Chegamos a meados de 2022 e parece que já não é mais a cada poucos meses que somos confrontados com um novo episódio de barbárie em algum canto do Brasil – agora, poucas semanas separam o anúncio de um massacre no Rio, uma câmara de gás em Sergipe, um assassinato brutal na Amazônia ou no Cerrado, para citar só os mais midiatizados. São todos acontecimentos hediondos, à primeira vista sem conexão direta entre si, mas temos a impressão de que estão mais frequentes.
Viramos as páginas dos jornais – quem ainda faz isso – para a seção nacional ou de política e damos com um noticiário de outra natureza, mas igualmente perturbador. Ou melhor, igualmente bárbaro: a diferença é que o sangue não salta diretamente das páginas. Uma decisão como a do rol taxativo no STJ; a pressão dos militares sobre o processo eleitoral; os bilhões canalizados pelo orçamento secreto; os milhões gastos por municípios com concertos misturados a propaganda; a proposta, ou ameaça, de um estado de calamidade que permitiria desviar ainda mais recursos para fins eleitoreiros, e por aí vai. Desta vez, estamos falando de degradação institucional, mas a sensação é a mesma: o processo está se intensificando ou acelerando.
O que dizer desse sentimento de aceleração? Os golpes estão mesmo cada vez mais frequentes ou seria apenas um reflexo de nossa ansiedade com a aproximação de um período já normalmente tenso, como é o processo eleitoral? Ou ainda: se os episódios de barbárie e degradação institucional estiverem mesmo se precipitando, é justo imaginar que exista alguma coordenação entre eles, proposital ou involuntária? Se houver, realmente, algum mecanismo pelo qual uma causa comum leva à sucessão desabalada de iniciativas destruidoras, ele pode ser identificado?
Coloquei as perguntas nessa ordem porque uma das características do conflito assimétrico e informal, majoritariamente cibernético, que caracteriza nosso tempo é justamente torná-las quase irrespondíveis. Mesmo assim, creio que, se atravessarmos esse “irrespondível” e a confusão que o acompanha, podemos identificar um movimento que talvez seja proteiforme, mas é coeso. Lamento dizer, o que parece estar atrás da cortina é aterrador.
Chegamos a meados de 2022 e tudo indica que está em curso uma iniciativa de “guerra total” quase – veja bem, quase – espontânea, e por isso mesmo ainda mais potencialmente destruidora. Mas antes de começar qualquer tentativa de diagnóstico, é preciso recuar alguns passos e buscar um olhar um pouco mais abstrato, para que o cenário de fundo esteja minimamente acessível. Seja paciente.
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Começado pela última questão: a coordenação e a causa comum a todos esses episódios é indemonstrável, porque é desnecessária. Ou melhor, o que é desnecessário é um centro inspirador ou decisório único. Basta que exista alguma modalidade de comunicação – que pode ser um único sistema ou a conjunção de vários – capaz de alinhar o desejo de realizar determinada ação com a capacidade de levá-la a cabo. A única coisa indispensável para conseguir que algo se opere, tenha efeitos, é que os agentes mobilizados na ponta – digamos assim, os “terminais” ou “receptores” – obedeçam a motivações mais ou menos coerentes – ou seja, coerentes o bastante. Em outras palavras, não são as ações que precisam ser coordenadas, mas as motivações; aquilo que, cá e lá, dispara uma ação.
Ora, é precisamente essa questão comunicacional que conduz ao irrespondível das primeiras perguntas. Se ficamos ansiosos ao ser confrontados com a repetida barbárie, em sua versão sanguinolenta e em sua versão institucional, parte da razão é que as mesmas modalidades de comunicação que alinham motivações também semeiam ansiedade. Os mesmos estímulos emitidos constantemente, a mesma cacofonia, que galvaniza as ações de um lado, do outro geram confusão. A avalanche de imagens e mensagens é tanto paralisadora quanto mobilizadora, conforme a predisposição das pessoas espalhadas pelo território – os “terminais”.
Por isso, não faz sentido opor a sensação do horror intensificado e a realidade material que poderia sustentar essa percepção. Essa condição da comunicação reticular, entranhada no tecido social, provoca a impressão de que esses acontecimentos horríveis que testemunhamos podem ser postos em ação, um tanto paradoxalmente, por si próprios. Somos quase conduzidos a dizer que ninguém é responsável, mas, como já não conseguimos nem mesmo afirmar a realidade do complexo de eventos que estamos testemunhando, não chega a ser surpreendente.
Poderíamos contrastar essa nebulosidade, por exemplo, com o que aprendemos no caso Cambridge Analytica, em que agentes muito específicos manipularam indivíduos em um vasto território, com ferramentas discretas e disponibilizadas com essa precisa finalidade. Algo semelhante ocorreu em torno de 2018, com os disparos de mensagens e os robôs que todos conhecemos, a começar por Carluxo. Também dá para fazer um contraste com o episódio da invasão do congresso americano, em 6 de janeiro do ano passado. Também aí havia um centro emissor na figura de Trump, que colocou em movimento seus seguidores a partir da acusação de fraude eleitoral e o slogan, ou grito de guerra, “stop the count”.
Mas mesmo nesses dois casos, o que realmente disparou as atitudes, as ações, até mesmo as crenças – o que poderíamos chamar de sua “causa eficiente” – foi a disposição dos próprios receptores, cultivada ao longo de um extenso período e disponíveis para aquelas mensagens. O caso Cambridge Analytica é mais evidente, porque justamente aqueles com alguma inclinação a se conectar com as mensagens enviadas eram focalizados – e vendidos como alvos.
No caso da extrema-direita brasileira, a radicalização se deu por vias semelhantes, mas não idênticas. Ao inundar os dispositivos com mensagens que tocavam em todos os temores possíveis do brasileiro – raciais, sociais, religiosos, o que for –, era praticamente garantido que uma quantidade suficiente de pessoas seriam capturadas para uma rede de influência que se retroalimenta e se torna cada vez mais coesa.
Em tempo: não estou falando especificamente das tecnologias algorítmicas usadas no disparo de propaganda (explícita ou implícita), embora elas sejam, é claro, um elemento capital do problema. Mas elas se articulam com todo tipo de dispositivo que dissemina opiniões, impressões e convocações: dos púlpitos aos editoriais, das mesas de bar aos seminários, da sala de jantar aos intervalos entre aulas. Quanto mais modulações diferentes um estímulo lograr, melhor ele se embrenha no tecido social e se naturaliza.
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Entre contrastes e semelhanças, o que se passa hoje no Brasil tem suas singularidades, que me parecem determinantes para esclarecer a questão da aceleração do horror, a “guerra total” a que estamos submetidos. Em primeiro lugar, estamos falando de um complexo com ao menos duas dimensões, como já mencionei. De um lado, os atos de barbárie estúpida, espalhados por várias regiões e no quotidiano das pessoas; do outro, a degradação institucional no Congresso, nos tribunais, em determinadas autarquias, no Executivo federal e também nas esferas inferiores – menção desonrosa para as ditas forças de segurança, tanto as forças armadas quanto as polícias.
É preciso olhar um pouco para o cenário em que tudo isso se desenrola, ou seja, o contexto, a massa preparada com fermento para se tornar o bolo de destruição hoje se expandindo tão rápido.
Primeiro ponto: não é difícil remeter a barbárie quotidiana ao discurso funesto que se expandiu assustadoramente no país a partir de 2014, mais ou menos, e que explodiu com a candidatura e eventual vitória do atual ocupante do Planalto, quatro anos mais tarde. A “foice no pescoço da Funai”, o envio de adversários à “ponta da praia”, o “fuzilar a petralhada”, e assim por diante, são sementes que se espalham e, juntando-se a outras emitidas por personagens menos notórios – alguns deles, inclusive, hoje nominalmente de oposição –, criam um terreno de naturalidade para que atos de violência e crueldade emerjam conforme as circunstâncias.
Veja bem: criam o terreno, mas o potencial para a violência e a crueldade estavam disponíveis, já compunham a massa complexa do dia-a-dia brasileiro; caso contrário, não poderiam vingar. O caráter claramente racial de muita dessa violência; a tentativa de acelerar a eliminação dos povos indígenas, e dos biomas em que vivem, para avançar o extrativismo; o elitismo presente em alguns desses crimes; a virada opressiva e aniquiladora de certa religiosidade. Nada disso foi inventado em 2018. Foi, isso sim, realçado, em detrimento de tantas outras características igualmente presentes no quotidiano do país, das formas de solidariedade à disposição em abraçar o outro, o diferente – o que é mais que tolerância e, sim, pode estar em baixa hoje, mas é um traço bastante frequente no brasileiro.
O segundo ponto é um pouco mais difícil de tratar; tentei fazer isso neste texto de 2018. Hoje, já está em plena vista muito do que, naquele momento, ainda tínhamos que tentar demonstrar. É evidente que, ao menos desde meados de 2020, o atual governo só se sustenta porque funciona como uma espécie de mediador, um “buffer” para que forças políticas de dominação local – leia-se centrão – e grupos de interesse encastelados, a começar pelo latifúndio, ampliem seu controle já enorme sobre o Estado e os recursos do país. O que esses grupos identificam como principal inimigo? Muito simplesmente, o conjunto de todos os ganhos trazidos pela redemocratização e os anos seguintes. Ganhos institucionais, como o SUS e o controle sobre as decisões de agentes públicos (e aí se contam desde os tribunais de contas até a LRF, com todos os seus defeitos). Ganhos sociais, como os programas de distribuição de renda, a proteção de terras indígenas, as cotas no ensino superior. E, principalmente, tudo que possa ser um obstáculo a uma economia primária e dependente. Como previsto, vamos sair dessa lamentável experiência com um país ainda mais oligárquico, parasitário e paralisado.
Assim, quando sentimos que algo parece estar se acelerando, trata-se de uma conjunção, uma espécie de aliança informal (às vezes formal) entre os aspectos mais nefastos da nossa realidade social, realçados e coordenados por um sistema de comunicação quase orgânico, e os aspectos mais atrasados – e também nefastos, por que não dizer – da nossa realidade política. Se muitas vezes você pensou que o pior de nós está no poder, é porque está.
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Resta tentar explicar por que estou falando em “guerra total” para me referir à aceleração dos horrores, sanguinolentos e institucionais. Com o risco de estar cometendo uma “reductio ad Hitlerum”, algo ainda mais delicado em se tratando de grupos políticos que evidentemente têm o fascismo como princípio ativo em sua fórmula, acho que não é absurdo enxergar no que está se passando hoje no Brasil a atitude de quem vê o fim, aliás a derrota, se aproximando e, sem poder apagar o rastro de seus crimes, escolhe o caminho inverso: intensificá-los. Nesse caso, é difícil não fazer um paralelo com “der Totale Krieg” (guerra total).
Guardadas as devidas proporções, foi o que se passou a partir de 1943, quando Goebbels fez seu chamado ao “Totaler Krieg”, em discurso no Sportspalast de Berlim. Naquele momento, já era evidente que as chances de vitória do Eixo na guerra eram ínfimas. Duas semanas antes, o exército alemão havia sido humilhado em Stalingrado, a campanha no norte da África estava praticamente perdida, a economia germânica já não tinha condições de fazer frente às demandas do front. A derrota era certa.
Na camada mais superficial de seu infame discurso, Goebbels decretou que o país não aceitaria os fatos e que estava disposto à completa aniquilação, como se ainda houvesse uma vitória no horizonte. Na realidade, o que estava sendo formalizado era um suicídio coletivo: o nazismo exigia da população como um todo um sacrifício, para esticar por um par de anos a sobrevivência de seu grupo criminoso.
Mas este resumo não dá conta de descrever o que se passaria nos anos seguintes, com o arquiteto Albert Speer como ministro dos armamentos: a escravidão dos prisioneiros de guerra (e dos campos de extermínio) foi intensificada, levando à morte por inanição de milhares de trabalhadores forçados; adolescentes foram enviados ao front sem treinamento para missões inviáveis; populações inteiras foram deixadas sem comida; toda matéria prima possível foi desviada para a produção militar. As vítimas se contam aos milhões, não só entre os povos ocupados, mas também entre os próprios alemães. E o mais importante: quanto mais os soviéticos de aproximavam de Berlim, maior era a disposição para a infâmia suicida.
Como eu disse, é preciso “guardar as devidas proporções”. Não estou dizendo que houve no Brasil algo semelhante ao Sportspalastrede. Pelo contrário, sua ausência é o que mais me perturba, porque acredito, sim, que o princípio de radicalização suicida que mobilizou Speer está disseminado, mesmo sem um apelo direto. É por não precisar da convocação explícita à barbárie que o caso brasileiro é ainda mais insidioso. Ao contrário do que ocorria num sistema totalitário como o alemão, não é preciso moldar o conjunto da população para uma ação coordenada, em bloco, comandada a partir de um ponto singular. Basta multiplicar a emissão de estímulos, que se reproduzem de um jeito que parece orgânico; quando chegam na ponta, esses estímulos entram em consonância com motivações e convicções, gerando atos ao mesmo tempo isolados e conectados. E mais: não é preciso arregimentar a todos, como nas massas uniformizadas de Nuremberg. Basta que, cá e lá, a destruição emerja, faça seu dano e perpetue a angústia e a confusão. E o medo.
No plano mais propriamente institucional, a coordenação é um pouco mais explícita, principalmente porque há um evidente núcleo de tratoramento do princípio republicano. Tendo conquistado um poder quase irrefreável e com o Executivo na coleira, o enorme pântano fisiológico do Congresso procura consolidar sua posição e garantir que ela dure além do atual mandato. Os casos das emendas de relator e da execução impositiva, são cristalinos: deixarão qualquer governo futuro à mercê de deputados que controlarão um naco maior do orçamento sem responder a ninguém. O que serviu na origem, ao que parece, para comprar apoio a um governo inepto, torna-se assim um mecanismo de perenização de poderes despóticos. Ao mesmo tempo, pautas caras aos lobbies mais retrógrados avançam com urgência, como a mineração em terra indígena ou o “PL do Veneno”, sem falar em todos os projetos que almejam implodir a educação e a saúde no país.
Resumindo: a intensificação da barbárie, esse “totaler Krieg” a que aparentemente estamos submetidos, responde à urgência que certos grupos de poder provavelmente estão experimentando de obter o tanto de espólio que puderem até a implosão do governo ou do país como um todo – que país consegue aguentar tanta morte, tanta fome, tanta frustração? E se não ficou evidente como a cacofonia dos constantes estímulos se reflete nos avanços de bancadas predatórias, grupos fisiológicos e corporações burocráticas sobre os recursos e as leis do país, eu coloco em palavras: a velocidade de renovação das pautas – no sentido jornalístico e no sentido administrativo – favorece a aprovação das piores medidas, porque a resistência não consegue se organizar. Quantas vezes as oposições não comemoraram a vitória de bloquear uma votação aqui e outra ali, enquanto passavam outras tantas igualmente anti-republicanas?
Talvez o sintoma mais grave e de efeitos mais duradouros da sanha antidemocrática seja a apresentação do documento preparado por três assim chamados “think tanks” ligados aos militares, com um projeto de terra arrasada para o Brasil a ser implementado até 2035. Em que pese o tom delirante de algumas das análises e o teor regressivos das propostas de política pública, é mais um caso em que se consolida como normalidade as forças armadas se apresentarem como partido político, com fundo programático – no caso, “desprogramático” – e, no lugar da “força de lei”, a força de um cano de canhão apontado contra nossas têmporas. A presença do vice-presidente da República no evento de lançamento do tal projeto é, não custa repetir, um acinte. Somado à tentativa de intervir no processo eleitoral, temos aí mais um caso de agressão à sociedade civil – mas até aí, nada de novidade em tempos de bolsonarismo.
Na verdade, neste caso, vale atentar mais para a própria apresentação do documento, a fanfarra em torno dele, associada à insistência em intervir nas eleições, com envio de “sugestões” ao TSE e reclamação de falta de “prestígio”. Do ponto de vista institucional, esse tipo de atitude corresponde às bravatas do próprio presidente, suas repetidas “motociatas”, das quais a mais funesta é essa última, a de Manaus – metrópole da Amazônia sob ataque e da população sem oxigênio. Muito mais do que o conteúdo de qualquer dessas iniciativas, dessas imagens, desses memes, o que conta é o estímulo afetivo, para correligionários e para inimigos. Aos primeiros, o que se diz é: “vocês têm rédea solta!” E aos últimos: “confundam-se! Protestem para cá e para lá! Tremam de medo!”
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Nesse meio-tempo, lemos algo quase todo dia sobre o perigo de que a patota hoje encastelada no Planalto tente um golpe de Estado no sentido clássico, ou quase. O golpe se aproveitaria do questionamento ao resultado das urnas para semear o caos, recorrendo ao extenso apoio nas forças armadas e nas de segurança estaduais, além de grupos civis armados – esses mesmos cujo armamento vira e mexe é encontrado nas mãos de criminosos comuns. A partir dessa situação de descontrole, conforme a expectativa de golpe clássico, o governo teria uma desculpa para fechar o regime.
É uma preocupação legítima, considerando todas as manifestações dessa intenção nos últimos anos, o motim cearense de 2019 e a prévia de sete de setembro do ano passado. Isso para não falar no exemplo americano, a invasão do capitólio em 6 de janeiro, agora sob investigação no Congresso de lá. Mas essa perspectiva de golpe bolsonarista, em geral, deixa de lado um detalhe quase prosaico. Um golpe tramado às claras, à vista de todos, não é bem um golpe; é antes uma ameaça ou uma promessa. Por isso, traz consigo a perspectiva de um acordo, já que alguém ameaçado é colocado diante da possibilidade de escolher entre diferentes caminhos.
Por isso, do ponto de vista deste texto, é mais importante se concentrar no próprio fomento a essa projeção do possível golpe. Uma vez mais, ele serve tanto para estimular a sanha agressiva dos apoiadores quanto para intensificar a confusão e o medo dos opositores. Enquanto houver ameaça de que as eleições sejam meladas, a mensagem está no ar: toda barbárie é aceitável, para não dizer desejável. Há sustentação institucional, há garantias das lideranças políticas. A impunidade é certa. Tudo somado, parece que não é no sentido clássico que estamos diante de um golpe – ou dentro dele; mais parece um extenso período de exceção não declarada, mas sugerida nas entrelinhas e reafirmada a cada episódio de horror impune e sancionado por meias-palavras dos centros de poder.
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Dito isto, é difícil não lançar a pergunta mais incômoda, que, devo confessar, não tenho ideia de como responder. Como agimos, sabendo da radicalização em curso, da guerra total em que o inimigo somos todos nós? Como se comportar no dia-a-dia, como bloquear a barbárie, como escapar da espiral de angústia?
A maior dificuldade, na tentativa de dar uma resposta a essas perguntas, é que o problema comunicacional não é uma via de mão dupla. Para o funcionamento regular dos mecanismos de manutenção de uma certa estabilidade social e institucional, não há nada que corresponda à cacofonia de estímulos, esses que constantemente mobilizam e desmobilizam afetos. A democracia, no sentido formalizado em que a conhecemos, depende, ao contrário, de uma comunicação capaz de produzir sentido e relevância, não entropia e espasmos violentos; opiniões e ideias, e não pavor e ódio. Assim, não adianta ficar procurando estratégias para contrabalançar o bombardeio simbólico com um outro bombardeio, mas de anticorpos.
Já ajudaria bastante se pudéssemos escapar da armadilha que consiste em reagir individualmente, repetidamente, a cada novo episódio, correndo atrás dos estímulos e passando de exasperação a exasperação, de desespero em desespero. Tenha a impressão de que o que de melhor se pode conseguir é que o vínculo estreito e reticular entre esses sucessivos atos horrendos e decisões políticas regressivas seja reconhecido, e que nosso repúdio seja estruturado, voltando-se para o conjunto como um todo. Seria bastante desejável se pudéssemos reinventar os estímulos que poderiam trazer à tona a capacidade de organização coletiva, de solidariedade, daquilo que tem sido chamado de tolerância, palavra talvez um pouco fraca demais para o que realmente é necessário.
Mas falar é fácil. Estamos cientes, em maior ou menor grau, de como todos esses episódios e todas essas iniciativas estão conectados. Constantemente, repetidamente, denunciamos a normalidade, aliás a hegemonia, de uma linguagem regressiva, obscurantista, fascista, no dia-a-dia do Brasil, e associamos esse estado de coisas a personagens que detêm poder e incentivam o avanço da barbárie. Se isso não basta para murchar o estímulo à guerra total, talvez seja apenas a expressão de que esse discurso segue forte no país e essa bomba só possa ser desarmada em um prazo mais longo, para nossa infelicidade.
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O que conduz à última questão: basta derrubar essas figuras funestas para afastar de vez a cacofonia? Bastaria reagrupar uma “coalizão democrática” em torno de um novo governo a partir do ano que vem? (Melhor não perguntar se existe disposição para uma tal coalizão em nossos grupos políticos.)
