Este é alguém que fabricou para si um pedestal. É alguém que, na gramática usual, não pode grande coisa. É o estereótipo do impotente. No dia-a-dia, precisa fabricar ou garimpar tudo que usa, mas seus poderes terminam aí. E um pedestal não é algo que se use, simplesmente. Continuar lendo
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Morte em Torregaveta
É curioso que, num país onde alguém como Silvio Berlusconi consegue se eleger e reeleger, o maior escândalo midiático gire em torno da indiferença, como se de repente os italianos se dessem conta de que andam indiferentes a tragédias em geral. Curioso talvez não seja a palavra… sintomático talvez fosse melhor: afinal, a indiferença faz parte de nossas lamentações sobre a vida neste início de século, além de ser uma estratégia de sobrevivência eficaz e inevitável nas nossas selvas urbanas. E isso vale também para a Itália, cuja população parece não perceber que há um bufão no leme, conduzindo a península para os escolhos do Mediterrâneo. Está certo: curioso é a palavra.
Mas eis a história, ocorrida há exatamente um ano: quatro adolescentes roma (até algumas décadas atrás, seriam designadas simplesmente como ciganas) foram a uma praia perto de Nápoles, de nome Torregaveta. Segundo a mui confiável polícia italiana, elas lá estavam para mendigar, vender badulaques e aplicar pequenos golpes, desses que conhece exaustivamente quem tenha passeado por qualquer cidade europeia. Mas nem as diabólicas ciganas são de ferro, como atesta aquele Kusturica. A tarde estava muito quente, a brisa era gostosa, o mar interior tinha seu tom azul pelo qual até Catão já suspirou. As meninas decidiram dar um mergulho.
Com a mudança dos ventos e das correntes, o idílio descambou para a tragédia. Carregadas pela força das águas, elas viram a terra se afastar e se puseram a gritar em desespero. Os mui ágeis e prestativos salva-vidas napolitanos lançaram um barco ao mar e conseguiram resgatar duas das moças. Mas Cristina, 13 anos, e Violeta, 12 anos, foram carregadas pela correnteza e atiradas contra as pedras. Afogaram-se. Os corpos foram levados para a praia e cobertos com toalhas, à espera de que o também mui ágil necrotério da região enviasse os ataúdes. Não demorou mais que três horas.
Começou aí a polêmica. Um fotógrafo registrou diversas imagens dos corpos largados sobre a areia. Ao fundo, famílias tomam sol como se nada de anormal se passasse naquela praia. Das senhoras em topless à garotada jogando frescobol, passando pelos marmanjos a preparar seu churrasco armados de cerveja em latinha, não vinha um olhar sequer, nem de esguelha, para as duas massas inertes a poucos passos da tranquilidade estival. E lá ficaram, esquecidas e largadas, as duas jovens vítimas das águas traiçoeiras, que jamais reverão a luz ofuscante que queimava a pele de seus vizinhos. O cadáver, pelo menos no sul da Itália e em certos subúrbios do Brasil, deixou de ser algo chocante.
Chocada ficou a opinião pública, diante da insensibilidade dos banhistas. O cardeal Crecenzio Seppe, arcebispo de Nápoles, escreveu no blog de sua diocese (aliás, que diocese prafrentex!) que a indiferença “não é uma reação para humanos”. A afirmação é bastante discutível e parece indicar uma estranha tendência de religiosos para apontar falta de humanidade nos outros, mas a sensação de desconforto e repulsa pela atitude dos banhistas é bastante compreensível. Os jornais Corriere della Sera e La Reppublica publicaram editoriais em que se diziam impressionados e revoltados. Um grupo italiano de defesa dos Direitos Humanos sublinhou a atmosfera de “racismo e horror” que viceja no país, lembrando os recentes ataques do “governo” Berlusconi à comunidade rom, com direito a fichamento e violência policial.
