Começo a escrever na noite de sexta-feira anterior à Marcha da Liberdade marcada para a avenida Paulista, 28 de maio – dia que no futuro talvez seja nome de rua. Provavelmente só vou terminar de manhã, logo antes de partir para a referida marcha. Aliás, bem disse alguém por aí: não se deveria dizer “marcha”, mas alguma outra coisa, porque a liberdade não marcha, ela dança. (Voltaremos a isso.) Sábias palavras. Continuar lendo
Arquivo da tag: nietzsche
O leitor, terrorista internacional
Aconteceu duas vezes. Primeiro em Copenhagen, depois em Guarulhos. O sinal: bagagem ou casaco na esteira do raio-x, olhos apertados e sobrancelha alçada na pessoa de uniforme, a exigência de separar o objeto suspeito para um exame mais próximo, com direito a luvas de borracha e tom de voz imperioso. Até segunda ordem, o viajante é um terrorista em potência ou, na melhor das hipóteses, um mísero traficante internacional.
Algo ali chamou a atenção dos “agentes de segurança” aeroportuários. São os responsáveis por evitar que a Al Qaeda risque os céus, mas também por manter constantemente vivo na consciência de cada passageiro a lembrança de que a Al Qaeda existe e a sensação de que está por todo lado. Aos olhos do poder, principalmente os funcionários mais baixos do poder, a Al Qaeda está por todo lado. Por todo lado. E, noves fora os americanos velhos de guerra, ninguém está mais seguro disso do que os dinamarqueses.
Uma palavrinha sobre os dinamarqueses. Continuar lendo
Bouazizi, o herói de Nietzsche
Nem Assange, o indiscreto hacker australiano. Nem Zuckerberg, o ainda mais indiscreto empresário precoce da rede, como quis a revista Time. Nem Suárez, o goleiro fugaz dos pampas, sobre o qual ainda hei de escrever. O maior herói de 2010 foi um vendedor de frutas, ambulante e sem licença, natural de Sidi Bouzid, no interior da Tunísia. Chamava-se Mohamed Bouazizi e tinha 26 anos quando morreu.
O gesto heróico de Bouazizi foi um martírio que, em si, não tem nada de novo, mas sempre impressiona. No Vietnã de 1963, Thích Quảng Đức desceu do convento e, com toda a calma que se espera de um monge budista, imolou-se na praça mais movimentada de Saigon. Kennedy admitiu que a imagem daquele corpo se consumindo abalou o mundo. Na Tchecoslováquia de 1969, Jan Palach, estudante de filosofia, escolheu que sua existência não passaria dos 21 anos. De que valia viver sob o jugo soviético? Em 1989, a celebração de sua memória desaguaria na Revolução de Veludo, batendo um cravo no caixão da Cortina de Ferro.
É perturbador, mas parece que morrer dá resultado. Continuar lendo
Elogio à paciência e à sutil ironia
Foi na semana passada que entrei no blog do Catatau para comentar um texto recente, mas acabei não comentando. Fui atraído pela lista de comentários recentes, que terminava com o de um certo Pr. Thieme, num artigo publicado no longínquo, para não dizer antediluviano, mês de maio. Admirado da distância entre os argumentos originais e a contribuição listada na coluna lateral, resolvi visitar a página e acabei esquecendo da vida, sem contar o texto recente com que eu pretendia contribuir.
Fiquei pasmo ao ver a extensão da lista de comentários (para quem se interessar, ela está aqui), quase monopolizada pelo titular do blog e o Pr. Thieme. Mais ainda, deliciei-me com o desenrolar da conversa, muito embora ela manifeste algumas práticas retóricas que me enchem de apreensão quanto ao futuro. É que a irreconciliável diferença entre a lucidez argumentativa do blogueiro e o messianismo quase iletrado do comentarista produz algumas situações impagáveis, dignas de figurar em esquetes de um Monty Python da vida. (Por sinal, Eric Idle tem um vídeo no Youtube em que esfarela em derrisão alguns comentários virulentos que aparecem na lista do grupo. Merece uma visita.)
