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Imagens que não fizeram história (5): a caixa térmica e a máscara

[Prelúdio: escrevi o que segue abaixo entre domingo (31/5) e segunda-feira (1/6). De lá para cá, boa parte do assunto que motivou o texto perdeu relevância, soterrado por eventos mais impactantes e relevantes, como a mobilização anti-racista que ecoa a partir de Minneapolis. Eis aí mais uma maneira pela qual uma imagem pode não fazer história: quando é surpreendida por uma avalanche de estímulos – coisa que, de uns anos para cá, não tem faltado…]

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Manifestações em geral sempre rendem um bom número de imagens interessantes, por bem ou por mal – quer dizer, pelas bandeiras agitadas ou pela fumaça das bombas. Desde 2011, tivemos tantos protestos que pareceria impossível surgir algo digno de nota. Tolice: o campo de possibilidades para que emerja algo capaz de ressoar conosco está sempre em expansão. Considerando a infinita redundância de imagens que nos inundam, seria de se esperar que o universo daquelas que são significantes e informativas estivesse em contração; mas é justamente da atmosfera sufocada em redundância que pode saltar o relevante. Parece que isso ocorreu domingo em São Paulo.

O embate entre neofascistas e antifascistas de 31/5 produziu tudo que costuma se produzir em termos de iconografia de protesto. Bandeiras, punhos erguidos, gente segurando microfone, policial apontando arma, escudos, bandanas, fumaça. Tivemos até algumas novidades bem desagradáveis, como a exibição de tacos de beisebol (velho símbolo anglo-saxão de agressividade) e bandeiras ucranianas de inspiração neonazi. Do ponto-de-vista iconográfico, porém, nada seria novo, a princípio; editores de jornais e revistas poderiam escolher qualquer das imagens corriqueiras de seus fotógrafos ou das agências para ilustrar suas capas.

Mas no próprio domingo, quando os envolvidos mal tinham voltado para casa, em plena indignação pela repressão policial (e o tratamento amistoso à fascista com o taco de beisebol), as redes sociais já tinham elegido uma fotografia como favorita: esta com o entregador de aplicativo (bicicleta? moto?), com a caixa térmica nas costas, máscara de hospital no rosto, prestes a lançar uma pedra, provavelmente contra a polícia.

O gesto, o movimento, a postura do corpo, nada disso tem qualquer coisa de novo e é provavelmente por esse exato motivo que o fotógrafo (Nelson Almeida, da AFP) abriu o obturador nesse momento preciso – e depois escolheu esse clique em particular para editar no computador. De relance, a memória de quem estudou semiótica e a história do fotojornalismo captou a possibilidade de produzir uma imagem relevante não pela novidade, mas pela citação, isto é, pela inserção numa trajetória canônica. Mas é claro que o interesse não se encerra aí: a partir dessa inserção, aí sim, e por causa dela, poderão emergir as diferenças, que tornam essa imagem significativa a ponto de ter conquistado a atenção, mesmo que por poucas horas, das redes sociais – tão inundadas, tão sufocadas por imagens.

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Talvez tenha sido com o maio de 1968 francês que a figura de manifestantes atirando pedras se tornou canônica. Por sinal, a sublevação estudantil da rive gauche forneceu uma série de padrões tanto para protestos urbanos quanto para sua representação nas décadas seguintes. Mas frequentemente capas de livros ou cartazes de filmes sobre o episódio trazem a escolha de alguma das fotografias de jovens se fazendo de catapulta humana, apertados em seus paletós “dandy”.

Desde então, a personagem do jovem que arranca o calçamento e o atira contra policiais ou soldados se tornou uma espécie de ícone do conflito social deflagrado. São abundantes as imagens de rapazes palestinos prestes a lançar uma pedra contra armamentos vastamente superiores – inclusive com o uso de fundas, o que traça um vínculo estranho, que começa no estético e o ultrapassa, entre nosso tempo e o Antigo Testamento.

Gênova, Primavera Árabe, Occupy, praça Taksim, junho, sempre fornecem algumas imagens nessa linha, às vezes muitas. Talvez a consagração do gesto do lançador como síntese da manifestação de rua esteja no mural de Banksy em Jerusalém (“Love is in the Air, or: Rage, the Flower Thrower”), em que o manifestante, de rosto coberto por uma bandana e boné virado para trás, se prepara para lançar flores: o corpo em preto-e-branco, as flores coloridas. Graças à agilidade do estêncil, a imagem se espalhou por paredes e cartões postais de todo o planeta, empapada com o mesmo tipo de ironia que acomete aquele retrato do Che feito por Alberto Korda, hoje quase uma logomarca.

É, de toda forma, um gesto como poucos para atiçar o interesse de fotógrafos e todo tipo de artista fascinado pelo corpo. Rodin, se tivesse vivido um século mais tarde, sem dúvida ficaria encantado com os braços esticados, o peito aberto, as pernas dispostas de modo a lembrar vagamente o “Gong Bu” (posição do arqueiro), e teria esculpido de alguma maneira o manifestante com o petardo engatilhado. Não foi à toa que a personagem se consolidou no imaginário da iconografia política. Se quisermos voltar ainda mais longe, dá para dizer que a figura remete também à antiguidade clássica: o atirador de lança da escultura grega, como no célebre “bronze de Artemísio” do período austero. E foi também uma das personagens escolhidas pelo pioneiro Eadweard Muybridge para suas fotografias quase cinematográficas de decomposição do gesto.

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O entregador de aplicativo não é um estudante da Sorbonne ou de Nanterre, nem um soldado das falanges gregas, nem um esportista. Ou, para dizer a mesma coisa de maneira um pouco mais direta: o entregador de aplicativo é uma figura paradigmática da nossa década. Precarizado, sujeito ao controle algorítmico da economia de plataformas (ou, mais amplamente, a “gig economy”), tratado como empreendedor individual pelo patrão e pela Justiça, serpenteia pela cidade da “big data” atomizada, em busca de boas avaliações e uma remuneração fundada sobre baixas porcentagens do preço das entregas.

A bem dizer, o entregador de aplicativo é praticamente o oposto do estudante da Sorbonne. Mas se uma foto sua, congelado em pleno gesto de preparar o lançamento da pedra, se conecta com essas figuras icônicas e canônicas, sejam históricas ou ficcionais, justamente essa dissonância é que chama nossa atenção. Esta é, digamos assim, a diferença que resulta da repetição, como o isótopo que escapa do átomo. É difícil determinar se a estereotipia do lançador irrompe na nossa realidade ou se é a nossa realidade que irrompe na linhagem estereotípica. O resultado no espectador, em todo caso, é algo da ordem do abalo afetivo, na linha do envolvimento subjetivo que Barthes denominou o “punctum” da fotografia, e que se destaca do contexto objetivo (“scriptum”) em que está representado um episódio ocorrido durante um domingo de protestos.

O abalo afetivo serve para trazer à superfície da consciência e do discurso essa personagem social contemporânea do entregador de aplicativo. Ela possui alguns traços que a tornam particularmente significativa neste momento. Ao longo dos últimos dois anos, tempo em que acompanhamos a chegada da extrema direita ao governo, essa categoria foi frequentemente analisada como sendo a porção da classe trabalhadora que não se abalou com a destruição de seus próprios direitos tradicionais, como classe. Motoristas, entregadores e outros braços da economia de plataforma teriam, supostamente, adotado a ideia de que são de fato pequenos empresários, que mandam em si mesmos e não dependem de ninguém.

É claro que o problema é bem mais profundo. Se a própria perspectiva de emprego com alguma segurança e direitos se esfacela, como tem sido a tendência e não só no Brasil, é natural que quem está tendo que se virar no precariado demonstre pouco interesse em lutar pela manutenção de direitos aos quais nem sequer teve acesso. A desconexão entre trabalhadores tradicionais e membros do precariado tem razão de ser e, além disso, caberia às instituições da classe trabalhadora organizada expandir suas pautas para abraçá-los, em vez de lhes apontar o dedo. Se os precarizados frequentemente acabaram adotando discursos incompatíveis com seu próprio interesse, se muitos chegaram a abraçar o bolsonarismo em algum momento, se não poucos ainda o abraçam apesar de tudo, é um efeito da posição que ocupam nas relações de trabalho e sociais em geral; algo que, pensando bem, não deveria surpreender.

Ao mesmo tempo, esses trabalhadores continuam sendo o que sempre foram, no essencial, aqueles trabalhadores que década após década tiveram que circular nas grandes cidades em situação mais ou menos precária, mas sem ter, efetivamente, acesso à cidade. Gente que vai de portaria em portaria, e não mais longe; ou que entrega documentos importantes na avenida Paulista, sem espiar o que dizem, e passa na frente de seus cinemas, livrarias e centro culturais, sem poder tomar um minuto que seja para visitá-los. O precário circula pela cidade como o sangue por um corpo, mas fora dos horários de trabalho é confinado à sua quebrada. No tempo da economia da informação e da comunicação, uma economia detalhada e instantaneamente logística, este personagem é mais decisivo para o metabolismo social e urbano do que os próprios produtores.

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Esta é a figura que conseguimos ver, tacitamente que seja, quando olhamos para um entregador de aplicativo, de máscara, atirando uma pedra. Do fato de estar carregando a caixa térmica nas costas, podemos deduzir que não foi à avenida, originalmente, para protestar, mas para trabalhar. É claro que uma imagem como esta esconde pelo menos tanto quanto mostra, o que significa que mil outras possibilidades existem: que tenha pensado em trabalhar depois de sair da manifestação, que tenha esticado seu tempo de trabalho para protestar, aproveitando que já estava ali, ou que tenha carregado a mochila consigo só para reduzir o risco de ser abordado de modo truculento pela polícia. Ainda assim, a associação entre seu trabalho – precário, algorítmico, urbano etc. – e a manifestação salta aos olhos: o trabalho foi o passaporte para a cidade, a manifestação e a fotografia.

