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A aposta de Varoufakis

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Uma frase de Yanis Varoufakis grudou na minha cabeça logo no começo do ano, quando o Syriza venceu as eleições e o economista-motoqueiro se tornou ministro. Com o tom confiante que lhe é peculiar e uma linha de raciocínio que denuncia sua formação em teoria dos jogos, ele assegurou que, dentro de alguns meses, um acordo seria alcançado com a troika. Um acordo muito melhor do que o que estava na mesa, bem entendido – e obviamente infinitamente mais favorável aos gregos que o resultado final que agora conhecemos.

Como ele tinha tanta certeza? Os negociadores, dizia Varoufakis, estavam plenamente conscientes de que, se esse acordo não fosse alcançado, o governo do Syriza na Grécia cairia. E o próximo grupo – digamos assim – heterodoxo com que os credores europeus teriam que se sentar para negociar seria o Front National francês. É evidente que a democrática Europa não gostaria de correr o risco de ter um partido proto-fascista no poder de um de seus principais países, não? Um partido ultra-nacionalista, xenofóbico e, para horror da boa sociedade, ferrenhamente eurocético!

Essa declaração ficou ruminando na minha cabeça porque, desde o início, me pareceu um pouco ingênua. Quem garante a Varoufakis que essa abstrata entidade que (não) atende pelo nome de “troika” – e que agora tem sido chamada de “as instituições” – está mais disposta a aceitar um consórcio de grupos de esquerda nominalmente radical, mas na prática bastante moderado, do que um agrupamento de gente proto-fascista? O que a história tem a nos dizer sobre isso? Já adianto: o oposto. Com efeito, entrevistado pela revista New Statesman, Varoufakis revelou seu assombro com a despreocupação da aristocracia continental quanto à radicalização do ambiente político. Mas volto ao assunto mais abaixo. Continuar lendo

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A Internacional Digital

Deixo como isca para debates um trecho não publicado da entrevista que fiz com Bernard Stiegler, filósofo francês. A versão editada está no Valor de hoje. Transcrevi o trecho que segue abaixo porque me parece que tem muito a ver com algumas coisas que tenho tentado escrever por aqui ultimamente. (Claro, pombas, como leitor dele, muito do que ele diz me influencia.) Mas ele se expressa, naturalmente, muito melhor do que eu.

Stiegler é um dos principais herdeiros de meu autor de predileção, Gilbert Simondon. É também diretor do Instituto de Pesquisa e Inovação do Centro Pompidou (Paris), fundador da associação Ars Industrialis e professor em Compiègne, Londres (Goldsmiths), Cambridge e, a partir do segundo semestre, mais uma instituição superior francesa. Para saber mais sobre o sujeito, basta clicar nos links. Continuar lendo

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É uma crônica, mas pode chamar de Brasil

A história do texto que segue copiado aí abaixo é, vamos dizer assim, tortuosa. Na semana passada, alguém achou na internet o conteúdo da nota de rodapé, essa da imagem, e o espalhou por aí. Achei o caso bem curioso e tratei de procurar a origem.

Resulta que era o livro de crônicas Verdades Indiscretas, de Antônio Torres. O dito Torres, autor mineiro e eventualmente diplomata, era um rival de João do Rio na imprensa carioca do início do último século. Eis uma biografia do referido. Continuar lendo