Começo com o que me preocupa. O Pr. Thieme se apresenta como um pastor evangélico defensor daquela tal psicóloga (por ter se formado na faculdade de psicologia, não por compreender a matéria, bem entendido) que prometeu “curar gays”. A defesa é baseada em uma série de testemunhos e passagens curtas da Bíblia, que, costurados de maneira aleatória e conveniente, fazem as vezes de exegese e fundamento teórico. Eventualmente, como na caixa de comentários de Catatau, esse tipo de técnica retórica esbarra em gente mais preparada. Solução? Vencer pelo cansaço, através de evasivas, repetições, argumentos ad hominem e assim por diante.
Mas vamos com calma. Vale analisar os sintomas um por um, para traçar o quadro daquilo que considero tão perturbador.
De fato, Pr. Thieme escreve com a retórica de quem foi treinado para seduzir platéias. Recorre reiteradamente a exemplos de grande apelo emocional e fácil compreensão. Intercala esses exemplos com sentenças identificativas, do tipo “A é B”, de imediata absorção, como postulado, pelo auditor (ou leitor) desatento ou despreocupado. Resultado: sem precisar expressá-lo distintamente, ele cria a falsa impressão de um silogismo. Mas, já que a conexão lógica não está explícita, a falácia passa batida e se instala no inconsciente do receptor como uma grande verdade.
Por exemplo:
Apelo emocional: “Nem a medicina resolve. Os três médicos que acharam que o Bozo estava morto converteram-se a Cristo (os três).”
Postulado: “É a vantagem de ter o Poder de Deus para te iluminar sobre o problema a enfrentar e não depender somente de seus conhecimentos humanistas.”
Silogismo disfarçado: Práticas de origem científica (no caso, medicina e psicologia) têm a obrigação de romper com seus fundamentos teóricos se for do interesse maior de determinada afiliação religiosa.
Observe que o truque aí acima só pode ter efeito por se aproveitar de outro silogismo escondido, que pressupõe que toda afiliação religiosa interpreta perfeitamente os textos sagrados. Isso parece contraditório, uma vez que, como todos sabemos, diferentes grupos religiosos interpretam as mesmas escrituras diferentemente. Sem contar, claro, o fato de que determinados grupos aceitam ou rejeitam tais ou tais escrituras como válidas ou não. Mas é menos contraditório do que parece. Trata-se de uma adaptação relapsa, talvez voluntariamente, dos princípios de sola fides (só a fé) e sola scriptura (só as escrituras) de Lutero.
Não sei se o pastor em questão é luterano (duvido muitíssimo), mas pouco importa. O fato é que Lutero pregava a salvação pela graça e a orientação pelo recolhimento diário para leitura e exegese dos textos sagrados cristãos, no âmbito individual e, por extensão, comunitário. Salientar o comunitário como extensão do individual é de fundamental importância para não cair no erro de determinados argumentadores, sobretudo evangélicos, como o Pr. Thieme. Dentro de uma comunidade bem delimitada, a aceitação (leia-se fé) de algumas interpretações básicas das escrituras funciona como conjunto de postulados para promover a vida religiosa comunitária, calcada sobre um desenvolvimento conjunto, no interior daquela coletividade específica e delimitada, de uma compreensão global dos textos sagrados. Não é à toa que grande parte da teologia e do pensamento político alemães partem da noção de comunidade.
O que tenta fazer o intérprete leviano do sola scriptura e do sola fides é incinerar o conceito de comunidade. Mas, como algum tipo de formulação coletiva é necessária num universo não-autista como o nosso, o que acaba acontecendo é algo profundamente perigoso: a comunidade é engolida pelo conceito de indivíduo. Isso permite a qualquer fiel isolar um versículo, aplicá-lo a algo em que tem convicção, e alardear suas próprias conjecturas como sendo a palavra de Deus.
A armadilha não poderia ser mais clara. O raciocínio por trás dessa atitude considera como verdadeira a seguinte conseqüencial: se os textos sagrados manifestam a palavra de Deus, então tudo que pode ser tirado de um texto sagrado manifesta a palavra de Deus. É um evidente caso de premissa omitida. Mesmo admitindo que toda escritura manifesta a palavra de Deus, quem “tira” interpretações desses textos não é Deus. São homens, mesmo que eles se creiam inspirados pelo Espírito Santo.