Vale lembrar também que as manifestações políticas da última década foram reiteradamente criticadas, com razoável dose de razão (mas não toda), por atraírem um público sobretudo da classe média e das regiões centrais da cidade. Como se dizia, as classes mais baixas, os moradores das periferias etc., no geral, permaneciam indiferentes; não tinham acesso ao espaço, nem compravam a narrativa.

Nesse contexto, outra explicação para o abalo afetivo, para o “punctum” do entregador de aplicativo, é que ele seria, graças à representação inscrita na história iconográfica, a exceção ou, melhor ainda, o indício de que as circunstâncias mudaram. Uma correção de rumos, talvez. Em outras palavras: agora, sim, é o povo, o trabalhador, o precário, que está nas ruas contra o governo opressor, e com disposição para enfrentar a polícia e as maltas fascistas… Exagero? Talvez, mas estamos falando de uma sensação, não de um raciocínio.

Seja como for, no dia em que esta fotografia foi feita, tratava-se de uma manifestação em nome da democracia, contra apoiadores do presidente de extrema-direita, que vinham ocupando sozinhos aquele espaço, à sua maneira: com bandeiras do Brasil misturadas a emblemas neonazistas ucranianos, padrões da bandeira americana e da israelense, carros de som, tacos de beisebol (não me conformo com esse taco), gritos por cloroquina. Do lado anti-fascista, a liderança estava nas mãos de torcidas organizadas, sobretudo a do Corinthians – mas também se verificou uma dessas ocasionais confraternização de seguidores de clubes que sempre nos emocionam um tiquinho.

Nesse cenário tão insólito, a imagem que tocou, afinal, o coração dos espectadores foi a do entregador de aplicativo, caixa térmica nas costas, atirando uma pedra. Uma imagem, portanto, com implicações que transbordam a confrontação política ela mesma. E essa é a importância da figura do entregador, percebida subliminarmente por quem se encantou com a foto: está em jogo mais do que a relação entre estado democrático e perigo fascista, entre a população livre e as forças repressivas – não que isso não seja crucial, claro; mas importa muito perceber que estamos tratando das tensões das relações de classe do país como um todo; o destino daqueles que trabalham, ocupam as cidades, tiram delas seu sustento, e carecem do reconhecimento jurídico, institucional, de sua função no tecido social. A imagem é lembrete “do” político, além “da” política, e conclama ao reconhecimento de que é preciso ampliar não só a presença de grupos sociais nas manifestações, mas as próprias pautas. Enfim: é preciso tratar do destino que estamos traçando, enquanto população.

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Há outros pontos, porém. Uma imagem se deixa apreender e analisar por elementos, combinados no seu próprio quadro, ao contrário da cadência linear de um texto. Temos aí a caixa térmica e a pedra (na verdade, dá para ver que ele segura outras pedras, já pronto para iniciar – ou continuar – um bombardeio), que já foram tratadas. Poderíamos também engrenar uma especulação um pouco anódina, mas nem por isso menos interessante, sobre a ausência de um capacete, o que parece sugerir que é um entregador ciclista, não um “motoboy”.

Mas um outro elemento é mais fecundo e instigante, graças à sua ambivalência: a máscara.

Este é um tempo em que a máscara se tornou obrigatória; e pensar que a proibição de cobrir o rosto andava em voga já faz alguns anos (vide a lei anti-véu na França). Mas há pelo menos duas vertentes interessantes para a simbologia política desta máscara específica, nesta fotografia em particular. A primeira é que um objeto de proteção, de cuidado pessoal, de cunho médico, profilático, acabou sendo revestido de um caráter político surpreendente, a partir do momento em que passou a configurar uma expressão de adesão ao isolamento social, à luta contra o coronavírus – por oposição à parcela tresloucada da população, seduzida pelo fascismo, que pretende negar seja a pandemia, seja sua gravidade.

A segunda é que cobrir o rosto se tornou prática recorrente entre manifestantes há algum tempo, tanto para se proteger dos efeitos do gás lacrimogêneo lançado pela polícia, quanto para evitar a identificação pelo Estado. Hoje, por sinal, a vigilância se dá também por algoritmos, constantemente aperfeiçoados, de reconhecimento facial. A máscara, digamos assim, tomou o lugar da bandana. De modo que, nesse objeto simples, feito de pano, dois vetores de proteção se cruzam, dois vetores de sentido político se cruzam, e esses dois cruzamentos também se cruzam entre si.

Mas há mais cruzamentos: como entregador que circula pela cidade cuja população se recolhe – ou deveria se recolher –, o trabalhador se expõe ao vírus. A máscara que o protege da contaminação, tanto quanto possível, também o protegerá, tanto quanto possível, contra o gás que eventualmente será lançado (e foi). A máscara que em outros tempos, em outras situações, poderia levar policiais a tomá-lo por um ladrão, possivelmente com consequências trágicas, hoje são a marca do “cidadão consciente” (não confundir com “pessoa de bem”).

Será que a máscara o protege de ser reconhecido, caso a imagem seja vista por algum representante da empresa-aplicativo em que se inscreveu para ser entregador, e que lhe cedeu (vendeu? alugou?) a caixa térmica? Será que, ao fotografá-lo, o profissional da France Presse o colocou sob risco de dispensa, comprometendo talvez o sustento de seus familiares, o pagamento de uma faculdade ou de um tratamento médico? É tão mais fácil escrever sobre uma imagem, especular sobre seus sentidos, quando não conhecemos a personagem, quando não sabemos nada sobre ela! No mínimo, podemos ver na máscara um punhado de significados possíveis, mas é a própria possibilidade, quando a evocamos, que nos esclarece algo sobre o real.

Também poderíamos nos concentrar no próprio fato de ele estar portando a caixa térmica. Vamos imaginar por um momento que se tratasse de uma mochila comum, contendo roupas e chuteiras usadas, ou livros e cadernos, ou um tripé dobrado e várias lentes. Ele continuaria com ela nas costas, atrapalhando seu movimento, fazendo peso? Será que ele tem medo de deixar a caixa térmica no chão e ser roubado ou ter que sair correndo, arriscando-se a ficar sem ela? Será que, perdendo a caixa térmica, ele é obrigado a ressarcir a empresa?

Cada elemento da imagem informa algo, não porque assevere ou demonstre qualquer coisa, mas porque conduz a lançar perguntas como essa. Lançar como lança o lançador? Provavelmente não, já que do outro lado não está nenhum batalhão de choque. Mas, em todo caso, a motivação de transformar os elementos da fotografia em questões que a ultrapassam vem das inquietações que já temos, com o que já conhecemos ou intuímos de nosso mundo e das condições de vida que nele vigoram. Esta é provavelmente a diferença mais relevante entre a redundância das imagens repetidas, que nos afogam, e a ressonância da imagem viva, vibrante, que nos afeta.

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Comecei com essa série sobre imagens falando em “fazer história”, e agora me vejo preso a uma espécie de obrigação auto-imposta – dessas que, supostamente, poderíamos deixar de lado sempre que quiséssemos – de ficar falando em história, quando tropeço em uma imagem que me chama a atenção e quero escrever algo sobre ela neste espaço. E no entanto, como leitor de Flusser, não posso evitar de concordar com a sentença de que a invenção da fotografia inaugurou uma era progressivamente pós-histórica. O tempo das imagens técnicas, diz ele, não é linear como o tempo histórico do texto escrito; tampouco é circular como o tempo mítico da imagem tradicional, à qual voltamos para recordar aquilo que é fixo.

A imagem técnica, diz o filósofo tcheco, emerge da irrupção a-histórica das equações matemáticas no universo da produção de imagens. Flusser se referia à química e à ótica necessárias para produzir uma chapa, mas essa afirmação é infinitamente mais válida para a imagem digital, que é integralmente algorítmica, da fotometria à compressão – sem falar na pós-produção. Ora, a equação está à parte da história, é uma igualdade matemática que, notação à parte, se supõe eterna e universal.

Isto não significa, porém, que a história desaparece com a imagem técnica. Mas significa que a imagem técnica é capaz de manipular, suspender, desviar a história. Pode ser usada tanto para desaparecer com elementos centrais de seu movimento (que Stalin o diga) como para realçar figuras marginais de seu processo, como nas imagens que celebram vitórias post factum: bandeira americana em Iwo Jima, soviética no Reichstag.

Tudo isso para dizer que cabe a quem opera o aparelho definir a relação com a história, assim como lhe cabe determinar entre a redundância sufocante, entrópica, e o sentido informativo, ressonante. Quem aponta uma lente ou monta uma estrutura gráfica define o retorno, o falseamento, o esquecimento, a perpetuação, naquela chapa a-histórica, de um sentido de história.

Esse poder, essa responsabilidade, transparece na imagem do entregador de aplicativo porque com ela o fotógrafo, em frações de segundo, injeta no ato de um trabalhador precário uma carga de significado que vem do cânone, ou seja, da história. O corpo esticado do manifestante sintetiza as tendências do mercado de trabalho, a trajetória dos movimentos trabalhistas, as aspirações dos protestos do nosso tempo, o contraste com a memória de 1968, o tensionamento da democracia brasileira. Mas isto tudo só ocorre porque sua imagem, por um breve instante, rebateu na lente de um aparelho fotográfico, nas mãos de alguém que tinha a bagagem necessária para saber quando disparar o obturador.

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Outras imagens:

Alguém que não consegui identificar tirou uma foto do lado oposto – quem sabe, da mesma pedra? Ao fundo, vemos uma pessoa tirando foto. Seria o profissional da France Presse?