Dificilmente. Não foi o caso em outros países e não deverá ser aqui. Um dos núcleos do problema é que esse discurso, com um pé no fascismo e outro na tradição colonial, se legitimou suficientemente na sociedade brasileira para se fixar. A cacofonia ainda reverbera, mesmo que seus pólos emissores desapareçam – aliás, não vão desaparecer, só vão perder alguns de seus dispositivos e uma parcela de seus recursos. Ou seja, devemos reconhecer que não vamos retornar tão cedo a uma condição que poderia ser considerada normal. A bem dizer, um olhar um pouco mais detido sugere que já não há mais sentido no termo “normalidade”, se quisermos aplicá-lo ao que vivemos nas décadas de 1990-2000.
Para ficar só naquilo que foi transformado por esses quatro anos de barbárie oficial, há vários problemas já fáceis de identificar. Sabemos que os grupos radicalizados permanecem, seguirão com a mesma radicalidade e alguma forma de coordenação, ainda que os atuais líderes acabem sendo substituídos por outros, talvez até mais sagazes e, portanto, perigosos. O caso do professor de cursinho para agentes rodoviários federais que, filmado, ensinou a improvisar uma câmara de gás, sem o menor constrangimento, é ilustrativo. É preciso um estado muito degradado da mentalidade em um país para que alguém se disponha a falar daquela maneira em público, sendo registrado ou não.
O perigo maior, neste caso, é que se os membros mais ativos desses núcleos se sintam traídos e prejudicados quando o golpe clássico não ocorrer, pelo menos não com intensidade suficiente para sacramentar o triunfo da barbárie. A partir daí, dois caminhos opostos são possíveis, e ambos são perspectivas assustadoras. Eles podem reforçar seus laços, renovando a coordenação fascistizante; ou podem se fragmentar em pequenos grupos violentos, atuando espalhados pelo território e mais presentes no dia-a-dia da sociedade. Com fácil acesso a armas e um ódio dirigido a categorias vulneráveis, não é absurdo esperar o pior, em ambas as hipóteses.
Também devemos nos preocupar, e muito, com a renovação da fantasia característica dos militares – e ao chamar de fantasia não estou querendo dizer que não possa ter impacto real – de que constituem um dos poderes da república, ou melhor, um de seus alicerces. O tal documento dos “think tanks” é, além de uma ameaça (mal e mal) velada a todos nós, um sinal de que essa auto-imagem falsa, perigosa e inconstitucional segue sendo cultivada nos quartéis.
Outro elemento importante é o expressivo apoio ao projeto regressivo e recolonizador no meio empresarial, inclusive depois que se tornou evidente o caráter fraudulento da imagem intelectual e gestora de Paulo Guedes. Olhando nome a nome a lista de empresários que mergulharam com mais gosto no universo do bolsonarismo, encontramos um perfil ligado a setores pouco produtivos, como o comércio de grandes superfícies e a alimentação rápida, ao lado de exportadores de soja e gado. Uma característica que reúne esses nomes é sua pouca dependência da estabilidade econômica, social e política do país. É diferente, por exemplo, do que foram as lideranças do setor privado no passado (pense em Roberto Simonsen, Horácio Lafer etc.). E também é diferente de quem investe em mercados altamente tecnológicos, como os setores ligados à chamada “bioeconomia” – por mais questionável que o conceito possa ser, do ponto de vista ecológico. Para esses empresários da baixa produtividade, embora possam perder receitas com a instalação do caos e da pobreza, suas empresas são capazes de absorver o choque, seja por meio de demissão e achatamento de salários, seja batendo na porta de um governo amigo em busca de ajudas diretas. Diferentemente de grupos industriais, ou mesmo de serviços, da fronteira tecnológica, não precisam se preocupar com a concorrência de companhias que atuam em ambientes de muito maior segurança institucional e são pouco afetados pelas variações exageradas do câmbio.
Resumindo: o enraizamento da mentalidade autoritária e obscurantista no país é duplo: está tanto no dia-a-dia dos conflitos sociais quanto no âmbito daqueles que de fato controlam o país – isto é, sua economia, sua política, sua comunicação. Duplo, mas, é claro, articulado, já que um lado se alimenta do outro e os “donos do poder”, como diria Raymundo Faoro, têm todo interesse em fomentar uma sociedade atomizada, conflituosa e desesperançada. Livrar-se dessa mentalidade vai ser tarefa difícil e para muitas décadas.
Para terminar em tom um pouco menos funéreo, quero repetir o que disse antes, e que em condições normais nem precisaria ser dito: o Brasil não é, de modo algum, “essencialmente” autoritário e obscurantista, até porque essas “essências nacionais” são tolice, coisa digna dos Le Pen deste mundo, e nada mais. O autoritarismo e a violência que reconhecemos no nosso dia-a-dia se desenvolveram com o passar das gerações; são reforçados sempre que se reproduzem as estruturas de dominação e exploração herdadas do período colonial e transformadas a cada etapa histórica. Mas em outros planos a mesma sucessão de gerações produziu muito de criativo, gregário, solidário, nos interstícios dessas estruturas. Não é à toa que os estrangeiros nos veem como um povo tolerante e acolhedor.
Não faltam organizações, grupos e indivíduos que reafirmam e se alimentam desse Brasil solidário e cooperativo; somos, sim, perfeitamente capazes de atrofiar a abjeta e obscura aliança do fisiologismo com a barbárie, do fascismo com a predação; temos mais do que o necessário para articular um sistema sólido de cooperação e democracia. O terremoto político do último decênio teve o efeito lamentável de desagregar muito dessa trama de organizações que constituem a sociedade civil, abrindo o caminho para a avalanche de cacofonia e ruído que nos colocou na atual situação catastrófica e potencialmente suicida. Mas desagregação não é desaparecimento. Cá e lá, surgem novos cristais e novas coalizões. Inclusive, alianças até ontem improváveis. São sinais de caminhos que se abrem.
Não é fácil traduzir em palavras o quanto é ruim a situação do Brasil. Ainda mais difícil é admitir algo que talvez saibamos todos, no íntimo: a trajetória de longo prazo é catastrófica em várias frentes. Esse desconforto poderia explicar por que estamos tão presos em análises de conjuntura, formando um ciclo amargo de interpretações dos nossos desastres de curto prazo. Sim, a gravidade do momento e o efetivo encurtamento dos nossos prazos justificam esses esforços. Mas todas essas tentativas vão ficar pelo caminho até que aceitemos a necessidade de tomar um certo recuo; o que determina o nosso naufrágio, infelizmente, é uma tempestade prolongada.
Não é só por colocar na presidência um Bolsonaro que há algo de errado com o Brasil. Todo corpo social tem energias subterrâneas que carregam um forte potencial auto-destrutivo, se não houver dispositivos que as controlem e impeçam de explodir (ironicamente, nas máquinas a vapor o nome desse dispositivo, em inglês, é “governor”). Quando acontece uma explosão dessas, a pergunta não é “como isso foi acontecer?”, nem “vai durar?”, mas: “que forças eram essas que não queríamos ver?”, ou “o que deu errado com os dispositivos?”. E se sonhamos em reconstruir o sistema, mas com um funcionamento melhor e mais seguro, então temos que situar o fracasso segundo o conjunto das circunstâncias que levaram a ele, para poder estabelecer parâmetros novos e melhores.
Trocando em miúdos, o problema não está tanto em entender por que (ou como) o Brasil acabou elegendo alguém como Bolsonaro. É bem provável, infelizmente, que a resposta seja amargamente prosaica: foi porque todas as demais dinâmicas se esgotaram. E alguém poderia perguntar: mas ele vai se consolidar no poder? Em última análise, tanto faz. Isto é, a questão não está em saber se ele vai falhar tanto assim, a ponto de perder por conta própria em 2022. A questão é que nada indica que venha em seu lugar algo muito melhor.
É enganoso crer, por exemplo, que a emergência de uma figura de centro-direita (mais provável) ou centro-esquerda (menos provável), com um certo grau de respeitabilidade – e a esta altura, por contraste, já estamos achando qualquer pangaré, qualquer picareta, suficientemente respeitável – vá estabilizar o sistema político e trazer dinamismo para a sociedade e sua economia. Não vai, porque não há condições objetivas para tal no horizonte, a não ser que as circunstâncias mudem radicalmente (com o mercado de commodities, por exemplo). Na tendência corrente, mesmo que consigamos algo melhor para o próximo ciclo eleitoral, em pouco tempo sofreríamos uma nova derrocada – na eleição seguinte ou até antes.
Diante dessa perspectiva nada animadora, vale mais se concentrar sobre uma outra série de questões: o que significa dizer que todas as demais dinâmicas se esgotaram? Em que consiste esse esgotamento, que dinâmicas são essas, qual foi a causa da perda de dinamismo? Naturalmente, em se tratando de política e, mais especificamente, de política eleitoral, a primeira camada do problema está na incapacidade das demais forças, supostamente mais organizadas e estabelecidas, para responder a uma situação de crise prolongada. Nessa primeira camada, o que aparece, de cara, é que as esquerdas se perderam em disputas internas, cálculos de sobrevivência e pautas esfaceladas. As direitas, por sua vez, ou bem escorregaram para uma situação em que se tornaram linhas auxiliares desse nosso neofascismo de pernas tortas, ou bem reduziram seu discurso a um economicismo pretensamente libertário – ou, no mais das vezes, fizeram ambas as coisas.
Mas também aqui é preciso continuar cavando, porque a capacidade de organização e proposição dos partidos não surge por geração espontânea, mas se constrói a partir dos potenciais que vêm da conjuntura, da sociedade e, claro, das circunstâncias históricas.
1 – Um exercício: quatro tendências
Creio que muitos compartilham comigo a sensação de que o que estamos atravessando, e que Bolsonaro vem acelerar (para muitos, ele é causa, mas discordo), é não só uma decadência (termo que tenho ouvido bastante), mas principalmente um processo de empobrecimento. Sem querer soar cafona, a manifestação mais evidente é o empobrecimento espiritual de um país cujos representantes máximos são aproveitadores vulgares, incultos e grosseiros, sem a menor centelha de carisma, dinamismo ou visão.
Mas o que gostaria de tentar mostrar é que já estávamos empobrecendo quando chegamos a Bolsonaro e é provavelmente por causa do empobrecimento que as portas se abriram para ele e sua turma. Vou tentar defender essa ideia por meio de um exercício compartilhado com você que está lendo. Vamos pensar historicamente; o que o Brasil tem ou já teve como fonte de riqueza? E mais: o que o país tem como fonte de riqueza em potencial? Estou falando de riquezas de qualquer tipo. Pode ser renda nacional, produção cultural, bem-estar, “felicidade bruta”, prestígio, orgulho. Pode até ser uma mistura disso tudo.
Matutando a respeito, cheguei a quatro itens, definidos de modo bastante amplo. São eles:
1) No último século, o Brasil chegou a ter uma economia industrial razoavelmente avançada, competitiva em diversos setores e que integrava quase a totalidade das cadeias produtivas. Vale lembrar que este exercício de pensamento não é uma apologia. É possível ter críticas muito corretas à estratégia da substituição de importações, bem como ao protecionismo, aos subsídios, à relação promíscua que empresários industriais falidos e ineficientes mantiveram com o Estado, sobretudo na fase final da ditadura. É claro que havia insuficiências graves, tanto é que o edifício ruiu ao primeiro vento mais forte.
Mas devemos reconhecer que a manufatura chegou a estar em uma situação em que, com uma abertura mais bem planejada, investimentos em pesquisa e qualificação do pessoal, poderia dar um salto de competitividade global. Com indústria de base, bens de capital, bens de consumo duráveis e não duráveis, alguns com alto teor tecnológico para a época, como carros (a Gurgel chegou a fabricar um veículo elétrico, por sinal) e aviões, não era absurdo imaginar que subíssemos mais algumas etapas na escala da complexidade econômica.
Sem dúvida, perder a revolução tecnológica dos anos 80 foi um golpe e tanto. Os juros de Volcker e a crise da dívida nos pegaram de jeito, como amplamente documentado; a largueza de Delfim e dos PNDs certamente não ajudou. A renúncia a fazer as reformas de base, tampouco, já que a estrutura fundiária se manteve intocada e o impulso para universalizar a educação (e a cultura!) foi frustrado.
Mas deixemos as mazelas para depois. Por enquanto, só quero elencar os tais motivos de orgulho e fontes de riqueza. Dos problemas, podemos tratar depois.
2) Pode não parecer tão importante assim, mas o Itamaraty tem que entrar nessa lista. O Brasil desenvolveu ainda no período do Império uma diplomacia competente e profissional, que certamente trouxe benefícios consideráveis. O tamanho do território, com a ausência quase absoluta de conflitos de fronteira, é um exemplo, e o devemos sobretudo ao Barão de Rio Branco. A participação de Ruy Barbosa na 2a Conferência de Haia (1907) é uma fonte duradoura de prestígio. A atuação na OMC e outros foros globais não seria possível sem um quadro de profissionais qualificados. As políticas de aproximação com os vizinhos foram sempre um trampolim para a participação em tomadas de decisão mais amplas, na condição de liderança regional.
Se o prestígio diplomático não parece ser uma “fonte de riqueza” importante, basta voltar os olhos para a França, que manteve uma relevância no concerto de nações da Europa, após Waterloo, absolutamente desproporcional a seu poderio militar. Parabéns a Talleyrand e ao Quai d’Orsay. Ou mesmo a Alemanha, já que a possibilidade de reunificação do país foi inaugurada pelos esforços de Willy Brandt, contra o desejo de muitos compatriotas, para normalizar as relações com o Leste. O movimento incluiu um gesto, na época, polêmico (acredite se quiser): um pedido de perdão pelo Holocausto que incluiu prostrar-se de joelhos perante o memorial às vítimas, em Varsóvia.
Quanto a nós, com todas as mudanças de regime, o Brasil conseguiu manter razoavelmente intactos seus princípios de política externa, da autonomia das nações à não-intervenção – vale lembrar que um dos principais pontos de ruptura entre Kennedy e Jango foi a recusa do Brasil em participar da intervenção em Cuba. Até pouco atrás (digamos, dezembro de 2018), este gigante sul-americano era considerado confiável no concerto das nações.
Chega a ser engraçado que um porta-voz israelense (Yigal Palmor) tenha se referido ao Brasil como “anão diplomático” em 2014. Na verdade, a atuação diplomática do Brasil sempre foi desproporcional a seu ínfimo peso geopolítico e militar. O Brasil seria melhor descrito como um anão geopolítico, mas com músculo diplomático hipertrofiado.
Assim como no caso da indústria, também é possível apontar falhas e limitações, é claro. Como tanta coisa no país, a diplomacia, com seus altos salários e o prestígio que carregava, foi sempre uma instituição elitista. (Vale registrar que, nas últimas décadas, houve alguns esforços em direção contrária.) Pode-se argumentar que demorou muito a se preocupar em apresentar ao mundo um rosto que correspondesse ao país real. Consequentemente, seguiria o argumento, o Itamaraty serviu não só para perpetuar uma sociedade excludente, como também para favorecer decisões no plano internacional que reproduziam estruturas hierárquicas do mundo tal como era.
Seria um argumento válido, mas, outra vez, minha pequena lista tem outro propósito.
3) Pode ser um pouco esquemática demais a divisão entre “soft power” e “hard power” (Wall Street é soft ou hard?), mas serve para designar um dos principais ativos do país, principalmente porque é muito amplo e ajuda a manter minha lista curtinha. Aliás, “soft” é bem o termo para um país que atraía simpatia mundo afora por ser considerado (com ou sem razão) pacífico e alegre. Por não ter guerras, não ser agressivo na política externa, receber bem os turistas e por aí vai.
Mas é claro que não era só isso. “Soft power” não é só pacifismo. É também cultura, arte, comportamento pessoal. Houve, por exemplo, um tempo em que o mundo todo queria ver Pelé jogar. Seja com o samba, seja com a bossa nova, a cultura brasileira era ao mesmo tempo admirada e estimada. Até mesmo a construção de Brasília, que me parece um grave erro estratégico, serviu pelo menos para colocar o Brasil no mapa.
Jovens de todas as partes, de Johannesburgo a Hebrom, de Bobigny a Guadalajara, vestem a camisa da seleção brasileira até hoje, não só por causa de Rivellino, Romário e Ronaldo (para fazer uma aliteração geracional), mas também porque a magia canarinho representava o triunfo de um país pobre, miscigenado e periférico que vencia, cativava e acolhia. Sim, houve um tempo em que simpatizavam conosco. Talvez o mundo tenha acreditado demais (e nós também) no mito de exaltação da mistura de raças, até mesmo na “democracia racial” de Gilberto Freyre. Ainda assim, era um retrato inspirador que chegava às pessoas e lhes dava algo da ordem da esperança. Será que teriam consumido nossas novelas nos confins da Rússia, Grécia, Turquia, se já não tivessem uma simpatia pelo Brasil? Voltando ao tema da diplomacia, se foi possível em algum momento que o Brasil liderasse um movimento de aproximação estratégica do mundo subdesenvolvido (Sul-Sul), isto se deve em boa medida à imagem de país acolhedor, pacífico e ao mesmo tempo ambicioso.
Procuro resistir à tentação de argumentar um pouco mais por este ponto, que parece menos relevante e talvez menos convincente. Torno a dizer que essa imagem tão gentil do país não era um retrato lá muito fiel, já que esta sempre foi uma terra de exploração, genocídio, mandonismo, jagunçagem, tortura. Ainda assim, consolidou-se essa imagem, que algo de verdadeiro tem (talvez porque o olhar se voltasse ao explorado, não ao explorador); e essa imagem rendeu frutos. Por maior que seja o cinismo daqueles que souberam lucrar com a face mais luminosa do “homem cordial”, foi um ganho do mesmo jeito, e nos beneficiamos disso. Quando nem a imagem duvidosa conseguimos mais sustentar, algo está muito errado!
4) Este é sem dúvida o potencial mais evidente, e também o mais frustrado. Cá entre nós, também é um campo no qual o Brasil não tem mérito nenhum, propriamente falando. É uma circunstância histórica e geográfica: estamos sentados em cima dos mais extraordinários recursos naturais, e não estou falando de ferro, urânio ou, sei lá, nióbio. Hoje, o termo consagrado é “biodiversidade”, então que seja. Some-se a ela a abundância de água, a incidência de vento e sol (e raios, por que não?), a variedade topográfica, a extensão do litoral.
Se o futuro da economia está na sustentabilidade e na circularidade, o Brasil teria todas as condições de ser um dos grandes pólos econômicos do planeta. Se insumos e determinados produtos serão desenvolvidos a partir do código genético de plantas, fungos e animais, um gigantesco laboratório a céu aberto está cravado em plena América do Sul. Já em 1966, Celso Furtado entendeu que desenvolvimento e ecologia teriam de andar de mãos dadas. Hoje, porém, a verba do Plano ABC, por exemplo, é insuficiente.
Em parte por atavismo, em parte por preguiça, a economia que se pratica no Brasil é quase inteiramente oposta àquela que nos colocaria no caminho da riqueza, da influência e do bem-estar nas décadas vindouras. A monocultura de larga escala, a exportação de bois vivos, os minerodutos que emporcalham os pulmões dos capixabas, até mesmo o pré-sal; tudo isso pode até ajudar a equilibrar a balança de pagamentos. Mas praticamente não reverbera na melhora da vida das pessoas e na complexificação da sociedade. Exceções, claro, são a Embrapa e as pesquisas de engenharia de extração do óleo no fundo do mar, mas mesmo esses esforços poderiam estar sendo aplicados de maneira mais proveitosa.
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Para continuar com o exercício, proponho agora examinar como estamos em cada um desses pontos. Confesso que atua aqui um certo “privilégio do autor”, já que sou eu que estou escrevendo e, por isso, pude escolher os itens que me pareciam ser os mais convenientes para manusear. Além de mais convenientes, são também quatro campos em que o governo atual está provocando uma hecatombe completa, com seu exército de lunáticos em posições-chave.
Mas não é disso que quero tratar, por enquanto. E, seja como for, se quiser estender o exercício para outros itens, fique à vontade. O que temos com esta minha seleção é o seguinte:
1) Não é segredo para ninguém que o Brasil atravessa um processo acelerado e avassalador de desindustrialização; para ser mais claro, cabe dizer que não se trata, como na Inglaterra, regiões da Europa e partes dos Estados Unidos, de uma perda de fábricas para a China, acompanhada de uma transição para uma posição ainda de vanguarda tecnológica na divisão internacional do trabalho. A economia brasileira está, como se diz, se “reprimarizando”; com isso, em geral se quer dizer que voltamos a nos especializar na exportação de soja, carne, laranja, açúcar, café, minério de ferro e petróleo. Talvez dê para acrescentar o nióbio nessa lista, não sei. Dizem que temos programadores e artistas gráficos muito criativos; é uma pena que tantos tenham que ir trabalhar no exterior, assim como tantos pesquisadores, engenheiros, artistas e demais representantes da economia que gera valor agregado. A perspectiva do jovem de classe baixa, ao entrar no mercado de trabalho, está hoje em trabalhos precários e com pouco horizonte de evolução pessoal. É sintomático como hoje, o personagem-símbolo do jovem trabalhador brasileiro é o entregador de aplicativo.