O que, a princípio, poderia vir salvar essa leitura solipsista das escrituras é o sola fides. Ora, lembremos que o sola fides é um rumo para a salvação, quase um atestado de “adesão” ao sola gratia, considerado em geral o princípio fundamental do luteranismo e retomado pela maior parte das denominações protestantes. Portanto, ele não pode ser usado como princípio que valide argumentos de cunho social, isto é, coletivo. O motivo é muito simples: não há mecanismo individual nenhum para assegurar o fiel de que sua fé está bem encaminhada; a própria Bíblia possui mais de um trecho destinado a alertar o fiel para a projeção em Deus de suas próprias convicções. O melhor exemplo de todos é provavelmente o mesmo trecho da carta de S. Paulo aos Coríntios que Catatau invoca para espezinhar o Pr. Thieme, e que inspira o título deste meu elogio (voltarei a isso mais adiante).
Retomando o fio do raciocínio, temos uma situação em que a interação entre o indivíduo e a comunidade está rompida, tornando os princípios de sola fides, sola gratia e sola scriptura o oposto daquilo a que estavam destinados. Suplantada pela retórica e pelo marketing espetaculoso (acho que aqui um exemplo é desnecessário), a religiosidade vira instrumento de manipulação política (e social, econômica, …). Observe que esse resultado seria suficiente para fazer queimar no inferno as almas mesmas que invocam Deus (ou deuses, se for o caso) para manobrar decisões políticas e sociais.
Afinal de contas, e eis a mais temível conseqüência da armadilha já mencionada, quando alguém projeta em Deus suas próprias idéias, como descrito nos últimos parágrafos, ele está, sabendo ou sem saber, tomando a si mesmo por Deus. Repito: a subversão dos princípios de sola fides, sola gratia e sola scriptura leva o fiel, ou aquele que se considera fiel, a se tomar por Deus. O termo técnico, se ainda for necessário, é blasfêmia.
É claro que esse tomar-se por Deus é um processo inconsciente e involuntário. Mas ele não acontece à toa: é resultado da perda da noção de comunidade, aquela em cujo seio a fé e as escrituras, compartilhadas pela leitura e a interação (lembremo-nos que, para Lutero, todo fiel é um sacerdote), aproximava a coletividade de Deus. No lugar da comunidade eclesiástica, o que temos hoje é o messianismo, o marketing e o espetáculo. No lugar da interação, temos grupos cada vez mais restritos, voltados não a uma busca de iluminação pela investigação das escrituras (sola scriptura), mas uma busca da catarse pelo contato físico com o livro sagrado (já viu aquelas pessoas andando por aí com a Bíblia na mão? Vê se elas refletem comunitariamente sobre aquilo…). No lugar da fé desenvolvida pela intersubjetividade comunitária, temos a auto-afirmação através de um combate profundamente político e longe de espiritual.
Como foi acontecer algo assim? Escolho, como explicação, usar dois autores que vão deixar muita gente ignara com os cabelos em pé. Isso mesmo: Nietzsche (cruz credo!) e Marx (te esconjuro!). O primeiro é autor da famosa sentença: “Deus está morto”, que todo mundo conhece e muita gente entende como uma provocação aos fiéis. Mas quem a lê assim o faz porque prefere não espiar o resto da passagem do louco com a lanterna: “Fomos nós que o matamos”, ele diz.
A interpretação mais imediata dessas duas frases é a preferida de quem se aproveita da religiosidade em proveito próprio. Ela consiste em crer que, no lugar desse Deus que considera morto, o homem coloca a si próprio. Afinal, parece difícil imaginar que o homem possa não colocar nada no lugar de princípio absoluto, para se orientar neste mundo de contingência em que tudo é fugidio. Como organizar uma interpretação da realidade sem pontos de apoio? Resultado: o homem se colocaria na condição de parâmetro para essa interpretação, tomando-se por absoluto e, por que não extrapolar, tomando-se por Deus. Quem nunca ouviu essa análise?