O bronze de Artemísio (Zeus ou Poseidon, a princípio)

A disposição dos pés na posição do arqueiro (Gong Bu)

Banksy em Jerusalém

O savoir-faire de um sorbonnard

Jovem palestino e sua funda

Muybridge e sua série da “locomoção animal”: 1887

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A Internacional Digital

Deixo como isca para debates um trecho não publicado da entrevista que fiz com Bernard Stiegler, filósofo francês. A versão editada está no Valor de hoje. Transcrevi o trecho que segue abaixo porque me parece que tem muito a ver com algumas coisas que tenho tentado escrever por aqui ultimamente. (Claro, pombas, como leitor dele, muito do que ele diz me influencia.) Mas ele se expressa, naturalmente, muito melhor do que eu.

Stiegler é um dos principais herdeiros de meu autor de predileção, Gilbert Simondon. É também diretor do Instituto de Pesquisa e Inovação do Centro Pompidou (Paris), fundador da associação Ars Industrialis e professor em Compiègne, Londres (Goldsmiths), Cambridge e, a partir do segundo semestre, mais uma instituição superior francesa. Para saber mais sobre o sujeito, basta clicar nos links. Continuar lendo

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A classe mofadinha

Não posso deixar de compartilhar as citações abaixo, colhidas de entrevistas que fiz ao longo das últimas semanas para uma matéria sobre o consumo de cultura na classe C (a matéria saiu hoje). Elas deixam uma pulga atrás da orelha sobre o que é criar arte e cultura num país que redesenha sua pirâmide social:

Quem tem o volume de dinheiro dita as tendências. Hoje, o dinheiro está com a classe C. O que mais se vê agora são jovens louros, brancos e ricos usando ‘dreadlocks’ no cabelo. Os criadores de moda, de arte, de vestuário, de comportamento, passaram a vir de lugares que ontem eram guetos, não mais da elite.

Renato Meirelles, da consultoria Data Popular 

A arte do centro está escassa. Falta criatividade e originalidade de criação e promoção. A periferia encontrou, em diversos meios alternativos e acessíveis, uma forma de produzir, criar e promover com criatividade. Isso faz com que a arte da periferia ganhe respeito e espaço, para que os consumidores e produtores culturais se tornem capazes de pensar em novas formas de empreendimento artístico.

Marcão baixada, rapper
O ‘hype’ está em olhar o que está fazendo a classe C. A classe A está meio mofadinha e a classe B está deslocada. Não conseguem dialogar com as populações que estão subindo.  A barreira cultural está destruída. As classes abastadas dependem da nova classe média para viver. É o principal mercado consumidor e fonte de mão-de-obra. Não é mais possível fortalecer barreiras. A classe alta quer marcar sua diferença, mas essa diferença pode lhe fazer muito mal, isolando-a dos verdadeiros circuitos de produção de riqueza.
Ana Paula Kuroki e Laura Chiavone, publicitárias
Deixo os comentários a cargo de quem tenha algo a comentar.
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FHC entre o povão e a contradição

Como é pobre a celeuma em torno do artigo de Fernando Henrique! Debater se o homem propõe ou não que o partido dele “abandone o povão” e se concentre na classe média, como se fosse algum absurdo haver partidos de classe média… Um texto inteiro poderia ser dedicado à preferência do brasileiro pela polêmica mesquinha, até mesmo na política, onde as discussões deveriam ser mais penetrantes e corajosas diante da aporia inescapável (sim, a política, enquanto arte, é o bailado numa pista de aporias). A algazarra em torno do texto fernandino é um claro exemplo dessa mediocridade escolhida. Valeria bem mais a pena, por ora, destrinchar o artigo, porque ele expõe o impasse em que se enreda, com muito gosto, o partido de que o autor é presidente de honra. Façamo-lo.

Nosso ex-presidente entende seu texto como um raio-x das insuficiências da oposição, especificamente o PSDB, e uma proposta de reorientação. Entre circunlóquios, lugares-comuns e interpretações bem livres da história recente do país, FHC acaba dizendo, um pouco sem querer, algumas coisas bastante verdadeiras. Se fossem ditas por querer, seriam talvez dolorosas demais para os tucanos e seus correligionários, porque revelam em filigrana que as diretrizes peremptórias que FHC delineia para seu partido, ora, são simplesmente o que o partido, tal como se organiza hoje, não poderá nunca realizar. Em outras palavras, Fernando Henrique atirou no que viu e acertou no que não viu. Só que, como estamos falando de política, o “ver” significa “querer ver”­ – é uma maneira de recortar a realidade de um universo político, tornando-a um discurso coerente, mas coerente segundo determinados pressupostos – e o “não ver” significa “recusar terminantemente, a ponto de não poder ver”. Continuar lendo

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Entrevista: “O capeta está por todo lado”

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Quando cheguei ao local marcado, ele já estava sentado à mesa, brincando com o gelo de seu Bloody Mary. Temi que estivesse atrasado, mas ele percebeu minha perturbação e meu gesto instintivo de olhar para o relógio. Nem bem me aproximei, levantou-se sorridente e me acalmou, explicando que sempre aparecia (com trocadilho) com ao menos uma hora de antecedência para qualquer compromisso. Questão de conhecer o ambiente, explicou, com a expressão de quem quer dizer algo completamente diferente – mas não consegui divisar o que seria.

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Falando em ambiente, meu interlocutor destoava completamente daquele bar de hotel de luxo. O fraque encarnado, com duas fileiras de botões dourados, era talvez a única peça colorida no ambiente dominado por paletós e correlatos – fazia concorrência aos copos de bebida. Enquanto tomávamos nossos lugares à mesa e eu acionava o gravador, minha atenção foi atraída por sua cabeleira solta e flamejante, que emolduravam um olhar tenebrosamente sereno, para lá do cinismo.

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Jamais estive tão apreensivo antes de começar uma entrevista. Também, pudera. Não é todo dia que se recebe a incumbência de metralhar com perguntas um autêntico representante do Outro Mundo. À minha frente, Jinn Daimon, diretor de Relações Públicas do Inferno (LTDA), aguardava com ar de mofa as duas dúzias de questões que eu tinha preparado para ele. Pelos 90 minutos seguintes, seríamos só eu e um Arrenegado, frente a frente, cara a cara.

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Cabe frisar que a proposta desta entrevista partiu do próprio setor de RP da Tisnado Corporation, a holding que controla o Inferno. O telefonema chegou em plena madrugada, quando só este desavisado, de plantão, dormitava diante do terminal, à espera de que não caísse algum avião presidencial, nem morresse uma princesa, nem um terremoto sacudisse algum país e me obrigasse a trabalhar. Em vez de qualquer desses eventos estraga-soneca, um estranho convite para entrevistar um gramulhão de verdade. E o plantonista, já dominado pelo sono, concordou sem se dar conta do que fazia.

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Contra todas as expectativas, Jinn Daimon foi de uma cortesia atroz. Apesar de uma tendência a desprezar os mortais em geral e os jornalistas em particular, o das-trevas não ergueu a voz em momento algum, mesmo quando oferecia réplicas de grande rispidez, e explicou com muita paciência cada ponto de seu programa satânico. A seguir, leia os principais trechos da entrevista, concedida em pleno coração de São Paulo.

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Em primeiro lugar, por que este lugar para a entrevista?

É assim que funcionamos. Você pensa, a gente faz. Olhe em volta: metade das outras mesas tem pilantras fazendo negociatas. Nas outras, prostituição, adultérios, mafiosos tomando V.S.O.P. com dinheiro sujo. Não é assim que vocês imaginam o inferno, cá neste vale de lágrimas? Pois então, desejo-lhe as boas vindas. Eu só estava querendo agradar e é muito agradável ver suas expectativas confirmadas. Sinta-se um felizardo.

Então o inferno não se parece em nada com isso?

Custo a crer que seus leitores estejam interessados na aparência do inferno. Desculpe invadir a sua mente, mas sei bem que não é isso que você quer perguntar. Por favor, não faça cerimônias, eu não sou nenhuma sumidade infernal. Sou apenas um espírito de negócios. Sou um profissional do mercado. Vamos, solte suas perguntas.

Por que o inferno decidiu vir a público?

Como qualquer outro grupo empresarial, a Tisnado Corporation traça, a cada temporada, um planejamento de longo prazo. Nosso foco atual é na abertura com o público. Buscamos maior visibilidade e transparência. Somos a maior central de vileza no universo e queremos que o mercado saiba valorizar nosso produto. Estamos cansados de concorrentes reivindicando nossas atividades e atraindo investidores que deveriam ser nossos.

Quem andou reivindicando maldades demoníacas?

Você sabe. Ditadores, bispos, bandas de heavy metal… Essa molecada toda.

Os negócios do inferno estiveram ameaçados por essa concorrência mais… visível?

Imanente. Nós dizemos imanente. O Inferno é transcendente e a concorrência é imanente. Entendeu? O que costumava ser nossa vantagem passou a ser uma desvantagem, muito em parte por causa de alguns erros de estratégia que nós mesmos cometemos. Sim, nossos negócios foram abalados. Mas nada irreversível, graças às Profundezas. Por sinal, eu assumi o cargo com exatamente essa missão: reverter a derrocada do inferno.

Dizia-se, há alguns anos, que “a estratégia mais inteligente do tinhoso foi convencer o mundo de que ele não existe”. Essa estratégia existiu mesmo ou foi só um dito popular?

Fico contente que você tenha feito essa pergunta. Demorou, mas chegou. Você é muito tímido. Olha, faço questão de que você coloque no texto que, nessa época, eu não era responsável pela área de RP no inferno. Eu ainda era estagiário. Não quero ter meu nome associado a esse fracasso retumbante e mais que anunciado.

Parece uma estratégia sagaz… Se as pessoas pensam que o Coisa-Ruim não existe, elas ficam livre para fazer o mal, certo?