2) É preciso dizer algo sobre o que se passou com a diplomacia brasileira nos últimos dois anos? A transformação desse ativo construído com tanto esforço em uma máquina de cuspir abobrinhas e perder alianças figura entre aqueles crimes tão graves que mal nos damos conta. Que tenhamos sujeitado os interesses do país aos caprichos de um único líder estrangeiro é algo que pode deixar nossa imagem arranhada por bastante tempo. Ter um mandatário que balbucia mentiras delirantes na Assembleia Geral da ONU apequena o Brasil muito mais do que uma goleada sofrida em casa para a Alemanha (pelo menos eles terminaram como campeões!). Unir-se a ditaduras teocratas contra alguns direitos humanos básicos pode nos tornar párias por toda a eternidade.
No campo econômico, aliás, até agora não sei dizer se nossos governantes são a favor ou contra o acordo da União Europeia com o Mercosul. Chegaram, é verdade, a um texto definitivo (costurado antes, como se sabe); mas não só o ministro da Economia já vinha bombardeando o Mercosul antes mesmo de tomar posse, como depois da assinatura do acordo a diplomacia brasileira e o governo têm feito de tudo para garantir que ele não será ratificado pela contraparte europeia.
3) Também não é difícil perceber que nosso “soft power” está, para dizer o mínimo, bastante abatido. As imagens de animais carbonizados no Pantanal estão correndo o mundo. Em escala, alcance e importância bem menores, as declarações de Bolsonaro e sua entourage sobre Brigitte Macron fizeram o mesmo no ano passado. A negligência com o petróleo nas praias do Nordeste não passou despercebida.
Mas a perda de prestígio e portanto “soft power” não data das votações obscurantistas na ONU ano passado, nem do “golden shower”, nem do jogo de acusações cínicas sobre as queimadas. Tudo isso são bombas, é claro, que revelam ao mundo algo do que está por trás daquela máscara de país simpático. Mas o mundo já tivera, a essa altura, alguns aperitivos do que realmente constitui o modo de atuação do brasileiro.
Provavelmente a primeira ocasião tenha sido a Minustah, embora aquele ainda fosse um momento de otimismo e admiração com o Brasil, que tinha candidatura para sediar Copa e Olimpíada, presidente operário e ministro da Cultura tocando guitarra com Kofi Annan. Pois bem, ao mesmo tempo, os militares deste país deixavam de ser “médicos sem paciente” para encabeçar a desastrosa operação de paz no Haiti, onde não faltaram massacres, estupros, disseminação de doenças contagiosas e, ao final, claro, uma situação de violência e abandono praticamente sem alterações.
Há algo particularmente grave nesse caso, por sinal. Sabemos que as ditaduras latino-americanas tinham um gosto pronunciado por sumiço de cadáveres. No Haiti, porém, não só os soldados brasileiros foram instruídos a alvejar até mesmo quem se aproximasse dos corpos abatidos pelas tropas, para lhes dar sepultura digna. Para piorar, lideranças brasileiras da Minustah falam abertamente e com aprovação dessa ordem, tripudiando dos mortos.
Como dar a dimensão da imagem de horror que um país transmite quando age assim? O respeito aos mortos, mesmo inimigos, mesmo criminosos, é um elemento cultural quase universal. É tema de uma das principais tragédias gregas (Antígona). Pois bem, o Brasil fez papel de Creonte, o rei delirante que ofende os deuses e termina isolado em meio às ruínas de sua dinastia. Ao se decidir por esse papel, reencenando em escala reduzida o pecado original da Guerra do Paraguai, o país deu um primeiro passo para se tornar o que hoje já se consolida: alguém que não se importa de ser apresentado perante o mundo como abjeto, indigno de qualquer estima. Um país capaz de deixar terra arrasada e uma trilha de animais mortos pelo chão, só para vender gado e soja; capaz de premiar com a impunidade quem assassina rios com minério tóxico ou deixa adolescentes morrerem para economizar em alojamento. Uma terra que, por trás da aparente jovialidade, empilha atrocidades sem remorso e celebra os algozes de seus filhos.
Por quanto tempo aqueles tais jovens de Bobigny e Soweto ainda vão se dispor a simpatizar com um país desses? E que chefes de Estado vão aceitar a diplomacia brasileira como mediadora de seus conflitos? Que grande corporação vai ter interesse em colocar aqui a sede de suas operações regionais? Tudo isso são empobrecimentos, perdas que custarão décadas a reparar.
4) Por fim, parece bastante evidente que o país está renunciando a tratar seus recursos naturais com a devida seriedade. Além de tudo que já foi dito sobre o horror dos habitats destruídos, a aceleração de extinções, o risco de alteração perene, irreversível, do regime de chuvas, a intensificação da erosão, a perda de nutrientes, a destruição de modos de vida, o genocídio dos povos indígenas, devemos ter em mente que também é consumida pelas chamas a principal perspectiva de garantir a prosperidade, ou pelo menos o bem-estar da população nas próximas décadas. Tudo em nome do curto-prazismo de quem espera milagres da soja e do gado para manter um certo equilíbrio na balança de pagamentos. Sem falar, claro, no papel da especulação de terras na ocupação da Amazônia e do crime organizado na derrubada de madeira.
Vale dizer que a catástrofe da gestão ambiental no Brasil também precede Bolsonaro; quanto a isto, duas palavras bastam: Belo Monte. Vá lá, uma terceira: Samarco. A usina no Xingu, por sinal, se justificava com o pressuposto de que transmitir eletricidade da floresta amazônica para o sul serviria para garantir a segurança energética necessária àquela indústria que há muito já se decompunha. Por cínica e sinistra que seja a assim-chamada política ambiental deste governo, ela se estrutura a partir de uma matéria-prima amplamente disponível no país: o gozo da devastação.
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Ficam de fora dos quatro itens muitos retrocessos que estamos vivendo, e que são pelo menos tão graves quanto os citados. A destruição dos mecanismos de transparência do Estado e de combate à corrupção, por exemplo, tem potencial para ser o legado mais duradouro do período bolsonarista – isto, é claro, se a destruição de biomas ora em curso não se tornar irreversível. A sabotagem à LAI, a sujeição do MPF, o aparelhamento do Judiciário e da PF, as tentativas de controlar o pensamento nas universidades e a informação na imprensa podem pôr a perder tudo que se conquistou desde 1988. Mas o objetivo do exercício não é mapear todos os nossos retrocessos, e sim apontar uma dinâmica de empobrecimento; e a esta altura ela me parece clara.
Podemos ver que, dos quatro itens destacados, o período com Bolsonaro só é plenamente responsável por causar a reversão ou a derrocada no caso da diplomacia. Nos demais, sem dúvida, esse caótico mandato provocou uma aceleração da piora, em quadros que já eram ruins, ou desequilibrou para o lado destrutivo situações até então ainda em aberto. Podemos colocar assim: estamos em queda-livre dentro de um abismo, mas antes já estávamos rolando em direção a ele. Assim sendo, Bolsonaro, longe de constituir um “choque externo”, é antes um sintoma de processos patológicos em curso no (digamos) organismo do país, ou uma perturbação que precipitou reações em cadeia já potencialmente dadas.
Sem dúvida, a aceleração de um processo destrutivo ou sua precipitação, por si mesmas, são desastres terríveis, já que achatam a possibilidade de reagrupamento, resposta, busca por alternativas. Mais perniciosa ainda é a capacidade que figuras como Bolsonaro têm de manter as atenções sobre si, ou seja, sobre o sintoma, e não sobre o processo e seus determinantes, e menos ainda sobre o que pode ser imaginado para além dele. Esta é, claramente, uma grande força; figuras assim triunfam porque compõem sumidouros afetivos e intelectuais que engolfam as atenções do país, reduzindo o debate político e o raciocínio estratégico a uma tática de confronto voltada, no máximo, para a próxima eleição. No caso dos políticos da era digital, é até pior, porque a munição é sempre esgotada escaramuça a escaramuça. A ansiedade com que acompanhamos as oscilações da popularidade do ocupante do Planalto é neurótica, mas principalmente no sentido de ser o signo de uma grande neurose coletiva.
Falando em neurose, o Brasil de hoje faz pensar em alguns esquemas psicanalíticos; é como se, de súbito, todos os seus monstros viessem à tona, de uma vez só. Mas ainda que coloquemos as coisas nesses termos, continuam sendo os nossos monstros, nossos velhos monstros. Por isso, é tentador atribuir o pesadelo que atravessamos a atavismos, ou seja, a formas recorrentes, talvez permanentes, da vida política do país, que residiriam numa espécie de inconsciente coletivo. Eu mesmo já adotei várias vezes essa estratégia e não considero que seja um erro, contanto que não se confunda o percurso mental com alguma descrição factual. Efetivamente, lógicas de exploração colonial, escravista e patrimonialista permanecem, se reproduzem e se adaptam ao longo da nossa trajetória, o que está visível, hoje, mais que nunca.
Um perigo dessa abordagem é recair no conformismo ou no fatalismo, como se houvesse um – me desculpe – destino manifesto. Acontece que algumas das monstruosidades são, de fato, atavismos. E sua característica de “reemergência de um passado” é tanto mais forte na medida em que o processo de empobrecimento é a perda de algo que chegou a ser ganho. Que o salário inicial de juízes, diplomatas e procuradores seja mais alto do que o rendimento no ápice da carreira dos professores titulares de universidades federais é, claro, um escárnio; muito mais, porém, é a expressão de um país bacharelesco e cartorial que nunca foi embora. Que magistrados tenham praticamente licença para cometer crimes (já que punições dignas do nome são impensáveis), idem: não deixamos de ser um país onde o acesso às esferas mais altas do poder público é um salvo-conduto para a infâmia. Os efeitos práticos dessas nossas distorções são diluídos em épocas de prosperidade, já que o bolo é maior; mas em tempos de retrocesso, são um veneno.
Por isso, as leituras do momento atual acabam oscilando entre dois pólos. De um lado, a análise de conjuntura – sendo que a conjuntura em questão muda violentamente a cada poucos meses (ainda mais este ano!). Do outro, a repetida denúncia dos vícios eternos a que estamos sujeitos como país, nossos “pecados originais”, por assim dizer. Mas há uma enorme conexão entre esses dois pólos – aliás, é isso que faz com que sejam, justamente, pólos de algo. Isto é que precisamos explorar: como esta conjuntura se produz, no contexto de uma etapa histórica em que a tradição de distribuição de poderes se manifesta de determinada maneira? Como se encadeiam as circunstâncias conjunturais, ou seja, como uma determinada configuração leva à seguinte? Que direções é possível tomar para produzir outro encadeamento, talvez até mesmo uma desconexão e uma ruptura com a referida tradição de distribuição e exercício dos poderes?
Em tempo: alguém poderia objetar que há, ou houve (quem dera!) uma onda internacional de vitórias eleitorais de líderes caricatos e, como se tem dito, populistas, o que não se explica pelo processo de longo prazo do Brasil, com seu empobrecimento. A objeção prosseguiria: a manipulação das massas por meio das redes sociais teve papel determinante na vitória de cada um desses líderes. De fato, essa onda existe; e o aparato técnico, comunicacional, informacional foi um instrumento importante para as tais vitórias. Mas é preciso entender que em cada um desses países, e também naqueles onde houve candidaturas igualmente populistas, mas derrotadas, foi necessário aos candidatos mobilizar afetos e dinâmicas já presentes. Um triunfo extremista não acontece do nada e não se alimenta de nuvens. O mesmo vale para as ferramentas digitais, que precisam de matéria-prima para trabalhar. Elas amplificam agitações latentes do campo social, porque lhe permitem constituir uma linguagem própria, uma estética, uma identificação, um mecanismo de disseminação que permite arregimentar, convencer, alinhar o discurso.
Assim, ao argumentar que o bolsonarismo acelera um empobrecimento já em curso, não estou negando sua participação nessa onda – o que seria impossível, dada sua mania de imitar Trump em tudo –, nem estou desprezando o peso das ferramentas digitais, “fake news”, “tio do zap” ou coisa assim. Ao contrário, o que ocorre é um ciclo vicioso, em que ao mesmo tempo esses dispositivos fazem de Bolsonaro o acelerador da derrocada e, no sentido inverso, o empobrecimento alimenta o estágio de vulnerabilidade que permite sua ascensão. É sua matéria-prima.
2 – Dinâmicas do empobrecimento
Vale a pena se concentrar um pouco no primeiro item do exercício, que contém mais elementos do que pode parecer à primeira vista. A questão da desindustrialização não está tanto na perda de fábricas, mas nas ondas de choque que a acompanham. Ao longo do meio século em que se tornou um país industrial razoavelmente relevante, o Brasil também se urbanizou, ainda que de forma desorganizada. As grandes empresas industriais fomentaram a diversificação do emprego, com maiores salários e exigências de qualificação do que havia na economia agrícola anterior. Não se trata só da emergência de um operariado consumidor, mas também a classe média urbana com suas funções de escritórios, de gerentes a advogados, publicitários a jornalistas. O acréscimo de produtividade financiou a expansão universitária do período, além da expansão da burocracia, para gerir essa sociedade mais complexa, e da emergência da célebre “burguesia nacional”, ou melhor, burguesia industrial, em torno da qual gravitavam os bancos e a trinca comércio/serviços/logística.
Não estou querendo promover aqui o elogio das sociedades industriais do século XX, que tiveram seu tempo e legaram muitos dos problemas gravíssimos, existenciais, que enfrentamos hoje. Nem quero obliterar todos os conflitos distributivos que se manifestaram nesse período, com efeitos muitas vezes trágicos e sujeitos ao “tunnel effect” de que falava Albert Hirschman: com conjunturas mais favoráveis, a transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos (na qual somos pós-graduados) aparecia como aceitável; nos momentos desfavoráveis, revelava-se um tanto menos aceitável, mas era mantida à força – isto, por sinal, não parece ter mudado. O que estou tentando esboçar aqui, como contraste com o cenário atual, é a questão do que se costumava chamar de “excedente”. Grosso modo, trata-se da ideia de que as sociedades vão criando formas de agir, gostos e confortos, a partir do que são capazes de gerar além do estrito necessário para viver. Também é uma representação um pouco esquemática, já que faz parecer tudo que denominamos “cultura” como algo que emerge após a resolução do problema da subsistência, um pouco como na famosa pirâmide de Maslow. Mesmo assim, continua valendo a pena pensar o termo “desenvolvimento” desta maneira, aliás fiel à etimologia; não se trata de explorar mais e mais territórios, mais e mais recursos para continuar fazendo mais do mesmo, com os mesmos resultados. Trata-se de construir em cima do consolidado, encontrando modos de aproveitar as capacidades que vão se configurando para incrementar a vida. Caso contrário, o termo nem sequer faz sentido.
A questão é que aquela sociedade industrial não precisava só da tal “burguesia nacional” (não confundir com donos de lojas de departamento ou redes de hamburgueria), mas de uma classe de executivos, analistas, pesquisadores, engenheiros, juristas, comunicadores e gestores públicos, e assim por diante, todos capazes de antever os movimentos do sistema global de produção, circulação e financiamento. Caberia a esse vasto grupo de pessoas garantir que o sistema produtivo local se mantenha competitivo e em condições de se revolucionar internamente, na medida em que o próprio capitalismo vai se revolucionando. Tendo falhado em responder às demandas por maior investimento no célebre “capital humano”, além de uma série de outras falhas bem conhecidas, o Brasil perde justamente o impulso de produtividade que levaria adiante esse processo. Mais ainda, perde a capacidade de produzir o excedente que permitiria pagar por ainda mais complexificação, reforma urbana, investimento em educação e ciência etc. Ou seja, mais do que o problema da participação do setor secundário nas exportações e no PIB, a desindustrialização diz respeito, primeiro, à renúncia a continuar participando das transformações tecnológicas; já não participamos da dita “terceira revolução industrial” e nem sequer sonhamos em participar da quarta.
Resumindo, não tivemos nem uma Samsung, nem uma Huawei. Por sinal, nem mesmo uma Embraer temos mais condições de manter. E justamente essa renúncia vai reverberar nos demais itens da minha pequena lista: a perda de ambições diplomáticas reflete a degradação da materialidade dessas ambições. O ataque aos biomas e a ofensiva violenta do extrativismo se sustentam no ganho de poder relativo desse setor. Quanto ao “soft power”, que inspiração pode vir de um país que se entrega de corpo e alma, prostrado, à regressão?
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Um aspecto trágico desse processo de empobrecimento é que, na verdade, uma reversão ao estágio anterior não é possível. Tudo seria menos traumático, embora igualmente lamentável, se desse para simplesmente regressar ao estágio de pequeno país despovoado e agrário. Mas as ruínas de uma construção interrompida não são um terreno baldio. O cenário de um país que empobrece não é o mesmo do velho país pobre. As cidades estão todas aí, inchadas e deficientes em infraestrutura. Categorias sociais que se acostumaram a ter expectativas razoáveis não vão simplesmente recair na aceitação da miséria. Por mais incompetentes que sejam os gestores públicos (e nem sempre são); por mais mal desenhada que seja a lei de licitações (uma unanimidade!), nada disso basta para dar conta da degradação urbana, da logística defeituosa, da dominação territorial de facções criminosas, da desmontagem de equipamentos culturais. Estamos vivendo um processo ao mesmo tempo político e econômico (duas dimensões que se retroalimentam e, na prática, se confundem) que, ao promover empobrecimento e enfraquecer o cotidiano democrático, conduz a todos esses efeitos.
Daí decorre uma série de outros problemas, o primeiro dos quais está diretamente relacionado ao tema da biodiversidade e dos recursos naturais. Estarão na vanguarda das próximas décadas os países que forem capazes de fazer a transição para uma economia menos destrutiva e mais regenerativa. A capacidade de investir em materiais biodegradáveis e em energias não poluentes será crucial. Mas não é só porque biomas inestimáveis como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal estão sendo destruídos que o Brasil fica em péssima posição para essa corrida. É também porque as universidades e demais centros de pesquisa que poderiam ser os motores dessa dinâmica da transição, com invenções, patentes, práticas, estão sendo sufocados e vilipendiados. E porque os cérebros que se investe para formar acabam precisando se instalar em outros países, ou se ocupam aquém de sua capacidade – o famoso “brain drain”.
Este resumo também ajuda a entender um pouco melhor o fracasso da versão dilmo-manteguista do nacional-desenvolvimentismo, que foi artificial (projetando um apoio empresarial que há muito já não estava lá), anacrônico (favorecendo setores caducos e redundantes) e distorcido (reforçando, ao contrário do que pretendia, a posição degradada do país na divisão internacional do trabalho). O primeiro ponto a ressaltar é que, a esta altura, um esforço de reindustrialização não pode ser literal. A tarefa não é restabelecer as indústrias que o país já teve – que, afinal, eram adequadas à década de 70, ou melhor, ao salto que era preciso e possível dar naquele momento. Uma vez que se decidisse tomar a rota de um novo impulso para o desenvolvimento (a expressão que se usava era “superação do subdesenvolvimento”, que talvez devamos voltar a adotar), seria preciso encontrar as brechas pelas quais os setores produtivos instalados no país poderiam penetrar as cadeias de valor, progressivamente ampliando (o mais rápido possível, na verdade) o nível tecnológico da presença nessas cadeias. Nesse sentido, as fábricas de alumínio alimentadas por Belo Monte seriam praticamente irrelevantes.
3 – Esgotamento político
Ainda um tanto esquematicamente, poderíamos aproveitar essa noção do excedente para tentar explicar a crescente instabilidade social e política. Vale começar observando que, apesar de todos os avanços institucionais e da enorme melhora de muitos indicadores, todo o período da Nova República foi pontuado por crises econômicas pequenas e grandes, transições nem sempre harmoniosas de poder, escândalos de corrupção e improbidade, abafados ou não. Não me refiro só aos dois impeachments, ao aventureirismo que nos trouxe Collor e Bolsonaro, aos inúmeros programas de estabilização que precederam o real, às avalanches financeiras dos anos 90, à série de escândalos de corrupção, à recessão em 2015 e 2016, a junho de 2013 e a subsequente dominação das ruas por uma direita cada vez mais extremista.
Mesmo os momentos aparentemente mais tranquilos foram abalados por tensões graves. Em 1998, foi necessário o famoso “estelionato eleitoral” do câmbio para garantir a reeleição de Fernando Henrique; em 2002, a eleição de Lula não se deve apenas à articulação do PT, mas também à decepção da sociedade, em geral, com o desempenho econômico dos anos anteriores (lembrando que 2001 teve a crise energética); em 2006, o que parece hoje uma vitória de lavada de Lula sucedeu à crise do mensalão, em que a oposição fez a aposta (que se revelou equivocada) de “deixar sangrar” o presidente, em vez de tentar derrubá-lo (se é que teriam os votos necessários); comparada com 2014 e 2018, hoje nos parece que a eleição de 2010 foi um mar de sossego absoluto, mas foi até então o que de mais agressivo eu tinha visto, com um uso desavergonhado da (falsa) religiosidade que só faria se ampliar dali por diante.