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Picasso e a barbárie

Guernica

Na última semana, quando passei parte considerável de uma manhã diante do imenso – e assustador – painel que Pablo Picasso pintou para carpir as vítimas do bombardeio de Guernica, em 1937, não sabia que esse evento tão covarde completaria seu septuagésimo aniversário poucos dias mais tarde. Pois foi anteontem, 26 de abril. A coincidência é tão evidente que não posso evitar de deixar um comentário, mesmo se o conceito de “gancho” me causa arrepios.
Não há muito o que acrescentar ao que foi dito do evento em si. Todos sabemos que a Luftwaffe de Hitler e os teco-tecos de Mussolini aproveitaram a ocasião para calibrar suas metralhadoras, bombas e canhões. Tampouco é segredo que tudo se fez com a anuência das potências democráticas ocidentais, capitaneadas pela incompetência do britânico Neville Chamberlain e o flerte descarado da república francesa com os totalitarismos. (Foi o primeiro país a reconhecer o regime de Francisco Franco. Logo que Madrid caiu, enviou-se à capital espanhola, a título de embaixador, o marechal Pétain: aquele mesmo, o de Vichy.)
O bombardeio de Guernica, um vilarejo de 5000 habitantes no país basco espanhol, é talvez a maior vergonha da cultura ocidental. Primeiro ataque massivo a uma população inteiramente civil, deu-se intencionalmente numa segunda-feira, dia de mercado. Imagine as ruas cheias de camponeses vindos das montanhas. Feirantes apregoando, crianças roubando frutas, mulheres de véus negros a pechinchar. Tudo em euskera, claro; tudo muito barulhento, alegre, festivo. De repente, o apocalipse que se abate, anunciado pelas sirenes dos Stuka. Fala-se em algo entre 200 e 2000 mortos, sacrificados num teste do poder de fogo fascista.
Resta, então, falar da obra-prima, de sua disposição no museu, da instituição em si. Esses três itens formam praticamente um único tema. O Centro de Arte Reina Sofía é um museu extraordinário. Menos badalado, é verdade, do que seu vizinho, o museu do Prado (que Picasso dirigia em 1937, por sinal). Mas até, se bobear, mais interessante. Acolhe obras principalmente do século XX, como Salvador Dalí, Joan Miró, o próprio Picasso, Juan Gris, Fernand Léger e assim por diante, bem organizadas no edifício de um antigo hospital do século XVIII. Recentemente, ganhou uma extensão assinada por Jean Nouvel que, ao contrário do que costuma acontecer, não descaracteriza, nem estorva o conjunto.
Dentro, Guernica tem posição privilegiada. O mural ocupa uma parede inteira, mas a ele são dedicadas três salas, que lançam luz sobre seu processo de criação e os diferentes esboços, projetos e percalços por que o artista passou antes de se decidir pela forma definitiva. Os textos-parede são claros, e todo o conjunto realça a grandiosidade de uma das maiores realizações artísticas da história. Para efeito de comparação, basta tomarmos o exemplos de outra obra-prima: a Gioconda de Leonardo, emparedada no Louvre, separada do público por uma placa de vidro tão grossa que distorce a imagem. A multidão, circulando no exíguo espaço deixado pelas cordas de isolamento, pouco ajuda, com suas metralhadoras fotográficas, nervosas como as da Wehrmacht. É impossível apreciar as qualidades que fizeram da Mona Lisa a pintura mais reproduzida e citada no mundo, principalmente se na mesma sala há tantas obras que tiram nosso fôlego.
Guernica está livre dessa maldição. Vemos, numa seqüência de fotografias tomadas pela companheira do artista na época, Dora Maar, as etapas da elaboração do trabalho. O touro, à esquerda, originalmente mostrado de perfil, terminou contorcendo-se, olhos esbugalhados. O cavalo, que tem a goela escancarada para o céu, inclinava antes o pescoço sobre um homem despedaçado. São incontáveis os estudos para a mãe que carrega entre os braços seu bebê morto. Em alguns, as lágrimas tombam. Em outros, apenas brilham. Ou esguicham. O mesmo vale para todas as personagens, cuidadosamente compostas em separado, antes de integrar a obra definitiva.
Tendemos a nutrir a fama de um Picasso já velho, parisiense, célebre, que podia se dar ao luxo de pagar suas compras com rabiscos feitos in loco, um gênio que criava maravilhas sem grandes planejamentos (c.f. O Mistério Picasso, de Henri Clouzot, 1956). Mas Guernica, sobretudo com o apoio da excelente disposição do Reina Sofía, nos revela o Picasso cuidadoso, apurado, perfeccionista, o único capaz de engendrar as revoluções estéticas que saíram (em parte) de sua sensibilidade.
A história do quadro é interessante por si só. Resulta de uma encomenda do desditoso governo republicano espanhol, para integrar o pavilhão do país na Exposição Universal de 1937, em Paris. Abatido pela guerra que rasgava seu país, o pintor esteve a ponto de declinar, quando chegaram as notícias do bombardeio. Daí por diante, ele se dedicou integralmente ao seu trabalho de protesto e denúncia, mas também esperança, representada na flor que teima em crescer, no centro da composição.
Desde que ficou pronto, Guernica rodou o mundo com sua mensagem contra a barbárie. Após o triunfo do fascismo na Espanha e o início da Segunda Guerra Mundial, com as atrocidades que todos conhecemos, esteve em Oslo, Copenhague, Estocolmo, Londres, Nova York, Los Angeles, Milão, São Paulo, Munique, Amsterdam, Bruxelas, Colônia, Hamburgo… Mais do que a mensagem de Picasso, talvez só tenha viajado o horror que ela procurou denunciar: a guerra. Coréia, Vietnã, vários países africanos, Cambodja, Iugoslávia, Oriente Médio…
A luta do enorme painel contra a barbárie humana terminou em 1981, com sua volta à Espanha. Isso só se deu após a morte do próprio Picasso, em 1973, e de Franco, em 1975. Picasso deixara expressamente a ordem de só permitir o retorno de Guernica, então instalado em Nova York, quando a democracia voltasse a viger em seu país. Nesse ponto, a arte saiu vitoriosa em sua luta contra a guerra. Enquanto esteve sob o jugo franquista, a Espanha foi um país isolado e rejeitado pela comunidade internacional. Hoje, é um dos mais pujantes, admirados e visitados. Guernica, o quadro, tem seu altar na capital do país. Fascismo e nazismo foram derrotados, ainda que com muito sacrifício. Mas a guerra, o horror, o desprezo pela vida humana, todos esses fantasmas continuam a pairar sobre nossas cabeças.
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O terceiro homem