À parte as particularidades da Itália, é difícil comentar um fenômeno perturbador como esse. Digo “perturbador” porque vai além da mera indiferença perante a morte ou a desgraça alheia. Esse aspecto da questão está mais do que documentado em análises da cultura contemporânea de diversos matizes. O caso Torregaveta, porém, toca em categorias muito mais profundas e terríveis da mente humana: o poder da imagem, a simbologia da morte e, o que é talvez mais atual, a memória recente. Senão, vejamos:
Todos os dias, agimos com indiferença perante desgraças que, nos cálculos de nossa boa consciência, consideramos inaceitáveis e bestiais. Ver uma criança esmolar, por exemplo, deveria nos levar a todos à loucura. Mas isso não acontece, porque se não nos cercamos de um muro de indiferença e cinismo, mais do que loucos, talvez acabemos mortos. Mas isso não impede que mesmo o mais frio e individualista dentre nós sinta um nó na garganta, ao se ver diante da mão rechonchuda esticada e os olhos enormes e suplicantes de um menino a pedir dinheiro. Mesmo no Brasil, essa sensação de desconforto, quase culpa, às vezes é maior do que o medo de ser assaltado. Mesmo assim, controlamos as emoções e respondemos: não.
Esse é o poder da imagem, de que falei acima. Confrontados a uma visão perturbadora, trememos. Mesmo que seja apenas uma fotografia. E os artistas exploram essa força irresistível em suas obras desde tempos imemoriais. Ainda que estejamos mais do que acostumados à ideia da morte violenta, que nos metralham os jornais, os filmes, a televisão, a princípio ainda não estamos tão obnubilados a ponto de não conseguir diferenciar, do ficcional e do distante, o presente, o real, o inefável e inescapável.
Em Torregaveta, não foi o que aconteceu. A imagem parece ter perdido todo seu poder. A presença física de dois corpos sem vida não evocou na cabeça daqueles banhistas nenhuma associação de morte, de terror, de repulsa. Teriam eles se reconciliado perfeitamente com a certeza de nossa mortalidade? Certamente, não. Simplesmente eles reagiram ao concreto, ao factual, como se estivessem diante de um filme de Hollywood ou coisa que o valha. Eles se portaram, afastados poucos passos da evidência de nossa fragilidade, como alguém que lesse a notícia numa coluna de faits divers do jornal, ou melhor, que recebesse uma notinha por RSS. A morte, até mesmo a morte próxima, se tornou para eles um espetáculo, mas pior: um espetáculo sem graça, porque desprovido de toda a técnica de suspense que os gênios da indústria cultural perfeccionam há décadas.
A isso se soma a questão da simbologia da morte: quem não está cansado de escutar histórias de casas amaldiçoadas porque alguém morreu em um de seus cômodos? Essas histórias existem porque a morte é, ou costumava ser, uma noção muito forte no nosso imaginário. Também, pudera. É a morte, cáspite! O trauma que ela provoca, quando não é esperada, deveria contaminar tudo em volta: o ambiente, o momento, os objetos envolvidos. Como no caso das casas amaldiçoadas ou, mais concretamente, das mães que deixam trancados os quartos de filhos falecidos, porque a dor de arrumá-los seria forte demais.
O que se esperaria dos frequentadores de Torregaveta seria um desconforto enorme de apenas estar na mesma praia que um par de cadáveres. Normalmente, o mar, o ar, a areia, tudo estaria impregnado com a proximidade da tragédia. As pessoas deveriam sentir que a morte ainda rondava; talvez imaginassem os fantasmas das meninas, talvez cressem que alguma divindade tivesse atirado uma maldição sobre o lugar, quem sabe até vissem um esqueleto com uma foice… pouco importa. A perturbação não precisaria assumir nenhuma imagem específica ou concreta: ela deveria apenas ser sentida. Mas não foi. As meninas mortas marcaram o imaginário dos banhistas como as águas-vivas: basta guardar uma certa distância.
Não me pergunte como é possível. Talvez estejamos esquecendo de que somos mortais. Talvez nossa cabeça não consiga se afastar das pressões do quotidiano. Talvez tenhamos perdido a força ou a coragem de imaginar. Talvez nossa capacidade de ter medo de riscos fantasiosos esteja sobrecarregada com as imagens de um terrorismo onipresente. Talvez isso, talvez aquilo, talvez um milhão de coisas. Certo é apenas que não se pode considerar normal a indiferença perante a morte.
E assim chegamos ao terceiro e último ponto: como as pessoas conseguem continuar jogando seu frescobol e pegando seus jacarés depois que as ondas carregaram e trituraram os ossos de duas meninas, na mesma praia, no mesmo mar? Já não estamos mais falando de imagens, nem de símbolos: estamos muito concretamente evocando um perigo real, concreto e presente: um mar imprevisível, traiçoeiro, assassino. Seriam os turistas intrépidos? Pelo contrário. Não há timorato maior do que o turista, principalmente o europeu que frequenta as praias do sul da Itália. Então che cosa?
