arte, barbárie, Brasil, capitalismo, cidade, comunicação, crônica, direita, domingo, economia, eleições, Ensaio, esquerda, fotografia, futebol, história, imagens, imprensa, jornalismo, manifestação, passado, Politica, prosa, reflexão, reportagem, São Paulo, Sociedade, tempo, trabalho

Imagens que não fizeram história (5): a caixa térmica e a máscara

[Prelúdio: escrevi o que segue abaixo entre domingo (31/5) e segunda-feira (1/6). De lá para cá, boa parte do assunto que motivou o texto perdeu relevância, soterrado por eventos mais impactantes e relevantes, como a mobilização anti-racista que ecoa a partir de Minneapolis. Eis aí mais uma maneira pela qual uma imagem pode não fazer história: quando é surpreendida por uma avalanche de estímulos – coisa que, de uns anos para cá, não tem faltado…]

*

Manifestações em geral sempre rendem um bom número de imagens interessantes, por bem ou por mal – quer dizer, pelas bandeiras agitadas ou pela fumaça das bombas. Desde 2011, tivemos tantos protestos que pareceria impossível surgir algo digno de nota. Tolice: o campo de possibilidades para que emerja algo capaz de ressoar conosco está sempre em expansão. Considerando a infinita redundância de imagens que nos inundam, seria de se esperar que o universo daquelas que são significantes e informativas estivesse em contração; mas é justamente da atmosfera sufocada em redundância que pode saltar o relevante. Parece que isso ocorreu domingo em São Paulo.

O embate entre neofascistas e antifascistas de 31/5 produziu tudo que costuma se produzir em termos de iconografia de protesto. Bandeiras, punhos erguidos, gente segurando microfone, policial apontando arma, escudos, bandanas, fumaça. Tivemos até algumas novidades bem desagradáveis, como a exibição de tacos de beisebol (velho símbolo anglo-saxão de agressividade) e bandeiras ucranianas de inspiração neonazi. Do ponto-de-vista iconográfico, porém, nada seria novo, a princípio; editores de jornais e revistas poderiam escolher qualquer das imagens corriqueiras de seus fotógrafos ou das agências para ilustrar suas capas.

Mas no próprio domingo, quando os envolvidos mal tinham voltado para casa, em plena indignação pela repressão policial (e o tratamento amistoso à fascista com o taco de beisebol), as redes sociais já tinham elegido uma fotografia como favorita: esta com o entregador de aplicativo (bicicleta? moto?), com a caixa térmica nas costas, máscara de hospital no rosto, prestes a lançar uma pedra, provavelmente contra a polícia.

O gesto, o movimento, a postura do corpo, nada disso tem qualquer coisa de novo e é provavelmente por esse exato motivo que o fotógrafo (Nelson Almeida, da AFP) abriu o obturador nesse momento preciso – e depois escolheu esse clique em particular para editar no computador. De relance, a memória de quem estudou semiótica e a história do fotojornalismo captou a possibilidade de produzir uma imagem relevante não pela novidade, mas pela citação, isto é, pela inserção numa trajetória canônica. Mas é claro que o interesse não se encerra aí: a partir dessa inserção, aí sim, e por causa dela, poderão emergir as diferenças, que tornam essa imagem significativa a ponto de ter conquistado a atenção, mesmo que por poucas horas, das redes sociais – tão inundadas, tão sufocadas por imagens.

*

Talvez tenha sido com o maio de 1968 francês que a figura de manifestantes atirando pedras se tornou canônica. Por sinal, a sublevação estudantil da rive gauche forneceu uma série de padrões tanto para protestos urbanos quanto para sua representação nas décadas seguintes. Mas frequentemente capas de livros ou cartazes de filmes sobre o episódio trazem a escolha de alguma das fotografias de jovens se fazendo de catapulta humana, apertados em seus paletós “dandy”.

Desde então, a personagem do jovem que arranca o calçamento e o atira contra policiais ou soldados se tornou uma espécie de ícone do conflito social deflagrado. São abundantes as imagens de rapazes palestinos prestes a lançar uma pedra contra armamentos vastamente superiores – inclusive com o uso de fundas, o que traça um vínculo estranho, que começa no estético e o ultrapassa, entre nosso tempo e o Antigo Testamento.

Gênova, Primavera Árabe, Occupy, praça Taksim, junho, sempre fornecem algumas imagens nessa linha, às vezes muitas. Talvez a consagração do gesto do lançador como síntese da manifestação de rua esteja no mural de Banksy em Jerusalém (“Love is in the Air, or: Rage, the Flower Thrower”), em que o manifestante, de rosto coberto por uma bandana e boné virado para trás, se prepara para lançar flores: o corpo em preto-e-branco, as flores coloridas. Graças à agilidade do estêncil, a imagem se espalhou por paredes e cartões postais de todo o planeta, empapada com o mesmo tipo de ironia que acomete aquele retrato do Che feito por Alberto Korda, hoje quase uma logomarca.

É, de toda forma, um gesto como poucos para atiçar o interesse de fotógrafos e todo tipo de artista fascinado pelo corpo. Rodin, se tivesse vivido um século mais tarde, sem dúvida ficaria encantado com os braços esticados, o peito aberto, as pernas dispostas de modo a lembrar vagamente o “Gong Bu” (posição do arqueiro), e teria esculpido de alguma maneira o manifestante com o petardo engatilhado. Não foi à toa que a personagem se consolidou no imaginário da iconografia política. Se quisermos voltar ainda mais longe, dá para dizer que a figura remete também à antiguidade clássica: o atirador de lança da escultura grega, como no célebre “bronze de Artemísio” do período austero. E foi também uma das personagens escolhidas pelo pioneiro Eadweard Muybridge para suas fotografias quase cinematográficas de decomposição do gesto.

*

O entregador de aplicativo não é um estudante da Sorbonne ou de Nanterre, nem um soldado das falanges gregas, nem um esportista. Ou, para dizer a mesma coisa de maneira um pouco mais direta: o entregador de aplicativo é uma figura paradigmática da nossa década. Precarizado, sujeito ao controle algorítmico da economia de plataformas (ou, mais amplamente, a “gig economy”), tratado como empreendedor individual pelo patrão e pela Justiça, serpenteia pela cidade da “big data” atomizada, em busca de boas avaliações e uma remuneração fundada sobre baixas porcentagens do preço das entregas.

A bem dizer, o entregador de aplicativo é praticamente o oposto do estudante da Sorbonne. Mas se uma foto sua, congelado em pleno gesto de preparar o lançamento da pedra, se conecta com essas figuras icônicas e canônicas, sejam históricas ou ficcionais, justamente essa dissonância é que chama nossa atenção. Esta é, digamos assim, a diferença que resulta da repetição, como o isótopo que escapa do átomo. É difícil determinar se a estereotipia do lançador irrompe na nossa realidade ou se é a nossa realidade que irrompe na linhagem estereotípica. O resultado no espectador, em todo caso, é algo da ordem do abalo afetivo, na linha do envolvimento subjetivo que Barthes denominou o “punctum” da fotografia, e que se destaca do contexto objetivo (“scriptum”) em que está representado um episódio ocorrido durante um domingo de protestos.

O abalo afetivo serve para trazer à superfície da consciência e do discurso essa personagem social contemporânea do entregador de aplicativo. Ela possui alguns traços que a tornam particularmente significativa neste momento. Ao longo dos últimos dois anos, tempo em que acompanhamos a chegada da extrema direita ao governo, essa categoria foi frequentemente analisada como sendo a porção da classe trabalhadora que não se abalou com a destruição de seus próprios direitos tradicionais, como classe. Motoristas, entregadores e outros braços da economia de plataforma teriam, supostamente, adotado a ideia de que são de fato pequenos empresários, que mandam em si mesmos e não dependem de ninguém.

É claro que o problema é bem mais profundo. Se a própria perspectiva de emprego com alguma segurança e direitos se esfacela, como tem sido a tendência e não só no Brasil, é natural que quem está tendo que se virar no precariado demonstre pouco interesse em lutar pela manutenção de direitos aos quais nem sequer teve acesso. A desconexão entre trabalhadores tradicionais e membros do precariado tem razão de ser e, além disso, caberia às instituições da classe trabalhadora organizada expandir suas pautas para abraçá-los, em vez de lhes apontar o dedo. Se os precarizados frequentemente acabaram adotando discursos incompatíveis com seu próprio interesse, se muitos chegaram a abraçar o bolsonarismo em algum momento, se não poucos ainda o abraçam apesar de tudo, é um efeito da posição que ocupam nas relações de trabalho e sociais em geral; algo que, pensando bem, não deveria surpreender.