Relogio

Achei que, de volta ao lar, ouviria perguntas sobre minhas impressões de Madrid, visitas a museus e outras amenidades agradáveis e turísticas. Estava errado. Ninguém quer saber de assuntos leves. Somos um povo sisudo, preocupado apenas com coisas sérias e importantes. Sendo assim, já me perguntaram sobre as eleições francesas, os desdobramentos da questão do indivíduo, a problemática da violência e assim por diante. Acho ótimo, porque me fornece uma reserva de assuntos bastante confortadora. Por outro lado, estava doido para escrever alguma coisa sobre as calles madrileñas.
Tudo bem, deixarei para depois. Há assuntos mais urgentes, que perderão o interesse em pouco tempo. Como as eleições, cujo segundo turno está marcado para daqui a menos de duas semanas, no dia 6 de maio. Vamos atacar essa disputa, então, antes que seja tarde. Madrid continuará no lugar em que sempre esteve: é um lugar alto, nem o aquecimento global pode colocá-lo em risco.
Finalmente, depois de semanas de tensão, ficou decidido que a disputa vai mesmo se dar entre a direita de Sarko(zy) e a esquerda de Ségo(lène). A manchete algo aliviada de um dos jornais, na segunda-feira, foi “A volta da disputa direita-esquerda”. É que, em 2002, Jean-Marie Le Pen, encarnação da extrema-direita caquética, acabou chegando ao segundo turno graças à desilusão dos socialistas. Jacques Chirac, um presidente que os franceses tratam com um certo desdém, ganhou mais cinco anos no palácio Champs-Élysées, com a expressiva votação da esquerda assustada.
Mas a volta da polarização eleitoral (vamos dizer assim) não é exatamente como parece. Primeiramente, todos os partidos pequenos tiveram votação menor do que de hábito. Incluindo Le Pen, que, de tão frustrado, chamou os franceses de otários, patos e uma enorme expressão que se pode traduzir por “mulher de malandro”. A corrente mais atingida foi a esquerda; fora a própria Royal, praticamente todo o resto sumiu do mapa. Isso parece espantoso na França, país dos protestos e sindicatos, mas… bom, assunto para outro texto.
A novidade mais importante na eleição chama-se “centro”, na figura do candidato do partido UDF, François Bayrou. Esse partido era conhecido por ser quase uma marionete da UMP, de direita. Não mais. Em certo momento, parecia que Bayrou chegaria ao segundo turno. Ameaçava ambos os candidatos, mas principalmente Royal, por motivos óbvios. Acredito mesmo que, se chegasse, teria enormes chances de levar a eleição, contra Sarko ou Ségo igualmente. Ambos atraem muita rejeição.
Para grande alívio dos militantes do PS, que não agüentariam ficar de fora mais uma vez, a ameaça não se concretizou. O alívio, aliás, não é uma inferência minha. Está em declarações de quadros do partido e nas fotografias dos jornais. Royal está garantida no segundo turno, mas numa situação difícil. Há três meses, estava empatada nas intenções de voto com Sarkozy. Ao se abrirem as urnas, estava seis pontos atrás. Isso parece pouco, mas os analistas políticos vêem aí um verdadeiro abismo.
Em suma, quem definirá o resultado da eleição será, justamente, Bayrou. Como uma princesa virgem medieval, está sendo cortejado por ambos os lados do espectro político. Seus correligionários fazem a festa: aparecem na televisão atacando a direita, atacando a esquerda, vendendo caro seu pacote de votos. Já o próprio se escondeu em algum chalé dos Alpes e faz suspense (charminho, dirão alguns; doce, dirão outros). Ele sabe que a cabeça em que pousar a mão será abençoada.