Você claramente não entende nada sobre o funcionamento do mal! Deveria se preparar melhor antes de fazer uma entrevista.

O mal não é mesmo minha especialidade…

Pouco importa. Veja, vou lhe dar um exemplo banal, mais banal impossível, de como nossa marca foi apropriada pelos outros. Até a coisa mais medíocre que existe: a indústria do entretenimento, que se considera infame, como se alguém pudesse nos igualar em infâmia… Você certamente viu a trilogia de Guerra nas Estrelas na infância. Pois bem, aquela famosa frase de Yoda: “Fear leads to anger, anger leads to hate, hate leads to suffering”… lembra?

Claro, perfeitamente… É a descrição do caminho para o lado negro da força… o que vocês têm com isso?

Ora, meu filho! George Lucas roubou esse tema de nós! Lado negro da Força, bah! Há seis mil anos esse dito está na porta da empresa!

Não era “Deixai toda esperança, vós que entrais”?

Isso é nos pontos de venda. Estou falando da sede social. Enfim, você é um despreparado. O que quero dizer é que, desde que a humanidade é humanidade, nosso trabalho consiste, com algumas variações, em deixar as pessoas com medo. Por quê? Ora, porque o medo leva ao ódio, o ódio ao sofrimento, e o sofrimento traz o cliente para nossos braços! Conquistamos legiões e legiões de almas assim, a ponto de tomar empréstimos no Banco Outro-Mundial para expansões urgentes. É a estratégia dos quatro “m”: Medo, Medo, Medo e Medo. Está em qualquer manual de marketing.

E por que isso deixou de funcionar?

Convencer as pessoas da nossa inexistência foi o maior erro. Aliás, eu fui contra. Sem risco de sofrer os castigos da danação eterna, as pessoas vão ter medo de quê? O resultado não poderia ter sido mais desastroso. A humanidade – felizmente não toda ela, mas pelo menos uma maioria pertencente a uma certa geração – resolveu ser feliz. Assim, sem mais nem menos. Passaram a agir em liberdade, a buscar diálogo, a tentar resolver seus próprios problemas, a compreender e aceitar o outro, a questionar seus preconceitos… Chegamos a ficar com 70% de capacidade ociosa! Imagine você que houve gente que se meteu a buscar a paz, a paz de fato, quer dizer, na Terra, entre pessoas vivas, em vez de proceder com violência em nome de uma paz idealizada e atribuída ao outro mundo! Quando as pessoas perderam o medo do inferno, elas perderam no instante seguinte a capacidade de odiar! Foi a ruína para nós, você imagina!

Como isso se traduz em valor de mercado?

Pensávamos em fazer um IPO. Desistimos, não ia trazer nada. Além do mais, nosso mote foi parar em filmes de ficção, como já falei. Coisa mais humilhante… Até a figura de nosso CEO foi representado ficcionalmente, de uma maneira até ridícula… Jack Nicholson, Al Pacino… Nunca chegamos tão baixo. Felizmente, outras companhias do mundo espiritual foram tão afetadas quanto nós. Sem pensar em demônio, quem se preocuparia em seguir cegamente os preceitos de algum grupo religioso? Assim como nosso mercado de vilania, o mercado de orações minguou, minguou… Qualquer pé-de-chinelo poderia fazer uma oferta hostil na Bolsa e levar o Céu inteiro. Só que foi uma quebradeira geral. Nem os pés-de-chinelo escaparam.

E quando a luz vermelha se acendeu…

Então houve uma reunião emergencial com representantes de todo o universo desencarnado. Tinha serafins, grandes figuras do Limbo, espíritos malignos de todas as levas… Foram meses e meses de discussões levadas em poucos segundos, de maneira não raro áspera, com idas e vindas… Não tenho muito como falar porque não estava presente, só vi os autos depois de minha nomeação para o cargo que ora ocupo.

Como foi essa nomeação?

Tanto no céu quanto no inferno decidiu-se que já passava da hora de injetar sangue novo – sangue, aqui, é uma metáfora, você compreende… – nos negócios. Toda uma geração jovem e com muita vontade de trabalhar foi promovida para os cargos principais. Eu sou um representante dessa geração. Comigo subiu, por exemplo, o Arcanjo Raul nas finanças do Céu, Alexandre o Grande no Ministério da Defesa do Limbo… e tantos outros. O Purgatório foi customizado, construímos resorts na beira do Lethê, os Campos Elísios deixaram de cobrar consumação… Foi uma verdadeira revolução. Resolvemos tornar o Outro Mundo mais jovem, dinâmico e atrativo para as gerações que cresceram vendo televisão. Tínhamos chegado a um ponto em que a publicidade causava mais mal às pessoas do que nossos próprios agentes, os súcubos e íncubos. Isso era ridículo.

Quais foram suas principais medidas?

Tudo muito simples. Posso resumir minhas decisões em poucas palavras: nada de esquecimento do Belzebu. É preciso que as pessoas o vejam em toda parte. Onde está, onde não está, onde já esteve, onde nunca estará. É claro que isso nunca funcionaria sem a colaboração estreita com o Purgatório, o Céu e o Limbo. Percebendo que a situação era crítica, todos decidiram juntos que não se poderia mais separar o medo do ódio. Era preciso atacar em ambas as frentes ao mesmo tempo, caso contrário ambos se consumiriam sem jamais chegar ao sofrimento que leva ao mal e ao inferno. Todos os representantes na Terra das instâncias do Lado-de-Lá agiram em concerto para instilar ódio, preconceito, pavor, ressentimento, radicalismo e cinismo nas almas dos viventes. Eram pastores pregando, vendilhões negociando, políticos acusando, jornalistas vociferando, grupelhos se explodindo… Uma festa!

Isso não configura um cartel?

Meu filho, deixe de ser ingênuo. Você acha que alguma agência reguladora teria a força de combater um monopólio envolvendo o Céu e o Inferno? Fique contente por ainda não ter havido uma fusão. Aliás, digo isso em off: as negociações estão bem avançadas! [N.B.: o jornalista não respeita off demoníaco.]

Vocês já têm dados sobre o retorno dessa estratégia?

Não poderiam ser melhores. Você não vê a virulência com que a política tem sido feita em alguns países? Você não ouve os berros ensandecidos de determinados articulistas? Você não sabe o que anda sendo feito no Vaticano e em outros grandes centros religiosos? É magnífico! Nossos vestíbulos estão abarrotados, taxa de ociosidade zero vírgula zero vírgula zero vírgula zero. Pensamos até em contrair outro empréstimo no Banco Outro-Mundial para novas expansões. Só não batemos o martelo ainda porque as taxas de juros andam que nem a água benta. O projeto de IPO voltou a todo vapor. O céu também está contente, porque, mesmo se a grande maioria das almas vêm parar conosco, eles conseguem lucros fabulosos no mercado de derivativos de orações, súplicas e exortações… Enfim, voltamos ao jogo.

Que recomendações você daria para alguém que quer escapar da perdição eterna?

Deixe disso, meu filho… Estamos de braços abertos para todos. Tema, odeie, sofra, e venha para este novo e excitante mundo das punições dantescas!

E para quem insiste em não pensar nessas coisas?

Ah, os resistentes! Ah, os lúcidos! Ah, os ponderados! Esses chatos. Digo o seguinte: o demônio está em todo lado. Obama é o demônio! Lula é o demônio! Fernando Henrique é o demônio! Os EUA são o demônio! O Islã é o demônio! A Europa é o demônio! Os católicos são o demônio! Os ateus são o demônio! Os protestantes idem! Madonna é o demônio! Canto gregoriano é o demônio! Umbanda é o demônio! O mercado é o demônio! O Estado é o demônio! Sua sogra é o demônio! O demônio é o demônio!

Obrigado, e…

Espere! O demônio está no álcool! O demônio está no chocolate! O demônio está na gasolina! O demônio está no sexo! O demônio está nas guitarras elétricas! O demônio está no transporte público! O demônio está na pequena propriedade! O demônio está em Marx! O demônio está na ciência! O demônio está na pobreza! O demônio está na imprensa! Nas taxas de juros! Nos telefones celulares!

Boa noite, vamos ter de encerrar…

Você é o demônio! Eu sou o demônio! Nós somos! Eles são! Quando você escova os dentes, é demoníaco! Quando se masturba, é demoníaco! Quando amarra o cadarço, demoníaco! Quando passa perfume, demoníaco…

*

Antes que ele terminasse de elencar todos os lugares em que devemos crer piamente (com trocadilho, por favor) que está o demônio, a bateria do gravador acabou. Ele pigarreou, terminou seu Bloody Mary, explicou que a conta já estava paga e desapareceu.

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Veja, a indignação e o jornalismo mané

Um amigo me chama a atenção para a capa da penúltima edição da Veja. Um recado aos “senhores feudais de Brasília”, lembrando que todos somos iguais perante a lei. O recado é dado por “nós, pessoas comuns”. E, de fato, nós, as pessoas comuns, estamos representados pelos rostos “anônimos” (por falta de termo melhor) que circundam o círculo onde figura o texto, bem ao centro da tela. Ao alto, o mantra inaudito, certamente criado na redação, em pleno calor do fechamento: “Basta de impunidade!”

Esse meu amigo comenta, aos suspiros, como se um grande peso tivessa saído de seu peito: “Eles lembraram bem. Isso é uma grande verdade!” É fato. Não há como discordar do 5º artigo da Constituição, a não ser que sejamos abertamente fascistas. Tampouco dá para deixar de se comover com os retratos de tantos compatriotas, lado a lado, indignados com essa corrupção sufocante que, do dia para a noite, se abateu sobre os feudos de Brasília. Sorte que os Estados e municípios seguem incólumes; caso contrário, seria o horror, o horror. E quem o diz não sou eu, é Joseph Conrad.