Ao mesmo tempo, esses trabalhadores continuam sendo o que sempre foram, no essencial, aqueles trabalhadores que década após década tiveram que circular nas grandes cidades em situação mais ou menos precária, mas sem ter, efetivamente, acesso à cidade. Gente que vai de portaria em portaria, e não mais longe; ou que entrega documentos importantes na avenida Paulista, sem espiar o que dizem, e passa na frente de seus cinemas, livrarias e centro culturais, sem poder tomar um minuto que seja para visitá-los. O precário circula pela cidade como o sangue por um corpo, mas fora dos horários de trabalho é confinado à sua quebrada. No tempo da economia da informação e da comunicação, uma economia detalhada e instantaneamente logística, este personagem é mais decisivo para o metabolismo social e urbano do que os próprios produtores.

*

Esta é a figura que conseguimos ver, tacitamente que seja, quando olhamos para um entregador de aplicativo, de máscara, atirando uma pedra. Do fato de estar carregando a caixa térmica nas costas, podemos deduzir que não foi à avenida, originalmente, para protestar, mas para trabalhar. É claro que uma imagem como esta esconde pelo menos tanto quanto mostra, o que significa que mil outras possibilidades existem: que tenha pensado em trabalhar depois de sair da manifestação, que tenha esticado seu tempo de trabalho para protestar, aproveitando que já estava ali, ou que tenha carregado a mochila consigo só para reduzir o risco de ser abordado de modo truculento pela polícia. Ainda assim, a associação entre seu trabalho – precário, algorítmico, urbano etc. – e a manifestação salta aos olhos: o trabalho foi o passaporte para a cidade, a manifestação e a fotografia.

Vale lembrar também que as manifestações políticas da última década foram reiteradamente criticadas, com razoável dose de razão (mas não toda), por atraírem um público sobretudo da classe média e das regiões centrais da cidade. Como se dizia, as classes mais baixas, os moradores das periferias etc., no geral, permaneciam indiferentes; não tinham acesso ao espaço, nem compravam a narrativa.

Nesse contexto, outra explicação para o abalo afetivo, para o “punctum” do entregador de aplicativo, é que ele seria, graças à representação inscrita na história iconográfica, a exceção ou, melhor ainda, o indício de que as circunstâncias mudaram. Uma correção de rumos, talvez. Em outras palavras: agora, sim, é o povo, o trabalhador, o precário, que está nas ruas contra o governo opressor, e com disposição para enfrentar a polícia e as maltas fascistas… Exagero? Talvez, mas estamos falando de uma sensação, não de um raciocínio.

Seja como for, no dia em que esta fotografia foi feita, tratava-se de uma manifestação em nome da democracia, contra apoiadores do presidente de extrema-direita, que vinham ocupando sozinhos aquele espaço, à sua maneira: com bandeiras do Brasil misturadas a emblemas neonazistas ucranianos, padrões da bandeira americana e da israelense, carros de som, tacos de beisebol (não me conformo com esse taco), gritos por cloroquina. Do lado anti-fascista, a liderança estava nas mãos de torcidas organizadas, sobretudo a do Corinthians – mas também se verificou uma dessas ocasionais confraternização de seguidores de clubes que sempre nos emocionam um tiquinho.

Nesse cenário tão insólito, a imagem que tocou, afinal, o coração dos espectadores foi a do entregador de aplicativo, caixa térmica nas costas, atirando uma pedra. Uma imagem, portanto, com implicações que transbordam a confrontação política ela mesma. E essa é a importância da figura do entregador, percebida subliminarmente por quem se encantou com a foto: está em jogo mais do que a relação entre estado democrático e perigo fascista, entre a população livre e as forças repressivas – não que isso não seja crucial, claro; mas importa muito perceber que estamos tratando das tensões das relações de classe do país como um todo; o destino daqueles que trabalham, ocupam as cidades, tiram delas seu sustento, e carecem do reconhecimento jurídico, institucional, de sua função no tecido social. A imagem é lembrete “do” político, além “da” política, e conclama ao reconhecimento de que é preciso ampliar não só a presença de grupos sociais nas manifestações, mas as próprias pautas. Enfim: é preciso tratar do destino que estamos traçando, enquanto população.

*

Há outros pontos, porém. Uma imagem se deixa apreender e analisar por elementos, combinados no seu próprio quadro, ao contrário da cadência linear de um texto. Temos aí a caixa térmica e a pedra (na verdade, dá para ver que ele segura outras pedras, já pronto para iniciar – ou continuar – um bombardeio), que já foram tratadas. Poderíamos também engrenar uma especulação um pouco anódina, mas nem por isso menos interessante, sobre a ausência de um capacete, o que parece sugerir que é um entregador ciclista, não um “motoboy”.

Mas um outro elemento é mais fecundo e instigante, graças à sua ambivalência: a máscara.

Este é um tempo em que a máscara se tornou obrigatória; e pensar que a proibição de cobrir o rosto andava em voga já faz alguns anos (vide a lei anti-véu na França). Mas há pelo menos duas vertentes interessantes para a simbologia política desta máscara específica, nesta fotografia em particular. A primeira é que um objeto de proteção, de cuidado pessoal, de cunho médico, profilático, acabou sendo revestido de um caráter político surpreendente, a partir do momento em que passou a configurar uma expressão de adesão ao isolamento social, à luta contra o coronavírus – por oposição à parcela tresloucada da população, seduzida pelo fascismo, que pretende negar seja a pandemia, seja sua gravidade.

A segunda é que cobrir o rosto se tornou prática recorrente entre manifestantes há algum tempo, tanto para se proteger dos efeitos do gás lacrimogêneo lançado pela polícia, quanto para evitar a identificação pelo Estado. Hoje, por sinal, a vigilância se dá também por algoritmos, constantemente aperfeiçoados, de reconhecimento facial. A máscara, digamos assim, tomou o lugar da bandana. De modo que, nesse objeto simples, feito de pano, dois vetores de proteção se cruzam, dois vetores de sentido político se cruzam, e esses dois cruzamentos também se cruzam entre si.

Mas há mais cruzamentos: como entregador que circula pela cidade cuja população se recolhe – ou deveria se recolher –, o trabalhador se expõe ao vírus. A máscara que o protege da contaminação, tanto quanto possível, também o protegerá, tanto quanto possível, contra o gás que eventualmente será lançado (e foi). A máscara que em outros tempos, em outras situações, poderia levar policiais a tomá-lo por um ladrão, possivelmente com consequências trágicas, hoje são a marca do “cidadão consciente” (não confundir com “pessoa de bem”).

Será que a máscara o protege de ser reconhecido, caso a imagem seja vista por algum representante da empresa-aplicativo em que se inscreveu para ser entregador, e que lhe cedeu (vendeu? alugou?) a caixa térmica? Será que, ao fotografá-lo, o profissional da France Presse o colocou sob risco de dispensa, comprometendo talvez o sustento de seus familiares, o pagamento de uma faculdade ou de um tratamento médico? É tão mais fácil escrever sobre uma imagem, especular sobre seus sentidos, quando não conhecemos a personagem, quando não sabemos nada sobre ela! No mínimo, podemos ver na máscara um punhado de significados possíveis, mas é a própria possibilidade, quando a evocamos, que nos esclarece algo sobre o real.

Também poderíamos nos concentrar no próprio fato de ele estar portando a caixa térmica. Vamos imaginar por um momento que se tratasse de uma mochila comum, contendo roupas e chuteiras usadas, ou livros e cadernos, ou um tripé dobrado e várias lentes. Ele continuaria com ela nas costas, atrapalhando seu movimento, fazendo peso? Será que ele tem medo de deixar a caixa térmica no chão e ser roubado ou ter que sair correndo, arriscando-se a ficar sem ela? Será que, perdendo a caixa térmica, ele é obrigado a ressarcir a empresa?

