesto revolucionário. Parece que tocar no nome da revista Veja suscita paixões intempestivas nas pessoas. O quadro é mais ou menos assim: de um lado, há os que sorvem aquelas páginas coalhadas de adjetivos depreciativos como se fosse o néctar do Olimpo. De outro, há toda uma multidão de ex-leitores que só esperam a oportunidade para empastelar o carro-chefe dos Civita.

Houve gente que, comentando minha análise, falou em derrubada de ditaduras, o que me pareceu um tanto fora do contexto, mas, enfim, ninguém é obrigado a ler os textos que comenta. Ao mesmo tempo, alguns leitores aproveitaram a oportunidade para descarregar, numa enxurrada de palavrões, toda a raiva contida contra a revista. Aliás, agradeço aos que tiveram a discrição de fazê-lo por e-mail, em vez de baixar o nível na minha caixa de comentários. Aos demais, lamento não ter podido aprovar suas intervenções, e peço que as reescrevam em tom menos agressivo. A propósito, também seria adequado se aqueles que se irritaram com o que lhes pareceu uma ofensa à sua revista preferida se abstivessem de cumprir a promessa de atentar contra a integridade física do ofensor. O tempo de preparar a vingança seria melhor empregado na releitura do texto, com a cabeça mais fria.

Curiosamente, os comentários sobre o próprio Nassif foram parcos. Sobre seu trabalho de reportagem, quase nulos. A maior parte preferiu desviar o foco para seu caráter: para uns, um semi-deus. Para outros, um sujeitinho anti-ético, como mostraram as acusações de Diogo Mainardi (explicaram-me, mais tarde, que as tais acusações são, na verdade, um parágrafo de uma coluna na própria Veja, em que Mainardi insinua, sem afirmar peremptoriamente, que Nassif teria, quem sabe, sido favorecido pelo governo). Cá entre nós, não tenho a menor idéia do padrão ético do jornalista; jamais colocaria a mão no fogo por ele. Achava suas crônicas da Folha, enviadas sempre com atraso, terrivelmente sem graça. Também sou da opinião de que alguém que conhece a música de Danilo Brito não pode apreciar a técnica de Nassif ao bandolim. Mas repito o conteúdo do último texto: o trabalho de reportagem que ele vem fazendo nas suas catilinárias anti-Veja é de primeira qualidade, e todo esse debate ganharia muito se o outro lado se propusesse a agir da mesma forma.

Certos comentários causaram reflexões que quero compartilhar. Antes de mais nada, preciso esclarecer um ponto fundamental. Um esperto homem de Marketing afirmará, sem dúvida, que os sentimentos suscitados por Veja depõem a seu favor. Mantêm a marca em evidência; são, no fundo, uma publicidade gratuita; podem até aumentar a circulação e fortalecem a posição do veículo como porta-voz das idéias de uma parcela da sociedade. Mas eu discordo inteiramente. Para mim, o irracionalismo que cerca a avaliação que o público tem de Veja é um indício de que ela não cumpre sua função como imprensa. Jornais e revistas não são feitos para serem amados e odiados. São feitos para serem respeitados e lidos. Sei que não é assim no Brasil, terra de Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues e Carlos Lacerda, mas em sociedades minimamente organizadas, respeito e leitores não se conquistam com sentimentos animalescos como os que Veja suscita, e sim com credibilidade. Credibilidade, um conceito que deveria ser fundamental na imprensa, mas que vou deixar para discutir mais adiante.

Agora, prefiro comentar um pedaço do aparte de meu amigo Leonardo: a Veja, segundo ele, deixou de ser um veículo de informação para ser um veículo de opinião. No entendimento de Leo, pelo que me pareceu, há aí dois erros: deixar de ser um veículo de informação e passar a ser um veículo de opinião. Se for isso mesmo, discordo. Para mim, só há um erro nessa frase, que é deixar de informar. Ser um veículo de opinião não é crime nenhum. Todos os grandes jornais do mundo são fortemente opinativos e deixam suas opiniões bem claras. O melhor exemplo é o da revista britânica The Economist. Sua posição é bem simples: a favor do liberalismo econômico e fim de papo. A Fox News é uma rede de televisão francamente favorável ao governo Bush, e isso não foi problema algum até o momento em que ficou claro que ela manipulava informações para isso. O New York Times nunca escondeu sua preferência pelo Partido Democrata. O Última Hora, de Samuel Wainer (cuja autobiografia merece um texto à parte), jamais escondeu sua linha getulista. A Carta Capital, quando das eleições de 2002, colocou-se, em editorial, claramente favorável a Lula. Quem, na França, não sabe que o Le Figaro é o jornal da direita tradicional, o Le Monde, da direita moderna, também conhecida como centro, e o Libération, um jornal francamente de esquerda? Tem também o famoso La Croix, que jamais precisou esconder o fato patente de que pertence à Igreja Católica.