É possível atribuir boa parte desses problemas ao recrudescimento do conflito distributivo (já mencionei isso antes) em tempos de produtividade estagnada e excedente idem. A relativa tranquilidade da era Lula, em que se dizia que, dessa vez, o Brasil ia “chegar lá” e “decolar” (lembra da Economist?), pode se explicar pela razoável folga, essencialmente financeira, ofertada por um mercado externo favorável. Não estou dizendo que a equipe de Lula é desprovida de méritos por seus sucessos, sobretudo na inclusão social – que, por sua vez, também alimenta o bom desempenho econômico –, e em uma série de avanços institucionais que, de fato, ajudam a justificar o otimismo. O que posso dizer, aí sim, é que nada disso teria sido possível durante um período de tormentas no plano externo e apertos no balanço de pagamentos. Com tudo isso, foi um período de câmbio sobrevalorizado, o que não favorece investimentos na produção local e serve, no mínimo, como indício de que, no fundamento, algo ia mal. Sem chegar a explicar predominantemente pela sobrevalorização do câmbio as agruras do setor produtivo e da economia como um todo, vale a pena se concentrar na ideia do câmbio valorizado como signo e sintoma. Não se trata de apontar que, para segurar a inflação, o dólar barato corrói a economia local; e que garante o consumo no curto prazo à custa de juros altos e produtos importados. A questão é que esse equilíbrio de curto prazo era mais instável do que parecia, reforçando a tendência a apoiar a estabilidade política numa certa engenharia econômica que, na verdade, não está garantida, e cujos alicerces vão se corroendo com a passagem do tempo.
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O problema é que muito da estrutura política com que estamos acostumados é tributária do período histórico em que ocorria a industrialização e a sociedade que se constituía a partir de suas dinâmicas. Se o Brasil chegou a produzir um partido de massas do porte do PT, é porque havia massas suficientemente fortes, coesas e organizáveis, com ambições políticas e influência social, ainda que desigualmente distribuída no país e, portanto, não tão forte assim. O PT começou com as greves do ABC, mas também com as demandas de uma classe média letrada e progressista, sobretudo nas grandes cidades. Ao mesmo tempo, se havia uma direita liberal capaz de compor com essas massas, ou meramente se opor a elas com possibilidade de mediação, é porque no dia-a-dia os grupos de classe média e alta que nela votavam tinham de incorrer em constantes negociações com as demais classes, ao mesmo tempo em que viviam em constante ligação com a vertente mais progressista de sua própria classe.
É claro que este retrato é parcial. As configurações que as mensagens políticas vão assumindo ao longo do tempo são complexas e não se encaixam perfeitamente em divisões como esta, porque são moldadas de acordo com as particularidades do país. Por exemplo, à esquerda o trabalhismo chegou a ser comandado por latifundiários e se confundiu muitas vezes (aliás, continua se confundindo) com um certo corporativismo do médio funcionalismo público. À direita, as tentações gêmeas do udenismo e do malufismo (aqui, estou tomando Maluf como representante mais longevo do que um dia foi o “ademarismo”), muitas vezes vitoriosas, mais de uma vez deixaram entrever, por baixo do moralismo e do discurso de ordem por meio de violência estatal, raízes mais profundas na exclusão e opressão de classes inferiores.
Ainda assim, as recorrentes recaídas do país em governos autoritários, tradicionalistas, opacos, quando analisadas à luz do que se acreditava ser o processo histórico que o país atravessava, entravam na conta do “atraso”. Ou seja, pareciam representar o triunfo (temporário) de um bloco que se movimentava “mais lentamente” em direção “à modernidade”, um resquício de algo que ficaria inevitavelmente para trás. Hoje, podemos desconfiar de que havia dinâmicas mais vivas nesses episódios, e que a modernidade assim concebida tinha algo de quimérico, mal e mal calcada no modelo euro-americano. Em todo caso, vale observar que, além dos fenômenos mais recentes da política brasileira, o bolsonarismo também conjugou ambas as tendências regressivas das direitas (udenismo e malufismo); estamos longe do tempo em que, por exemplo, Covas e Maluf eram antagonistas virulentos.
Ao mesmo tempo, dizer que o surgimento de um partido como o PT foi possível graças à estrutura social do período não significa, é claro, que foi nessas condições que ele chegou ao poder, nem que se sustentou assim quando era governo, muito menos que seja assim hoje. A trajetória do partido é bem contada no livro de Lincoln Secco e as transformações de sua base de apoio geraram a expressão “lulismo”, destrinchada por André Singer. A burocratização é um fenômeno razoavelmente esperável; no mais, as transformações do PT são perfeitamente explicáveis pelo que se passou no mundo, no Brasil e no cenário político. O que resta a trazer à luz é como essas dinâmicas de transformação, tendo tomado impulso por conta própria e com a inércia de um transatlântico, tornaram o PT incapaz de responder às agitações dos últimos anos. Mais ainda, desconectado de sua base popular – ou seja, privado da base que chegou a ter –, tornou-se uma casca vazia, que se alimenta do mecanismo eleitoral que chegou a montar (como nenhum outro) e do prestígio que mantém graças à memória de tempos melhores e um certo número de quadros ainda bastante respeitáveis.
“Casca vazia”, aliás, descreve bem o destino dos principais partidos da nova democracia brasileira. Além do que já foi dito sobre o PT, o que foi que transformou o partido de Montoro e Covas nesse arremedo representado por João Dória? Cuja maior esperança de voltar ao proscênio é uma figura tão limitada como Luciano Huck? Por muito tempo, quando pensamos em centro-direita no Brasil, a imagem que vinha era a do PSDB. Hoje, é um grande vazio. Parte disso é porque, quando pensávamos nos votos “da Faria Lima” (leia-se “mercado financeiro”), também pensávamos no PSDB, mas hoje temos o Novo, um partido que se diferencia do bolsonarismo sobretudo porque preferia Paulo Guedes na cabeça da chapa. À parte isso, não tem lá muitas ideias, quando justamente estamos precisando de ideias.
Todo esse movimento tem bases mais profundas, me parece, do que a mera “desilusão” com os tucanos na esteira da Lava-Jato.
Afinal, como sabemos, o sistema político como um todo caiu em desgraça perante a opinião pública depois da Lava-Jato, que centrou fogo no PT, é verdade, mas respingou nas oposições e justificou o discurso do “ninguém presta”. Mas não devemos atribuir peso demais a Moro, Dallagnol e associados. O sistema já vinha murchando, como um balão escanteado, muito antes dos escândalos. A direita tradicional se colocou na areia movediça antes mesmo da esquerda petista, provavelmente por estar na oposição, a tal ponto que Dilma se reelegeu quando já estava mal avaliada, já que o candidato da oposição era profundamente insatisfatório.
Assim, é preciso ter claro que um dos motivos pelos quais os tucanos e demais representantes da direita tradicional embarcaram na arriscada estratégia do impeachment (quando se começa, nunca se sabe onde vai terminar), paralela ao projeto de cassação da chapa Dilma-Temer, é a constatação de que já vinha falhando em se apresentar como alternativa desde muito antes. Em 2014, com o governo Dilma já em frangalhos, ainda assim o PT pôde apostar na destruição da campanha de Marina Silva, porque se sentia seguro de que venceria contra Aécio Neves.
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Já deve ter ficado claro que estou tentando transmitir a ideia de que a perda de potência das forças políticas – principalmente os partidos, mas não só – reflete, ou pelo menos acompanha o empobrecimento generalizado do país. Em traços gerais, era disso que eu estava falando quando me referi ao esgotamento de todas as forças políticas relevantes, abrindo espaço para combinações teratológicas como a que estamos testemunhando. Ou seja, elas são sobretudo consequência, embora sejam capazes de intensificar o problema e criar problemas novos. Mas ao mesmo tempo é preciso enxergar que mesmo as formas teratológicas, em última análise, se mantêm a partir de uma estrutura de poder que de novidade não tem nada. A implosão das legendas de maior renome desnuda os mecanismos desse poder, por meio da proliferação de partidos novos ou com nomes mudados, e que na verdade são meros vetores para as categorias que sempre foram as mais poderosas no Brasil: latifúndios, cartórios, estamentos, sacerdotes. Com a derrocada de PT, PSDB, PMDB, PFL, o que cai é a cortina. O palco segue agitado como um formigueiro.
Sendo assim, podemos estimar que a incapacidade das esquerdas em propor alternativas viáveis não se deve nem a um emburrecimento generalizado, nem à calcificação burocrática do petismo, nem ao desaparecimento das pautas históricas. Se as correntes da oposição se perdem em brigas paroquiais e patrulhamentos estéreis, é porque não conseguem compor um projeto coerente de avanço social e econômico que contemple o conjunto dos setores que, a princípio, se sentiriam representados por plataformas de esquerda. Seria preciso recompor com esses setores, se isso for possível, ou desenvolver modos novos de compor com o que há. Voltar à prancheta, aprender outras linguagens. Ocasionalmente aparecem algumas sugestões de como isso poderia se dar, mas ainda há muito chão a percorrer.
Também podemos atribuir ao estreitamento do excedente o que parece ser uma limitação da efetividade dos movimentos sociais, em diversas frentes. Populações indígenas, por exemplo, estão basicamente na defensiva, embora tenham obtido vitórias importantes ao garantir demarcações e evitar retrocessos. Mas a perspectiva continua sendo de que os retrocessos precisem ser evitados, e nem todos serão – aí estão as queimadas como um sinal de alerta. Também a ocupação de espaços de decisão por pessoas negras ainda não reflete a expansão de sua presença em universidades, embora um certo número de empresas já tenham reconhecido a urgência de um esforço concentrado pela diversificação e o combate ao racismo. Houve ganhos nas pautas das mulheres, da violência policial, do direito à expressão (notadamente nas artes), na moradia. Podemos colocar nessa conta, também, o auxílio emergencial da pandemia, surgido da mobilização da sociedade civil organizada.
Mesmo assim, a sensação generalizada é a de que esses ganhos não conseguem criar raízes. Sentimos que as próximas ameaças serão sempre maiores. Todo dia, lemos notícias dizendo que policiais expulsos por sua relação com milícias serão readmitidos; que mesmo depois que se garantiu a uma criança estuprada o direito de interromper a gravidez, forças obscurantistas instaladas dentro do aparelho de Estado trabalham para intensificar as perseguições; que há dezenas de milhares de pessoas ameaçadas de despejo e nenhum interesse do poder público em evitá-lo; que vozes críticas ao governo têm sofrido assédio de instituições como o Ministério Público.
4 – Balanço
Nada disso deve ser entendido como negando que houve muitos avanços nas últimas décadas. Pelo contrário, o que realmente vale a pena apontar, e sempre, é o caráter crítico da tensão entre avanços sociais e institucionais, de um lado, e suas condições concretas, de outro; uma tensão que vai se intensificando e pode levar a sabe-se lá quais peripécias no futuro próximo. Como já mencionei em outro texto, muito do que ganhamos nos últimos tempos, devemos ao que se costuma chamar de “espírito da Constituição Federal de 1988”, o que pode soar um pouco místico, talvez idealista, mas faz sentido se pensamos que a Carta é fruto de um momento histórico particular e da atuação daquelas gerações que tinham grandes esperanças e expectativas. Resumindo bem, de gente que via a redemocratização como um retorno aos trilhos da modernização – que, como se tinha percebido sob a ditadura, não podia se limitar a ser a quimera da “modernização conservadora”.
Gostamos muito de lembrar dos defeitos da Constituição, seja por dar garantias pouco realistas do ponto de vista fiscal, seja por conter uma infinidade de penduricalhos (resultado da estrutura de votações da Constituinte), mas é bastante evidente que, de lá para cá, houve melhora substancial em diversos indicadores. O serviço público ganhou muito em organização, profissionalizou-se claramente. Os mecanismos de participação social foram muito fortalecidos. Este ano deixou claro como o SUS é indispensável; além disso, instrumentos como o Fundeb, por exemplo, são fundamentais para fortalecer a sociedade civil e elevar o grau de exigência com o poder público. Para dar só um exemplo, quando observamos quantas vezes o latifúndio teve de investir contra leis ambientais e terras indígenas, muitas vezes saindo derrotado, podemos constatar que temos um ordenamento jurídico que serve de anteparo contra as investidas das forças empobrecedoras (e cretinizadoras) do país. Resta ver, é verdade, até quando as normas constitucionais serão capazes de resistir. Não é tanto com eventuais reformas do texto constitucional que estou preocupado. Me causa muito mais frio na espinha a perspectiva de que efetivos poderes de uma conjunção de forças reacionárias e obscurantistas lhes permita simplesmente passar por cima do que está escrito aí ou em qualquer outro canto, lançando mão da pura brutalidade.
É fabuloso como as ferramentas desenvolvidas no período pós-redemocratização deram um bom fôlego à vida civil nas últimas décadas. De fato, a sociedade civil foi e continua sendo muito atuante, de maneira cada vez mais profissionalizada e conseguindo comunicar com o público. Já mencionei, de passagem, as articulações cada vez mais fecundas do movimento negro, feminismo, secundaristas, moradia urbana, quilombolas, indígenas, agricultura familiar. Vejo com aquela ponta sempre agradável de esperança a emergência de novas lideranças políticas, com muita energia e tocando no âmago de algumas das nossas maiores contradições, isto é, nos mais arraigados e funestos dos nossos elementos constitutivos.
A grande preocupação é que, em todo esse período, as condições concretas da transformação social a que essas mobilizações podem almejar, e que não são poucas, foram sendo minadas por debaixo de seus pés. Apesar de todas as vitórias, os avanços não chegaram a tomar uma dinâmica própria a partir de sua recente base institucional, porque ocorria simultaneamente uma degradação estrutural invisível; só agora podemos ver com clareza como bastava um baque para pôr muito (não tudo!) a perder. No cabo-de-guerra entre os movimentos emancipatórios e as forças do retrocesso, estas últimas parecem estar com um jogo mais forte, apesar de toda a persistência, de toda a luta. Por quê? Porque as transformações sociais precisam se apoiar em condições efetivas pelas quais elas possam ser incorporadas e vividas. Assim, por exemplo, quando forças políticas se valem de um certo tipo de religiosidade em benefício próprio, é verdade que estão remexendo alguns recônditos culturais bastante profundos, que remetem tanto ao papel das religiões na ocupação do território quanto ao uso de mão-de-obra sequestrada e forçada. Mas há algo a mais: para que esses elementos estejam tão disponíveis e em tanta abundância, é preciso que as populações tenham perdido outros fios de esperança. É preciso que essas mensagens, que são exigentes e muitas vezes inverossímeis, encontrem o terreno fértil de uma população à procura de respostas. Estamos perante o mesmo fenômeno de esgotamento de dinâmicas com que este texto se abriu.
Apesar de todos os desentendimentos que se seguiram, é preciso tratar a aliança de ocasião entre militarismo jagunço e religiosidade distorcida, que foi instrumental no triunfo do bolsonarismo, não só pelo aspecto (verdadeiro) da manipulação dos afetos políticos, mas também como sintoma do estreitamento de horizontes na vida quotidiana do país. O desejo da carnificina floresce quando a perspectiva de uma vida social satisfatória se torna inconcebível: a adoração cega às tropas como Rota e Bope é simplista e recorre ao que há de obscuro em todos nós, mas seu combustível é uma realidade encurralada e degradada, familiar a boa parte da população.
Ao mesmo tempo, lembro que, quando a maré começou a virar na economia brasileira, há coisa de seis anos, eu me perguntava, um tanto angustiado, o que aconteceria com a dita “teologia da prosperidade” depois que a tal prosperidade se esvanecesse. Sem surpresas, estamos vendo agora que o que aconteceu foi um recrudescimento de outra abordagem afetiva frequentemente encontrada, mas em geral secundária, em fenômenos religiosos: passou-se a investir em uma versão crescentemente paranóica do moralismo, onde a culpa pela situação econômica cada vez mais difícil recai sobre o comportamento acusado de extremamente pecaminoso dos outros. Um pouco como se o castigo para Sodoma e Gomorra não fosse fogo e enxofre, mas recessão e desemprego.
Não quero dizer com tudo isso que a expansão de formas agressivas, obscurantistas e excludentes de religiosidade seja um fenômeno restrito à população mais vulnerável, ainda mais empobrecida pela perda de renda dos últimos anos (vale lembrar que mesmo o parco crescimento depois da recessão esteve sempre abaixo da taxa de reposição populacional). Inúmeras camadas de classe baixa e média compartilham do mesmo sentimento de risco social e financeiro, já que uma proporção considerável da população precisa se desdobrar para pagar as contas (só o endividamento das famílias está em 67%, consumindo 30% da renda, o que não é pouco). Não ajuda nada que este seja um país onde o acesso a escola, saúde e mesmo transporte privado é um ponto de distinção (ou seja, que mesmo as famílias mais sufocadas financeiramente estejam dispostas a fazer de tudo para não ter de andar de ônibus e para que seus filhos não estudem em escola pública).
Ninguém se surpreenderia, portanto, ao constatar que são esses mesmos sentimentos que fomentam o fascínio pelos uniformes e os gatilhos leves – afinal, é a imagem de um pouco de ordem irrompendo na bagunça – e, por fim, a figura de Bolsonaro. Este último, embora objetivamente não esteja à altura de qualquer uma dessas vertentes (foi um militar fracassado, é moralmente repreensível em todos os níveis), conseguiu reunir todas elas e aproveitar sua dinâmica em benefício próprio. Paradoxalmente, embora fosse uma dinâmica de morte, era a única dinâmica realmente viva disponível no país. No momento em que escrevo, parece que há uma certa dissonância (além da cognitiva) entre os diferentes grupos que apoiaram Bolsonaro e seguem apoiando o, digamos, “espírito do bolsonarismo”. Assim como já havia acontecido quando da saída de Moro do ministério e em outras ocasiões, com a indicação de Kássio Nunes para o STF voltam os gritos de “traição” e coisa pior. Na revista Piauí, por sinal, podemos ler sobre como batem cabeça aqueles que não sabem bem definir se “são liberais” ou “são conservadores”, com essa tocante ingenuidade da identificação individual, tão característica do nosso tempo. Mas prestando atenção ao problema das dinâmicas vivas e mortas, recomendo não se animar com a barulheira: na primeira ocasião, ainda que com outro nome, malufistas, udenistas, militaristas, extremistas religiosos, fascistas “de facto” e aproveitadores de todos os matizes vão caminhar de braços dados novamente.
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Como caracterizar uma situação dessas? A resposta habitual tem sido discutir se o bolsonarismo é um tipo de fascismo; isso me parece quase uma obviedade, mas não vejo como avançar muito a partir daí. Talvez valesse mais a pena subir um degrau e perguntar que tipo de momento faz com que os fascismos, de qualquer tipo, emerjam de suas sombras habituais. Melhor ainda, poderíamos perguntar: mas o fascismo é um tipo de quê? Tudo isto nos traz mais para perto do problema, com sua dinâmica própria, do que a mera tipificação; classificar não é o nosso problema, superar a tendência catastrófica ao empobrecimento é.
Agora, se o tipo de vinculação afetiva que conduz aos fascismos e ao bolsonarismo é algo que, como afirmei no início, permeia o campo social em toda parte, emergindo nos momentos de dinamismo esgotado e conflitos incontroláveis, então cabe a todo não-fascista, a todo democrata, buscar modos de constituir dinâmicas mais fecundas e construtivas, devolvendo as pulsões de morte aos cantos obscuros onde costumam viver, de onde causam menos danos.
Nosso desafio imediato é esse mesmo em que temos nos concentrado, ou seja: vislumbrar como se pode sair do buraco. É enorme a vontade de acreditar que só é preciso melhorar a organização das forças políticas, com ou sem frente ampla; ou ainda, que basta a população tomar consciência de que está no buraco, para que pelo menos o país viva suas crises intermináveis sem a dose diária de vulgaridade oficial. Mas acho que, no fundo, sabemos todos que não vai ser assim.
Se os antecedentes servem para algo, neste caso vai ser para nos deixar com as barbas de molho. Nas outras ocasiões em que dinâmicas destrutivas e opressivas chegaram a constituir governos, foram bem mais estáveis do que se poderia apostar, ainda que graças a fortes doses de violência e corrupção. Dinâmicas mórbidas geram insatisfação mesmo em quem as apoiou (e passa a se dizer traído). Mas tomam corpo, conseguem disseminar sua própria lógica, se tornam o ritmo hegemônico da vida. Sim, os fascismos podem ocupar o centro de nossas vidas, a ponto de não encontrarmos nenhum ponto comum de ancoragem melhor do que se declarar “anti-fascista”. Ora, mas ser anti-fascista é o mínimo! O que temos a oferecer à população além de “sair do buraco”, se nem somos capazes de descrever o que existe para além do buraco?
Desconfio que só sairemos desta enrascada quando enfrentarmos a questão do processo de empobrecimento – que é, repito, multidimensional, envolve a perda de prestígio, de sofisticação, de diversidade, de perspectiva, até mesmo de esperança. E em que consiste enfrentá-lo? Antes de mais nada, o enfrentamento teria que passar longe do saudosismo (espero não ter soado saudosista neste texto!); teria que se alimentar das aspirações de fato presentes no campo social, e que são muitas. Teria que ressoar com os desafios e possibilidades abertas hoje, em nosso tempo.
Neste ponto, os quatro itens do exercício da primeira parte podem servir de guia (sem querer ser presunçoso); mas se buscamos interromper a reprimarização, se não queremos que o território seja definitivamente uma enorme monocultura pontuada de minas, então o que aspiramos a produzir? E se não desejamos ser párias, que rosto esperamos mostrar ao mundo? O quarto item talvez seja o mais fecundo, considerando o peso da crise ambiental para o futuro da humanidade. Temos condições técnicas, intelectuais e financeiras para refundar nossa economia em bases completamente diferentes: descolonizada, sustentável, regenerativa, equitativa. Existem, portanto, bandeiras disponíveis e caminhos a seguir. O que nos cabe, então, é redirecionar nossos afetos, sufocar as tendências mórbidas dos fascismos, amplificar as dinâmicas férteis.