Cada elemento da imagem informa algo, não porque assevere ou demonstre qualquer coisa, mas porque conduz a lançar perguntas como essa. Lançar como lança o lançador? Provavelmente não, já que do outro lado não está nenhum batalhão de choque. Mas, em todo caso, a motivação de transformar os elementos da fotografia em questões que a ultrapassam vem das inquietações que já temos, com o que já conhecemos ou intuímos de nosso mundo e das condições de vida que nele vigoram. Esta é provavelmente a diferença mais relevante entre a redundância das imagens repetidas, que nos afogam, e a ressonância da imagem viva, vibrante, que nos afeta.

*

Comecei com essa série sobre imagens falando em “fazer história”, e agora me vejo preso a uma espécie de obrigação auto-imposta – dessas que, supostamente, poderíamos deixar de lado sempre que quiséssemos – de ficar falando em história, quando tropeço em uma imagem que me chama a atenção e quero escrever algo sobre ela neste espaço. E no entanto, como leitor de Flusser, não posso evitar de concordar com a sentença de que a invenção da fotografia inaugurou uma era progressivamente pós-histórica. O tempo das imagens técnicas, diz ele, não é linear como o tempo histórico do texto escrito; tampouco é circular como o tempo mítico da imagem tradicional, à qual voltamos para recordar aquilo que é fixo.

A imagem técnica, diz o filósofo tcheco, emerge da irrupção a-histórica das equações matemáticas no universo da produção de imagens. Flusser se referia à química e à ótica necessárias para produzir uma chapa, mas essa afirmação é infinitamente mais válida para a imagem digital, que é integralmente algorítmica, da fotometria à compressão – sem falar na pós-produção. Ora, a equação está à parte da história, é uma igualdade matemática que, notação à parte, se supõe eterna e universal.

Isto não significa, porém, que a história desaparece com a imagem técnica. Mas significa que a imagem técnica é capaz de manipular, suspender, desviar a história. Pode ser usada tanto para desaparecer com elementos centrais de seu movimento (que Stalin o diga) como para realçar figuras marginais de seu processo, como nas imagens que celebram vitórias post factum: bandeira americana em Iwo Jima, soviética no Reichstag.

Tudo isso para dizer que cabe a quem opera o aparelho definir a relação com a história, assim como lhe cabe determinar entre a redundância sufocante, entrópica, e o sentido informativo, ressonante. Quem aponta uma lente ou monta uma estrutura gráfica define o retorno, o falseamento, o esquecimento, a perpetuação, naquela chapa a-histórica, de um sentido de história.

Esse poder, essa responsabilidade, transparece na imagem do entregador de aplicativo porque com ela o fotógrafo, em frações de segundo, injeta no ato de um trabalhador precário uma carga de significado que vem do cânone, ou seja, da história. O corpo esticado do manifestante sintetiza as tendências do mercado de trabalho, a trajetória dos movimentos trabalhistas, as aspirações dos protestos do nosso tempo, o contraste com a memória de 1968, o tensionamento da democracia brasileira. Mas isto tudo só ocorre porque sua imagem, por um breve instante, rebateu na lente de um aparelho fotográfico, nas mãos de alguém que tinha a bagagem necessária para saber quando disparar o obturador.

*

Outras imagens:

Alguém que não consegui identificar tirou uma foto do lado oposto – quem sabe, da mesma pedra? Ao fundo, vemos uma pessoa tirando foto. Seria o profissional da France Presse?

O bronze de Artemísio (Zeus ou Poseidon, a princípio)

A disposição dos pés na posição do arqueiro (Gong Bu)

Banksy em Jerusalém

O savoir-faire de um sorbonnard

Jovem palestino e sua funda

Muybridge e sua série da “locomoção animal”: 1887

Padrão
barbárie, Brasil, capitalismo, centro, cidade, comunicação, crime, descoberta, desespero, direita, economia, eleições, Ensaio, escândalo, esquerda, Filosofia, frança, francês, futebol, guerra, história, imprensa, Itália, jornalismo, junho, lula, modernidade, morte, opinião, paris, passado, Politica, praça, primavera, prosa, reflexão, Rio de Janeiro, São Paulo, tempo, trânsito, trem, Veja, vida

Pauta difusa e derrota, mais uma vez

Para finalmente dar meu palpite sobre o furacão que passou no Brasil nas duas últimas semanas, adotei dois princípios: pensar em termos conceituais, em vez de impressionistas, e começar do começo. Os motivos, espero, vão ficar claros ao longo do texto.

No começo, isto é, entre a porradaria geral da polícia e a primeira manifestação realmente gigantesca, a interpretação geral era de um “aqui também”. Até então, o país que realmente estava fervendo era a Turquia. Lá como cá, o primeiro vetor invocado para explicar a súbita capacidade de motivação foi o acesso às redes sociais. Ou seja, a Turquia e o Brasil seriam algo como um segundo tempo do animado ano de 2011, que teve Primavera Árabe, Occupy Wall Street, indignados na Espanha, manifestações em Israel, Chile e mais tantos outros países.

Mas eis que veio 2012, o ano da decepção: a Espanha, como o resto da Europa, seguiu com suas políticas de austeridade; na Grécia, o neonazismo ganhou terreno. No mundo árabe, os países sortudos se viram com governos religiosos e conservadores; os azarados, com guerra civil. O Occupy teve de se contentar em descobrir que não só Obama baixou a cabeça para Wall Street, como, no que tange aos direitos civis, estava na mesma linha de Bush. Derrotas, ao que parece.

Agora, 2013. Novos países entram na dança. Além da Turquia e do Brasil, Índia e Indonésia, além de, mais uma vez, os bravos chilenos, se colocam em movimento. Como sempre acontece, comparações pululam com o famoso maio de 1968, quando a greve geral francesa, somadas às manifestações dos estudantes franceses, se espalharam para o Leste Europeu, o México, o Brasil, antes de resultar em derrota e apatia.

Algo nessa comparação, porém, não se encaixa. Em 1968, o que houve de efetivo, como a greve que, sem eufemismos, parou a economia da França, foi comandado pelos fortíssimos sindicatos da época, um tempo de mobilização industrial e partidos de esquerda poderosos. Os caminhos para se chegar aos objetivos, fossem quais fossem as pautas de cada grupo social envolvido, à exceção provável dos estudantes, estavam bem traçados, até onde podiam divisar os envolvidos.

Hoje, não há nada disso. Em 2011, os árabes queriam derrubar seus ditadores. E depois? Os espanhóis queriam mandar embora o neoliberalismo… e mais o quê? Os novaiorquinos eram contra a plutocracia, como quase todo mundo. E assim por diante. No Brasil, as manifestações mais ou menos pequenas contra a cara de pau do transporte público se expandiram da noite para o dia numa maçaroca de gente despolitizada que protesta contra conceitos abstratos como a corrupção, mas não quer saber de questões concretas como… a corrupção do oligopólio do transporte. Com isso, as mesmas críticas endereçadas aos indignados e ao Occupy voltaram: as pautas são difusas, as pessoas não propõem nada de concreto. Continuar lendo

Padrão
arte, barbárie, Brasil, calor, capitalismo, centro, cidade, comunicação, costumes, crônica, descoberta, desespero, doença, Ensaio, escultura, Filosofia, fotografia, imagens, jornalismo, modernidade, opinião, passeio, Politica, praça, primavera, prosa, reflexão, São Paulo, tempo, trabalho, transcendência, trânsito, vida

O pedestal

Este é alguém que fabricou para si um pedestal. É alguém que, na gramática usual, não pode grande coisa. É o estereótipo do impotente. No dia-a-dia, precisa fabricar ou garimpar tudo que usa, mas seus poderes terminam aí. E um pedestal não é algo que se use, simplesmente. Continuar lendo

Padrão
barbárie, capitalismo, cidade, comunicação, costumes, descoberta, desespero, direita, economia, escândalo, esquerda, Filosofia, frança, francês, greve, guerra, história, jornalismo, madrid, modernidade, morte, opinião, paris, passado, Politica, prosa, reflexão, reportagem, tempo, transcendência, vida

A Internacional Digital

Deixo como isca para debates um trecho não publicado da entrevista que fiz com Bernard Stiegler, filósofo francês. A versão editada está no Valor de hoje. Transcrevi o trecho que segue abaixo porque me parece que tem muito a ver com algumas coisas que tenho tentado escrever por aqui ultimamente. (Claro, pombas, como leitor dele, muito do que ele diz me influencia.) Mas ele se expressa, naturalmente, muito melhor do que eu.