Ela não é tão errada quanto parece, na verdade. Mas ela se interrompe onde lhe interessa, sem chegar ao ponto verdadeiramente problemático da questão. Um tal “assassinato de Deus” não poderia ir adiante sem a corrosão do espírito comunitário que sustentava, para Lutero, os três “solae” e, para S. Paulo, a ecclesia (igreja; veja essa explicação em mais detalhe nos comentários do blog do Catatau). Trata-se, portanto, de uma decorrência da modernidade, tanto quanto as ferrovias, a metralhadora, a Coca-Cola e o Edir Macedo. De súbito, a estrutura onto-teológica que sustentava a espiritualidade ruiu, primeiro na Europa cristã, depois no mundo todo – e as perturbações do mundo islâmico que perduram até hoje são outra faceta do mesmíssimo fenômeno.
Mas o tema deste texto não é o Islã, e sim o discurso pseudo-religioso que toma suas próprias máximas como sendo palavra de Deus. E aqui é que vou recorrer a Marx (tire as crianças da sala). O barbudo alemão comedor de criancinhas abre seu 18 de Brumário de Luiz Napoleão com uma de suas passagens mais brilhantes. Diz ele, citando Hegel, que a história acontece duas vezes, “a primeira como tragédia; a segunda como farsa”. Mas o mais interessante é o que vem logo em seguida e merece uma citação integral (tirada do site marxists.org):
Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada.
Proust, que não sei se leu Marx, escreveu um romance de umas boas 4000 páginas (uma tal Busca do Tempo Perdido) em que demonstra, por exemplo, como a burguesia fin-de-siècle se comportava como imitação farsesca da aristocracia dos séculos passados. Pois é o mesmo que acontece hoje, com aqueles que se pretendem os ressuscitadores do Deus cujo necrológio Nietzsche escreveu no século XIX.
Como vimos, o que essas pessoas promovem não é ressurreição de nenhuma sorte. Ao contrário, aproveitando-se da morte (autêntica ou não, pouco importa) de Deus, eles embalsamam o cadáver exposto por Nietzsche, como os soviéticos embalsamaram Lênin na Praça Vermelha, e falam através dele, como os soviéticos falavam através dos despojos do pai da Revolução, incapaz de se defender. O resultado é o que vemos: uma imitação, como farsa, da religiosidade histórica, baseada ela sim em um verdadeiro sistema exegético. E essa imitação se manifesta nessas lamentáveis lideranças, auto-intituladas religiosas, que se aproveitam da necessidade natural humana de alívio espiritual, apenas para adquirir peso num jogo político que tomou dimensões inimagináveis em épocas anteriores à “morte de Deus” que Nietzsche apontou, com sua habitual argúcia e verve.
Mas peço desculpas por essa longa digressão que foge absurdamente do título. É que eu queria demonstrar como o individualismo que gente como o Pr. Thieme denuncia nos “humanistas” e “relativistas” (ver seus comentários no blog do Catatau) está na origem da própria religiosidade ersatz que sustenta tantas denominações que aparecem muito mais no noticiário político do que em verdadeiros estudos teológicos. Pois é isso que, no começo do texto, eu considerava perturbador e perigoso. Utilizar-se de um subterfúgio religioso para fazer política não pode ter boas conseqüências. Logo me vem à cabeça gente como Savonarola e Torquemada. Fé cega e poder estatal são uma mistura explosiva, porque a certeza absoluta de encarnar o Bem (com letra maiúscula, e não nos esqueçamos que estamos falando de gente que confunde seus próprios instintos com a palavra de Deus) surrupia à ação qualquer possibilidade de limites. Assustador, sim, por esse motivo.
Agora, finalmente, chego ao elogio à paciência e à fina ironia. Nos comentários do blog do Catatau, o Pr. Thieme tenta, de toda forma, exaurir o gosto argumentativo do blogueiro. Se fosse comigo, ele conseguiria, porque eu não consigo exercitar essa divina virtude que é a paciência. Enquanto o comentarista insiste em repetir o mesmo discurso sentimental e confuso, que certamente passa por muito sábio para quem está predisposto a segui-lo se necessário até o inferno, o blogueiro perde horas de sua vida para responder. Privado do “chega, cansei” com que ele espera a vitória por pontos, o que resta ao comentarista? Expor-se ao ridículo e cansar não mais o blogueiro, mas o leitor.