Traduzindo, o primeiro impulso que tive ao ver a imagem dessa capa foi certamente o mesmo da maioria das pessoas que a avistaram na banca: “bela lembrança”, pensei. “Capa muito bem pensada”. Não tenho a menor dúvida de que foi o mesmo que pensou o desenhista da capa e, naturalmente, o editor da revista, enquanto discutiam: “Que tal uma coisa bem impactante”, sugere um; “Sim, uma coisa simples, mas um recado claro e direto”, empolga-se o outro.

Depois, porém, vem o segundo impulso, que costuma, justamente, ser mais confiável e mais sábio do que o primeiro. Passado o impacto inicial da, vamos dizer assim, ousadia estética, vem o interesse de leitor, que não tem tempo a perder, nem dinheiro sobrando, e não pode comprar qualquer frivolidade que se publique. Pois qual é o interesse jornalístico dessa capa da Veja? Não li a matéria; a imagem da capa poderia ser um ótimo incentivo para isso… mas não foi.

Os brasileiros estão indignados com a corrupção? Só faltava não estarem. Minha primeira lembrança do Brasil foi a descoberta de que as cédulas de dinheiro tinham números de quatro e até cinco dígitos. Minha segunda lembrança foi a indignação com a corrupção. Desde então, estivemos indignados, seja com Maluf e Pitta, seja com compra de votos para a reeleição, seja com Garotinhos e Garotinhas, seja com mensalão, com as brigas de ACM e Jáder Barbalho, com Severino Cavalcante… Agora, em junho de 2009, vem a Veja, mui gentilmente, me informar que o brasileiro está indignado com a corrupção e a impunidade.

Do breve tempo em que estudei e trabalhei com jornalismo, guardo algumas poucas lições, mas nem por isso menos valiosas. Uma delas é que a notícia está no que aconteceu, não no que deixou de acontecer: “A polícia ainda não sabe quem matou”, “O país pode vir a ser invadido”, “O filme está em cartaz há algumas semanas”, nada disso é notícia. “O brasileiro está indignado com a corrupção”, então, é menos notícia do que todos os exemplos acima. No entanto, é a capa da revista de maior circulação no Brasil…

A princípio, faz parecer que não aconteceu nada durante a semana. Por exemplo, se um jornal, e isso só deveria acontecer com quotidianos, publica como manchete que o prefeito inaugurou uma escola, pode ter certeza de que o dia anterior foi uma pasmaceira só, provavelmente feriado no mundo inteiro, com todos os ditadores tomando Piña Colada no sol de Riad. Agora passar uma semana inteira sem acontecer nada digno de notícia no Brasil inteiro? Desculpe, mas…

Ano passado, escrevi aqui sobre Sarkozy, presidente da França, atribuindo à figura uma posição destacada numa corrente política bastante contemporânea, que é a da “política mané”. O princípio é muito simples: trata-se de uma forma de fazer política que leva em consideração o desinteresse (ou a incapacidade) do mané contemporâneo por debater as grandes questões de seu mundo; mais ainda, a política mané leva em consideração que o mané contemporâneo também não crê que seus representantes sejam capazes de debater e tomar decisões em relação aos problemas complexos do nosso tempo (como aliás de qualquer tempo). Para bajular e seduzir o mané, o político precisa se rebaixar a seu nível, pelo menos em aparência. Mas como em política a aparência conta muito (basta pensar na aparência de todo grande líder), ele acaba se reduzindo mesmo.

Tudo isso para argumentar que não é só no campo das disputas de poder que a cultura do mané se impôs nas últimas décadas. A capa da Veja, nesse sentido, é um exemplo ótimo do que poderíamos chamar de “jornalismo mané”. A imagem e a frase impactante falam imediatamente ao instinto de indignação e de simpatia de cada um. Na superfície, é a matéria comunicacional perfeita: transmite sua mensagem imediatamente.

Acontece que a função de uma revista não é transmitir mensagens. Quem transmite mensagens é a publicidade, não o jornalismo. O jornalismo, pelo menos em tese, transmite informação (uma definição dessa palavra não cabe aqui, mas ainda hei de escrever sobre isso). E qual é a informação transmitida pela capa da Veja? Que o brasileiro está indignado com a corrupção. Só resta esperar uma matéria informando que Pelé foi o rei do futebol.

Digo que isso é um tipo de jornalismo mané porque não se comunica com a necessidade humana de saber o que está acontecendo, ou de obter recursos para tomar suas decisões. A única comunicação que a capa da revista faz é com nosso instinto primário, brutal e um tanto quanto tolo de ver confirmados nossos sentimentos abstratos, difusos, indefinidos. É a descoberta de um filão: ganhar dinheiro quando as pessoas dizem: “é isso mesmo!” ao ver uma imagem numa revista. Com isso, elas nem precisam recorrer à outra necessidade, aquela de se informar e ser capaz de tomar decisões abalizadas. Afinal, “se a imprensa, com seus sábios (tão sábios), concorda com o que eu já vinha sentido, quer dizer, pensando, então eu tinha razão desde o princípio”. Eis o raciocínio inconsciente do mané, de que o jornalismo de mesmo nome se aproveita, como a política mané e, por que não, a publicidade mané.

Vejamos (sem trocadilho) o caso de jornais populare(sco)s, como esses que se vendem a 50 centavos por aí, filhotes dos célebres e lamentáveis tablóides britânicos. O que vemos nas capas: às vezes, serviços fundamentais, como aumentos de impostos ou formas de resgatar o FGTS, no que eles fazem muito bem. Mas o mais comum é que eles tematizem: o futebol, depois de um jogo importante; a violência, quando dá pra estampar alguma foto com sangue; celebridades, quando elas aparecem mortas ou nuas; e se não sobrar nenhuma das alternativas acima, mulheres gostosonas. Manchete: “Fogão arrasador” (referindo-se ao Botafogo, único time-eletrodoméstico do Brasil); “Michael já era”; “Ela gosta de rebolar gostoso”; ou outra frase cretina qualquer. Seria isso jornalismo mané?

Não. Isso é sensacionalismo apenas. Nem chega a ser jornalismo, a não ser nos casos dos serviços já mencionados. O jornalismo mané acontece quando alguém resolve tomar esse mesmo sensasionalismo, essas mesmas imagens impressionantes, esse mesmo texto banal, sucinto e sem informações, e chamá-lo de jornalismo. A Veja, afinal de contas, ainda se considera um semanário importante, e não apenas por causa da circulação (caso contrário, o veículo mais importante do Brasil seria o Extra, do Rio de Janeiro). Ao bajular a estupidez do leitor, em vez de exercitar sua inteligência, ela compromete seu próprio futuro, ouso prever.

Muito se culpa a internet pela crise da imprensa escrita. Verdade, mas só metade da verdade. Tão importantes quanto os fatos são as reações aos fatos, a não ser aqueles aos quais é inteiramente impossível reagir, como um tiro na testa. Vendo o público esclarecido fugir para o mundo online, levando consigo a circulação e as receitas publicitárias, o que decidiram os meios impressos, pressionados por todos os lados? Ora, decidiram aumentar o máximo possível a base de leitores, incorporando tanto quanto desse os manés com preguiça para ouvir argumentos, sobretudo aqueles que porventura se oponham a seus instintos. O problema é que esse tipo de mané fica contente de ver a capa da revista na banca, não precisa comprá-la… Ademais, todo tipo de imagem e texto que bajula sua estupidez é tão encontrável na internet como qualquer outra coisa. Então para quê gastar dinheiro com revista?

Minha ingenuidade não vai tão longe, a ponto de achar que os editores da Veja não saibam disso tudo que acabei de dizer. Mas se alguém me perguntar se acho que eles têm outros motivos (leia-se interesses) para fazer uma capa tão superficial e pouco jornalista, terei de responder que não faço ideia, o que é a mais pura verdade; afinal, não disponho de dados sobre isso. Seja como for, prefiro deixar a cada um que julgue por si próprio, mas que julgue com raciocínio, não com frases de efeito, porque disso, meu amigo, já estou cheio até aqui.

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Entrevista não de todo impossível

O que segue são as palavras de um jovem do sexo masculino, entrevistado na penumbra, para garantir o anonimato, e com a voz embaralhada eletronicamente, para evitar a identificação. É um depoimento “real”, colhido durante uma entrevista informal sobre as transformações de que a nova geração é, ao mesmo tempo, vítima e protagonista. As declarações foram tomadas em meados do último ano, mas o entrevistado, empregado numa corretora da valores da Bovespa, só hoje autorizou sua publicação, por temor de represálias que não foram especificadas.

* * *

Que jornal você anda lendo?

– Na verdade, desde que saí da casa dos meus pais, nunca assinei um jornal…

– Desculpe interromper: quando foi isso?

– Foi uns… cinco, seis anos atrás. Eu vi que já podia me sustentar, se fizesse alguns sacrifícios, mas minha renda era baixa demais, o aluguel um pouco salgado, e ainda tinha a gasolina, a cerveja… Acho que dá pra dar uma idéia. Não é que eu não gostasse de ler jornal. Ao contrário, eu adorava, lia desde criança, o Kfouri, o Nassif, o Cony, todo mundo. Mas eu precisava economizar e achava que poderia ler os jornais que chegavam no trabalho. Só que… assim…

– Não é a mesma coisa.

– Pois é. Ler em casa, tomando café… poder dobrar, separar os cadernos, sujar o papel de comida… E, no trabalho, você tem que manter uma certa postura, quer dizer… Você está lendo, não é como em casa, porque… Lá, você lê jornal e, no serviço, você lê o que está no jornal, entendeu?

– Em casa você não lê o que está no jornal?

– Não é isso, acho que me expressei mal. Em casa, o jornal é todo seu, mesmo que você divida ele com a família. E é uma coisa só, não é só um monte de notícias e colunas. É diferente, quer dizer…

– Mas as notícias são importantes também, não? Isto é, a informação. Como você fazia para se informar?