Stiegler é um dos principais herdeiros de meu autor de predileção, Gilbert Simondon. É também diretor do Instituto de Pesquisa e Inovação do Centro Pompidou (Paris), fundador da associação Ars Industrialis e professor em Compiègne, Londres (Goldsmiths), Cambridge e, a partir do segundo semestre, mais uma instituição superior francesa. Para saber mais sobre o sujeito, basta clicar nos links. Continuar lendo

Padrão
arte, barbárie, Brasil, capitalismo, centro, cidade, cinema, comunicação, costumes, descoberta, história, imprensa, ironia, jornalismo, literatura, livros, música, modernidade, opinião, Politica, prosa, reflexão, reportagem, Rio de Janeiro, São Paulo, teatro, trabalho, transcendência, vida

A classe mofadinha

Não posso deixar de compartilhar as citações abaixo, colhidas de entrevistas que fiz ao longo das últimas semanas para uma matéria sobre o consumo de cultura na classe C (a matéria saiu hoje). Elas deixam uma pulga atrás da orelha sobre o que é criar arte e cultura num país que redesenha sua pirâmide social:

Quem tem o volume de dinheiro dita as tendências. Hoje, o dinheiro está com a classe C. O que mais se vê agora são jovens louros, brancos e ricos usando ‘dreadlocks’ no cabelo. Os criadores de moda, de arte, de vestuário, de comportamento, passaram a vir de lugares que ontem eram guetos, não mais da elite.

Renato Meirelles, da consultoria Data Popular 

A arte do centro está escassa. Falta criatividade e originalidade de criação e promoção. A periferia encontrou, em diversos meios alternativos e acessíveis, uma forma de produzir, criar e promover com criatividade. Isso faz com que a arte da periferia ganhe respeito e espaço, para que os consumidores e produtores culturais se tornem capazes de pensar em novas formas de empreendimento artístico.

Marcão baixada, rapper
O ‘hype’ está em olhar o que está fazendo a classe C. A classe A está meio mofadinha e a classe B está deslocada. Não conseguem dialogar com as populações que estão subindo.  A barreira cultural está destruída. As classes abastadas dependem da nova classe média para viver. É o principal mercado consumidor e fonte de mão-de-obra. Não é mais possível fortalecer barreiras. A classe alta quer marcar sua diferença, mas essa diferença pode lhe fazer muito mal, isolando-a dos verdadeiros circuitos de produção de riqueza.
Ana Paula Kuroki e Laura Chiavone, publicitárias
Deixo os comentários a cargo de quem tenha algo a comentar.
Padrão
barbárie, Brasil, capitalismo, comunicação, costumes, direita, doença, economia, eleições, Ensaio, escândalo, esquerda, estados unidos, Filosofia, história, humor, ironia, jornalismo, lula, modernidade, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, reportagem, tempo, trabalho, tristeza

FHC entre o povão e a contradição

Como é pobre a celeuma em torno do artigo de Fernando Henrique! Debater se o homem propõe ou não que o partido dele “abandone o povão” e se concentre na classe média, como se fosse algum absurdo haver partidos de classe média… Um texto inteiro poderia ser dedicado à preferência do brasileiro pela polêmica mesquinha, até mesmo na política, onde as discussões deveriam ser mais penetrantes e corajosas diante da aporia inescapável (sim, a política, enquanto arte, é o bailado numa pista de aporias). A algazarra em torno do texto fernandino é um claro exemplo dessa mediocridade escolhida. Valeria bem mais a pena, por ora, destrinchar o artigo, porque ele expõe o impasse em que se enreda, com muito gosto, o partido de que o autor é presidente de honra. Façamo-lo.

Nosso ex-presidente entende seu texto como um raio-x das insuficiências da oposição, especificamente o PSDB, e uma proposta de reorientação. Entre circunlóquios, lugares-comuns e interpretações bem livres da história recente do país, FHC acaba dizendo, um pouco sem querer, algumas coisas bastante verdadeiras. Se fossem ditas por querer, seriam talvez dolorosas demais para os tucanos e seus correligionários, porque revelam em filigrana que as diretrizes peremptórias que FHC delineia para seu partido, ora, são simplesmente o que o partido, tal como se organiza hoje, não poderá nunca realizar. Em outras palavras, Fernando Henrique atirou no que viu e acertou no que não viu. Só que, como estamos falando de política, o “ver” significa “querer ver”­ – é uma maneira de recortar a realidade de um universo político, tornando-a um discurso coerente, mas coerente segundo determinados pressupostos – e o “não ver” significa “recusar terminantemente, a ponto de não poder ver”. Continuar lendo

Padrão
arte, barbárie, capitalismo, cidade, comunicação, descoberta, eleições, Ensaio, Filosofia, greve, guerra, história, imagens, jornalismo, modernidade, morte, obituário, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, religião, tempo, transcendência, vida

Bouazizi, o herói de Nietzsche

Nem Assange, o indiscreto hacker australiano. Nem Zuckerberg, o ainda mais indiscreto empresário precoce da rede, como quis a revista Time. Nem Suárez, o goleiro fugaz dos pampas, sobre o qual ainda hei de escrever. O maior herói de 2010 foi um vendedor de frutas, ambulante e sem licença, natural de Sidi Bouzid, no interior da Tunísia. Chamava-se Mohamed Bouazizi e tinha 26 anos quando morreu.

O gesto heróico de Bouazizi foi um martírio que, em si, não tem nada de novo, mas sempre impressiona. No Vietnã de 1963, Thích Quảng Đức desceu do convento e, com toda a calma que se espera de um monge budista, imolou-se na praça mais movimentada de Saigon. Kennedy admitiu que a imagem daquele corpo se consumindo abalou o mundo. Na Tchecoslováquia de 1969, Jan Palach, estudante de filosofia, escolheu que sua existência não passaria dos 21 anos. De que valia viver sob o jugo soviético? Em 1989, a celebração de sua memória desaguaria na Revolução de Veludo, batendo um cravo no caixão da Cortina de Ferro.

É perturbador, mas parece que morrer dá resultado. Continuar lendo

Padrão
abril, arte, barbárie, Brasil, capitalismo, cinema, comunicação, crônica, crime, direita, economia, eleições, escultura, esquerda, estados unidos, frança, guerra, história, hitler, imprensa, inglaterra, ironia, jornalismo, junho, lula, março, modernidade, morte, obituário, opinião, paris, passado, passeio, pena, Politica, primavera, prosa, reflexão, sarkozy, tristeza, Veja, vida

Assuntos que passaram

Quando se esgotaram minhas forças – e isso deve fazer umas duas semanas, pouco mais, pouco menos – logo vi que a primeira vítima seria o blog. Eu estava certo. Assunto vinha, assunto ia; a vontade de escrever vibrava entre as orelhas, mas desfalecia entre a mão e o lápis (que digo? É o teclado…). O coeficiente de crescimento do desânimo, como não podia deixar de ser, era proporcional ao acúmulo de eventos ao redor dos meus olhos e sentidos. O mundo é assim mesmo: ou você gira com ele, ou aceita a frustração. (Não há nada errado em aceitar a frustração; é melhor do que se deprimir à toa.)

Foi assim que, nesse meio-tempo, eu quis comentar uma infinidade de coisas, mas não o fiz. Em muitos casos, a escolha foi acertada: outros o fizeram melhor do que eu jamais faria, e uma humilhação evitada não deixa de contar ponto a favor. Talvez essa máxima contrarie o espírito blogueiro, mas é assim, não há o que fazer. Em outros casos, perdi a chance: nem me lembro mais das reflexões simpáticas que me causou a vista de uma meia-dúzia de bolas de futebol, gastas e esfarrapadas, boiando em meio à sujeira, numa curva do rio.

Seja como for, listo aqui algumas das idéias que deveria ter desenvolvido em postagens específicas. Qual é o interesse para você que me visita desses parágrafos curtos sobre coisas que mereciam páginas e páginas? Ora, os links, claro. Pois vamos:

1) No último fim-de-semana, passou um documentário alemão no canal Arte sobre Dennis Hopper, com o tristemente premonitório título de “Spiel (oder stirb)”: crie ou morra. Pois bem, três dias depois ele modulou o verbo. Não obstante, recomendo a todos o filme, em que o ator conta sua vida com uma sinceridade e uma naturalidade marcantes. Em seus últimos anos, Hopper se dedicava às artes plásticas, com um interesse particular por fotografar grafites de gangues em Los Angeles, na tentativa de decriptá-los. Eis um trecho, eis outro. Eu poderia mencionar que ele era um personagem fantástico e um ator fenomenal, mas isso, todo mundo já sabe. Então me contenho em sugerir: procurem o documentário.