Meu chute: sem concentrar com muita força nossa atenção, perdemos a força de diferenciar o “agora há pouco” do “agora, agorinha mesmo” e do puro e simples agora. Os banhistas que se metiam na água poucos minutos depois de buscarem os dois corpos sem vida talvez tivessem até se esquecido de que qualquer coisa do gênero tenha acontecido. Mais ou menos como ratos de laboratório, que apagaram da memória os choques levados na véspera e continuam de sofrer em busca de um pedaço de queijo. O imediato, o instantâneo, virou um paradigma tão poderoso que se insinuou no nosso inconsciente e estrangulou a memória, até mesmo a memória recente. Estamos aleijados e, no caso da turma de Torregaveta, a próxima mudança da correnteza pode nos carregar também.
Pareço muito alarmado? Desculpe, não foi a intenção. Mas é que, sem assumir um tom meio apocalíptico, é difícil ser levado a sério. Ou talvez eu esteja exagerando mais uma vez, mas não posso evitar. Quando um bando de gente de sunga consegue demonstrar que a imagem perdeu o poder, a morte não significa mais nada e a memória de alguns minutos atrás foi completamente apagada, não consigo deixar de sentir que algo está errado, muito errado.
É por isso que discordo do cardeal que vê a turma da praia como não lá muito humana. Se há alguém que pode perder essas capacidades fundamentais, é o ser humano; da mesma maneira, é o ser humano que pode apontar o fato quando acontece. Por fim, só o ser humano pode recuperar aquilo que foi perdido. Resumindo, não adianta chamar os outros de menos humano; é improdutivo, além de falta de educação. Para o bem e para o mal, estamos na montanha-russa da existência humana, e é nossa humanidade que não pode se tornar indiferente jamais. Por sinal, espero que já não tenha se tornado.
Conhecido entre os traços
Executa seu caminho no meio de outros tantos corpos, sóbrios no vestir e no pisar o pavimento, cada um em respeito solene ao próprio traçado e nada mais. A tarefa não exige esforço algum, como nunca exigiu, se não for a observação estrita do acordado, do decidido há tempos.
A única novidade é quase nada. Uma força esquisita que empurra para trás. Um pouco incômoda. Está presente, insidiosa, desde os primeiros passos, ainda sobre o carpete da sala de estar. Nunca tinha acontecido, essa energia pesada, negativa, que chega sem anúncio, vinda não se sabe de onde.
Com ela, abafando o som dos outros corpos, a percussão das solas e saltos, os grunhidos da cidade a acertar a disposição apropriada, só ascende à consciência a vibração de um pensamento: a repetição monótona de uma expressão vulgar. O palavrão se valoriza ao raspar, áspero, uma garganta imaginária. As idéias que vêm do fundo permanecem insondáveis. Misteriosos como o empuxo que se opõe ao impulso adequado.
Nada de notável.
Sim, sem dúvida, condições objetivas existem. Questões pragmáticas. Uma pequena coleção de falhas, lado a lado com a lista humilde de sucessos, e o equilíbrio pende discretamente para o lado pessimista. Sem esquecer o inevitável; dessintonia conjugal, fantasias capciosas, contratos rompidos, o sucesso profissional postergado, perspectivas sufocadas.
Uma inclinação do momento, coisa de hormônio, conjunção astral, seja o que for, provê a condição que desequilibra a balança. O prato mais pesado é o que verga de amargura. Na liga, entremeados, o cansaço das férias por tirar, a frustração de estar aquém das ambições sexuais, a dificuldade em aceitar que o tempo se arrasta, como sempre se arrastou para todos.
Entre a força anônima e a imagem difusa de todos os nomes, a mente equilibrada se vê na obrigação de decidir uma estratégia. Pois a retirada é uma estratégia sensata. Vergonhosa, mas sensata. Antes retroceder a ser carregado pelos ventos. Cobrir com as mãos o rosto é melhor, muito mais digno, do que arrancar os olhos para seguir na ofensiva.
Encontra uma superfície horizontal para largar o peso do corpo. Fria, seja o que for, exerce bem o papel de um banco. Então basta para retomar o ânimo, que escapara em algum momento do percurso, sem se dar a perceber.
Ao lado, um outro homem. No turbilhão dos vetores que disputavam um corpo, a cegueira temporária o ocultara. Mas ele esteve sempre ali. Deitado, encolhido, abraçado aos próprios ombros como à última posse que lhe resta. Finge dormir.