– É isso… informação, sim, claro, eu tinha. Eu via o jornal no trabalho e, para as coisas mais especializadas, do mercado, a gente recebe um clipping. Acho que o jornal em si era para saber um pouco do resto do mundo. Futebol, por exemplo.

– E a internet?

– Ah, sim, eu usava muito, claro. Mas ainda não era um substituto para o jornal, como é hoje. Quase não tinha notícia de graça, o pagamento não era seguro, aliás, continua não sendo, e os blogs não eram nada confiáveis.

– E agora…

– Ah, agora a internet é meu contato com o mundo, né? Nem TV, eu assisto mais!

– E você se considera um autêntico representante da “geração Y”?

– Nunca entendi direito o que isso quer dizer…

– A geração de pessoas sempre conectadas, que usam MSN, Orkut, Facebook, iPod…

– Não sei, acho que não. Até que eu não sou tão conectado assim. Acho que, para alguém que acorda todas as manhãs há décadas e vai buscar o jornal na porta, eu devo parecer um monstro informatizado, viciado em internet… Mas não sei, não me sinto assim. Aparece tanta coisa nova na internet, todo dia, que eu me sinto o maior dos reacionários com meu velho e-mailzinho. Nem blog eu tenho! E pior… não escrevo daquele jeito estranho, como se chama, mesmo?

– Mas é pela internet que você se informa, conversa, se diverte…

– Não é bem assim. Eu prefiro mil vezes conhecer gente no bar que na internet. Eu converso pelo Skype e pelo MSN por pura conveniência, isso não quer dizer que seja minha primeira opção…

– Você já fez amizades pela internet?

– Já, muitas! Minha namorada, aliás, eu conheci num fórum de discussão do Iron Maiden.

– Você começou nossa conversa dizendo que gostava de jornais, mas nunca assinou…

– Compro na banca, de vez em quando.

– Quando, por exemplo?

– Quando meu time ganha campeonatos, por exemplo. É uma lembrança que a gente tem que guardar. Não é a mesma coisa imprimir do site, concorda? Ou então, às vezes uma capa me seduz, tipo… quando promete uma série de textos com um tema importante. Aí eu compro como se fosse uma revista especializada.

– E como é essa experiência? Você disse que ler o jornal no trabalho “não é a mesma coisa”…

– É mesmo. Eu tinha mais coisas para dizer sobre isso. Nos fins-de-semana, eu vou almoçar com minha mãe. Família italiana, sabe como é… E então, antes do almoço, eu me sento no sofá e fico lendo o jornal que ela assina. E é nessas horas que eu sinto o quanto é diferente…

– Melhor?

– Não é por aí… é diferente. Às vezes, eu leio versões de jornal na internet que são a edição impressa escaneada. E não é a mesma coisa. Acho que eu já disse que o jornal é uma coisa só… Ele é um corpo inteiro e eu tenho a sensação de que, quando estou lendo jornais, mesmo que eu pule partes, depois volte, pare a leitura de um artigo no meio, quer dizer… o que quer que eu faça, estou com um jornal na mão… Nunca tive essa sensação com notícias que li na internet. No computador, eu sempre busco a notícia individualmente, ou o artigo de opinião, ou sei lá. Não é que seja melhor ou pior, é diferente, só isso.

– Mas você está mais acostumado com…

– O jornal, porque cresci com ele. É verdade, eu me sinto mais confortável lendo jornal, mas não é disso que estou falando. O jornal é cheio de coisas que eu não quero saber, que eu não tenho a menor vontade de ler, não me interessam, mas que estão ali… E mesmo quando eu passo por cima, não olho, enfim, não posso fazer nada contra as partes que não me interessam. Elas existem e pronto. São as partes do mundo que eu não controlo nem de longe, e nem por isso deixam de existir.

– Você se sente mais humilde, é isso?

– Acho que você está colocando palavras na minha boca [riso], mas é isso, uma lição de humildade. Só que o melhor de tudo é que às vezes eu acabo até lendo alguma dessas notícias que não me interessam e eu nunca tinha tido noção do quanto isso é diferente, quer dizer… pra mim é diferente, para os mais velhos é a coisa mais banal do mundo. Quer ver? Outro dia, meu time ganhou um campeonato importante e eu comprei o jornal. Na mesma página que dava notas aos jogadores, embaixo, tinha os resultados do turfe. Eu sempre achei essa palavra engraçada, falando nisso, quer dizer… Corrida de cavalo se chama turfe… Mas olha só que estanho… Eu não sei nada sobre aqueles cavalos, mas só de ver os resultados, números, nomes de puro-sangue, tudo aquilo, comecei a viajar. Fiquei imaginando aquelas pessoas todas, aposentados, desempregados, viciados, todo mundo nos fundos do jóquei, fazendo fila para apostar, rasgando a ficha quando perde dinheiro… E eu nem estava prestando atenção, quer dizer… puxa, entende?

– Mas a net é toda interligada, uma coisa leva à outra…

– Não sei até que ponto tudo é interligado… O que isso quer dizer, “interligado”? Sei lá, só sei que quando quero ver uma notícia, não vou ficar clicando em todas as palavras sublinhadas que aparecem. Olha, não quero parecer nostálgico, mas só vou dizer uma coisa: agora que todo mundo diz que os jornais estão morrendo, eu começo a ter arrependimentos. Se tivesse alugado o apartamento num bairro mais barato quando fui morar sozinho, poderia ter sobrado dinheiro para tomar mais cerveja e, ainda, assinar um jornal e uma revista. Agora é tarde, né? Os jornais vão acabar e, de toda forma, já ficaram tão ruins, não acha? Mas que sinto uma certa pena de não receber aquele resumo do mundo todo dia em casa, pode ter certeza.

– Mas esse resumo do mundo, como você diz, não é uma coisa meio autoritária? Alguém decidiu o que você leria e é isso que você vai ler. A internet costuma ser considerada mais democrática, porque tem a coisa da interatividade…

– Claro, claro, sem dúvida. É uma coisa totalmente diferente. Mas eu confesso que não me sinto capaz de decidir eu mesmo como vou resumir o mundo das notícias. Precisa ter uma formação muito fuderosa para saber escolher por conta própria, quer dizer… Não que isso seja muito diferente de como as coisas eram antes, com os jornais, né? Os donos do jornal escolhem como as coisas vão ser ditas e você precisa ter uma formação muito fuderosa para não cair na manipulação… autonomia não é para qualquer um, né?

– Mas na internet o jornalista não pode só dizer o que quer… O leitor responde, reage, contradiz o autor…

– Você está falando dos comentários das notícias? E dos posts? Tem alguma coisa boa aí?

– Claro que tem, tem coisa muito boa…

– Pode ser. Mas como é que eu vou saber? Entro na página do jornal, tem a notícia, e embaixo tem “dona fulana” e “seu sicrano” criticando as informações do jornalista. Que base eu tenho para julgar? E se o comentarista é muito bom, sei lá, com certeza ele só vai embaralhar mais a minha cabeça, porque ele sabe mais do que eu naquele assunto…

– Mas você não pode negar que isso te abre um campo de possibilidades. Não é só aquela voz única, senhora da razão, disseminando sua sabedoria. Do outro lado, eventuais objeções e emendas vêm à tona muito mais facilmente…

– Não estou negando. Com certeza, não estou negando. Mas continuo achando que só quem tem uma formação muito fuderosa consegue se orientar no meio de tanto debate!

– O que você quer dizer com “formação muito fuderosa”?

– Putz… sei lá. Saber tudo sobre tudo, vai! [riso]

– A possibilidade de todo mundo escrever no seu blog, comentar no blog dos outros, intervir nas notícias dos jornais, nos verbetes de dicionários, nos artigos da Wikipédia, além de poder fazer suas próprias reportagens por podcast, por vídeo à la Youtube, postar as próprias fotos, tudo isso você não acha que torna mais difícil a manipulação da opinião e da informação?

– Olha, você está falando com alguém que trabalhou a vida inteira no mercado financeiro. No meu metiê, a informação pode enriquecer ou empobrecer alguém em poucos minutos. Um telefonema pode derrubar uma empresa, uma frase no Twitter pode arruinar um banco, qualquer boato pode me levar a ter um ataque cardíaco. Eu acho o seguinte: quem tem mãos manipula. Quem tem mãos grandes manipula muito. Não é perfeitamente lógico? Dificultar a manipulação? Só se for mais difícil se afogar no meio do Pacífico que numa pia.

– Mas então nada muda?

– Como não? Sair de uma pia e cair no oceano não é uma mudança? [risos] Agora, falando sério, estou com medo de parecer um conservador renhido nessa história. Logo eu, que trabalho com dois monitores na minha frente, com a cotação de várias bolsas e commodities em tempo real. Já me aconteceu de intermediar uma operação que mudou o controle acionário de uma empresa, tudo bem que mais para pequena, mas foi via comunicação instantânea. Opa, estou na defensiva…

– É uma questão de escala, pelo que entendi…

– Não! Com certeza, não. Se fosse assim, eu acharia que ler jornais e ler o que está nos jornais é a mesma coisa, e ler notícias pela internet, idem. Lembra aquelas imagens dos operadores de bolsa fazendo gestos com a mão, empurra-empurra, segurando um telefone gigantesco no ouvido? Será que é só uma questão de escala que isso exista cada vez menos? Eu acho que não, quer dizer… Olha, se tem uma coisa que eu aprendi vendo as ações mudarem de mão é que nunca, nunca, nunca é só uma questão de escala. Se parece que é só quantitativo, é porque ainda não se chegou ao ponto de sela, quando os sinais se invertem. Sabe?

– Então você admite que é uma revolução.