E eu pergunto: como Catatau consegue ter tanta paciência? Acho que a resposta está na fina ironia. Apesar da enorme empulhação que deve ser ficar dando respostas, durante meses, à tortuosa linha argumentativa de seu oponente, imagino que deve ser muito divertido levá-lo a tornar suas próprias frases uma grande piada. Catatau chega ao ponto de, na maior cara-de-pau, chamar o sujeito de idiota, e ter como réplica apenas a queixa molenga de que a palavra é grega.
Se eu for pedir algo a Deus (e digo isso sem nenhuma intenção provocativa), será uma infinita paciência como a do Catatau, temperada com a mesma sabedoria de usar da ironia sem dar a perceber a ofensa numa primeira e ligeira leitura. Acontece que, sempre que sou irônico, e isso acontece com freqüência, a hostilidade fica logo patente. Não consigo disfarçar. Ao contrário, com sua proverbial fineza, Catatau é muito mais eficiente, como demonstra deu desmonte dos delírios do comentarista em seu blog. Simplesmente brilhante.
Como eu já disse, vale a leitura.
Edward Said, a filologia e o tal relativismo
No prefácio à edição de 2003 de Orientalismo, Edward W. Said tece longos elogios à filologia, de Goethe e Herder a Erich Auerbach. A ciência que introduziu Nietzsche a Dioniso é tratada como campeã do pluralismo, da abertura ao outro, da curiosidade democrática pelo que não se entende, mas se quer entender. E Said tem razão. O princípio do bom filólogo é que, para compreender de fato o que se escreveu em outras terras e outros tempos, primeiro cumpre reconhecer a alteridade por inteiro. Isso significa aceitar, mesmo que temporariamente, valores muito estranhos aos seus e ideias que parecem inconcebíveis. É preciso escapar à tentação de interpretar julgando, isto é, de impor a universos que nos são inteiramente alheios às convicções que desenvolvemos em nosso tempo, e não no deles; em nosso espaço, e não no deles.
Said contrapõe a humildade dos filólogos, que pacientemente se embebiam (ou ainda se embebem, enfim) de diferença e intercâmbio agonístico, ao discurso sedutor e imediatista dos “especialistas” de hoje. Esses que, na CNN e na Fox, em livros e entrevistas, em artigos na imprensa, em todo canto, se apresentam para introduzir na cabeça de quem se dispõe a crer uma infinidade de distinções claras, distintas, simples e, é claro, falsas. Escrito no calor da cruzada, ops, campanha de Bush pelo petróleo, ops, contra a ditadura iraquiana, o prefácio de Said vale para muitos outros campos. Ele tem toda razão ao apontar que o século começa mal: não queremos saber de colocar as coisas em perspectiva.
Fico me perguntando quantas vezes esse prefácio já não foi tachado de relativista. E já que toquei nessa palavra, paro nela. Existe um velho truque da retórica que consiste em encarnar a negação do seu argumento num inimigo fictício, transformá-lo numa caricatura (sem exagerar, para não ficar evidente demais), explorar à exaustão o ridículo de seu pensamento e, por fim, apresentar como redenção sua própria forma de pensar. Não costuma falhar. Goebbels, por exemplo, inventou a figura do judeu que era ao mesmo tempo financista, sionista e comunista. Em toda a Europa, quem não caiu, pelo menos balançou.
Hoje, para além da figura batida do árabe-terrorista-antiamericano, existe uma palavra guarda-chuva que não designa ninguém em particular e é, por isso mesmo, mais eficiente em sua missão de cobrir tudo que se queira desqualificar. O tal relativismo não tem rosto, como um indivíduo árabe (aquele que Bush deplora) ou judeu (que Goebbels denegria). Assim, não se pode apontar para o adversário, chamá-lo de feio e sair andando. Mas é por isso mesmo que qualquer coisa pode passar por relativismo, contanto que se oponha à convicção do orador.