Observa-o. Um mendigo. Com todos os atributos de quem vive na rua, procurando a cada noite um novo abrigo. Andarilho debaixo do sol, encalacrado sob as estrelas, eis sua única certeza. Um homem que se apropria da cidade sem que nada na cidade lhe seja próprio.
Estranha figura. Um rosto familiar. A tal ponto que os olhos se fixam sobre os traços e rechaçam o esforço de afastamento. Feições que poderiam ser reconhecidas debaixo da escuridão mais profunda. A familiaridade produz um calafrio. As pontas dos dedos gelam, os pelos do braço eriçam. Quer tocar o vizinho, pousar os dedos sobre seu ombro, depois sentir a textura da pele, devagar. Não ousa. Mas não é asco. Não é nada. Apenas encara.
O homem sente que é observado. Sacode-se bruscamente, não a ponto de assustar. Abre enorme a boca, como para escarrar um grito. Desiste. Emite apenas o hálito de álcool. Põe-se sentado, lentamente, na calma de quem não acompanha as centenas de trajetórias riscadas pouco adiante. Desperto, seu rosto é jovem. Terrivelmente familiar. Alguém do passado, talvez. Impossível não fitar. Um olhar fixo assim deveria incomodar, deveria ofender, mas o homem não deixa ler sua opinião. Apenas exibe a face, os traços que parecem os mesmos de algum sempre.
Passado um instante, o homem desvia sua face conhecida. Lentamente, apóia-se nas duas mãos para se erguer. Como um velho. E se põe em marcha. Termina cada passo antes de começar o seguinte. Cambaleia, mas projeta o corpo e conquista o espaço. Desloca-se em curva, pende para um lado, deixa a impressão constante de que vai cair.
Mas o homem segue. Uma atenção aflita o acompanha à distância. Guarda no inconsciente a linha imaginária que o corpo descreve, no menor detalhe de sua irregularidade. O arabesco intercepta os riscos deixados pelos outros pares de pés, como se os conspurcasse. Desenho livre, atinge as trajetórias de todas as direções e não pede licença. Insolente, a figura.
Salta quando crê que o homem vai ao chão. Ensaia apoiá-lo com o braço, mas interrompe o gesto em pleno ar. Assim permanece, um passo atrás do rosto familiar, sem a ousadia de aproximar-se. O reconhecimento, que atraía, agora repele, com intensidade parelha. Porque a posição é outra; ou porque, junto com o mendigo, o universo se deslocou; ou porque algo emergiu à consciência.
Está claro, mas não nítido, por que o desgraçado é assim tão familiar. As paralelas que deveriam se encontrar no infinito podem sofrer desvios. Podem chocar-se ainda no tempo. Eventualmente, acontece.
Põe-se a correr. Correr é a saída. As funções mecânicas assumem o leme da mente e a recolocam no trajeto planejado, sem empuxo que arraste, sem força alguma conclamando a retroceder. Quando dá por si, já está em pleno destino, agachado, apertando os olhos para escapar à claridade.
Da experiência, somente uma convicção que se insinuara. A desgraça é livre, é fascinante e familiar. Ei-la, a verdade. Parece temível, a desgraça. Mas dá o poder de interromper e cortar todas as trajetórias com a mera vontade.
Só que as trajetórias, conforme é ensinado, acordado e decidido, são sagradas.
Ainda mais ao norte
Nenhum dia na Suécia é igual ao anterior. Tão violenta é a variação das horas de luz e trevas, que os suecos não conseguem conter o comichão de comentar o assunto, quando a curva da primavera vai se tornando mais e mais aguda: “nesta época”, eles informam, cúmplices de contentamento, “são cinco minutos de sol a mais por dia”. E o dado confere com o que aprendemos na véspera.
Não sei quem foi que convencionou as datas que marcam a virada das estações, seguindo os solstícios e equinócios. É provável que tenha sido a academia de ciências da França, como sempre, no mesmo golpe em que foram inventados o metro, o quilo e todo o resto das medidas rigidamente decimais, às quais só os anglo-saxões ainda tentam resistir. Em todo caso, certamente não foram os suecos. O dia se equipara em duração à noite na penúltima semana de março; na última, tem início o horário de verão. Mas é final de abril e não há sinal de verão em Estocolmo. Difícil topar com uma árvore já pontilhada de brotinhos de folhas. Enquanto em Paris as sakura já murcham e passam do rosa ao verde, na Escandinávia ainda abrem os primeiros botões de cerejeira.