Por aqui, todos os profetas e jornalistas ocupam suas páginas e minutos do horário nobre com uma série de perguntas. Em quem votarão seus eleitores? Por que seu partido cresceu tanto? Quem é esse homem? Quem ele apoiará no segundo turno? O que fará com o prestígio que adquiriu, graças aos votos de quase um quinto dos eleitores? O que significa o advento do centro na política francesa?
Não tenho cacife para tentar uma resposta. Mas posso dizer que vejo na figura desses três candidatos uma marca de mediocridade terrível, se comparados aos antigos nomes da política francesa. Sarkozy, Royal e Bayrou dificilmente me passam a sensação de serem estadistas do porte de figuras hipnóticas como Mitterrand, Pompidou ou o próprio De Gaulle (mas isso seria esperar demais).
O direitista, ex-ministro do Interior de Chirac, é um almofadinha que gosta de fazer cara de mau e intrigas palacianas, pensa que governar é adotar estatísticas de desempenho e martela sem parar dados catastróficos sobre segurança. A socialista tem um quê de “Lula de berço dourado”, quer dizer, faz planos mirabolantes para o futuro do país, fala em união para governar e outras generalidades, e sempre parece estar sorrindo. E, ao contrário do que acontece com nosso presidente, as gafes que ela deixa escapar são muito mal vistas nesta terra em que o rigor do discurso ainda é o que há de mais importante depois do vinho e do queijo.
Bayrou é, talvez, o mais carismático dos três. Fala com tranqüilidade e responde às questões com uma expressão incrivelmente fria, mesmo quando sua resposta nada tem a ver com o assunto. Ponto para ele. Mas essa frieza freqüentemente se transmuta em aparência de enfado. De vez em quando, ele passa a impressão de que preferiria estar na praia, ou comandando ainda um partido quase insignificante, mas que não dá muito trabalho. No momento em que esteve mais clara a possibilidade de arrancar para uma inesperada vitória, ele parece ter dado um passo atrás, evitado um pouco os holofotes, abdicado do sonho de chegar à presidência. Preguiça? Estratégia? Só o tempo dirá.
A volta do “esquerda X direita” na política francesa deve ser interpretada com um enorme resguardo. Minha interpretação pessoal para o crescimento do centro, e quero crer que minha interpretação não é inteiramente desprovida de estudo, é como segue. As ideologias perderam espaço. Cada vez menos as pessoas se interessam por um projeto político para seu país. Estão muito mais preocupadas com questões corriqueiras, quotidianas. Não a saúde econômica, mas o emprego de amanhã. Não a organização social, mas a criminalidade do bairro. Não a qualidade da educação, da produção acadêmica e científica, mas o diploma de uma faculdade, qualquer uma, para os filhos. Ao contrário do que se pensa, isso não é exclusividade brasileira, embora se torne muito mais grave em países que precisam de um esforço extraordinário para se desenvolver.
Direita e esquerda representam ideologias. Cada uma dessas correntes vê e planeja a nação de uma maneira, e um voto significa quase uma adesão a essa Weltanschauung. Não estou dizendo que o centro represente a ausência de ideologia. Mas, preocupado com seu dia-a-dia, a chamada “vida real”, o cidadão comum rejeita toda a estrutura ideológica que dá solidez a um partido. O voto, então, toma duas feições: o protesto, que se manifesta em abstenções e em candidatos alternativos; e o carismático, que ignora todo o discurso e só se preocupa com a imagem que o candidato transmite. Nesse último ponto, as mídias têm um papel fundamental (c.f. Max Weber).