2) Mais uma sobre morte, um de meus velhos temas preferidos neste blog: Louise Bourgeois não chegou ao centenário, o que certamente teria sido tema para uma escultura e escritos carregados de ironia. Como no caso de Dennis Hopper, eu poderia mencionar que ela era uma personagem fantástica e uma artista fenomenal, mas isso, todo mundo já sabe. Então me contenho em recomendar um espetáculo sobre ela, obra da sempre maravilhosa Denise Stoklos. Ela tende a rodar o país apresentando diversos de seus monólogos, e “Faço, Desfaço, Refaço” costuma estar no meio deles. Ou seja, seu dever, visitante, é ficar atento à agenda da moça. Mais cedo ou mais tarde, ela vai passar pela sua cidade. Encontrei poucas coisas na internet sobre esse espetáculo, em que Stoklos incorpora Bourgeois através de seus escritos, mas eis dois links possíveis: este e este.

3) Um dos assuntos que não ouso abordar é a questão da Terra Santa (dizem que o sangue purifica, o que explica a santidade daquele deserto). Há muita coisa em jogo, uma história enrolada demais e um jogo de retórica e pressões em que os culpados são muitos e a vítima é uma só: a população que preferia poder só tocar a vida. Aliás, Brecht tinha razão. Quem tenta não se interessar por política é massacrado (desculpe a citação imprecisa) por quem se interessa. Em todo caso, algumas reflexões se fazem necessárias, sobretudo depois que o governo israelense foi mais longe do que o longe demais a que já tinha ido.

A primeira delas: não consigo entender como um país cuja fundação remete ao trauma do genocídio e ao racismo sistemáticos pode agir, meros sessenta anos depois, de forma sistematicamente genocida e racista. Acho que só conseguirei produzir um texto a respeito quando tiver entendido isso, ou seja, nunca.

A segunda: O risco de cair no fascismo começa quando alguém resolve substancializar um povo, um governo e os atos de um e outro, para em seguida identificá-los. Tenho visto muita gente tratando como anti-semitismo toda e qualquer crítica às atitudes criminosas do governo israelense: muro, bloqueio de Gaza, bombardeios de hospitais, assassinato de ativistas e por aí vai. Com o risco de cair numa comparação de Godwin, lembro que Goebbels considerava qualquer crítica a Hitler como “anti-alemã” (Sophie Scholl perdeu a cabeça por isso); Jdanov considerava qualquer arte independente como anti-revolucionária (está lá a Sibéria que não me deixa mentir); e, em nossas terras tropicais, o lema era “Ame-o (pode parecer que é o Brasil, mas é o regime, ou seja, a ditadura) ou deixe-o (pode parecer que é o Brasil, mas é o mundo dos vivos)”. Quem identifica críticas a Israel com o ódio ao judaísmo está a dois passos de se tornar um fascista, se é que já não se tornou, e o governo israelense está de braços abertos para essa categoria humana.

A terceira: Robert Fisk tem toda razão: são covardes aqueles que não condenam o ataque israelense à flotilha humanitária. E os mais covardes são os governos “ocidentais” (já disse que odeio essa expressão), aqueles que ou sentiram o fascismo na carne, ou lutaram contra ele, ou ambos, e deveriam atuar para que coisas assim não pudessem se repetir.

A ante-penúltima: o fascismo também tende a achar que consegue fazer todo mundo de otário, não sei por que razão ; em 1o de setembro de 1939, os alemães vestiram cadáveres com uniformes poloneses e acusaram o país vizinho de atacar uma estação de rádio sua, tentando justificar o início da Segunda Guerra (ninguém caiu, claro). Nossos ditadores tentaram fazer crer que Vladimir Herzog tinha se enforcado na cela (e teve gente que caiu, a começar por alguns órgãos de imprensa). Agora o governo israelense mostra vídeos de estilingues (!!!), bolas de gude (!!!) e pedaços de madeira como prova de que seus pobres comandos foram atacados por hordas de pacifistas. Bem que Einstein (por sinal, judeu) avisou: a quarta guerra mundial vai ser lutada com paus e pedras…

A penúltima: mais covarde ainda é o governo (ditatorial, aliás) egípcio, pouco mencionado em todo esse imbróglio, mas que também deixa fechado seu acesso à faixa de Gaza. E isso porque é uma nação muçulmana, que se pretende líder do mundo árabe, e que já esteve mais de uma vez em guerra com Israel.

A última: se eu vivesse no Oriente Médio ou perto dele, provavelmente estaria louco atrás de uma bomba atômica também. Afinal, quem é capaz de transformar um canto de terra num gigantesco campo de concentração é capaz de qualquer coisa. Os únicos detentores da famigerada arma na região têm se revelado uns autênticos lunáticos.

4) Outro assunto que não ouso abordar: eleições. E os motivos são vários. Estando fora do Brasil, quem sou eu para discutir mais este emocionante embate PT X PSDB? As informações que chegam aqui sobre o Brasil são bastante positivas: crescimento econômico, estabilidade financeira, redução da miséria e da desigualdade, investimentos em infra-estrutura, expansão do comércio, medidas anti-cíclicas perante o risco de recessão, desfavelização, recuperação da pesquisa científica… Mas como meus amigos tucanos seguem se descabelando, concedo-lhes o benefício da dúvida: talvez haja mesmo estatísticas secretas provando que o país ruma célere para o desastre.

Mas não posso deixar de levantar algumas hipóteses que me têm martelado a cabeça.

A primeira: muita estranheza me causa essa guinada à direita do PSDB, particularmente de Serra, nos últimos anos. De sua origem na luta intelectual contra a ditadura, o partido de Montoro e Covas foi parar nos braços da Arena, nem bem passado um quarto de século. O PSDB, que um dia chegou a se apresentar como núcleo do progressismo nacional, tornou-se um ninho para Azeredos e Guerras deste mundo.

Como explicar? Dois indícios parecem oferecer uma possibilidade de compreensão desse estranho fenômeno. Primeiro, o movimento irreversível e consistente do PT para o centro, ou melhor, para longe da esquerda (o que não necessariamente é a mesma coisa, se levarmos em conta a miríade de sentidos possíveis para o termo “esquerda”). Acontece que o PT é um partido com uma base mil vezes mais sólida que a do PSDB, porque são movimentos sociais que existem de fato e não estão apenas nas conversas de apartamentos de Higienópolis, nem entre as mesas do Massimo. Em outras palavras, essa migração do PT parece traduzir um movimento consistente da sociedade brasileira (cujos descontentes deságuam no PSol), o que deixa o PSDB um tanto sem argumentos ou bandeiras.

O segundo indício é a derrocada dos partidos conservadores tradicionais; o ex-Arena tentou até a velha estratégia de assumir um nome contraditório (“Democratas”), mas não deu certo. Só alguns poucos malucos ainda crêem que Demóstenes Torres e Kátia Abreu têm algo de construtivo a oferecer para o país. Ou seja, mesmo a parcela mais conservadora da sociedade está menos radicalizada, embora ainda apareça muita gente disposta a ter saudade da ditadura e chamar o combate a ela de “terrorismo”. Enquanto o clã dos Maias e Magalhães vai afundando, o antigo partido “social-democrata” (se é que eles jamais o foram) ocupa seu lugar. Isso para não mencionar a turma do Maluf, claro. Não deixa de ser uma evolução da mentalidade do país e uma prova de que não estamos indo tanto para o buraco quanto querem fazer crer os e-mails descabelados que tenho recebido…

A segunda, na verdade um corolário da primeira: conforme temos podido ver, o candidato dos tucanos à presidência, que dispensa apresentações, parece ter ido pelo mesmo caminho. Quem leu os artigos e comentários de “Brasil sem milagres”, escritos entre 78 e 86, tem dificuldade em reconhecer o homem que hoje inibe a pesquisa e o ensino em São Paulo e manda ver a metralhadora giratória contra países vizinhos e pessoas com pensamento menos monolítico que o de seu partido. Pois é, uma das poucas vantagens que tiro de ser formado em economia é ter lido artigos publicados nos anos 70 por gente que, hoje, pode preferir queimar seus antigos escritos (não, não estou falando de FHC).