A opinião está longe de ser proibida aos veículos de imprensa; aliás, muito pelo contrário. Redação nenhuma é habitada por almas cândidas, incapazes de parcialidade. No entanto, o trotskista mais ferrenho não cometerá a sandice de afirmar que a The Economist só tem “mentiras”. Será tomado por louco varrido, mesmo entre seus colegas, se o fizer. Mesmo um leitor republicano, um verdadeiro neocon, poderá ler o NYT sem medo de encontrar inverdades publicadas ali por motivos políticos. Quando um jornalista foi flagrado inventando matérias no jornal, e o assunto nem era política, foi sumariamente demitido. Mas o mais importante é que a edição seguinte do jornal continha um enorme mea culpa. Por que esse ato de contrição tão reforçado? Porque a pior coisa que poderia acontecer ao jornal seria perder sua credibilidade.

E, pronto, eis-nos de novo nela. A tal credibilidade. O trotskista respeita a The Economist porque sabe que o jornalismo feito ali é sério, ele o vê nas matérias. Sabe quais são as fontes, sabe quais são os documentos, tem acesso à redação. O republicano respeita o NYT pelo mesmo motivo. Aqui na França, jamais escutei de alguém de direita a frase: “Ah, deu no Libé [ou no Nouvel Observateur, por outra]? Então é mentira, eles são de esquerda!” Nem ouvi a proposição inversa da boca de um esquerdista, dispensando algo que tenha saído no Figaro. É como se isso só existisse no Brasil.

Falando em Brasil, uma pergunta: que veículo em nosso país pode reclamar o título de credível? Penso, penso, penso, não encontro nenhum. A Veja está na berlinda por causa dos artigos de Nassif e por ser a revista de maior circulação. Mas, por exemplo, poderiam ser as Organizações Globo, condenadas pelo próprio passado. Tomando uma Veja entre as mãos, nunca sei se algo que esteja escrito ali é verdadeiro ou falso. Já houve casos em que a falsidade era evidente. Certa vez, topei com um diagrama que não citava, nem naquelas letras minúsculas que ninguém lê, qual foi o instituto que cedeu os dados. Se a incerteza pode chegar a esse ponto, como posso dar crédito a todo o resto? A dúvida paira sobre a totalidade do que está publicado na revista. O resultado é que mesmo os dados que eventualmente forem verdadeiros, e a grande maioria o é (pelo menos, espero que seja), recebem o selo amargo da desconfiança. É por isso que as pessoas de bom senso que conheço estão gradualmente abandonando a imprensa brasileira. É por isso que as empresas andam às voltas com problemas financeiros gravíssimos. É por isso que os melhores jornalistas migram para a internet em páginas pessoais. E seria muito pior, se o Brasil tivesse um público leitor que soubesse exigir credibilidade.

Para terminar, uma palavra sobre o conceito de “denúncia”. Quem acha que o jornalismo brasileiro, do qual Veja é um dos maiores expoentes, faz maravilhosas denúncias (sobretudo contra o governo) deveria buscar um livro chamado Todos os homens do presidente, de Bob Woodward e Carl Bernstein. Aos cultos, desculpe citar uma obviedade. Aos preguiçosos, não desanimem: há um filme homônimo, com Robert Redford e Dustin Hoffman. Eis ali um verdadeiro trabalho de reportagem investigativa que resultou, de fato, na derrubada de um presidente, graças à qualidade técnica com que foi realizada. Assim como acontece no Brasil, uma fonte interna deu a dica do caminho a seguir. Mas, ao contrário de nosso procedimento tupiniquim, em vez de botar a boca no trombone com o famoso “fontes ligadas ao palácio afirmam que…”, os dois americanos se enfiaram nos dados, nas conexões, nas entrevistas e nos telefonemas. Foram apoiados pelo editor-executivo, o célebre Ben Bradlee, apesar de todas as pressões que se podem imaginar. O que conseguiram, graças a um trabalho sério que mal conseguimos compreender no Brasil, foi mudar a história dos Estados Unidos. Sem precisar de piadinhas infames.