Saio para regar as plantas e avisto à distância, no meio de um céu ocre e desolado, uma andorinha voltejando. Uma única andorinha, ágil como sempre, mas estranhamente solitária. Estranha como o próprio céu – que cheira a lenha, ou a cinzas de cambarás, piúvas, bocaiúvas e carandás.
Perto da janela dos fundos, as andorinhas fizeram um ninho, então estou acostumado a vê-las em bando. Só que, desta vez, é uma só. O velho dito popular sobre o “não fazer verão” me vem à mente, mas impregnado de ironia: pelo calendário oficial, estamos em pleno inverno, mas a imagem que me ocorre é a do estio, que a presença da andorinha vem negar.
É inverno e faz calor. E antes mesmo da primavera, a natureza já indica que o verão foi abolido.
Se fosse no tempo da minha adolescência, os jornais já estariam dando alguma trivialidade sobre o “veranico”: uma ou duas semanas de calor, que permitiam enxertar uma retranca prosaica no meio da torrente de notícias pesadas.
“Veranico”, palavrinha recorrente em outro século! Desapareceu, foi esquecida, junto com o período que servia para nomear – a breve interrupção do inverno em São Paulo.
Hoje é sábado, faz calor no meio do inverno, mas não é um veranico. É só mais um dia quente, acima dos trinta graus. Como foi ontem e como amanhã deve ser.
O noticiário, então, tem que se contentar em fazer o oposto: dar palanque a gente do naipe de Aldo Rebelo ou Eduardo Bolsonaro, quando se aproveitam da semaninha de frio que tem feito no inverno para negar a evidência de que os anos têm ficado cada vez mais quentes.
Virou notícia, fazer frio no inverno! Por que não adotamos “invernico”, como antes tínhamos um “veranico”? Fica a ideia: se por acaso calhar de fazer frio no inverno em São Paulo, podemos pautar um “invernico” e aligeirar o noticiário. Que tal?
Falando nisso, esse frio passou por aqui faz uma quinzena, mais ou menos. Agora, só ano que vem – com sorte. Vamos deixar o “invernico” guardado, então.
Hoje, a andorinha voa no calor e no céu ocre que cheira a cinzas. No sentido literal, ela não fazer verão seria até boa notícia. Como costumavam dizer os cariocas, e agora dizemos todos, o oposto do inverno é o inferno.
No sentido figurado, ao contrário, parece que nunca mais teremos um verão. Pensando bem, parece mesmo é que estamos presos indefinidamente num monstruoso inverno escaldante.
A andorinha volteja atrás de insetos, sozinha. Será que ela baila no ar para informar que não podemos almejar um verão, que nunca mais viveremos uma primavera?
No fundo, nem penso em primaveras, mal lembro o que é isso. Penso nas plantas, que estavam secas e agora estão molhadas. Penso por um instante na garganta, que arranha, e nos olhos, irritados pelo ar denso, carregado com os restos de biomas mortos. Fecho a torneira, volto para dentro, lembro de não deixar a janela aberta.
[Prelúdio: escrevi o que segue abaixo entre domingo (31/5) e segunda-feira (1/6). De lá para cá, boa parte do assunto que motivou o texto perdeu relevância, soterrado por eventos mais impactantes e relevantes, como a mobilização anti-racista que ecoa a partir de Minneapolis. Eis aí mais uma maneira pela qual uma imagem pode não fazer história: quando é surpreendida por uma avalanche de estímulos – coisa que, de uns anos para cá, não tem faltado…]
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Manifestações em geral sempre rendem um bom número de imagens interessantes, por bem ou por mal – quer dizer, pelas bandeiras agitadas ou pela fumaça das bombas. Desde 2011, tivemos tantos protestos que pareceria impossível surgir algo digno de nota. Tolice: o campo de possibilidades para que emerja algo capaz de ressoar conosco está sempre em expansão. Considerando a infinita redundância de imagens que nos inundam, seria de se esperar que o universo daquelas que são significantes e informativas estivesse em contração; mas é justamente da atmosfera sufocada em redundância que pode saltar o relevante. Parece que isso ocorreu domingo em São Paulo.
O embate entre neofascistas e antifascistas de 31/5 produziu tudo que costuma se produzir em termos de iconografia de protesto. Bandeiras, punhos erguidos, gente segurando microfone, policial apontando arma, escudos, bandanas, fumaça. Tivemos até algumas novidades bem desagradáveis, como a exibição de tacos de beisebol (velho símbolo anglo-saxão de agressividade) e bandeiras ucranianas de inspiração neonazi. Do ponto-de-vista iconográfico, porém, nada seria novo, a princípio; editores de jornais e revistas poderiam escolher qualquer das imagens corriqueiras de seus fotógrafos ou das agências para ilustrar suas capas.
Mas no próprio domingo, quando os envolvidos mal tinham voltado para casa, em plena indignação pela repressão policial (e o tratamento amistoso à fascista com o taco de beisebol), as redes sociais já tinham elegido uma fotografia como favorita: esta com o entregador de aplicativo (bicicleta? moto?), com a caixa térmica nas costas, máscara de hospital no rosto, prestes a lançar uma pedra, provavelmente contra a polícia.
O gesto, o movimento, a postura do corpo, nada disso tem qualquer coisa de novo e é provavelmente por esse exato motivo que o fotógrafo (Nelson Almeida, da AFP) abriu o obturador nesse momento preciso – e depois escolheu esse clique em particular para editar no computador. De relance, a memória de quem estudou semiótica e a história do fotojornalismo captou a possibilidade de produzir uma imagem relevante não pela novidade, mas pela citação, isto é, pela inserção numa trajetória canônica. Mas é claro que o interesse não se encerra aí: a partir dessa inserção, aí sim, e por causa dela, poderão emergir as diferenças, que tornam essa imagem significativa a ponto de ter conquistado a atenção, mesmo que por poucas horas, das redes sociais – tão inundadas, tão sufocadas por imagens.
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Talvez tenha sido com o maio de 1968 francês que a figura de manifestantes atirando pedras se tornou canônica. Por sinal, a sublevação estudantil da rive gauche forneceu uma série de padrões tanto para protestos urbanos quanto para sua representação nas décadas seguintes. Mas frequentemente capas de livros ou cartazes de filmes sobre o episódio trazem a escolha de alguma das fotografias de jovens se fazendo de catapulta humana, apertados em seus paletós “dandy”.
Desde então, a personagem do jovem que arranca o calçamento e o atira contra policiais ou soldados se tornou uma espécie de ícone do conflito social deflagrado. São abundantes as imagens de rapazes palestinos prestes a lançar uma pedra contra armamentos vastamente superiores – inclusive com o uso de fundas, o que traça um vínculo estranho, que começa no estético e o ultrapassa, entre nosso tempo e o Antigo Testamento.
Gênova, Primavera Árabe, Occupy, praça Taksim, junho, sempre fornecem algumas imagens nessa linha, às vezes muitas. Talvez a consagração do gesto do lançador como síntese da manifestação de rua esteja no mural de Banksy em Jerusalém (“Love is in the Air, or: Rage, the Flower Thrower”), em que o manifestante, de rosto coberto por uma bandana e boné virado para trás, se prepara para lançar flores: o corpo em preto-e-branco, as flores coloridas. Graças à agilidade do estêncil, a imagem se espalhou por paredes e cartões postais de todo o planeta, empapada com o mesmo tipo de ironia que acomete aquele retrato do Che feito por Alberto Korda, hoje quase uma logomarca.
É, de toda forma, um gesto como poucos para atiçar o interesse de fotógrafos e todo tipo de artista fascinado pelo corpo. Rodin, se tivesse vivido um século mais tarde, sem dúvida ficaria encantado com os braços esticados, o peito aberto, as pernas dispostas de modo a lembrar vagamente o “Gong Bu” (posição do arqueiro), e teria esculpido de alguma maneira o manifestante com o petardo engatilhado. Não foi à toa que a personagem se consolidou no imaginário da iconografia política. Se quisermos voltar ainda mais longe, dá para dizer que a figura remete também à antiguidade clássica: o atirador de lança da escultura grega, como no célebre “bronze de Artemísio” do período austero. E foi também uma das personagens escolhidas pelo pioneiro Eadweard Muybridge para suas fotografias quase cinematográficas de decomposição do gesto.
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O entregador de aplicativo não é um estudante da Sorbonne ou de Nanterre, nem um soldado das falanges gregas, nem um esportista. Ou, para dizer a mesma coisa de maneira um pouco mais direta: o entregador de aplicativo é uma figura paradigmática da nossa década. Precarizado, sujeito ao controle algorítmico da economia de plataformas (ou, mais amplamente, a “gig economy”), tratado como empreendedor individual pelo patrão e pela Justiça, serpenteia pela cidade da “big data” atomizada, em busca de boas avaliações e uma remuneração fundada sobre baixas porcentagens do preço das entregas.
A bem dizer, o entregador de aplicativo é praticamente o oposto do estudante da Sorbonne. Mas se uma foto sua, congelado em pleno gesto de preparar o lançamento da pedra, se conecta com essas figuras icônicas e canônicas, sejam históricas ou ficcionais, justamente essa dissonância é que chama nossa atenção. Esta é, digamos assim, a diferença que resulta da repetição, como o isótopo que escapa do átomo. É difícil determinar se a estereotipia do lançador irrompe na nossa realidade ou se é a nossa realidade que irrompe na linhagem estereotípica. O resultado no espectador, em todo caso, é algo da ordem do abalo afetivo, na linha do envolvimento subjetivo que Barthes denominou o “punctum” da fotografia, e que se destaca do contexto objetivo (“scriptum”) em que está representado um episódio ocorrido durante um domingo de protestos.
O abalo afetivo serve para trazer à superfície da consciência e do discurso essa personagem social contemporânea do entregador de aplicativo. Ela possui alguns traços que a tornam particularmente significativa neste momento. Ao longo dos últimos dois anos, tempo em que acompanhamos a chegada da extrema direita ao governo, essa categoria foi frequentemente analisada como sendo a porção da classe trabalhadora que não se abalou com a destruição de seus próprios direitos tradicionais, como classe. Motoristas, entregadores e outros braços da economia de plataforma teriam, supostamente, adotado a ideia de que são de fato pequenos empresários, que mandam em si mesmos e não dependem de ninguém.
É claro que o problema é bem mais profundo. Se a própria perspectiva de emprego com alguma segurança e direitos se esfacela, como tem sido a tendência e não só no Brasil, é natural que quem está tendo que se virar no precariado demonstre pouco interesse em lutar pela manutenção de direitos aos quais nem sequer teve acesso. A desconexão entre trabalhadores tradicionais e membros do precariado tem razão de ser e, além disso, caberia às instituições da classe trabalhadora organizada expandir suas pautas para abraçá-los, em vez de lhes apontar o dedo. Se os precarizados frequentemente acabaram adotando discursos incompatíveis com seu próprio interesse, se muitos chegaram a abraçar o bolsonarismo em algum momento, se não poucos ainda o abraçam apesar de tudo, é um efeito da posição que ocupam nas relações de trabalho e sociais em geral; algo que, pensando bem, não deveria surpreender.
Ao mesmo tempo, esses trabalhadores continuam sendo o que sempre foram, no essencial, aqueles trabalhadores que década após década tiveram que circular nas grandes cidades em situação mais ou menos precária, mas sem ter, efetivamente, acesso à cidade. Gente que vai de portaria em portaria, e não mais longe; ou que entrega documentos importantes na avenida Paulista, sem espiar o que dizem, e passa na frente de seus cinemas, livrarias e centro culturais, sem poder tomar um minuto que seja para visitá-los. O precário circula pela cidade como o sangue por um corpo, mas fora dos horários de trabalho é confinado à sua quebrada. No tempo da economia da informação e da comunicação, uma economia detalhada e instantaneamente logística, este personagem é mais decisivo para o metabolismo social e urbano do que os próprios produtores.
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Esta é a figura que conseguimos ver, tacitamente que seja, quando olhamos para um entregador de aplicativo, de máscara, atirando uma pedra. Do fato de estar carregando a caixa térmica nas costas, podemos deduzir que não foi à avenida, originalmente, para protestar, mas para trabalhar. É claro que uma imagem como esta esconde pelo menos tanto quanto mostra, o que significa que mil outras possibilidades existem: que tenha pensado em trabalhar depois de sair da manifestação, que tenha esticado seu tempo de trabalho para protestar, aproveitando que já estava ali, ou que tenha carregado a mochila consigo só para reduzir o risco de ser abordado de modo truculento pela polícia. Ainda assim, a associação entre seu trabalho – precário, algorítmico, urbano etc. – e a manifestação salta aos olhos: o trabalho foi o passaporte para a cidade, a manifestação e a fotografia.
Vale lembrar também que as manifestações políticas da última década foram reiteradamente criticadas, com razoável dose de razão (mas não toda), por atraírem um público sobretudo da classe média e das regiões centrais da cidade. Como se dizia, as classes mais baixas, os moradores das periferias etc., no geral, permaneciam indiferentes; não tinham acesso ao espaço, nem compravam a narrativa.
Nesse contexto, outra explicação para o abalo afetivo, para o “punctum” do entregador de aplicativo, é que ele seria, graças à representação inscrita na história iconográfica, a exceção ou, melhor ainda, o indício de que as circunstâncias mudaram. Uma correção de rumos, talvez. Em outras palavras: agora, sim, é o povo, o trabalhador, o precário, que está nas ruas contra o governo opressor, e com disposição para enfrentar a polícia e as maltas fascistas… Exagero? Talvez, mas estamos falando de uma sensação, não de um raciocínio.
Seja como for, no dia em que esta fotografia foi feita, tratava-se de uma manifestação em nome da democracia, contra apoiadores do presidente de extrema-direita, que vinham ocupando sozinhos aquele espaço, à sua maneira: com bandeiras do Brasil misturadas a emblemas neonazistas ucranianos, padrões da bandeira americana e da israelense, carros de som, tacos de beisebol (não me conformo com esse taco), gritos por cloroquina. Do lado anti-fascista, a liderança estava nas mãos de torcidas organizadas, sobretudo a do Corinthians – mas também se verificou uma dessas ocasionais confraternização de seguidores de clubes que sempre nos emocionam um tiquinho.
Nesse cenário tão insólito, a imagem que tocou, afinal, o coração dos espectadores foi a do entregador de aplicativo, caixa térmica nas costas, atirando uma pedra. Uma imagem, portanto, com implicações que transbordam a confrontação política ela mesma. E essa é a importância da figura do entregador, percebida subliminarmente por quem se encantou com a foto: está em jogo mais do que a relação entre estado democrático e perigo fascista, entre a população livre e as forças repressivas – não que isso não seja crucial, claro; mas importa muito perceber que estamos tratando das tensões das relações de classe do país como um todo; o destino daqueles que trabalham, ocupam as cidades, tiram delas seu sustento, e carecem do reconhecimento jurídico, institucional, de sua função no tecido social. A imagem é lembrete “do” político, além “da” política, e conclama ao reconhecimento de que é preciso ampliar não só a presença de grupos sociais nas manifestações, mas as próprias pautas. Enfim: é preciso tratar do destino que estamos traçando, enquanto população.
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Há outros pontos, porém. Uma imagem se deixa apreender e analisar por elementos, combinados no seu próprio quadro, ao contrário da cadência linear de um texto. Temos aí a caixa térmica e a pedra (na verdade, dá para ver que ele segura outras pedras, já pronto para iniciar – ou continuar – um bombardeio), que já foram tratadas. Poderíamos também engrenar uma especulação um pouco anódina, mas nem por isso menos interessante, sobre a ausência de um capacete, o que parece sugerir que é um entregador ciclista, não um “motoboy”.
Mas um outro elemento é mais fecundo e instigante, graças à sua ambivalência: a máscara.
Este é um tempo em que a máscara se tornou obrigatória; e pensar que a proibição de cobrir o rosto andava em voga já faz alguns anos (vide a lei anti-véu na França). Mas há pelo menos duas vertentes interessantes para a simbologia política desta máscara específica, nesta fotografia em particular. A primeira é que um objeto de proteção, de cuidado pessoal, de cunho médico, profilático, acabou sendo revestido de um caráter político surpreendente, a partir do momento em que passou a configurar uma expressão de adesão ao isolamento social, à luta contra o coronavírus – por oposição à parcela tresloucada da população, seduzida pelo fascismo, que pretende negar seja a pandemia, seja sua gravidade.
A segunda é que cobrir o rosto se tornou prática recorrente entre manifestantes há algum tempo, tanto para se proteger dos efeitos do gás lacrimogêneo lançado pela polícia, quanto para evitar a identificação pelo Estado. Hoje, por sinal, a vigilância se dá também por algoritmos, constantemente aperfeiçoados, de reconhecimento facial. A máscara, digamos assim, tomou o lugar da bandana. De modo que, nesse objeto simples, feito de pano, dois vetores de proteção se cruzam, dois vetores de sentido político se cruzam, e esses dois cruzamentos também se cruzam entre si.
Mas há mais cruzamentos: como entregador que circula pela cidade cuja população se recolhe – ou deveria se recolher –, o trabalhador se expõe ao vírus. A máscara que o protege da contaminação, tanto quanto possível, também o protegerá, tanto quanto possível, contra o gás que eventualmente será lançado (e foi). A máscara que em outros tempos, em outras situações, poderia levar policiais a tomá-lo por um ladrão, possivelmente com consequências trágicas, hoje são a marca do “cidadão consciente” (não confundir com “pessoa de bem”).
Será que a máscara o protege de ser reconhecido, caso a imagem seja vista por algum representante da empresa-aplicativo em que se inscreveu para ser entregador, e que lhe cedeu (vendeu? alugou?) a caixa térmica? Será que, ao fotografá-lo, o profissional da France Presse o colocou sob risco de dispensa, comprometendo talvez o sustento de seus familiares, o pagamento de uma faculdade ou de um tratamento médico? É tão mais fácil escrever sobre uma imagem, especular sobre seus sentidos, quando não conhecemos a personagem, quando não sabemos nada sobre ela! No mínimo, podemos ver na máscara um punhado de significados possíveis, mas é a própria possibilidade, quando a evocamos, que nos esclarece algo sobre o real.
Também poderíamos nos concentrar no próprio fato de ele estar portando a caixa térmica. Vamos imaginar por um momento que se tratasse de uma mochila comum, contendo roupas e chuteiras usadas, ou livros e cadernos, ou um tripé dobrado e várias lentes. Ele continuaria com ela nas costas, atrapalhando seu movimento, fazendo peso? Será que ele tem medo de deixar a caixa térmica no chão e ser roubado ou ter que sair correndo, arriscando-se a ficar sem ela? Será que, perdendo a caixa térmica, ele é obrigado a ressarcir a empresa?
Cada elemento da imagem informa algo, não porque assevere ou demonstre qualquer coisa, mas porque conduz a lançar perguntas como essa. Lançar como lança o lançador? Provavelmente não, já que do outro lado não está nenhum batalhão de choque. Mas, em todo caso, a motivação de transformar os elementos da fotografia em questões que a ultrapassam vem das inquietações que já temos, com o que já conhecemos ou intuímos de nosso mundo e das condições de vida que nele vigoram. Esta é provavelmente a diferença mais relevante entre a redundância das imagens repetidas, que nos afogam, e a ressonância da imagem viva, vibrante, que nos afeta.
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Comecei com essa série sobre imagens falando em “fazer história”, e agora me vejo preso a uma espécie de obrigação auto-imposta – dessas que, supostamente, poderíamos deixar de lado sempre que quiséssemos – de ficar falando em história, quando tropeço em uma imagem que me chama a atenção e quero escrever algo sobre ela neste espaço. E no entanto, como leitor de Flusser, não posso evitar de concordar com a sentença de que a invenção da fotografia inaugurou uma era progressivamente pós-histórica. O tempo das imagens técnicas, diz ele, não é linear como o tempo histórico do texto escrito; tampouco é circular como o tempo mítico da imagem tradicional, à qual voltamos para recordar aquilo que é fixo.
A imagem técnica, diz o filósofo tcheco, emerge da irrupção a-histórica das equações matemáticas no universo da produção de imagens. Flusser se referia à química e à ótica necessárias para produzir uma chapa, mas essa afirmação é infinitamente mais válida para a imagem digital, que é integralmente algorítmica, da fotometria à compressão – sem falar na pós-produção. Ora, a equação está à parte da história, é uma igualdade matemática que, notação à parte, se supõe eterna e universal.
Isto não significa, porém, que a história desaparece com a imagem técnica. Mas significa que a imagem técnica é capaz de manipular, suspender, desviar a história. Pode ser usada tanto para desaparecer com elementos centrais de seu movimento (que Stalin o diga) como para realçar figuras marginais de seu processo, como nas imagens que celebram vitórias post factum: bandeira americana em Iwo Jima, soviética no Reichstag.
Tudo isso para dizer que cabe a quem opera o aparelho definir a relação com a história, assim como lhe cabe determinar entre a redundância sufocante, entrópica, e o sentido informativo, ressonante. Quem aponta uma lente ou monta uma estrutura gráfica define o retorno, o falseamento, o esquecimento, a perpetuação, naquela chapa a-histórica, de um sentido de história.