A grande questão é: para quem vai o discurso raivoso? Para quem vão factóides como o Ministério da Segurança e a cocaína boliviana? Afinal, se considerarmos que tanto o problema da violência quanto o das drogas, embora ainda fortíssimos no Brasil, estão muito menores do que eram há dez anos, dá para perceber um descompasso estranho entre o que berra a oposição e o que percebem os eleitores. Ora, nem preciso dizer o quanto isso é improvável num tempo em que o marketing político está tão profissionalizado. Portanto, a pergunta pode ser reformulada assim: se eles não esperam conquistar eleitores novos com o discurso raivoso e descolado da realidade, o que eles esperam?

Minha hipótese é a seguinte: nem Serra, nem o PSDB têm esperança de vencer as próximas eleições presidenciais. A brigas deles, portanto, não é com o PT pelo Planalto, mas com o PFL, pela população conservadora. Se o PDS continuar sua derrocada, o PSDB se consolida como partido conservador brasileiro (o que não deixa de ser uma evolução, convenhamos), empurrando ainda mais a Arena para o esquecimento. Com isso, o estranho discurso da campanha de Serra não seria pela conquista de novos eleitores, que poderiam lhe dar uma vitória já aparentemente impossível, mas pela consolidação dos velhos eleitores. Enfim, é só uma hipótese.

A última: tenho razões para crer que Folha e Globo estão derrubando o último bastião do jornalismo independente com circulação generalizada no país. A observar de perto!

5) Sobre isto aqui, que continua aqui, ainda pretendo fazer um texto mais extenso. Quando ousei fazer críticas à pretensa panacéia do hipertexto, alguns anos atrás, me tomaram por um dinossauro – não importa se foi num blog pra lá de moderno (sic) como o Cálculo Renal. Pois bem, Carr é famoso, então neguinho vai ter que escutar. Aliás, é até irônico dizer algo assim justamente numa postagem cheia de links…

6) Não posso ir embora sem lincar um texto breve, mas preciso de meu amigo Leonardo. Quando eu falei que havia casos em que me dei bem por não escrever e evitar a humilhação de ver alguém dizer algo muito melhor do que eu diria, era nisto que estava pensando. Lelec manda muito bem ao escancarar o abuso do pretérito do futuro, que se tornou o único tempo verbal de uma imprensa tornada inútil e anódina. O contexto está no artigo anterior de Leonardo, que merece muito ser lido, em seu blog ou no Amálgama, onde a caixa de comentários pegou fogo.

Era isso… obrigado pela atenção!

Padrão
barbárie, capitalismo, costumes, crônica, deus, escândalo, guerra, humor, imprensa, ironia, jornalismo, opinião, Politica, prosa, religião, reportagem, tristeza, viagem, vida

Entrevista: “O capeta está por todo lado”

<!– @page { margin: 2cm } P { margin-bottom: 0.21cm } –>

Quando cheguei ao local marcado, ele já estava sentado à mesa, brincando com o gelo de seu Bloody Mary. Temi que estivesse atrasado, mas ele percebeu minha perturbação e meu gesto instintivo de olhar para o relógio. Nem bem me aproximei, levantou-se sorridente e me acalmou, explicando que sempre aparecia (com trocadilho) com ao menos uma hora de antecedência para qualquer compromisso. Questão de conhecer o ambiente, explicou, com a expressão de quem quer dizer algo completamente diferente – mas não consegui divisar o que seria.

.

Falando em ambiente, meu interlocutor destoava completamente daquele bar de hotel de luxo. O fraque encarnado, com duas fileiras de botões dourados, era talvez a única peça colorida no ambiente dominado por paletós e correlatos – fazia concorrência aos copos de bebida. Enquanto tomávamos nossos lugares à mesa e eu acionava o gravador, minha atenção foi atraída por sua cabeleira solta e flamejante, que emolduravam um olhar tenebrosamente sereno, para lá do cinismo.

.

Jamais estive tão apreensivo antes de começar uma entrevista. Também, pudera. Não é todo dia que se recebe a incumbência de metralhar com perguntas um autêntico representante do Outro Mundo. À minha frente, Jinn Daimon, diretor de Relações Públicas do Inferno (LTDA), aguardava com ar de mofa as duas dúzias de questões que eu tinha preparado para ele. Pelos 90 minutos seguintes, seríamos só eu e um Arrenegado, frente a frente, cara a cara.

.

Cabe frisar que a proposta desta entrevista partiu do próprio setor de RP da Tisnado Corporation, a holding que controla o Inferno. O telefonema chegou em plena madrugada, quando só este desavisado, de plantão, dormitava diante do terminal, à espera de que não caísse algum avião presidencial, nem morresse uma princesa, nem um terremoto sacudisse algum país e me obrigasse a trabalhar. Em vez de qualquer desses eventos estraga-soneca, um estranho convite para entrevistar um gramulhão de verdade. E o plantonista, já dominado pelo sono, concordou sem se dar conta do que fazia.

.

Contra todas as expectativas, Jinn Daimon foi de uma cortesia atroz. Apesar de uma tendência a desprezar os mortais em geral e os jornalistas em particular, o das-trevas não ergueu a voz em momento algum, mesmo quando oferecia réplicas de grande rispidez, e explicou com muita paciência cada ponto de seu programa satânico. A seguir, leia os principais trechos da entrevista, concedida em pleno coração de São Paulo.

*

Em primeiro lugar, por que este lugar para a entrevista?

É assim que funcionamos. Você pensa, a gente faz. Olhe em volta: metade das outras mesas tem pilantras fazendo negociatas. Nas outras, prostituição, adultérios, mafiosos tomando V.S.O.P. com dinheiro sujo. Não é assim que vocês imaginam o inferno, cá neste vale de lágrimas? Pois então, desejo-lhe as boas vindas. Eu só estava querendo agradar e é muito agradável ver suas expectativas confirmadas. Sinta-se um felizardo.

Então o inferno não se parece em nada com isso?

Custo a crer que seus leitores estejam interessados na aparência do inferno. Desculpe invadir a sua mente, mas sei bem que não é isso que você quer perguntar. Por favor, não faça cerimônias, eu não sou nenhuma sumidade infernal. Sou apenas um espírito de negócios. Sou um profissional do mercado. Vamos, solte suas perguntas.

Por que o inferno decidiu vir a público?

Como qualquer outro grupo empresarial, a Tisnado Corporation traça, a cada temporada, um planejamento de longo prazo. Nosso foco atual é na abertura com o público. Buscamos maior visibilidade e transparência. Somos a maior central de vileza no universo e queremos que o mercado saiba valorizar nosso produto. Estamos cansados de concorrentes reivindicando nossas atividades e atraindo investidores que deveriam ser nossos.

Quem andou reivindicando maldades demoníacas?

Você sabe. Ditadores, bispos, bandas de heavy metal… Essa molecada toda.

Os negócios do inferno estiveram ameaçados por essa concorrência mais… visível?

Imanente. Nós dizemos imanente. O Inferno é transcendente e a concorrência é imanente. Entendeu? O que costumava ser nossa vantagem passou a ser uma desvantagem, muito em parte por causa de alguns erros de estratégia que nós mesmos cometemos. Sim, nossos negócios foram abalados. Mas nada irreversível, graças às Profundezas. Por sinal, eu assumi o cargo com exatamente essa missão: reverter a derrocada do inferno.

Dizia-se, há alguns anos, que “a estratégia mais inteligente do tinhoso foi convencer o mundo de que ele não existe”. Essa estratégia existiu mesmo ou foi só um dito popular?

Fico contente que você tenha feito essa pergunta. Demorou, mas chegou. Você é muito tímido. Olha, faço questão de que você coloque no texto que, nessa época, eu não era responsável pela área de RP no inferno. Eu ainda era estagiário. Não quero ter meu nome associado a esse fracasso retumbante e mais que anunciado.

Parece uma estratégia sagaz… Se as pessoas pensam que o Coisa-Ruim não existe, elas ficam livre para fazer o mal, certo?

Você claramente não entende nada sobre o funcionamento do mal! Deveria se preparar melhor antes de fazer uma entrevista.