Paro por aqui, porque o texto está enorme. Espero ter deixado claro o que ficou obscuro no primeiro texto. Concordo com quem diz que a imprensa tem um papel de vigiar o poder, e acho impressionante como tanta gente esquece que existe uma maneira de fazer isso, e essa maneira se chama “jornalismo”. Não é de hoje que nossos veículos de comunicação deixaram para lá esse pequeno detalhe quando decidem bater no governo. Há muita gente que gostaria, por exemplo, de ver Lula sofrer um processo de impeachment, e se escandalizam porque os ataques da imprensa não conseguem derrubá-lo. Pois eu lanço aqui um balão de ensaio: certamente existem fatos e dados suficientes para justificar que o presidente seja afastado do cargo. Certamente esses fatos e dados estão acessíveis à imprensa. Concluindo: se a imprensa quiser, de fato, tirar Lula do poder, ela tem plena capacidade de fazê-lo. E lá vai a pergunta capital: por que os ataques ao presidente ficam só na retórica e não lançam mão de suas verdadeiras armas?

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arte, Brasil, história, música, obituário, opinião, passado, pena, prosa, reflexão, saudade, tempo, tristeza, vida

Seção obituário: Moacir Santos (Hora do mea culpa)

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Este blog passou, isto é, eu passei batido por uma notícia que deveria entristecer todos os brasileiros, mas duvido que tenha tocado mais do que a meia-dúzia de sempre. Só pra piorar um pouco, minha omissão se torna ainda mais gritante pelo fato de que nesse meio-tempo ainda ousei escrever um texto laudatório sobre os grandes gênios da música brasileira. Pois no dia 6 de agosto perdemos um que certamente está nos “Top 10”, se não estiver nos “top” três ou quatro. Que o sol suma do céu e a terra trema: perdemos Moacir Santos (1924-2006).

Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Eu jamais poderia ter deixado tanto tempo antes de comentar, ou, melhor dizendo, homenagear um dos nossos mestres. Talvez isso se explique pela semana infernal que tive, a cabeça ocupada até o talo com uma série de obrigações de que falarei mais adiante, quando for hora. Mesmo assim, não tem perdão. A morte de Moacir Santos é caso de parar todas as atribuições do maldito cotidiano.

Certo, estou exagerando. Mas tudo isso foi só para aguçar a curiosidade dos muitos brasileiros que não conhecem esse compositor. De fato, não são poucos: por falta do devido reconhecimento, Moacir se tornou mais um cérebro (genial, diga-se de passagem) brasileiro a tentar a vida no exterior, mais especificamente, EUA. Pena. Lá, ele produziu algumas de suas maiores obras e ensinou a muitos músicos estrangeiros a beleza de nossa música, que alunos brasileiros poderiam ter aproveitado se tivéssemos mais estrutura para manter nossos gênios. Resta o consolo de saber que houve um mestre cuja vida foi dedicada a expandir as fronteiras da cultura do Brasil…

Moacir Santos era pernambucano. Tocou em várias bandas do nordeste até se mudar para o Rio de Janeiro, onde arrumou emprego, leia-se bicos, em vários lugares, principalmente a Rádio Nacional. Fazia arranjos sem saber teoria (o que não é fácil), e seu talento chamou a atenção do professor Hans Joachim Koellreutter, alemão desses geniais, que viveu e compôs no Brasil. Moacir foi assistente do maestro e, mais tarde, deu aulas para João Donato, Baden Powell, Paulo Moura e outros grandes músicos brasileiros.

Tocava vários instrumentos, como a maioria dos grandes músicos, mas tinha uma queda para o saxofone. Sua música é de uma beleza difícil de crer. Moacir tinha a rara qualidade de fazer o complexo parecer simples. O som que criou é uma mistura quase mágica entre influências nordestinas, cariocas (samba e choro), eruditas e norte-americanas (jazz). O resultado é difícil de definir até para o compositor: seu primeiro disco chamou-se Coisas, pelo simplíssimo motivo de que cada uma das músicas ali dentro era uma “Coisa” seguida de um número. A “Coisa” que ficou mais famosa é a de número 5. Não vou dizer que é a melhor, porque cada um deveria ouvir e escolher por si próprio. Mas o fato é que a “quinta coisa” foi regravada inúmeras vezes.

Depois de Coisas, Santos lançou dois outros discos, já nos EUA. Por fim, quando se reconciliou (mas não voltou) com a nossa pobre pátria, comemorou o reencontro com o lançamento de um disco duplo delicioso de se escutar, todo negro, com um encarte fabuloso, chamado “Ouro Negro” como a pele e o coração do compositor (são músicas instrumentais, então não se pode dizer, como seu antigo parceiro Vinícius de Moraes, que o som é “branco na poesia”). Alguns de nossos melhores nomes fazem participações breves nesse disco.

Pois Moacir Santos, já octogenário, foi-se, legando essas composições monumentais, e uma série de ex-alunos que dignificam nossa história musical. Só acho uma pena que ele não tenha gravado mais discos. Saravá, Moacir!

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