– Posso perguntar aos universitários? [risos] É uma revolução, OK, mas isso significa que o mundo vai ter que aceitar ficar de ponta-cabeça [N.T.: de cabeça para baixo] por algum tempo. Vai encarar? Daqui a pouco ninguém mais vai sentir saudade daquele jornal inteirinho, cheio de coisas que a gente não queria e não esperava, porque pode conseguir exatamente o que quiser, quando quiser, na internet. Será que só eu vou ser o ultrapassado?

– Bom, toda a geração mais velha…

– Claro, claro, mas você sabe: “no longo prazo, estaremos todos mortos”. Isso, quem disse foi Keynes. Mas eu não sou keynesiano, viu?

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Houellebecq e sua ilha

Acabou de sair por aqui um filme dirigido por Michel Houellebecq. Fiquei curioso para vê-lo, embora a somatória de todos os trechos seus que li não dê um livro inteiro. E não li por birra, simplesmente. Sempre tive a impressão de que seu jeito polêmico era forçado. A antipatia é uma das estratégias de marketing mais exploradas pelos autores hodiernos, não me pergunte a razão. Temendo que minha opinião sobre o escritor contaminasse minhas impressões sobre sua obra, me abstive de abrir um volume de Houellebecq. Mas fui ver o filme, graças a uma promoção de início de outono que atirou lá para baixo o preço dos ingressos de cinema em Paris. Passamos a tarde inteira de domingo entrando e saindo de salas de exibição, numa maratona que começou com uma comédia musical americana e terminou com uma ficção científica metida a conto filosófico. Se o sentido tivesse sido o oposto, talvez tivéssemos dormido melhor, mas o fato é que fechamos a noite com as imagens desiludidas de A possibilidade de uma ilha (La possibilité d’une île).

Em poucas palavras, o que para alguns é fundamental, mas para mim não tem importância alguma: o filme é bom? Não chega a ser. A ironia amarga da prosa de Houellebecq mal dá o ar de sua graça, assim como a condensação do tempo e da identidade individual, pedra de toque do livro que deu origem ao filme. As personagens não têm carisma, ao contrário do livro, em que mesmo o grande líder religioso é um cínico desiludido. (Antes que me pergunte como sei disso, se não li o livro: folheei-o.)

Agora que estou livre da obrigação de avaliar o filme, posso entrar nos assuntos muito mais interessantes que ele pode gerar. Em primeiro lugar, fico imensamente feliz de saber que ainda é possível fazer filmes assim. Uma linguagem longe do convencional, longos planos e pausas, atores imóveis, ângulos oblíquos, cortes inesperados. Como nos bons tempos do cinema. É verdade que, apesar das entradas quase gratuitas, a pequena sala estava praticamente vazia. Não mais de oito pessoas, enquanto no tal musical americano (muito divertido, por sinal) saía gente pelo ladrão de uma sala muitas vezes maior. Mas isso não quer dizer nada. Bem ou mal, Houellebecq conseguiu dinheiro para adaptar seu próprio livro da maneira como bem entendesse, e isso é sinal de que ainda existe alguém disposto a investir nas empreitadas arriscadas. Certo dia, alguém deu uma soma considerável na mão de Fellini para ele imprimir no celulóide seus sonhos absurdos. Não sei quem foi o empresário visionário, mas garanto que ficou rico. Tampouco sei quando surgiu o consenso de que o público é formado única e exclusivamente por gente sem imaginação e dopada pelas fórmulas consagradas de Hollywood. Só sei que é uma lástima.

Mesmo não sendo o caso de Houellebecq, existe uma legião de cineastas cheios de boas idéias e muito talento, jovens, arrojados, inventivos, sedentos por uns caraminguás para rodar o primeiro longa. Esse pessoal não é invenção minha, qualquer festival de curta-metragens revela um caminhão de gente interessante. Entre eles e as obras-primas da próxima geração, o único obstáculo é o investidor, que precisa perder o medo do fracasso, para aprender a apostar no longo prazo. Foi assim que os empreendedores do passado ficaram ricos; não foi pela repetição temerosa de velhas fórmulas cansadas e disseminadas ad nauseam.

* * *

Agora, ao segundo ponto que eu gostaria de levantar. Dizem que Houellebecq tem uma personalidade desprezível. Eu não teria como avaliar. Mas é certo que uma das coisas interessantes sobre sua obra literária é a dificuldade de distinguir o que é opinião sua e o que é pensamento das personagens. Os protagonistas de seus livros costumam ser pessoas vis, baixas, rasteiras, vulgares, cínicas, inescrupulosas e por aí vai. Mas a tinta consegue, com o concurso de uma certa habilidade estilística, misturar os traços de forma tão indiscernível, que idéias e conceitos passam por entre os dedos do julgamento, como areia fina. É Houellebecq o racista, ou seu herói? Autor ou personagem, qual é o cretino? São exemplos das discussões que os literatos gostam de ter a respeito do escritor.

Pois bem, acontece que o próprio escritor resolveu colocar na tela um de seus livros. Deve ser o sonho de muitos artistas, imagino. É muito raro que um filme seja melhor do que o livro de que é adaptação, a não ser nos casos em que o texto original é um romance de quinta, e a resultante cinematográfica, uma obra-prima. É o caso de Psicose, por exemplo. No mais das vezes, vale mais a pena perder uns dias sobre o papel do que um par de horas diante da tela. Logo, o melhor é criar algo inteiramente diferente do original, que não possa ser comparado a ele, que provoque no máximo uma ligeira reminiscência.

É que, dizem, uma imagem vale por mil palavras. Eu estaria mais inclinado a considerar que uma imagem vale por uma imagem; uma palavra, por uma palavra. São linguagens que atingem campos diferentes da nossa sensibilidade. Uma cena não é o mesmo que a descrição da cena, nem é o mesmo que sua representação. Assim, alguém que assista a um filme com a cabeça de um leitor está fadado a não compreender absolutamente nada do que tem pela frente.

É nessa distinção que Houellebecq entrega o ouro. A grande vantagem do texto escrito é que, embora demore muito mais tempo para ser absorvido do que o visual, deixa sempre um espaço enorme para a imaginação. Por mais detalhada que seja uma descrição, ela não entrega pronta a figura descrita, como acontece na tela. Determinadas idiossincrasias do autor conseguem manter-se veladas, se for essa sua intenção. A imagem exige cuidados maiores. A escolha dos atores tende a reproduzir os mecanismos inconscientes de quem os escolheu, e no caso de A possibilidade de uma ilha, o diretor é o próprio escritor. Paisagens, cores, cortes, tudo isso é parte do discurso, tanto quanto vírgulas, parágrafos e capítulos no romance original. É possível ler através desses detalhes.

Não sei como explicar, para alguém que não o viu e provavelmente não o verá, o que o filme deixa revelar, provavelmente sem querer. Chego a imaginar, também, que posso ter projetado minhas próprias opiniões sobre a obra; isso não é de todo impossível. Mas, ressalvas à parte, o tom decadentista de Houellebecq parece desnudar-se inteiramente. Revela-se, como eu desconfiava, forçado. Tive a impressão de que o autor não acredita em seus próprios argumentos.

A desolação que as paisagens deveriam transmitir parecem estar só na reiteração dos horizontes calcinados, enfileirados sem sentido, incapazes de tocar o espectador. A acidez do protagonista, interpretado por Benoît Magimel (que já encarnou Luís XIV), parece vir mais de sua fisionomia peculiar do que de sua postura diante dos fatos que presencia.

A heroína silenciosa, cujo clone vagueia por terras inóspitas após o desaparecimento da humanidade, faz um esforço enorme para expressar seu desespero. Mas não é fácil, sobretudo se comparamos sua situação à do clone do protagonista, que passeia em filosofices verborrágicas por campos e vales, acompanhado de um cãozinho muito simpático. Não estou querendo corroborar a idéia de que Houellebecq seja racista por fazer cair repetidamente sua protagonista negra, seminua, ao chão de um deserto, sem lhe dar ao menos uma fala para mostrar seu trabalho de atriz, enquanto o rapaz esbelto, louro e culto paira sobre a desgraça humana com um belo terno negro e um cajado, falando sem parar. Mas é difícil entender por que tanta desigualdade, mesmo depois que acabou o sistema capitalista.

Não quero demover os amantes da literatura de uma ida ao cinema para ver A possibilidade de uma ilha. Pelo contrário, apesar de todos os defeitos que eu acreditei encontrar no filme, o fato de que ele exista é um acontecimento a ser aplaudido. Ademais, para quem gosta mesmo de livros, de Houellebecq ou não, é uma oportunidade rara ver como um autor adapta sua própria obra para a tela.

PS: Para quem lê em francês, eis uma discussão interessante sobre o filme.

E outra aqui, indicação de Bruno Carmelo.

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Os olhos são sempre irresistíveis

As armas da tirania também podem ser as armas da arte, é o que diz. Em sua guerra, ele nunca mostra o rosto e assina com iniciais: JR. Esconde os olhos debaixo do capuz, porque sua visão foi trocada por uma lente de 28 milímetros, projetada a partir da câmera que ele empunha como um fuzil. Como uma sentinela de fronteira, o fotógrafo aponta seu aparelho para o rosto da vítima, à queima-roupa. Mas, em vez de lhe estilhaçar o crânio, ele registra sua vida. E, por que não uma licença poética, duplica sua alma.

O princípio é muito simples. Não há forma tão magnética para os olhos humanos quanto outro par de olhos humanos. Corresponder a um olhar é um gesto reflexo, o mais forte de todos. O consciente pode obrigar a mão a não escapar de uma fogueira, mas é impotente contra o empuxo das pupilas atentas. Os artistas sabem disso. Já o sabia muito bem o primeiro que aprendeu a desenhar um rosto humano. Hoje, na infinita cobiça pelas almas e bolsos, os publicitários abusam do efeito arrasador do contato visual. Em seu tempo, os deuses é que foram representados com olhos imensos. O próprio sol era entendido como olho faiscante e implacável, divindade flamejante. Já a lua se lia como um olho de mãe, aquele que apascenta, tão tranqüilo que leva um mês em piscar e reabrir.