O mal não é mesmo minha especialidade…

Pouco importa. Veja, vou lhe dar um exemplo banal, mais banal impossível, de como nossa marca foi apropriada pelos outros. Até a coisa mais medíocre que existe: a indústria do entretenimento, que se considera infame, como se alguém pudesse nos igualar em infâmia… Você certamente viu a trilogia de Guerra nas Estrelas na infância. Pois bem, aquela famosa frase de Yoda: “Fear leads to anger, anger leads to hate, hate leads to suffering”… lembra?

Claro, perfeitamente… É a descrição do caminho para o lado negro da força… o que vocês têm com isso?

Ora, meu filho! George Lucas roubou esse tema de nós! Lado negro da Força, bah! Há seis mil anos esse dito está na porta da empresa!

Não era “Deixai toda esperança, vós que entrais”?

Isso é nos pontos de venda. Estou falando da sede social. Enfim, você é um despreparado. O que quero dizer é que, desde que a humanidade é humanidade, nosso trabalho consiste, com algumas variações, em deixar as pessoas com medo. Por quê? Ora, porque o medo leva ao ódio, o ódio ao sofrimento, e o sofrimento traz o cliente para nossos braços! Conquistamos legiões e legiões de almas assim, a ponto de tomar empréstimos no Banco Outro-Mundial para expansões urgentes. É a estratégia dos quatro “m”: Medo, Medo, Medo e Medo. Está em qualquer manual de marketing.

E por que isso deixou de funcionar?

Convencer as pessoas da nossa inexistência foi o maior erro. Aliás, eu fui contra. Sem risco de sofrer os castigos da danação eterna, as pessoas vão ter medo de quê? O resultado não poderia ter sido mais desastroso. A humanidade – felizmente não toda ela, mas pelo menos uma maioria pertencente a uma certa geração – resolveu ser feliz. Assim, sem mais nem menos. Passaram a agir em liberdade, a buscar diálogo, a tentar resolver seus próprios problemas, a compreender e aceitar o outro, a questionar seus preconceitos… Chegamos a ficar com 70% de capacidade ociosa! Imagine você que houve gente que se meteu a buscar a paz, a paz de fato, quer dizer, na Terra, entre pessoas vivas, em vez de proceder com violência em nome de uma paz idealizada e atribuída ao outro mundo! Quando as pessoas perderam o medo do inferno, elas perderam no instante seguinte a capacidade de odiar! Foi a ruína para nós, você imagina!

Como isso se traduz em valor de mercado?

Pensávamos em fazer um IPO. Desistimos, não ia trazer nada. Além do mais, nosso mote foi parar em filmes de ficção, como já falei. Coisa mais humilhante… Até a figura de nosso CEO foi representado ficcionalmente, de uma maneira até ridícula… Jack Nicholson, Al Pacino… Nunca chegamos tão baixo. Felizmente, outras companhias do mundo espiritual foram tão afetadas quanto nós. Sem pensar em demônio, quem se preocuparia em seguir cegamente os preceitos de algum grupo religioso? Assim como nosso mercado de vilania, o mercado de orações minguou, minguou… Qualquer pé-de-chinelo poderia fazer uma oferta hostil na Bolsa e levar o Céu inteiro. Só que foi uma quebradeira geral. Nem os pés-de-chinelo escaparam.

E quando a luz vermelha se acendeu…

Então houve uma reunião emergencial com representantes de todo o universo desencarnado. Tinha serafins, grandes figuras do Limbo, espíritos malignos de todas as levas… Foram meses e meses de discussões levadas em poucos segundos, de maneira não raro áspera, com idas e vindas… Não tenho muito como falar porque não estava presente, só vi os autos depois de minha nomeação para o cargo que ora ocupo.

Como foi essa nomeação?

Tanto no céu quanto no inferno decidiu-se que já passava da hora de injetar sangue novo – sangue, aqui, é uma metáfora, você compreende… – nos negócios. Toda uma geração jovem e com muita vontade de trabalhar foi promovida para os cargos principais. Eu sou um representante dessa geração. Comigo subiu, por exemplo, o Arcanjo Raul nas finanças do Céu, Alexandre o Grande no Ministério da Defesa do Limbo… e tantos outros. O Purgatório foi customizado, construímos resorts na beira do Lethê, os Campos Elísios deixaram de cobrar consumação… Foi uma verdadeira revolução. Resolvemos tornar o Outro Mundo mais jovem, dinâmico e atrativo para as gerações que cresceram vendo televisão. Tínhamos chegado a um ponto em que a publicidade causava mais mal às pessoas do que nossos próprios agentes, os súcubos e íncubos. Isso era ridículo.

Quais foram suas principais medidas?

Tudo muito simples. Posso resumir minhas decisões em poucas palavras: nada de esquecimento do Belzebu. É preciso que as pessoas o vejam em toda parte. Onde está, onde não está, onde já esteve, onde nunca estará. É claro que isso nunca funcionaria sem a colaboração estreita com o Purgatório, o Céu e o Limbo. Percebendo que a situação era crítica, todos decidiram juntos que não se poderia mais separar o medo do ódio. Era preciso atacar em ambas as frentes ao mesmo tempo, caso contrário ambos se consumiriam sem jamais chegar ao sofrimento que leva ao mal e ao inferno. Todos os representantes na Terra das instâncias do Lado-de-Lá agiram em concerto para instilar ódio, preconceito, pavor, ressentimento, radicalismo e cinismo nas almas dos viventes. Eram pastores pregando, vendilhões negociando, políticos acusando, jornalistas vociferando, grupelhos se explodindo… Uma festa!

Isso não configura um cartel?

Meu filho, deixe de ser ingênuo. Você acha que alguma agência reguladora teria a força de combater um monopólio envolvendo o Céu e o Inferno? Fique contente por ainda não ter havido uma fusão. Aliás, digo isso em off: as negociações estão bem avançadas! [N.B.: o jornalista não respeita off demoníaco.]

Vocês já têm dados sobre o retorno dessa estratégia?

Não poderiam ser melhores. Você não vê a virulência com que a política tem sido feita em alguns países? Você não ouve os berros ensandecidos de determinados articulistas? Você não sabe o que anda sendo feito no Vaticano e em outros grandes centros religiosos? É magnífico! Nossos vestíbulos estão abarrotados, taxa de ociosidade zero vírgula zero vírgula zero vírgula zero. Pensamos até em contrair outro empréstimo no Banco Outro-Mundial para novas expansões. Só não batemos o martelo ainda porque as taxas de juros andam que nem a água benta. O projeto de IPO voltou a todo vapor. O céu também está contente, porque, mesmo se a grande maioria das almas vêm parar conosco, eles conseguem lucros fabulosos no mercado de derivativos de orações, súplicas e exortações… Enfim, voltamos ao jogo.

Que recomendações você daria para alguém que quer escapar da perdição eterna?

Deixe disso, meu filho… Estamos de braços abertos para todos. Tema, odeie, sofra, e venha para este novo e excitante mundo das punições dantescas!

E para quem insiste em não pensar nessas coisas?

Ah, os resistentes! Ah, os lúcidos! Ah, os ponderados! Esses chatos. Digo o seguinte: o demônio está em todo lado. Obama é o demônio! Lula é o demônio! Fernando Henrique é o demônio! Os EUA são o demônio! O Islã é o demônio! A Europa é o demônio! Os católicos são o demônio! Os ateus são o demônio! Os protestantes idem! Madonna é o demônio! Canto gregoriano é o demônio! Umbanda é o demônio! O mercado é o demônio! O Estado é o demônio! Sua sogra é o demônio! O demônio é o demônio!

Obrigado, e…

Espere! O demônio está no álcool! O demônio está no chocolate! O demônio está na gasolina! O demônio está no sexo! O demônio está nas guitarras elétricas! O demônio está no transporte público! O demônio está na pequena propriedade! O demônio está em Marx! O demônio está na ciência! O demônio está na pobreza! O demônio está na imprensa! Nas taxas de juros! Nos telefones celulares!

Boa noite, vamos ter de encerrar…

Você é o demônio! Eu sou o demônio! Nós somos! Eles são! Quando você escova os dentes, é demoníaco! Quando se masturba, é demoníaco! Quando amarra o cadarço, demoníaco! Quando passa perfume, demoníaco…

*

Antes que ele terminasse de elencar todos os lugares em que devemos crer piamente (com trocadilho, por favor) que está o demônio, a bateria do gravador acabou. Ele pigarreou, terminou seu Bloody Mary, explicou que a conta já estava paga e desapareceu.