Esse poder, essa responsabilidade, transparece na imagem do entregador de aplicativo porque com ela o fotógrafo, em frações de segundo, injeta no ato de um trabalhador precário uma carga de significado que vem do cânone, ou seja, da história. O corpo esticado do manifestante sintetiza as tendências do mercado de trabalho, a trajetória dos movimentos trabalhistas, as aspirações dos protestos do nosso tempo, o contraste com a memória de 1968, o tensionamento da democracia brasileira. Mas isto tudo só ocorre porque sua imagem, por um breve instante, rebateu na lente de um aparelho fotográfico, nas mãos de alguém que tinha a bagagem necessária para saber quando disparar o obturador.
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Outras imagens:
Alguém que não consegui identificar tirou uma foto do lado oposto – quem sabe, da mesma pedra? Ao fundo, vemos uma pessoa tirando foto. Seria o profissional da France Presse?
O bronze de Artemísio (Zeus ou Poseidon, a princípio)
A disposição dos pés na posição do arqueiro (Gong Bu)
Depois de um domingo em que se discutiu se a polícia de São Paulo estava ou não demonstrando explícito apoio a manifestações anti-democráticas, a terça-feira traz a comprovação de que a família que nos governa, pouco afeita à legalidade como sabemos que é, busca transformar as polícias em geral e a Polícia Federal em particular em instrumentos pessoais de pressão sobre adversários. Ou seja, em milícias pura e simplesmente.
Pode a polícia ser vetor de um golpe de Estado? Com a palavra, Walter Benjamin.
Retirado de Para Uma Crítica da Violência (Zur Kritik der Gewalt), 1920:
“Em uma combinação ainda mais contrária à natureza do que na pena de morte, numa espécie de mistura espectral, estes dois tipos de violência estão presentes em outra instituição do Estado moderno: a polícia. Esta é, com certeza, uma violência para fins de direito (com o direito de disposição), mas com a competência simultânea para ampliar o alcance desses fins de direito (com o direito de ordenar medidas). O infame de uma tal instituição – que é sentido por poucos apenas porque as competências dessa instituição raramente autorizam as intervenções mais brutais, enquanto permitem agir de maneira ainda mais cega nos domínios os mais vulneráveis e sobre indivíduos sensatos, contra os quais o Estado não é protegido por nenhuma lei – reside no fato de que nela está suspensa a separação entre a violência que instaura o direito e a violência que o mantém. Da primeira exige-se sua comprovação pela vitória, da segunda, a restrição de não propor novos fins. A violência da polícia está isenta de ambas as condições. Ela é instauradora do direito – com efeito, sua função característica, sem dúvida,não é a promulgação de leis, mas a emissão de decretos de todo tipo, que ela afirma com pretensão de direito – e é mantenedora do direito, uma que se coloca à disposição de tais fins. A afirmação de que os fins da violência policial seriam sempre idênticos ao do resto do direito, ou pelo menos teriam relação com estes, é inteiramente falsa. Pelo contrário, o ‘direito’ da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência, seja devido às conexões imanentes a qualquer ordem de direito, não consegue mais garantir, por meio dessa ordem, os fins empíricos que ele deseja alcançar a qualquer preço. Por isso a polícia intervém ‘por razões de segurança’ em um número incontável de casos nos quais não há nenhuma situação de direito clara; para não falar dos casos em que, sem qualquer relação com fins de direito, ela acompanha o cidadão como uma presença que molesta brutalmente ao longo de uma vida regulamentada por decretos, ou pura e simplesmente o vigia.”
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“In einer weit widernatürlicheren Verbindung als in der Todesstrafe, in einer gleichsam gespenstischen Vermischung, sind diese beiden Arten der Gewalt in einer andern Institution des modernen Staates, der Polizei, gegenwärtig. Diese ist zwar eine Gewalt zu Rechtszwecken (mit Verfügungsrecht), aber mit der gleichzeitigen Befugnis, diese in weiten Grenzen selbst zu setzen (mit Verordnungsrecht). Das Schmachvolle einer solchen Behörde, das nur deshalb von wenigen gefühlt wird, weil ihre Befugnisse zu den gröblichsten Eingriffen nur selten ausreichen, desto blinder freilich in den verletzbarsten Bezirken und gegen Besonnene, vor denen den Staat nicht die Gesetze schützen, schalten dürfen, liegt darin, daß in ihr die Trennung von rechtsetzender und rechtserhaltender Gewalt aufgehoben ist. Wird von der ersten verlangt, daß sie im Siege sich ausweise, so unterliegt die zweite der Einschränkung, daß sie nicht neue Zwecke sich setze. Von beiden Bedingungen ist die Polizeigewalt emanzipiert. Sie ist rechtsetzende – denn deren charakteristische Funktion ist ja nicht die Promulgation von Gesetzen, sondern jedweder Erlaß, den sie mit Rechtsanspruch ergehen läßt – und sie ist rechtserhaltende, weil sie sich jenen Zwecken zur Verfügung stellt. Die Behauptung, daß die Zwecke der Polizeigewalt mit denen des übrigen Rechts stets identisch oder auch nur verbunden wären, ist durchaus unwahr. Vielmehr bezeichnet das »Recht« der Polizei im Grunde den Punkt, an welchem der Staat, sei es aus Ohnmacht, sei es wegen der immanenten Zusammenhänge jeder Rechtsordnung, seine empirischen Zwecke, die er um jeden Preis zu erreichen wünscht, nicht mehr durch die Rechtsordnung sich garantieren kann. Daher greift »der Sicherheit wegen« die Polizei in zahllosen Fällen ein, wo keine klare Rechtslage vorliegt, wenn sie nicht ohne jegliche Beziehung auf Rechtszwecke den Bürger als eine brutale Belästigung durch das von Verordnungen geregelte Leben begleitet oder ihn schlechtweg überwacht.”
Mesmo que nestas eleições não aconteça o pior, parece ter se formado o consenso de que nos próximos anos vamos continuar mergulhados no caos político, no conflito social e na estagnação econômica. É evidente que o triunfo do picareta protofascista torna tudo pior e instala o caos imediatamente. Mas mesmo se o próximo presidente for um dos candidatos do campo democrático, o sistema político está tão bagunçado e o tecido social tão esgarçado, que dificilmente um governo terá a estabilidade necessária para governar sem sustos.
Esse consenso é explicado, no mais das vezes, por dentro do próprio sistema político. A trajetória do PT, tanto no governo quanto fora dele, tentando garantir a hegemonia no campo da esquerda e forçando a candidatura de Lula. As atitudes dos tucanos, que promoveram a tese da derrubada de Dilma logo depois da eleição e estimularam o crescimento da direita raivosa. A falha de Marina Silva em capitalizar seus bons desempenhos eleitorais de 2010 e 2014. Os oligarcas e os fisiológicos que buscam se preservar de todo modo, mesmo que isso signifique jogar o país nas mãos da barbárie.
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Um segundo elemento de explicação muitas vezes levantado é internacional, lembrando da vitória de Trump e do Brexit, além do crescimento da extrema-direita em países como França, Alemanha, Itália, Polônia. Muitos lembram da influência de Steve Bannon, que colocou o laranjão na Casa Branca e pode agora colocar o amarelão no Planalto.
Tudo isso é fato; mas a melhor comparação é com países de renda média, mais semelhantes ao Brasil: Filipinas, Turquia, Hungria, Venezuela. São países que já caíram nas mãos de regimes autoritários ou com tendência ao autoritarismo, nas mãos daqueles que os anglófonos chamam de “strongmen”.
Frágil como é o Brasil – socialmente, politicamente, culturalmente –, não chegará a ser surpreendente se algo semelhante acontecer por aqui. É um risco constante, que não surgiu ontem. E, a seguir o exemplo desses países, não vamos demorar para ter perseguições generalizadas a jornalistas, artistas, políticos de oposição, livre-pensadores.
(Nem preciso dizer, mas demorei a conseguir a energia para sentar e escrever algo, de tanto que temo pela minha própria segurança. E de tão triste, desalentado, que fiquei ao descobrir pessoas que supostamente gostam de mim apoiando a instalação de um regime que poderá me matar.)
Países com perfil parecido com o nosso conseguiram escapar dessa tendência ao obscurantismo, inclusive alguns vizinhos: México, Chile, Colômbia e até a Argentina, com seus megaprotestos e penúria econômica, parecem estar a salvo, ao menos por enquanto. Ainda rezo fervorosamente para que também seja o nosso caso.
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Mas acho que há mais do que a mera explicação política ou internacional para o que está se passando entre nós e para a tendência amplamente percebida de que a ainda há muito a piorar. Essa é, de fato, a dinâmica que está colocada na sociedade e no sistema político: não necessariamente a implosão da democracia frágil e incompleta que construímos nos últimos 30 anos, mas seguramente algum tipo de ruptura, seja com a estrutura de partidos, seja com as formas de lealdade.
Explico (se conseguir): o país está sendo conduzido por duas dinâmicas divergentes, já ativas há pelo menos duas, talvez três décadas, mas que vieram à luz em 2013. Mais cedo ou mais tarde, seria necessário chegar a uma decisão: ou bem uma ação política concreta e consciente para ajustar essas dinâmicas entre si, ou bem deixar chegar à desconexão completa, ou seja, o momento em que o país se torna definitivamente inviável em seu desenho institucional corrente. O que podemos concluir do que aconteceu nos últimos cinco anos é que o sistema político e a sociedade, cada um à sua maneira, estiveram bem aquém do desafio.
Ai de nós.
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A primeira dinâmica é a da inclusão e da diversidade. O lado bom da Constituição de 1988 (e das leis que vieram em sua esteira) é que ela prevê e promove o combate aos nossos maiores males históricos: obriga os três níveis da federação a investir em educação, saneamento, saúde, segurança, infraestrutura. Contém, tanto quanto consegue, a sanha extrativista, latifundiária, sanguinária, de nossas velhas oligarquias patrimoniais. Tudo isso vem de muito antes do governo mais lembrado em termos de inclusão, que foi o de Lula, mas é bem verdade que esse período intensificou os esforços, introduzindo métodos que, inclusive, fogem à lógica da Constituição, como o programa Bolsa-Família.
É evidente que essa inclusão é incompleta e falha em muitos aspectos. Basta pensar em termos de segurança, grande fracasso da Nova República. Para conseguir os ganhos que existiram, insuficientes como foram, foi necessário um sistema político ineficaz, lento, caro, facilmente capturável pela corrupção (se é que se pode falar de captura, quando o objetivo de muitos dos atores envolvidos era justamente promovê-la). O sistema tributário é caótico e regressivo. A geração de receitas para cumprir com as aspirações da Carta Magna é insuficiente (torno a isso depois). Muitos privilégios corporativos foram mantidos e ampliados, notadamente no que diz respeito ao Judiciário. Tudo isso é bem conhecido e documentado.
Mesmo assim, a melhora dos indicadores sociais é patente. Mortalidade infantil, matrículas do ensino fundamental, expectativa de vida, IDH. Não são apenas as ações afirmativas, por exemplo, que garantem a introdução de categorias até então excluídas (a população negra e periférica em geral, sobretudo) nas universidades e principalmente no debate público como um todo. Ao contrário, é porque movimentos sociais se robusteceram que foi possível fazer a pressão necessária para que pudesse haver ações afirmativas.
Se algumas melhorias urbanas incrementais são feitas cá e lá, é porque a população adquiriu energia e poder de pressão suficientes para colocar o poder público em movimento. Se moradores de favelas conseguem obrigar uma prefeitura como a do Rio de Janeiro a abandonar projetos faraônicos em nome do saneamento, agradeça à mobilização social e às normas constitucionais. O Brasil segue sendo um país terrivelmente desigual e injusto, mas é muito menos homogêneo do que há trinta anos. Nesse sentido, a Nova República foi um sucesso.
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A segunda dinâmica é a da derrocada econômica. Já não somos aquele país industrial que chegamos a ser em meados dos anos 70. Este foi um tema que já tratei em outras ocasiões, mas vale dizer que as consequências da mudança de perfil da estrutura produtiva, intensificada, mas não causada, pela ascensão da China e sua gula por soja e minério de ferro, tem impactos graves sobre a capacidade de continuar cumprindo as aspirações da Nova República e de sua Constituição.
O complexo agroexportador e o extrativismo mineral geram pouco valor agregado, pouco emprego, implicam uma cadeia produtiva de baixíssima complexidade. O tão incensado setor agrícola corresponde por algo como 6% do PIB e, mesmo que dobre de tamanho (não vai acontecer), não é capaz de sustentar um desenvolvimento nem sequer próximo ao que precisamos.
Se os empregos criados nas áreas urbanas são quase todos em serviços simples e na construção civil, a renda e os impostos gerados não são suficientes para garantir o fornecimento dos serviços públicos necessários a essa mesma população. E estamos falando de cidades muito grandes, inchadas, como são as brasileiras. Não é por acaso que são cidades feias, violentas, travadas, fábricas de mal-estar e sofrimento psíquico.
O breve, inócuo e atrapalhado plano de incentivo à indústria do governo Dilma é uma das causas próximas do desastre econômico de 2015-2016; mas suspeito que não teria tido um sucesso muito maior se fosse extenso, eficaz e organizado. É preciso mais do que o impulso a certos setores para promover a sofisticação de um parque industrial; é preciso saber se situar, em paralelo ao setor empresarial, na divisão internacional do trabalho.
Mas isto é tema para outro texto (e outro autor). O que quero reter dessa dinâmica é o fato de que toda a lógica da Nova República, com seu espírito inclusivo e diversificador, requer o solo fértil de uma economia que se sofistica, moderniza, complexifica, diversifica. Só assim é possível gerar o valor agregado necessário à realização das aspirações daquele Brasil que retornava à democracia – ou assim acreditava.
No caso do século XXI, isto é algo completamente diferente do que foi nos anos 1950, tempo da substituição de importações, da atração de multinacionais automobilísticas e da expansão da fronteira agrícola. Estamos em era de antropoceno, de modo que é necessário sofisticar o investimento em tecnologias e energias limpas. Mas isto também é assunto para outro texto (esbocei aqui).
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A continuação da primeira dinâmica exige uma transformação da segunda dinâmica. Sem que isso aconteça, e até agora não aconteceu – muito pelo contrário –, o que teremos é a segunda corroendo, canibalizando, a primeira. É o que temos vivido: na tentativa de “equilibrar o orçamento”, de “fazer a Constituição caber no PIB”, o país está abrindo mão de tudo aquilo que aos poucos o vem tornando um pouco menos injusto, um pouco mais diverso. É o caso das universidades, do ensino médio, da ciência e tecnologia, do desenvolvimento territorial.
Mas aquela primeira dinâmica ainda existe e é capaz de expressar sua força. Ela não vai desaparecer só porque as condições objetivas não são mais as mesmas. É por isso que está sendo tão atacada. O conservadorismo “dos costumes”, que logo se traduz em ódio racial, misoginia, homofobia etc., é uma forma de abafamento dessa dinâmica social como um todo. O importante é regredir às antigas distinções da sociedade.
Mencionei um “momento de decisão” e sugeri que ele pode estar se arrastando desde 2013. Nesse caso, não é tanto um “momento” e, como nada foi decidido, não é “de decisão”. Mas o fato é que nem chegamos ainda à ruptura, nem conseguimos instaurar a ação política que sintonizaria as aspirações republicanas ao desempenho econômico. Em outras palavras, o sistema político não se mostrou à altura do país. Não se mostrou à altura da sociedade, por certo.
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Isto é o que traz de volta à tentativa de explicação do nosso possível desastre, agora, neste outubro de 2018. Não vou entrar em detalhes neste texto (outro mais longo se prepara), mas dá para ler as decisões tomadas por todas as forças políticas a partir dessas duas dinâmicas divergentes e da incapacidade de corresponder à necessidade de decisão, perante um esgarçamento que se radicaliza.
Resumindo bem, o esforço do PT em manter a hegemonia no campo da esquerda reflete a perda de sua base, não só aquela de que fala André Singer ao discorrer sobre o lulismo, mas também a rarefação do proletariado industrial, de onde vem o próprio Lula. Tendo perdido as classes médias urbanas, só o que lhe resta é ser um partido burocrático interior ao sistema, que tem a oferecer aos demais atores um forte apoio na população mais desfavorecida. Parece ter funcionado até 2014, sobretudo porque o partido controlava boa parte da máquina estatal e podia cooptar alianças. Agora já não basta.
Os tucanos, que se crêem por algum motivo representantes do Brasil mais lúcido e moderno, erraram feio ao apostar sua sobrevivência política na aproximação com as oligarquias e na radicalização à direita. O PSDB acabou se fundindo com as oligarquias e não conseguiu convencer a direita radical, que prefere inventar seus próprios nomes. Sendo um partido de caciques, vai morrendo pela segunda vez – a primeira foi em 2010, até que em 2014 o PT o ressuscitou para conseguir um segundo turno polarizado.
Já a conjunção entre oligarquias, fisiológicos e outros aproveitadores da política está nadando de braçada. Que perigo corre a bancada do boi, da bala, da bíblia? As dinastias políticas que há séculos dilapidam o Estado conseguiram aprovar uma reforma eleitoral destinada explicitamente a mantê-las no poder. Aqueles que não podem concorrer por estarem presos mandam seus rebentos. É o caso de Eduardo Cunha e Sergio Cabral. O Supremo e o TSE estão majoritariamente alinhados com eles, como ficou evidente com a entrevista irregularmente concedida pelo candidato protofascista à televisão do dono de igreja, que não teve reação dos tribunais.
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Esse grupo – que coincide razoavelmente com o “centrão” da constituinte e pode ser chamado assim – encontrou o candidato presidencial perfeito para seus propósitos. Foi pinçar no Baixo Clero, aquele grupo de aproveitadores sem relevância política, que estão no Congresso só por se dar bem, geralmente graças a um discurso eleitoral mentiroso e populista, uma figura facilmente moldável e desprovida de qualquer escrúpulo.
É algo como um novo Severino Cavalcanti. Desta vez, tem boas chances de colocá-lo no Planalto. Nesse caso, pode-se dizer que é um novo Collor, mas muito piorado, porque retira sua energia política das energias mais destrutivas e reativas que há na sociedade. A candidatura protofascista é a realização lógica do grande acordo anunciado por Romero Jucá e Sérgio Machado: com o Supremo, com os generais, com tudo.
Assim, a candidatura protofascista não é primariamente uma arma na guerra contra a esquerda, o PT, o globalismo ou o que for. Não é primariamente um elemento a mais nas ditas “guerras culturais” que tomaram conta de sociedades mundo afora, e que têm a ver com direitos de mulheres, gays, imigrantes, negros etc. Essas são as energias, facilmente convocáveis neste país moldado pela escravidão, de onde as oligarquias e o fisiologismo retiram sua força para realizar a principal guerra em que está metido.
Trata-se da guerra contra a sociedade. Mais especificamente: a guerra contra a dinâmica de fortalecimento e diversificação da sociedade civil, que poderia colocar em risco sua posição histórica. O Brasil atrasado está em vantagem nessa guerra porque a dinâmica social, sua inimiga, tem necessidade daquele solo de sofisticação econômica que está se desfazendo no país. A dinâmica histórica está a favor do atraso, do patrimonialismo, da oligarquia, e contra a sociedade civil.
A candidatura protofascista é uma ofensiva de grande envergadura contra a sociedade civil.
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Que a democracia está em risco, poucos ainda duvidam. Mas de que vale a democracia para esses agentes? Desde quando oligarcas gostam de democracia? Grupos que foram favorecidos por ambas as nossas ditaduras, e que já se beneficiaram em outros períodos de exceção, por que se preocupariam em manter um regime que dá espaço para a sociedade civil, se ela só atrapalha seus desígnios?
Para ficar no exemplo do bispo dono de igreja que apoia o protofascista, recordo que, em alguns textos publicados em 2016 e 2017, lancei a seguinte pergunta: o que acontece à teologia da prosperidade (essa que sustenta algumas das igrejas recentes que se espalham pelo país) quando deixa de haver prosperidade? Ou seja, quando o crescimento econômico, que até 2014 trazia respostas divinas aos anseios dos fiéis (carro novo, casa própria, ascensão social), vai por água abaixo, deixando em seu lugar a penúria, o fracasso, as dívidas?
O próprio bispo dono de igreja trouxe a resposta: alinha-se imediatamente à repressão pura e simples, à tirania anunciada. E vale dizer: uma tirania anunciada nunca deixa de se realizar, quando tem a chance.
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Abri o texto dizendo que talvez não aconteça o pior neste mês. E que, mesmo não acontecendo, ainda estaremos enredados numa crise em que o risco de ruptura com o regime democrático é real. Apesar da tendência de regressão econômica e social, tudo vai depender da capacidade de mobilização que a sociedade civil será capaz de criar, tendo passado por um susto tão terrível.
Se, por outro lado, acontecer o pior, tudo dependerá da força que a sociedade civil terá para resistir à sua própria destruição. Ainda acredito que essa força seja bastante expressiva, apesar da perda de dinamismo nas últimas décadas. Mesmo que a resistência provoque do outro lado um aprofundamento repressivo, com todas as atrocidades que teremos de testemunhar, não me parece que será suficiente para quebrar a espinha de uma sociedade tão variada e complexa como a brasileira.