Quando dois rostos se fitam, abre-se um canal definitivo que qualquer mensagem pode atravessar. Os sinceros, os sedutores, os carismáticos, são seres que dominam a potência do próprio olhar. Os tíbios, ao contrário, só têm pupilas a oferecer. Naturalmente, a política e a propaganda compreenderam logo o canhão semiótico que tinham entre os dedos. Com as técnicas de impressão do último século, não foi difícil levar ao paroxismo o mais insidioso estratagema de comunicação. Nas ditaduras, nas democracias, nos cartazes publicitários, grandes efígies fotográficas impuseram pensamentos e concepções de mundo, sugeriram atitudes e escolhas, exigiram sacrifícios e gastos. Diante do busto gigantesco do líder e da estrela, até o espírito mais indócil baixa os olhos e se curva em assentimento. Ao risco de asfixiar a civilização.

Por outro lado, quando há cegueira, quando as palavras são incapazes de provar sua verdade e as mãos que poderiam construir só se empregam em estraçalhar, algum caminho para a trégua deve ser escavado. A qualquer custo, a visão precisa ser restabelecida, a lógica tem de assumir seu trono, os dedos devem aprender a suturar e dar consolo. Felizmente, a humanidade é a prova maior de que para cada força há uma outra, proporcional e inversa, como aprendemos com Isaac Newton. E a força mais poderosa que temos, creia-me, é a arte.

Eis a missão que JR estipulou para si próprio, com seu fuzil fotográfico. Restabelecer a lucidez no mundo: o rapaz é ambicioso. Começou como todo artista engajado, retratava a juventude da periferia de Paris, as cités habitadas por franceses negros, morenos, asiáticos, muçulmanos, filhos de brava gente que veio para ceder sua força à economia da metrópole. E vieram de longe, em geral países que já passaram pela humilhação de ser colônias. Os retratados são uma geração que muda a cara e a tez do país.

E nada aconteceu. Que resposta ele poderia esperar? O centro conhece bem as figuras de suas periferias. Vigia-os, contrata-os, gosta até de ouvir e dançar à sua música com temas de revolta, gravadas em estúdios de última geração à beira do Sena. Fotografias de jovens suburbanos são muito valorizadas nas galerias da Rive Gauche, a cujos vernissages comparecem madames e mademoiselles encantadas pelas feições hostis, calças largas e bonés de basquete. Excelente forma de se ver reconhecido pelo circuito, mas não é provável que mude o mundo.

Até que ele entendeu o princípio. O magnetismo do olhar, a empatia do rosto, a reprodução quase infinita de imagens digitais. E, principalmente, o poder de imprimir cópias enormes, gigantescas, que interditem ao espectador a hipótese de evitar o contato. Seu museu, ou antes sua galeria, seria a rua, que ele mesmo define como “a maior do mundo”. Esse foi o estilo que o artista escolheu para trabalhar e lutar.

As primeiras ofensivas de sua objetiva de 28 milímetros tiveram lugar aqui mesmo em Paris. Os mesmos jovens já fotografados nas poses tradicionais apareceram em esgares e grimaças, registradas de uma distância que não chegava a meio palmo. Ampliadas, as imagens foram afixadas em muros, lixeiras, paredes, calçadas. A reação do público foi imediata. Casais e executivos interrompiam suas marchas diante dos olhos enormes, escancarados em preto-e-branco, em posições em geral engraçadas, muitas vezes ridículas. Olhos que não expressavam ódio, nem humilhação. Expressavam quotidiano, algo em princípio idêntico ao que todas aquelas pessoas viviam naquele mesmo instante, mas tornado diferente por alguma causa que, de repente, perdeu o sentido.

O mais curioso, e que poderia levantar um debate interminável, mas ainda assim interessante, foi a intervenção da polícia. Os zelosos protetores da ordem, fiéis a seu dever, fizeram cumprir uma lei de 1888 que proíbe qualquer fixação de cartazes nas vias públicas. Foi uma medida para evitar os manifestos políticos que se multiplicavam à época. Em qualquer parede mais propícia, lê-se o aviso de proibição, com a data e tudo. O artista, bem se vê, infringiu a lei. O que, aliás, explica o pseudônimo. Assim, em poucas horas os serviços de limpeza pública haviam esfregado dali os faces distorcidas dos adolescentes vizinhos.

Não faz mal, o recado foi ouvido. O passo seguinte foi o maior investimento do artista até então. Na companhia de um outro fotógrafo, de nome “Marco”, JR decidiu que deveria se dedicar a nada menos do que a paz entre palestinos e israelenses. Descambaram-se os dois para a Faixa de Gaza, conversaram com gente de ambos os lados, de várias profissões, todas as idades. Convenceram-nos a se deixar fotografar. De ambos os lados do muro vergonhoso que divide os povos que, no sangue, praticamente são o mesmo, fizeram colar centenas de reproduções, algumas com alguns metros de altura.

A idéia era obrigar os dois campos a encarar um ao outro. Promover a descoberta do dia-a-dia, abaixo dos helicópteros e acima dos fuzis, composto de cabeleireiros, taxistas e garis, em cada lado da parede de concreto. Revelou-se, nesse segundo laboratório, a verdade perturbadora de que é ali, nesses endereços quase idênticos, e não nos palácios, casernas e quartéis-generais, que reinam o medo, a miséria, as mortes, as famílias destruídas. Uma intenção nobre, sem dúvida, mesmo se é expressa no vídeo no mais peculiar discurso vazio francês.

Vídeo do projeto Face2Face, de JR e Marco

O êxito foi ainda maior do que a iniciativa parisiense. Não derrubou, ainda pelo menos, o muro em que os cartazes foram colados, mas atravessou fronteiras mesmo assim. Outro dia, topei com um gigantesco rabino rechonchudo e estrábico em Genebra, recostado na parede lateral de uma casa de ópera. Também sei de cartazes que foram transplantados para cidades americanas e asiáticas. Seja como for, o fotógrafo foi incentivado a prosseguir, e prosseguiu. Foi como se tivesse aberto um mapa-múndi e espetado alfinetes nos recantos da pobreza e do conflito. Não deve ser surpresa para ninguém que um dos primeiros lugares escolhidos foi o Brasil.

O artista esteve nas duas maiores cidades do país. Em São Paulo, não sei por que razão, realizou imagens bastante convencionais, embora boas, nas bocadas do centro, no alto dos arranha-céus e nas comunidades do Capão Redondo. No Rio, em compensação, ele compôs também uma obra de arte descomunal, que já figura entre as que mais me causaram impacto.

Um parêntese: tento ao máximo ler os jornais brasileiros, isto é, suas versões em linha. Tanto os do Rio quanto os de São Paulo, sendo que o JB, esse que há tempos deixou de ser ele mesmo, é o único que publica gratuitamente os fac-símiles de suas páginas do papel. São páginas, aliás, muito mal redigidas, coalhadas de erros de informação e de português, mas vou fazer o quê, é minha única maneira de ter a perspectiva de uma folha diagramada. Em resumo, posso ter passado por cima de alguma nota sobre a instalação, mas é improvável. Triste foi ter de ler sobre o assunto no blog de um filósofo americano.

As imagens dispensam comentários. Grandes pares de olhos que recobrem fachadas inteiras do morro da Providência. Figuras em preto-e-branco que espiam as centenas de milhares de pessoas a circular pela presidente Vargas, pela Central, pela Gamboa, numa poesia agressiva do contato involuntário. A uma distância que vai da avenida ao cume, aparecem as rugas, as expressões, os vincos de cansaço e dor de indivíduos anônimos e até então invisíveis. Nos poucos retratos de rostos inteiros, é fácil notar a tensão dos músculos que não sabem se podem abrir um sorriso ou se deveriam manter o siso. Centenas de moradores da Providência cederam suas casas para o fotógrafo. Dezenas cederam suas faces. Na maioria, mulheres que perderam parentes nas disputas do tráfico.

Como são belas as reproduções da paisagem, o morro tomado por barracos antigos, em geral tão opacos, cinzentos e tristes, agora salpicado de rostos humanos, olhos abertos, lábios, dentes, mãos. Uma prova intuitiva de que tudo poderia ser diferente, a cidade poderia ser uma, não existe razão para que uma metade seja invisível e a outra tente tornar-se invisível, escondida atrás das proteções estéreis. Os rancores, bem se vê, são uma tolice nossa, herdada de outros tempos. Não cabem mais numa sociedade que pretende enriquecer por inteiro e ter uma posição significativa no mundo. Há que superá-los.

Mas algo assim exigiria sacrifícios que talvez não estejamos dispostos a fazer. O trabalho de JR foi realizado no início deste mês, é provável que ainda esteja exposto, mas as poucas matérias que encontrei sobre o assunto nos jornais são retrancas secundárias das reportagens sobre o caso “Cimento Social” e a confusão que envolve Marcelo Crivella, exército e os traficantes de sempre. Posso estar enganado, mas não tenho forças para chegar a outra conclusão: mais vale comentar o mesmo de sempre; por que não fazer o mesmo de sempre!; vamos então manter o mesmo de sempre.

Enquanto isso, o anônimo e encapuzado JR segue com seu trabalho ao redor do mundo. No projeto “Mulheres são heroínas”, já passou por Serra Leoa, África do Sul (Soweto, em Johannesburg), Libéria, Sudão, Quênia. Sempre com a câmera à queima-roupa, fuzilando a sensibilidade dos passantes com a arte. E sempre, claro, rebentando a timidez no contato dos olhos humanos.

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