Os cariocas dizem que o Rio de Janeiro conta com só duas estações: verão e inferno. Piada antiga. Na Suécia, pode-se dizer algo parecido: há o inverno, inferno oposto ao fluminense, e o “não-inverno”. Em julho, o termômetro eventualmente bate nos trinta e os nórdicos derretem. Hoje, domingo, primeiro dia no ano com céu em puro azul, temperatura positiva já ao amanhecer e mais de dez graus no princípio da tarde. A cidade inteira se lança à rua, redescobrindo os territórios que deixou vazios desde setembro. Coisa linda de se ver. Para nós, é muito frio, mas eles aproveitam para deixar braços e pernas finalmente nus. Não os pescoços, cabe alertar: só um louco sairia sem cachecol antes de maio, arriscando uma pneumonia que o deixe prostrado na cama por todo o verão. Nem pensar.
Pergunte a um sueco como ele consegue viver num lugar coberto de neve de setembro até abril. Faça isso a título de experimento antropológico. Há aqueles, com alma de esquimó, que consideram insuportável de tão quente o inverno de outros países europeus, como a Alemanha. Mas é minoria. Há boas chances de que a resposta seja um suspiro, seguido da confissão: “não sei”. Muitos têm o sonho de se mudar para um país mais ameno, para não dizer quente. Alguns citam a Jamaica, porque é tropical e fala-se inglês. E todo sueco é fluente em inglês, com uma pronúncia muito mais agradável do que a dos nativos, sejam britânicos, americanos, australianos, indianos… Ao final de outra pausa, longa e melancólica, o entrevistado responderá em tom de profecia, mais do que de descoberta: “Suporto o inverno para esperar o verão”.
Concluo que o frio extremo é, antes de mais nada, um grande aprendizado. Com a sucessão dos anos, a espera pia por um verão curto e apenas fresco ensina os jovens a se tornarem pacientes. Talvez isso explique o nível de civilização do país e do povo. A Suécia é tudo que dela se diz. ônibus não atrasam, lixo nas ruas é lenda das terras bárbaras ao sul (e praticamente o mundo inteiro está ao sul), mendigo é coisa do passado. Covardia comparar a Suécia à França. A falta de educação parisiense, o mau humor, a frieza, a empáfia, tudo isso passa longe de Estocolmo. Ou seja, aqueles que atribuem ao frio a nuvem negra sobre as cabeças francesas estão apenas muito enganados. Os fatos indicam coisa bem diversa. Aqui, transeuntes sorriem quando abordados, comerciantes são solícitos e dão informações, ninguém se compraz em destratar os outros. Para quem vive no meio de gauleses, conviver com os temíveis vikings é um alívio.
Uma palavra sobre a capital: Estocolmo é a cidade mais linda da Europa, pelo menos entre as que conheço. Uma pena que só se possa vê-la em todo seu esplendor a partir de maio, até setembro no máximo. Fora dessa janela, não bastassem a escuridão e o frio, muita coisa nem abre. Mas quando há luz, não existe delícia maior do que bordejar a linha d’água, entre pessoas tranqüilas sobre suas bicicletas, sem multidões, sem turistas berrando, sem excursões de japoneses, americanos e brasileiros.
Posso ofender muitas sensibilidades ao dizer que Estocolmo é mais bela do que Paris, Roma, Florença, Praga. Não é culpa minha. Na comparação, as cidades italianas não dão nem para o começo. Fora os museus e monumentos, são mais sujas do que o aterro de Gramacho. Praga poderia rivalizar, mas perde pelo tamanho e porque o adversário é mesmo muito difícil. Quanto a Paris, a incensada, é mesmo muito bela, mas cansa rápido. De sua arquitetura toda haussmannienne, cinzenta e retilínea, resulta uma cidade monótona, monocromática, monocórdia. Estocolmo é colorida, espalhada, ampla. Sua arquitetura é imaginativa, sabe misturar diferentes épocas e escolas, quase sempre sem ruído. Belíssima cidade, repito.
Mas este é apenas um texto introdutório. Lanço aqui uma seqüência quase desconexa de primeiras impressões. Coisas assim são o que vi na capital gostosa de um país nórdico desde que cheguei, dois dias atrás. Mas há muito a dizer nas próximas crônicas, se a internet parar de me pregar peças.