Basta partir do começo de sempre, que é revelar, pela milésima vez, o erro de um enunciado bem batido: “tudo é relativo”. Ora, dirá o gênio da lógica: essa frase é uma contradição performativa, porque para que ele seja verdadeiro, é necessário que ao menos ele mesmo seja absolutamente verdadeiro. Mas nesse caso, ele seria falso, tendo afirmado que tudo é relativo. Partindo dessa denúncia notável em sua originalidade, pode-se acusar qualquer um de ser relativista. Basta tentar colocar as coisas em perspectiva, analisar o quadro teórico de um conceito ou buscar as raízes históricas de uma determinada conjuntura. Pronto, amigo… haverá um adversário esperto para apontar o seu relativismo. Afinal de contas, alguém que não corre para meter todo o universo sensível em compartimentos pasteurizados e perenes está sempre a um passo de afirmar que “tudo é relativo”, não é verdade?
A coisa se complica um pouco quando procuramos alguém que afirme, de fato, que “tudo é relativo”. Encontramos, sim, muita gente dizendo que “tudo está em relação”, que “tudo é relativo a algo” ou, no máximo, que “nenhuma verdade é absoluta”. Mas nada que não dê para contornar. Basta transformar tudo isso em sinônimo de “tudo é relativo”. E parece, não parece? Acontece que dizer “nenhuma verdade absoluta” é apenas o oposto de dizer “alguma verdade é absoluta”. Essa assertiva, sim, é que seria bem difícil de defender. O único indivíduo que poderia afirmar algo assim sem incorrer numa falácia seria um indivíduo absoluto, isto é, onisciente.
Ou seja, Deus. O que ajuda a explicar por que os papas são os primeiros a atacar o tal relativismo, já aproveitando para jogar no mesmo saco o ceticismo, o ateísmo, o secularismo e tudo que escape ao poder soi-disant espiritual do Vaticano. Aceitemos que o papa ainda tem uma certa margem de manobra para defender que “alguma verdade é absoluta”; afinal, segundo a mitologia que o sustenta, ele é infalível mesmo quando se contradiz. Isso não vale para nenhum outro ser humano, porém. Qualquer indivíduo, por mais fiel que seja, ao afirmar que “alguma verdade é absoluta” não está se colocando de acordo com o Deus em que acredita, mas no lugar do Deus em que acredita. Ele está afirmando saber, sem o menor pingo de dúvida, algo que caberia a Deus e a ninguém mais saber. Em outras palavras, alguém que afirme que “alguma verdade é absoluta” e em seguida der um exemplo, está, na melhor das hipóteses, blasfemando.
Mas se fosse privilégio do obscurantismo religioso, a criação do inimigo relativista não iria muito longe. O simples fato de autoridades pretensamente espirituais se verem forçadas a entrar num debate já atesta a obsolescência de sua teo-ontologia. Infelizmente, o barulho que fazem mascara sua verdadeira estratégia: ditar os termos do contraditório. Conseguindo estabelecer a “linha agonística”, seu grande triunfo é arrastar para a estrutura lógica deles as pessoas que deveriam estar em debates muito mais avançados.
Com isso, mesmo quem defende valores humanos, seculares, terrenos, acaba os defendendo errado. E esse é o maior perigo. O que não falta são especialistas (e seus acólitos) reunindo uma série de belos conceitos – tolerância, democracia, liberdade – num pacote de nome esquisito: “valores ocidentais”, para opor ao obscurantismo do adversário da vez, quais sejam, hoje, os árabes, muçulmanos, terroristas, enfim, escolha a palavra que lhe pareça mais chocante. Em que pese o termo “ocidental” ser dos mais presunçosos que haja, esse pacote de valores produz uma ideia de que todos esses belos conceitos são inerentes a uma parte do mundo (algo como um “povo escolhido”…). O “ocidente” seria, então, a gente (o século XIX diria “a raça”) que vislumbrou essas tábuas humanistas dos mandamentos, enquanto o resto do mundo, esses primitivos, segue incapaz de enxergar a Verdade.