Padrão
arte, barbárie, Brasil, capitalismo, comunicação, costumes, crônica, crime, descoberta, desespero, direita, escândalo, estados unidos, Filosofia, humor, imprensa, ironia, jornalismo, livros, modernidade, opinião, passado, pena, Politica, prosa, reflexão, religião, tempo, transcendência, tristeza, Veja, vida

A inteligência do anti-intelectualismo

Dizem que o mundo está emburrecendo. Alguém passa os olhos pela televisão, vê o tipo de programa que se anda transmitindo e constata: o mundo está emburrecendo. E segue: a erudição é coisa do passado; a cultura vai se transformar em um enorme reality show; a ortografia foi pras cucuias; e é muito provável que nossos netos (e alguns de nossos filhos) sejam todos iletrados, treinados apenas para trocar fotografias pornográficas pelo celular. Prevêem todo tipo de atrocidades e há algumas reações típicas para esse prognóstico catastrofista: o conformismo, que consiste em lamentar que ninguém leia mais Olavo Bilac; a adesão pura e simples, que talvez seja a mais honesta de todas; o recolhimento erudito, ou seja, trancar-se numa torre para estudar grego jônio e sânscrito, auto-intitulando-se último dos sábios.

.

Outra reação razoavelmente comum é negar que esse emburrecimento exista e lembrar que sempre houve muito mais estupidez do que lucidez sobre a Terra. Simplesmente não havia um mercado de massa tão desenvolvido para a estupidez e só os lúcidos conseguiam se financiar, quando encontravam um posto de preceptor na corte de um rei qualquer. A burrice passou a ser visível no último século, segue o raciocínio, mas não é propriamente uma novidade. Mais equilibrada que o alarmismo, essa me parece uma visão até realista, não fosse por um detalhe.

.

Há outro componente no problema, e é um componente capcioso. Tenho lido as crônicas de Braulio Tavares, publicadas no Jornal da Paraíba e republicadas com mais ou menos um ano de intervalo no blog Mundo Fantasmo. Uma que me chamou a atenção diz respeito ao anti-intelectualismo (desculpe ainda usar o hífen, gosto assim, aliás o autor idem) que vai se espalhando por todos os níveis da sociedade, no Brasil, no mundo, em Marte. O público da arte está se tornando anti-intelectual. A chamada “elite pensante” já o é há tempos. Os jornalistas, que ecoam qualquer murmúrio, já deram para condenar tudo que pareça pensar com uma nesga a mais de rigor. Já vejo pipocar até um certo número de intelectuais anti-intelectualistas, o que pode ser paradoxal, mas não chega a surpreender, considerando que intelectual nunca foi muito chegado a esprit de corps.

.

Argumentar, evocar referências, debater conceitos: tudo isso está virando anátema. Pelo visto, dirão os alarmistas, o emburrecimento do mundo já absorveu até seu maior inimigo, a lucidez. Pois bem, a inteligência está morta, viva a inteligência! – gritam os mártires no boteco.

.

Mas, atenção! Munido daquela velha mania de ser do contra, aviso que tudo isso está errado. O anti-intelectualismo não é a última etapa do emburrecimento do mundo. O anti-intelectualismo é o cerne de uma estratégia muito, mas muito inteligente. Estratégia de quem? Com que objetivo? Boa pergunta, vamos tentar descobrir. Mas já posso adiantar que tinha razão Jean Cocteau (aquele colaboracionista) quando disse que nossa época – ele se referia aos anos 1920, mas não passou tanto tempo assim – é a mais assustadora de todas, porque “o drama é que a burrice pensa”. Esqueça a idéia de um inocente emburrecimento; a burrice não é a marca de uma derrota, ela é uma inimiga poderosa, e pensa.

.

Qual é o inimigo do anti-intelectualismo? O intelectualismo, talvez. Mas isso existe? Não, é claro que não. O que existe é o intelecto e o fato de usá-lo (ou deixar de usá-lo). O que se faz com o intelecto, então? Ora, com ele avaliamos se nossa própria maneira de enxergar o mundo (o mundo nada mais é do que a realidade em que estamos imersos… em outras palavras, o mundo é nossa vida, nada mais) faz sentido ou não, vale a pena ou não. É a potência que todo ser humano tem de se projetar em outras situações, construir outros universos e atribuir a eles a coerência necessária para que não sejam meros delírios. Nossa cabeça, como um todo, vê relações em tudo e não consegue evitar um pulo fora do imediato: sempre generaliza, sempre supõe a existência de leis e analogias, sempre inventa causas para tudo que vê. Já o intelecto, que está lá dentro, muitas vezes escondido, cada vez mais acuado, serve para triar tudo isso da embalagem e descobrir o que presta aí dentro e o que não presta.

.

Mais de uma vez, em conversas com amigos, tudo ia bem até que eu caí no erro de apontar uma incoerência na linha de pensamento do interlocutor. Pra quê! O resultado é sempre o mesmo. O outro se põe a invectivar contra o intelectualismo, o racionalismo, a filosofia e por aí vai. Achando-se um Aristófanes, reclama que “esses cabeções” andam olhando para as nuvens e correm o risco de cair em algum buraco. Exige que eu, definido como “especulativo”, saia de dentro da própria cabeça e “volte” para o mundo real. Enquanto divagam em suas poltronas, esses meus amigos estão plenamente convencidos de que se ancoram no mundo real, no quotidiano, no palpável, enquanto “os intelectuais” viajam pelos confins do universo. Me parece notável como a realidade palpável se adequa a suas vontades e vicissitudes, já levando em conta as incoerências que ninguém tem o direito de apontar.

.

Na verdade, o mundo real é bem difícil e arredio a qualquer tipo de discurso e generalização. Todo discurso geral é falho, incompleto, errado em grande medida, mesmo o mais cuidadoso. Só o que resta a fazer para o intelecto é reduzir esses erros ao máximo, assumindo que o discurso é só isso, um discurso, e não a reprodução infalível de eventos captados por nossa formidável percepção. Ou seja, a mente é um balão cujo hélio inesgotável é a linguagem. Sem os sacos de areia que chamamos de intelecto ou razão (eu prefiro lucidez, um termo mais elegante para se referir ao bom e velho semancol), esse balão pode muito bem ir orbitar em Júpiter. Nada mais comum, aliás, como um rápido passeio pela blogosfera politizada ou religiosa pode provar.

.

Daí a genialidade da estratégia do anti-intelectualismo. Rejeitando sistematicamente o recurso a esse antídoto que é a lucidez, qualquer veneno pode se espalhar como piolho em colégio interno. Digo “sistematicamente” porque não é um fenômeno isolado, como se alguns preguiçosos tivessem simplesmente escolhido encher o mundo de regras peremptórias, excludentes e falsas. Aliás, Bernard Stiegler, filósofo francês e ex-assaltante, usa o termo “burrice sistêmica” para definir o modus operandi da indústria cultural de nosso tempo, e de fato a coisa é sistêmica. Não existe emburrecimento do mundo. O que acontece é a escolha de um modo burro de agir e de ser (porque, afinal de contas, ser é agir): na burrice, qualquer coisa se impõe, contanto que seja apetitosa e sedutora.

.

O anti-intelectualismo é central nessa diabólica investida contra a lucidez, porque ele nada mais é do que a supressão de qualquer critério, ou busca de critério, que poderia se opor à simples incorporação daquilo que é sedutor. Anti-intelectualizadas as cabeças, os tumores da estupidez se tornam imunes à radioterapia da lucidez. O intelecto aparece primeiro como chato, querendo estragar um prazer; depois como inconveniente, querendo propor alternativas ao que está oferecido de mão beijada; mais à frente, como ridículo, porque a facilidade com que se impõem generalidades fabricadas faz com que elas pareçam imediatas, logo mais “reais” e “palpáveis” do que a própria realidade; finalmente, quando a coisa realmente esquenta, começam as acusações de que a lucidez é demoníaca. Nessa hora, meu amigo, cuidado.

.

Das perguntas do quinto parágrafo, falta responder o “quem”. Mas deixo essa para que você mesmo reflita. “Quem” tem músculo suficiente para imprimir ao mundo essa postura generalizada de preferência pelo impensado? Eu, certamente não.

Padrão