A grande transformação*
Novamente sobre o Primeiro de Abril, quando saí de casa em busca de uma mentira e não encontrei. Como já expliquei no último texto, aliás. Por outro lado, e para meu grande espanto, o que encontrei foi uma nova cidade. Absorto na minha busca infrutífera, ganhei a rua, mas antes mesmo de atingir a esquina, já me sentia deslocado. Esta não é a mesma Paris de ontem, isto é, 30 de março; estes não são os mesmos parisienses. Terei atravessado um portal místico ao empurrar as cinco toneladas da porta do edifício? Terei sido transportado para outra realidade, outro país? Meu humor anda assim tão bom, que vejo tudo de outra forma?
Rumo ao pequeno parque escondido nos fundos do bairro, percorro as ruas do quotidiano como se explorasse as veredas de Atlântida. Mesmo os mendigos, encalacrados pelos últimos meses nas soleiras e nas escadarias do metrô, têm o ar de quem toma sol. Sentados em banquinhos de três pés, pedem seus trocados com gentileza, numa subversão tão perturbadora do desespero do inverno, que chega a parecer artifício. Um motorista com vocação para Nakajima quase atropela um motociclista, mas nem por isso um xinga o outro. Ao contrário, produz-se ali a Segunda Revolução Francesa: um pede desculpas ao outro e segue sua vida.
Quanto às moças, as célebres patricinhas francesas, elas trocaram seus cachecóis felpudos e brilhantes por coques estilizados. Chego a perder um minuto observando uma dessas estruturas de melenas: parece projetado por Calder, tamanha a delicadeza do equilíbrio, sob a ameaça da primeira brisa. É abril. Adeus botas de saltos mais altos que os canos, olá saias curtas e sandálias.
Descrito assim, pode parecer caso de dia ensolarado, mais quente do que os anteriores, irreversível final do inverno. Ledo engano. Primeiro de abril não foi mais quente do que 30 de março. Talvez a média tenha ficado até um ou dois graus mais baixa. Sol, houve. Menos do que no dia anterior, mais do que no seguinte. O horário de verão já vige desde o dia 21. Oficialmente, já temos quase duas semanas de primavera. Lanço a pergunta: que raios, afinal, mudou tanto de segunda para terça-feira?
Resposta singela, mas verdadeira: o mês. Nada mais. Não há ato psicológico mais forte que arrancar uma página de calendário. Abril é quando se fica mais alegre e se vestem roupas mais leves, certo? Pois bem: alcançamos abril, então é hora de inverter o guarda-roupa. Se eu disser que o francês deixa a condução de sua vida, em muito vasta medida, a cargo de datas, horas e outras funções matemáticas, vai certamente parecer exagero. Mas afirmo que, se for, é por muito pouco. A metamorfose está aí que não me deixa mentir. A mudança do vestuário não aconteceu gradualmente, tampouco a do humor. Foi, literalmente, de um dia para o outro.
É a regra. O mesmo acontece, por exemplo, no início do inverno. Os imóveis que têm aquecimento central automático o ativam, todos, quase sem exceção, em 15 de outubro. Eis o dia em que se começa a sentir frio. E, de fato, é o dia em que os casacos aparecem. Pouco importa que esteja muito mais quente que no dia 14. O dia 14 não é o dia em que se começa a sentir frio. É o dia 15, esse sim. Eis o dia, repito. Ponto final.
Cheguei a desenvolver uma teoria sobre o Primeiro de Abril. Assim como é a data em que as roupas se tornam leves (sob o risco de tiritar, não nos esqueçamos), é também o momento de começar a demonstrar alguma alegria, de vez em quando. Os sorrisos guardados no fundo do armário podem sair, empoeirados e cobertos de um ligeiro bolor. Daí a idéia de instituir a data de zombaria sobre os outros, de ser maldoso, mentir, pregar peças. É mais um pretexto para dar risadas; afinal de contas, os europeus precisam de fortes incentivos para gargalhar e, quando o fazem, normalmente exageram. Ainda hei de publicar uma tese a respeito.
Quanto ao que há de extraordinário e acintosamente belo na primavera de Paris, especificamente em abril, prefiro me ater ao texto do ano passado e à música que, naquele momento, embalou meus dias.
Na semana que vem, os plátanos prometidos!
* Título plagiado da obra magistral de Karl Polanyi.