Por um lado, conceber assim os valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos (por exemplo) escamoteia todo um passado de lutas, disputas, sofrimentos e traições, guerras, revoluções, golpes palacianos e tratados redigidos, que permitiu o florescer dessas belas ideias. Nunca é demais lembrar que a primeira declaração dos direitos do homem (e do cidadão) foi fruto da mui pacífica Revolução Francesa; a segunda, essa mencionada no começo do parágrafo, foi uma resposta a nada mais, nada menos do que o holocausto e demais atrocidades no nazi-fascismo. Apontar os conceitos do humanismo como valores morais absolutos é fechar os olhos para seu maior mérito: a historicidade. Se hoje cremos que nada é mais sagrado do que uma vida humana, agradeça à história, à filosofia, à politica. Mas não a alguma espécie de fundamento metafísico. Por sinal, o postulado da sacralidade da vida humana é, no mínimo, relativo à existência de seres humanos. Crer nele como absoluto é nada mais que absurdo.
Por outro lado, ao campear no terreno do adversário, o humanista absolutizado entra numa batalha que não poderá jamais vencer. E teria sido tão fácil… Tomemos o exemplo da burqa, que qualquer humanista considera um acinte e um desrespeito aos direitos da mulher. Se apontar o dedo para o mulá mais próximo, acusando-o de violar o valor absoluto da igualdade entre os sexos, a eminência adversária dará de ombros. Quem disse que esse valor é absoluto?, ele perguntará. E prosseguirá: nós preconizamos a burqa como aplicação de um valor absoluto (a superioridade de um sexo sobre o outro) definido por um ser absoluto, que é Deus. Você chama de absoluto um valor escrito por uma assembleia parcamente internacional, há coisa de meio século.
Normalmente, o humanista poderia demonstrar com duas frases que quem instituiu esse tal “valor absoluto” não foi Deus, foi o próprio sacerdote. Que ele interpretou da maneira que quis um livro que ele mesmo definiu como santo. Que ele está se escudando atrás de um ser transcendente para poder encampar seus próprios preconceitos e seu próprio poder, um poder secular se passando por espiritual. Mas o humanista absolutizado ficará sem palavras, porque, de fato, não pode ser absoluto um código de valores que evolui com o tempo, que começou como uma afirmação dos direitos da burguesia no século XVIII e até hoje continua sendo emendado para incluir quem estava de fora: as mulheres, os negros, os deficientes físicos, as crianças, agora os animais e, a seguir algumas tendências bem contemporâneas, logo a natureza inteira.
* * *
Este texto é claramente uma longa digressão. Pretendo tratar o tema do “relativismo” em outro artigo, mas agora preciso voltar a Edward Said, senão vai parecer que ele foi só uma desculpa para fisgar o leitor (que, a essa hora, certamente já se mandou). Said aponta que, nas mãos dos especialistas imediatos e superficiais da mídia, perdemos a capacidade de mergulhar na realidade do outro. Verdade seja dita, essa capacidade nunca foi muito disseminada… Mas havia, pelo menos, os filólogos, dentre os quais Said põe uma coroa na cabeça de Auerbach (com muita justiça).
Pior ainda, eu acrescentaria que perdemos a capacidade de mergulhar em nós mesmos. Na pressa de estar “do lado certo”, estregamos o ouro nas mãos do bandido porque abandonamos o lento processo de estabelecimento das nossas conquistas – e ouso falar “nossas” porque me considero um humanista, um moderno, defensor de todos esses belos conceitos que enumerei acima. Muito sangue correu para que aprendêssemos a viver segundo princípios que não dependem de nenhum holismo, nenhuma transcendência, nenhuma imposição divina.
É uma vitória e, como toda grande vitória, precisa ser renovada a cada instante, diante de cada ameaça. Daí a pergunta da filologia: o que isso quer dizer? De onde veio? Como tomou corpo? É muito mais do que um esforço hermenêutico. É a construção das nossas convicções e dos nossos valores. Que são nossos, não são absolutos, felizmente.