Talvez seja excesso de otimismo. Ou um último esforço para ter algum otimismo. Seja como for, os ventos são desfavoráveis, mas ninguém, nunca, está obrigado a sucumbir ao horror – e muito menos se unir a ele.
Sempre achei deliciosa a definição de Jorge Luis Borges para a Guerra das Malvinas: era como a briga de dois carecas por um pente. Mas na sala escura de um teatro de São Paulo entendi que essa analogia tem uma limitação cruel. Em assuntos de guerra, política, diplomacia ou alta finança, os carecas que brigam mal querem saber do pente. Não ligariam se ele se esfarelasse. O que os carecas disputam é a própria disputa, para desgraça dos que vão para a linha de frente. Se são carecas, é porque assim lhes cai melhor a coroa – de ouro, de louros ou de latão. É simplesmente em nome do caimento dessa coroa que se põem a brigar pelo pente, como disputariam um botão ou um dedal ou qualquer outra desculpa para brigar. No caso das Malvinas, os carecas em questão eram Margaret Thatcher e Leopoldo Galtieri, ambos com dificuldade em manter a coroa na cabeça.
Não foi este o único estalo que me deu enquanto assistia a Campo Minado, peça-documentário de Lola Arias que esteve na Mostra Internacional de Teatro de São Palo (MIT-SP). A diretora pôs no palco seis ex-combatentes, três argentinos e três ingleses, nenhum deles ator profissional. Meia dúzia de homens com quase sessenta anos, que na casa dos vinte foram mandados para o pente de Borges a fim de bombardeá-lo, miná-lo, metralhá-lo, até que um dos dois carecas perdesse a coroa de vez – foi Galtieri, como sabemos. Os ingleses, vencedores, tiveram em compensação que engolir Thatcher por mais oito anos.
Das muitas coisas a comentar sobre o espetáculo e principalmente a partir dele, há uma que deve reter nossa atenção. Algo no relato do que aqueles homens viveram há tantas décadas é muito familiar. Ressoa com o noticiário de mais curto prazo e também com algumas sensações atávicas que povoam a subjetividade de qualquer brasileiro. Eu diria que é um enigma, algo que deveria nos atingir diretamente na cara.
I
A maior parte das leituras que já fiz sobre essa guerra destaca o absurdo de uma ditadura que manda seus jovens para serem massacrados em nome de um delírio. Este é o sentido do pente de Borges: a idéia de que a conquista de um território de pingüins representaria um triunfo contra o imperialismo. Mas existe um substrato para todo esse absurdo que precisa ser trazido à superfície.
Uma ditadura como a argentina – e como a nossa; e como a chilena; e como tantas outras na América Latina – costuma se apresentar como profundamente nacionalista. Geralmente se instala com a promessa de proteger o povo honesto e trabalhador contra fantasmas terríveis que o ameaçam. Como sempre fazem os regimes autocráticos, a ditadura argentina apoiou grande parte de sua propaganda na imagem da juventude e das crianças. A imagem central, sem surpresas, é a da família. No discurso dos generais, a ditadura é um governo de salvação nacional, que existe e trabalha para “defender” ou “proteger” essa categoria tantas vezes martelada: a família.
A família, como sabemos, é conceituada como instituição que cuida de seus membros e os mantém a salvo. É a principal fonte de solidariedade e, em sistemas que visam a exclusão completa de qualquer outra forma de solidariedade (como no regime thatcherita, por sinal), é o único apoio para o indivíduo que o resguarde da crueldade do mundo exterior. No caso das ditaduras, porém, o aparato estatal, militarizado, sob o comando de um braço forte e seguro, é uma espécie de “segundo grau” desse exercício de cuidado e atenção. É como a família das famílias.
E quanto àqueles três argentinos de meia-idade que vi em cima do palco: o que eram, em 1982, senão meninos arrancados, justamente, às suas famílias (e escolas, namoradas, amigos etc.) para ir à guerra, em nome de um “pente” e da coroa-de-careca de Gualtieri e demais tiranos? No discurso oficial, porém, eram muito mais que isso. É importante lembrar, como faz Campo Minado, que o jovem soldado é objeto de todo um trabalho de propaganda para que a população o trate como herói.
Lola Arias expõe, em projeções, as reportagens, as peças de propaganda, as imagens de arquivo, que foram mobilizadas para que aqueles jovens recebessem o carimbo de heróis, essa categoria social muito prezada, sobretudo postumamente. Uma categoria que mobiliza alguns afetos bem conhecidos: o orgulho dos pais, a admiração das namoradas (e potenciais namoradas), a inveja dos demais rapazes, os que seguiram com suas vidas e não receberam esse carimbo. Nos depoimentos dos ex-combatentes, ou seja, na voz dos próprios objetos da transformação simbólica, fica evidente como se dá o processo.
Com um certo distanciamento, passado o furor da mobilização, graças às décadas de trabalho de memória e trauma, podemos fazer uma descrição um pouco mais objetiva desse processo. Quando os rapazes vão à guerra, a “família de segundo grau” os extrai (compulsoriamente) da família de primeiro grau, de modo que, quando um jovem está no serviço militar, seu bem-estar é responsabilidade do Estado. É o Estado, na figura das forças armadas, que deve protegê-lo, mantê-lo vestido, alimentado, aquecido. E, na medida do possível, vivo – mas é claro que, numa guerra, isso nem sempre é possível.
Está muito bem documentado que, no caso das forças armadas argentinas, em plena ditadura militar e militarista, esse papel foi executado de maneira nada satisfatória; e a guerra deixou isso muito claro. Os soldados não tinham equipamento para o frio, não recebiam munição suficiente e passavam fome. Na voz daqueles homens de pele enrugada, cabelos brancos e expressão triste, tornam-se ainda mais concretos e patentes os relatos de roupas insuficientes, cargas de alimentos que se perdiam, comunicações deficientes, soldados argentinos explodidos em campos minados que os próprios argentinos tinham instalado.
Até aí, não há muito mais a aprender, senão que a linguagem heróica e patriótica em que se apóia o militarismo, com sua pretensa fundação numa “defesa da família” e seu propalado “amor à juventude”, é uma mentira descarada; mais do que uma falácia, portanto. Uma mentira. A propósito, precisamos recuperar a disposição para fazer o “j’accuse” de Zola. Não se trata de refutação, mas de desmascaramento. Até hoje, há quem repita essa enorme mentira, ainda mais no Brasil (que não passou pelo processo de construção de memória que houve na Argentina, infelizmente). Então precisamos escancarar o fato de que o amor de um regime militar (ou militarizado) à pátria, à família e à juventude é falso, deliberadamente falso. Ao afirmá-lo, uma pessoa não está equivocada, está mentindo. Está sendo desonesta e enganando a população.
II
Isto posto, surgiu algo nos relatos que tocou profundamente a minha sensibilidade, e que eu desconhecia – talvez porque li sobre a guerra das Malvinas já há alguns anos, antes que os arquivos fossem abertos (em 2015) e certos segredos viessem à tona. Em dado momento do espetáculo, ouvimos de um dos ex-combatentes argentinos que seus comandantes torturavam os soldados para que eles não abandonassem seus postos quando já era inútil defendê-los, para que não reclamassem das condições desumanas, ou mais simplesmente, para que não se rebelassem. Sem comida, abrigo e vestimentas adequadas, os soldados ainda por cima eram espancados, amarrados no chão congelado, obrigados a se humilhar perante os colegas.
Outro ex-combatente relata que, na volta para casa, após a derrota, foi obrigado, junto com seus companheiros, a assinar um documento em que se comprometia a não revelar nada do que havia se passado. O filho dileto, o herói da pátria, foi reduzido por sua “família de segundo grau” ao silêncio perpétuo. Neste ponto, vale uma digressão: todos os ex-combatentes passaram por algum grau de estresse pós-traumático, inclusive os ingleses. Mas este indivíduo em particular entrou em profunda depressão, não conseguiu se fixar nos muitos empregos que teve, tornou-se cocainômano e quase morreu afogado. Ironicamente, era o único dos argentinos que tinha entrado para o exército voluntariamente. Saiu da depressão quando passou a se dedicar ao esporte e hoje é triatleta.
Voltando ao tema: no meio das cadeiras do teatro, ouvindo os relatos e a trilha sonora (basicamente Beatles, tocada pelos próprios atores), comecei a entender que estava diante dos dois lados de uma moeda que circula não apenas na Argentina, mas certamente em toda a América Latina e talvez muito mais amplamente.
A “Cara” é a reiterada propaganda sobre os heróis nacionais; a justificação do poder ditatorial, ou simplesmente autoritário, pela vaga “defesa da família”; a constante louvação ao povo (em geral no sintagma “povo trabalhador”) e à juventude (que é “o futuro do país”); a crença irrefletida na disciplina, uma imagem de ordem que destoa de todo o mau funcionamento com que a população está acostumada no dia-a-dia.
A “Coroa” consiste em tratar esses mesmos jovens como gado, pagá-los com salários de fome, humilhá-los, torturá-los, mandá-los para a morte; destruir famílias; produzir um oceano de síndromes pós-traumáticas; fornecer um espetáculo de má organização e indisciplina na cúpula decisória; humilhar os trabalhadores, os jovens, os pobres; reduzir aquele povo tão incensado, aqueles heróis tão propagandeados, a uma condição de silêncio e apatia.
Pensando bem, esta parece ser uma tônica latino-americana. Neste nosso continente de veias abertas, o deslumbramento com fardas, armas, vozes de comando, escaramuças, é patente. O Cone Sul é pródigo em guerras caudilhescas. Do México para o Sul, os governos militares são recorrentes e as ordens para que soldados rasos abram fogo contra seus próprio compatriotas se repetem tristemente. O ponto comum entre Pinochet, Stroessner, Chávez e Figueiredo é a farda. Mas eu também poderia dizer Deodoro, Rosas e Porfírio Díaz.
O soldado, por sua vez, é em geral mal pago, mal equipado e maltratado. Para o Paraguai, no Império, foram mandados os que não conseguiam se safar; na Marinha da Primeira República, os maus tratos levaram à revolta da Chibata. Os comandados de João Cândido, o “Almirante Negro” que manobrou a frota melhor que os brancos, foram traídos pelo governo e os oficiais, e terminaram massacrados. Quando, inadvertidamente, uma dessas lideranças engalanadas se vê na situação de sair do mero discurso e entrar na prática da guerra, os resultados tendem a ser desastrosos, como ocorreu aos argentinos nas Malvinas e aos mexicanos contra os EUA. Sorte dos nossos pracinhas na Itália, que puderam tomar armas e equipamentos emprestados dos americanos.
Será coincidência essa insólita dicotomia do discurso laudatório com a prática do desprezo e da humilhação? O que é que faz com que, em todo o continente, o patriotismo, o conservadorismo e o militarismo estejam tão intimamente ligados aos maus-tratos, ao desprezo e à incompetência? Não faltaram, na história do continente, indícios de que o tipo de comando que se associa à figura do militar, envolvendo autoridade e disciplina, costuma levar a resultados opostos aos esperados e desejados. Mas ainda se ouve muito falar, sobretudo no Brasil, sobre a seriedade e a organização inerentes às forças militares. Por quê?
III
Depois de tantos parágrafos, finalmente chego ao ponto que buscava: o Brasil, onde tem crescido um evidente fascínio pelo militarismo. A intervenção diversionista de Temer no Rio é o cúmulo (pelo menos por enquanto) e a intenção de voto em Bolsonaro é um sintoma grave (esperemos que fique só nisso). Mas deveríamos ter ligado o alerta quando atletas brasileiros passaram a bater continência nos pódios olímpicos, só porque um programa federal os pôs para treinar em instalações militares. Era uma impostura, como sói acontecer: os atletas receberam patentes, mas é evidente que isso não faz deles militares; ademais, não estavam ali representando as forças armadas, mas o país. Mesmo assim, muita gente na classe média achou aquilo lindo.
Em todo caso, é claro que o problema que quero apontar não é só o do fascínio com o exército propriamente dito. O sucesso histriônico do capitão Nascimento, desde o longínquo ano de 2008, é um exemplo de como a polícia é tanto mais encantadora para uma boa parte da sociedade quanto menos ela age como polícia e mais como milícia, uma variação urbana da jagunçagem.
Vale se deter num ponto interessante: freqüentemente os auto-intitulados defensores da polícia se referem aos policiais – na verdade, só os policiais militares – como pessoas corajosas que arriscam a vida na luta contra os bandidos. O corolário dessa descrição é que qualquer crítica à atuação da polícia (militar) nas favelas é uma defesa da criminalidade e um desrespeito a esses bravos profissionais que se sacrificam em nome das famílias de bem. Provavelmente o cúmulo desse raciocínio foi o episódio em que um menino de dez anos foi morto pelo fuzil de um policial no complexo do Alemão (chamava-se Eduardo) quando estava sentado na soleira da porta da própria casa.
Mas o que há de mais interessante é que essas pessoas que tanto dizem admirar e respeitar os policiais, pelo fato de que se arriscam e muitas vezes morrem, parecem nunca se perguntar se é mesmo necessário que tenhamos tantas mortes de policiais todo ano (só no Rio, ano passado, foram mais de cem). Quando acusam seus oponentes de não se importarem com a família de um policial morto, esses supostos defensores da polícia não se questionam se poderíamos viver de um jeito em que os policiais não morressem, não precisassem se sacrificar, não precisassem ser mártires. Nunca vi um comentário dessas pessoas sobre o fato de que a maior parte das mortes de policiais ocorrem fora do serviço, fazendo bicos de segurança para complementar o péssimo salário.
Na verdade, é bastante evidente que a cultura de fascínio com formas militares – seja o exército, seja a polícia – habita no abstrato. Quando descemos ao concreto, essa mentalidade não se preocupa um segundo sequer com a qualidade da formação dos praças. Não se preocupa com suas condições de trabalho, nem com sua remuneração. Não se preocupa com sua segurança – afinal, se trabalhassem e vivessem em segurança, os policiais teriam de ser vistos como servidores públicos e respeitados como tais, não encarados e reverenciados como heróis e mártires.
As deficiências da formação da polícia são amplamente conhecidas: na maior parte dos Estados, um jovem é incorporado à força tendo treinado um número irrisório de tiros; nas casernas, a tortura física e psicológica é constante. Não estou dizendo novidade nenhuma ao mencionar que os recrutas são formados para algo que pouco tem a ver com policiamento. Em geral, diz-se que são formados para uma guerra; e seria uma espécie de guerra interna. Na verdade, acho que a analogia mais pertinente seria dizer que são formados para uma caçada. Seja como for, mais tarde, nas ruas, o equipamento que usam é defeituoso, os serviços de inteligência são pífios e a relação com a população, e não estou falando da bandidagem, é hostil e improdutiva.
Trocando em miúdos, assim como os soldados argentinos na guerra das Malvinas, os policiais brasileiros são atirados ao trabalho sem as condições necessárias para exercê-lo e, se morrem, não é por heroísmo, mas porque são deliberadamente lançados para a morte. Incensados por uma malta de cidadãos que se consideram de bem, gente conservadora e que diz defender a família, a pátria e outras categorias que vêm juntas, são postos por esses mesmos cidadãos tão íntegros em constante situação de perigo, pobreza e fadiga. Quando sobrevivem, sofrem de depressão e outras doenças crônicas, com atendimento médico insuficiente. Quando morrem, e muitos morrem, deixam atrás de si famílias despedaçadas, viúvas e órfãos. Que bela defesa da família.
Ou seja, como a propaganda de guerra da ditadura argentina, também o deslumbramento com a farda, o giroflex e as sirenes esconde este outro lado, que é o desprezo pela vida do policial; e isso, nos dois sentidos da palavra: a vida como aquilo que é ceifado por uma bala no confronto com traficantes, mas também a vida que ele leva, com seu baixo salário, a impossibilidade de descansar na folga, a formação deficiente, o regime de humilhações e torturas a que é submetido da parte dos superiores. Eleger heróis e humilhá-los; cantar louvores à juventude e mandá-la para o matadouro. Longa tradição latino-americana. Longa tradição brasileira.
Em tempo: a brutalidade policial no Brasil, da qual não conseguimos nos livrar quando tivemos a chance, e que, ao contrário, é motivo de celebração para muita gente, só faz sentido nesse registro. Um indivíduo se torna brutal quando age sem parâmetros, ou seja, nem orientações claras e corretas de procedimento, nem regras plenamente vigentes de comportamento. Tanto a humilhação quanto o incensamento conduzem à brutalidade, a primeira por trazer à tona as paixões mais cruas, o segundo por insuflar os espíritos com uma sensação de onipotência. Mas não devemos nos enganar: o policial se torna brutal porque sua situação é frágil; porque, socialmente, ele é na prática um descartável, por obra daqueles que, no discurso, o tratam como paladino.
IV
Guardando as devidas proporções, a intervenção no Rio está para a presidência de Temer como a invasão das Malvinas esteve para a ditadura argentina. Uma manobra diversionista e irresponsável realizada por alguém que se sabe ao abrigo de denúncias e persecuções judiciais, com o objetivo de desviar o foco para problemas distantes. No nosso caso, Temer está enrolado na incapacidade de entregar ao mercado financeiro todas as transformações econômicas esperadas, somando-se à necessidade de escapar a um eventual cerco da Justiça, já que nosso atual presidente faz um pau de galinheiro parecer transparente como vidro.
Na analogia de Borges, Temer é o nosso careca, precisando manter sua coroa maculada na cabeça. O Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, ex-capital, cartão postal, símbolo do Brasil para o mundo, etc. etc., se vê reduzido à condição de pente. E pode se quebrar, também. A população e, em particular, os soldados envolvidos na intervenção no Rio são os peões de que nosso careca se serve para se manter agarrado a seu pente.
Claro está que Temer compreendeu bem a natureza do militarismo latino-americano e, em particular, do fascínio atual com as fardas e o armamento pesado no Brasil. Ele sabe perfeitamente que as medidas concretas para promover a segurança da população nada têm a ver com o assunto – tanto que reduziu drasticamente a verba da proteção de fronteiras, tema que candidatos conservadores tanto gostam de tratar como prioritário. Vale a pena ler a Diretriz do Comando do Exército para 2017-2018. Lá se aprende bastante sobre a redução do efetivo e a substituição de combatentes de carreira por temporários – ou seja, jovens fazendo o serviço militar obrigatório. O usurpador tem dito também que os militares deveriam participar mais da vida pública; talvez esteja saudoso do tempo em que a atuação pública militar consistia numa série interminável e impune de conspirações, sem falar nas ditaduras.
O que o usurpador compreendeu é que o cerne desse militarismo está no espetáculo: a aparência de disciplina, limpeza, ordem, força bruta. As operações grandiosas, que dão uma certa demonstração de poder. A garantia de que haverá boas fotos e manchetes, com o apoio de grupos de mídia cujos controladores fazem parte dos mesmos extratos sociais cujos olhos brilham com o militarismo. E ao lado, uma certa sensação de desconforto e medo, que mesmo os mais profundos militaristas devem ter quando vêem passar uma coluna de tanques.
Esta imagem é do Espírito Santo, mas coloquei aqui porque é ótima.
Já os resultados propriamente ditos – digamos, a redução dos índices de violência do Rio, ou o desbaratar de alguma quadrilha mineira que traga pasta de cocaína em helicópteros – são irrelevantes. No fundo, provavelmente são indesejados. Como tem martelado Celso Barros (o sociólogo, não o médico), até hoje não foi divulgado um plano de ação, um projeto, metas, nada. A revista Piauí revelou que o alto comando militar foi tomado de surpresa pela intervenção – e ficou contrariado, muito contrariado. Não existe nem sequer o esforço de esconder que a intervenção federal/militar no Rio é mera pirotecnia.
De fato, com essa intervenção, até o momento o usurpador tem conseguido o que quer, e vai continuar conseguindo por algum tempo. As pessoas que se encantam com Bolsonaro aplaudem os tanques e blindados estacionados diante de favelas. Atitudes inconstitucionais como o fichamento de moradores levam famílias inteiras ao delírio nos bairros ditos “nobres” (com o que descobrimos que ainda estamos na monarquia). Não porque tenham efeito prático, mas porque demonstram força. Temer vai se safando e o ovo da serpente vai crescendo.
De volta a Borges: falei do careca, falei do pente, mas todas essas reflexões começaram com um estalo, no meio de uma peça de teatro, em que seis ex-combatentes, três dos quais argentinos, falam de suas experiências na linha de frente, tomando na cara chuva, vento, neve, balas e bombas. Então vale lançar mais uma pergunta: no nosso caso, quem é que está na linha de frente? Quem são essas pessoas, ou melhor, quem são esses heróis, os jovens defensores da família e da pátria, em nome desta família de segundo grau que é o governo do usurpador?
São o mesmo de sempre, claro: praças, recrutas, meninos que ontem estavam empinando papagaio e hoje estão lançados aos leões. É bem provável que muitos deles estejam em pleno serviço militar obrigatório, ou seja, preferiam estar fazendo outra coisa. Garotos que poderiam, aliás podem, ser filhos dos trabalhadores que lhes coube fichar e revistar. Podem também ser irmãos e amigos de traficantes que eventualmente virão a enfrentar, ambos atirando com armamentos exclusivos do exército, por sinal.