Bayrou calcou sua campanha no slogan “ni, ni”, ou seja, “nem direita, nem esquerda”. Caiu nas graças da população. Numa analogia enxadrística, era um peão, mas encontrou o caminho para se tornar uma rainha. Agora, resta uma pergunta ainda mais interessante. Haverá, também, eleições parlamentares. Como será o desempenho do partido centrista? Se conseguir a maioria, teremos uma coabitação? E mesmo que não consiga, como ficará o sistema político francês sem uma maioria clara do partido do presidente, e nem da oposição?

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DE NATVRA VACATIONIBVS

Estacao+iluminada

Dizem alguns religiosos que Deus descansou no sétimo dia para dar um exemplo à humanidade. Como o Criador, a criatura precisa repousar eventualmente, esquecer um pouco sua realidade quotidiana, recuperar as forças, tomar um tempo para vadiar e admirar as maravilhas da criação. Muito bem. Compreendo que isso funciona muito bem com o Altíssimo; afinal, ele é todo-poderoso e, ao voltar de seu descanso, não tem dificuldade em cumprir todas as eventuais pendências.
Mas para nós, finitos e imperfeitos, a coisa se dá de maneira bem diversa. A não ser que você tenha menos de dez anos de idade, o mundo real simplesmente não considera a hipótese de parar sua marcha ensandecida só porque você tirou uma semaninha de férias. Pelo contrário, parece que todos aqueles que puderem cobrar ou pedir algo de você receberão pelo correio um aviso de que, da noite para o dia, seu estoque de horas livres se multiplicou. Do ponto de vista deles, ao infinito.
Como não poderia deixar de ser, esse detalhe fere um princípio muito caro a você, segundo o qual as horas livres têm essa denominação porque, supostamente, serão livres. Pouco importa. A lógica é um campo que perde facilmente toda sua relevância quando interesses maiores estão em jogo. Todo mundo sabe.
Não se trata de uma maldade coletiva, nada disso. É o próprio balé das ditas “coisas” (e que coisas serão essas, ó raios?!) que não admite o abandono, ainda que temporário, de um de seus bailarinos. No caso, você. Que, não agüentando mais o acúmulo de funções e horários, pediu um momento para retomar o fôlego e deixou de braços cruzados uma infinidade de parceiros. Apenas, seguindo seu destino natural, esses parceiros ficam com as pernas formigando e não o deixam descansar.
Sem querer parecer místico, devo confessar que sou daqueles que reconhecem uma enorme ironia em algumas particularidades inescapáveis da existência. Alguém, ou algo, se diverte muito às nossas custas. Garanto. Mas, como não quero converter ninguém a religião alguma, até muito pelo contrário, prefiro calar sobre esse assunto e aceitar em silêncio as gargalhadas da transcendência.
Chego em casa após uma viagem de menos de uma semana, e já me assusto com as obrigações empilhadas sobre meus ombros, cujos prazos foram, em geral, marcados para os últimos dias. Conformado, saco minha agenda e corto algumas horas que tinha reservado para o sono. Ao contrário do que crêem os médicos, dormir não é assim tão indispensável. Entre o cadafalso e as olheiras, ora, fico com as olheiras.
A todos que me cobraram ou pediram alguma coisa, não se preocupem. Hei de responder, ainda que esgote no processo minha última gota de sangue.
Percebo agora que acabaram-se minhas férias, com que sonhei durante meses e que, apesar dos percalços e das conseqüências aparentemente funestas, valeram muito a pena. Agora, tudo que eu mais quero são, e não podia ser outra coisa, férias.
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