É claro que não tem comparação entre mandar jovens para enfrentar a marinha britânica num arquipélago remoto e gelado e colocá-los para caçar traficantes em ruelas cariocas. (E milicianos? Esses não vão ser enfrentados?) Mas uma mesma lógica rege esses dois processos, além de muitos outros. Esses garotos não são enviados para a linha de frente, para o enfrentamento, enquanto pessoas. Eles são a imagem avançada de todo um aparato simbólico de poder: emblemas, fardas, fuzis, blindados. Os “heróis” não são os próprios soldados, mas um soldado abstrato, imaginário, que absorve todas aquelas imagens de família, pátria, ordem, dever etc., tão difíceis de executar na prática em países autoritários e caudilhescos.
Os próprios garotos, seres humanos de carne e osso, são a mesma coisa que um dia foram esses senhores que vi no palco do teatro em São Paulo, tocando músicas dos Beatles, recuperando as cartas recebidas no front e guardadas num baú durante décadas. São gente que tem uma família concreta, mas para defender “a família” abstrata pode acabar esfacelando a sua própria. São gente que o cidadão de bem aplaude, admirando sua farda e sua postura ereta, mas que recebe um soldo vergonhoso e é colocado para fazer um trabalho para o qual não tem qualificação. São objetos de uma celebração irreal, mas vítimas de um desprezo concreto, como tem sido há mais de 200 anos.
(Com agradecimentos aos amigos Bernardo Jurema e Moysés Pinto Neto, que comentaram a primeira versão deste texto.)
Talvez eu devesse usar outro título, de estilo memético, seguindo a fórmula que já está virando clássica: “precisamos falar sobre…”. Mas, pensando bem, nosso problema passa longe da falta de falar sobre Lula. Ao contrário, parece que não se fala de outra coisa. E é bem esse o problema: sem perceber, fizemos do ex-presidente algo como um sumidouro para todas as nossas angústias políticas e sociais, a ponto de nos tornarmos incapazes, em todo o espectro político, de pensar o futuro do país e da sociedade sem que o ponto nodal seja o “sapo barbudo”. A fixação em Lula nos agita, mas nos paralisa: ficamos tremendo e rodando em círculos quando mais precisávamos estar em movimento, inventando caminhos e modos de enfrentar as demandas de um mundo que não vai esperar pela nossa decisão.
Se não basta, portanto, “falar sobre” Lula, o que falta é entender do que estamos falando ao falar tanto sobre Lula. De que Lula é o nome? O que há nesse nome, com o rosto que vem com ele, todo o seu caráter espectral, que favorece esse papel de sumidouro, ou melhor, de eixo obrigatório para as projeções do futuro de todo um país? À primeira vista, parece uma pergunta simples: Lula representa toda a trajetória do PT; começou a presidência sob grande desconfiança e terminou celebrado; simboliza em boa medida o ódio de classe no país; manuseia muito bem a retórica do confronto – e a prática da conciliação. É o candidato (“sem plano B”) para as esquerdas em 2018, lidera as pesquisas e seus inimigos (“a direita”) precisam derrubá-lo de qualquer jeito.
Tudo isso faz dele uma personagem política central, como não poderia deixar de ser. Mas não explica tudo. Explica, sem dúvida, por que muita coisa só vai se definir quando estiver decidido o destino de Lula (leia-se: a eleição). Explica, mas só em parte, que o processo contra Lula seja percebido (corretamente) como “proxy” de uma disputa mais ampla, de muito longo prazo, em que está em jogo o exercício exclusivo do poder por elites tradicionais ou a abertura para uma limitada conciliação (com quem, exatamente?). Mas não explica, para começar, por que é tão claro que todo o futuro do país está pendurado pelo fio de uma figura individual, por mais importante que seja essa figura; nem explica por que décadas de conflito entre dois modelos (grosso modo) de exercício do poder, ambos autoritários e excludentes, parecem se resolver no expurgo ou na consagração de uma única personagem política.
*
Nem me lembro mais qual era o grande episódio que concentrava as angústias de todos quando tomei a primeira nota sobre Lula, hoje provavelmente perdida nos parágrafos aí abaixo. Certamente foi meses antes da sentença de Moro, mas meses depois do Powerpoint de Dallagnol. As considerações foram oscilando de lá para cá e acho que isso transparece no que se segue. Se “precisamos” entender de que Lula é o nome, é porque ele ajuda a nomear a paralisia de um país que quer resolver suas tensões internas por meio dele – ou melhor, de sua figura. Um país, portanto, que não quer encarar suas contradições e, por isso, as projeta numa única pessoa e espera que sua destruição ou seu triunfo tragam a resposta – para que pergunta? A da identidade nacional?
Se for assim, que terrível situação é a de um país que só consegue se enxergar por meio dos afetos suscitados por um indivíduo. Que fraqueza, paralisar-se para não ter de enfrentar as próprias distorções e, com o perdão da escolha do termo: contradições. Que estado lastimável o de um país cujas próximas eleições só serão divisáveis a partir do destino penal de um candidato… Que triste país, esse em que alguém de extrema mediocridade tenta se cacifar para vôos mais altos apresentando-se como “anti-Lula”. Que tragédia, não poder ainda cogitar das alternativas para um futuro em comum, porque o país nem sequer digeriu o passado recente.
Para clarear um pouco “de que Lula é o nome”, proponho dividir a pergunta em três. 1) O que há em Lula, individualmente, para fazer dele essa imagem que concentra não só nosso ódio e nosso amor, mas também nosso entendimento do passado e do futuro? 2) Como o estado atual do país como um todo se expressa na disputa de interpretações em torno do processo contra Lula e, paralelamente, de sua pré-candidatura para mais um mandato? 3) Como a paralisia atual e a derrocada de Lula se encaixam em escolhas políticas feitas nas últimas décadas?
Antes de prosseguir, uma precisão: tudo que está dito aí abaixo sobre ações concretas de Lula ou seu entorno tem a finalidade de esclarecer um pouco como essa sua imagem opera em nós. Por isso, você não vai encontrar no que segue nem condenações, nem endossos; não estou “batendo” em nenhuma personagem, nem “livrando a cara” de ninguém. Ambas as opções estão fartamente disponíveis internet afora.
1) A figura individual
Em algum dos momentos, nos últimos tantos meses, quando andei matutando sobre essa bruma em torno de Lula, me veio uma lembrança de 2014. Durante o processo eleitoral naquele ano (eu ia dizer: antediluviano), algo curioso aconteceu. A figura de Marina Silva, “terceira via” que chegara à vice-liderança da corrida e ameaçava não só o lugar de Aécio Neves no segundo turno, mas também a reeleição de Dilma Rousseff, passou a recolher como um ímã a atenção de todos. Com essa atenção, vinha uma gigantesca carga afetiva, tornada disponível desde a bagunçada seqüência de eventos do ano anterior. Grande parte dessa carga se polarizou em torno do nome de Marina, que, de repente, adquiriu um significado insólito. Era um significado tributário dessa carga recolhida e, por isso, o nome “Marina” passou a reverberar os fantasmas e aspirações de cada grupo que voltava o olhar para ela. O rosto, o nome, a voz, a figura, aquilo que denominei “efígies de Marina“, operava ao modo de um ícone no Império Bizantino.
Tentei descrever os traços principais desse fenômeno na época, antes da campanha terrivelmente agressiva contra a candidata, na corrida para o primeiro turno, encetada principalmente pelo marketing da campanha de Dilma – e, em menor grau, também pela de Aécio, vale dizer, para não cometer injustiças necessárias. Se fosse voltar ao tema, a pergunta que eu deveria me colocar seria: será que toda aquela campanha destrutiva (ou, como disseram na época, “desconstrutiva”) não foi violentamente informada por esse caráter icônico que se agregou à efígie de Marina? Será que não foi justamente o nível das forças que se concentravam aí que foi libertado pela agressividade do marketing negativo? Não teriam sido essas forças que se tornaram mais uma vez disponíveis, só que em grau mais intenso de morbidez?
Deixo em suspenso essas questões porque o texto não é sobre a efígie de Marina, mas a de Lula. E, quando chegamos nessa efígie em particular, tudo se torna bem mais delicado. O que quero recolher daquele episódio é essa faculdade que algumas personagens têm de converter-se em ícones que carregam significados divergentes, muitas vezes paradoxais, e levam consigo as incompatibilidades, os espaços silenciados e obscuros, de toda uma sociedade. São nomes e rostos que se intrometem em toda conversa, em toda estratégia de ação, em todo posicionamento, mesmo sem que o percebam aqueles que se posicionam.
É claro que o caso de Lula hoje é muito diferente do de Marina em 2014. As energias em torno do nome dela tinham o poder de definir o segundo turno de uma eleição presidencial, mas as linhas de cisão que atravessam os traços do rosto de Lula dizem respeito a profundas divisões sociais e políticas, nossa interpretação do passado recente (os governos petistas) e não tão recente (desde as greves do ABC), o papel do Judiciário, a energia disponível para os movimentos sociais e muitas outras coisas. É claro que há algo de “ícone bizantino” na efígie de Lula, mas essa noção não basta para entendermos de que Lula é o nome.
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Vale a pena explorar o fato de que Lula é uma figura pública com biografia bastante conhecida, que suscita opiniões fortes sobre praticamente todas as etapas dela até agora. Em outras palavras, temos de Lula uma “noção individual” muito precisa (ele não é nenhum desconhecido, já fizeram até filme sobre ele etc.). É uma figura tão presente, tão constante no noticiário e no imaginário que parece vir toda pronta, como um bloco, como se cada etapa da sua biografia emergisse em todas as menções a seu nome, e como se tudo já estivesse decidido a seu respeito. Ou seja, lidamos com Lula como se soubéssemos de cara tudo que lhe aconteceu e tudo que lhe acontecerá. Como se tivéssemos sua “noção completa”, para usar de modo distorcido a terminologia de Leibniz.
É claro que ninguém pode ter a “noção completa” de alguém (exceto Deus, que é imortal), já que não conhecemos o futuro. (Digressão: é como Sólon falando a Creso, o rei mais rico e bem-sucedido de sua época: só é possível saber se alguém foi feliz quando sabemos como terminou sua vida. Creso, por sinal, foi vencido pelos persas do imperador Ciro, que o condenou à morte. Salvou-se porque gritou o nome de Sólon ao se dar conta de que o ateniense tinha razão. Ciro gostou e o fez seu conselheiro. História edificante, não?)
No caso de Lula é diferente, porque com o “sapo barbudo” o futuro está em jogo e se desenha a cada decisão tomada: se condenado, é Lula-o-presidiário. Se solto, é Lula-o-próximo-presidente (nem candidato, presidente mesmo). Esse é um reflexo do caráter icônico de Lula, já que os ícones, que representavam santos e membros da Sagrada Família, eram sempre “o que eram”, uma totalidade, relacionada com as aspirações de quem os encarava piamente. Em Lula, temos uma paralaxe. Por um lado, falar em Lula carrega tudo aquilo que o nome dele porta. É o retirante, o torneiro mecânico, o líder sindical, o fundador de partido, o constituinte, o candidato derrotado três vezes, a vítima da edição do debate, o signatário da Carta ao Povo Brasileiro, o presidente que pôs José de Alencar no Jaburu e Henrique Meirelles no Bacen, que ampliou as universidades, que investiu em transferência de renda, que talvez tenha feito um “pacto de sangue” com Emílio Odebrecht, jogava futebol na granja do torto, gosta de churrasco e bebida, que não buscou um terceiro mandato, mas impôs uma sucessora, o ex-presidente que teve câncer, enviuvou, está sendo investigado…
Mas, ao mesmo tempo, como indivíduo de carne e osso ou como figura pública, ele não é tudo de uma só vez. Cada passo no processo político, como no processo judicial, diz respeito àquele momento, àquelas possibilidades abertas, àqueles impasses que devem se decidir. Ou seja, existe uma desconexão entre o que se pretende atingir com uma avaliação da figura individual de Lula e aquilo que efetivamente se mobiliza com essa avaliação. Ou melhor, não uma desconexão, mas precisamente o contrário: uma linha traçada, uma conexão casual, ad hoc. Entre a parte e o todo, o instantâneo e o duradouro, o conjuntural e o estrutural.
Por exemplo, alguns ataques a Lula miram no líder sindical, ou seja, Lula como instigador (ou administrador) do antagonismo entre patrões e trabalhadores; algumas defesas, obviamente, miram no mesmo Lula. Alguns ataques miram no Lula retirante (que fala errado, não fez faculdade, gosta de beber etc.); algumas defesas, idem: é a chegada de um “homem do povo” à presidência (seria isso uma prova de maturidade da democracia? Seria uma prova da abertura de espírito do eleitor brasileiro?); alguns ataques miram o presidente da conciliação de classes, que logrou resultados vistosos de inclusão social sem incomodar os poderes tradicionais – mas pisando no calo de toda uma camada razoavelmente confortável com a situação intermediária. Também tem defesas que se concentram nesse período, fazendo de Lula uma espécie de novo Getúlio, o conciliador que trouxe desenvolvimento, mas acabou sacrificado.
O Lula que é atingido ou resguardado por esses ataques e defesas é sempre a somatória de todos esses elementos: a destruição do Lula retirante é a destruição do novo Getúlio; a salvação do líder sindical é a salvação do autor da Carta ao Povo Brasileiro. Ao mesmo tempo, aquilo que se projeta para seu futuro tem um efeito semelhante. Sua condenação e eventual prisão significará para seus inimigos a concretização do “pixuleco”, atestado de que fora dos círculos tradicionais só tem bandidagem, um momento catártico de gozo; para seus defensores, será a demonstração da tese do combatente injustiçado, a exclusão do povo das grandes decisões. Para alguns, é a prisão do retirante; para outros, a prisão do líder sindical; para uns, a condenação do projeto que usurpou o poder que cabia de direito a determinados grupos; para outros, a condenação do projeto que tirou milhões de pessoas da pobreza.
Daí alguns aparentes absurdos, como a revelação da última pesquisa Datafolha de que mais de metade da população concorda com a perspectiva da prisão de Lula, mas também mais da metade da população votaria nele no segundo turno em outubro se ele fosse candidato. É revelador o fato de que haja gente disposta a votar em alguém que, em sua própria opinião, deveria estar preso. É como se dentro da cabeça das pessoas também fosse possível dividir os “muitos Lulas” que nos são apresentados e escolher um para cada ocasião, sem que isso seja particularmente um problema. A contradição, se há, não está na pessoa, mas no cenário que lhe é apresentado.
Dito assim, parece óbvio. A problemática se esclarece quando removemos o próprio Lula do cenário, deixando apenas as linhas de força que se confrontam no espaço aberto entre o indivíduo e sua efígie, a “noção completa” mobilizada a cada vez que uma imaginação carregada de desejo confabula sobre as origens e o destino do ex-presidente. O que encontramos aí é a forma específica que tomou o conflito político e social – ou, em uma palavra, histórico – do poder no Brasil; tanto o direito ao poder quanto o exercício do poder. Neste primeiro plano, é disso que Lula é o nome; e, se a guerra em torno do destino de Lula conduz o país à paralisia, é porque se trata de uma posição estratégica a conquistar. Uma cabeça-de-ponte, digamos. As batalhas do futuro serão definidas pela maneira como essa posição estará ocupada.
2) Processo e candidatura
Retomando a segunda pergunta feita ao fim da introdução: como o estado atual do país como um todo se expressa na trajetória do processo contra Lula e na sua pré-candidatura? A primeira coisa a fazer é deixar bem sublinhado o caminhar paralelo do processo e da candidatura. Um se alimenta do outro: quanto mais avança o processo, mais a candidatura é um cavalo de batalha e, quanto mais a (pré-)candidatura ganha corpo nas pesquisas de opinião, mais decisivo se torna o processo.
Quanto ao processo ele mesmo, não sou jurista para debater sobre a justeza da condenação, se as delações foram colhidas de modo aceitável ou não, se as demais provas são conclusivas. Há todo tipo de análise a esse respeito, apontando majoritariamente para a fragilidade do caso e da sentença, principalmente quanto à vinculação do benefício a atos de corrupção. Mas uma coisa é clara, mesmo para quem não tem conhecimento jurídico: o caso como um todo é de uma pobreza atroz. Desde aquele famoso Powerpoint de Deltan Dallagnol até o julgamento a toque de caixa da segunda instância (e mesmo antes, com a condução coercitiva), o que acompanhamos foi uma seqüência interminável de depoimentos inconclusivos, indícios tomados como provas, afirmações vazias para justificar conclusões sem premissas, abusos de poder. E torcidas animadas, claro.
O importante, na verdade, é que essa pobreza é necessária, do ponto de vista simbólico, que é o que interessa neste texto. Condenar Lula com clareza por um crime claramente cometido e com base em provas “acima de qualquer dúvida razoável” seria pouco impactante, não mexeria tanto com a sensibilidade das pessoas e não expressaria o mesmo nível de poder. Na esfera da disputa das posições, é preferível condená-lo em condições duvidosas, onde o contraste é mais evidente com outros políticos em situação parecida, que foram absolvidos, receberam penas irrisórias ou foram beneficiados pela prescrição. Talvez seja precisamente esse o motivo pelo qual o caso do triplex foi o que mais andou até aqui: é decididamente o mais fraco de todos contra Lula.
Ao mesmo tempo, condenar Lula por causa de um triplex no Guarujá ou um sítio em Atibaia é muito diferente, por exemplo, de condená-lo por esconder centenas de milhões de dólares na Suíça. (E, convenhamos, ficarei mais surpreso se ficar demonstrado que Lula não tem milhões na Suíça do que se eventualmente encontrarem dinheiro escondido.) Mas se condenassem Lula por ter milhões escondidos na Suíça, duas seriam as conseqüências: primeiro, ele seria condenado por um crime que muita gente “incondenável” comete neste país. E isso seria um problema, porque abriria o flanco para outras condenações semelhantes. Mais do que isso, a PF teria que encontrar esse dinheiro, ou seja, teria que procurá-lo, o que poderia causar problemas para outras pessoas que estão acima da lei. A segunda conseqüência é que o processo contra Lula seria um processo “normal”, praticamente incontroverso, não demandaria estrambóticas apresentações de Powerpoint, nem confusões semânticas sobre a propriedade de um bem e a corrupção passiva, nem uma estranha mistura de datas para a transferência de posse, nem nada disso.
Na sentença contra Lula, Sergio Moro citou um historiador inglês do tempo da Guerra Civil para dizer que “não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você“. Duas coisas nessa frase chamam atenção: a primeira é que, neste país, esta frase é reconhecidamente uma mentira deslavada. Em outros países ela é apenas uma impostura, já que há mil maneiras de manusear a lei a seu favor quando se está suficientemente alto, Goldman Sachs que o diga. E é de um cinismo atroz no caso do Brasil, terra de grileiros, de supersalários, da jagunçagem, de juízes que atropelam, matam e saem impunes, de juízes que vazam gravações ilegalmente e saem impunes, de juízes que acordam de madrugada para dar habeas corpus para empresário amigo… duas vezes. Terra de policiais que plantam droga na mochila de morador de rua e saem impunes. Terra de juízes que são, sim, punidos… com aposentadoria integral. E por aí vai. (A profusão de referências ao Judiciário é proposital…)
A segunda coisa é que o termo operativo da frase, no contexto da sentença em que está escrita, é o pronome você. A mensagem parece ser dirigida a alguém em particular, alguém que foi abatido na decolagem. Melhor dizendo, parece expressar a existência de um clube exclusivo para aqueles que estão acima da lei, um clube muito difícil de entrar. Escrever que a lei está e estará sempre acima de você é bem diferente de escrever que ela está acima de todos; no Brasil, isso só se diz no cinema – e com uma dose cavalar de cinismo. Mas então essa frase, posta assim, significa que há uma “caça às bruxas” contra Lula, como ele mesmo chegou a mencionar durante um de seus depoimentos? Significa que existe uma “indignação seletiva” contra a corrupção?
Em boa medida, sim, mas o problema é mais sutil do que isso. O que aparece como caça às bruxas ou indignação seletiva é, na verdade, um processo de expurgo; uma limpeza do espaço do poder para que volte a funcionar com os mesmos atores – tanto quanto possível. Algo parecido ocorreu, mal comparando, quando da restauração da monarquia inglesa depois de Cromwell, na instalação da Santa Aliança depois da revolução francesa (e Napoleão – importante frisar, porque a motivação para o expurgo passa longe do caráter efetivamente revolucionário; o que incomoda é o deslocamento dos espaços de poder), e principalmente na repressão prussiana e austríaca depois de 1848. Nobody knows you when you’re down and out.
Os grandes esforços de Lula para se escudar das acusações que certamente viriam parecem ser um reconhecimento da dificuldade em entrar no clube e na ofensiva digna de Wehrmacht que ele sofreria se fracassasse. Em todo caso, ele certamente tentou, ou pelo menos achou que já tinha entrado, nem que fosse pela força que seu nome carrega – ou carregava. Mas um “parvenu” só permanece aceitável para a aristocracia enquanto está na ascendente. Quando tem algo a oferecer. Quando a maré vira, não se torna apenas descartável (como Gatsby no romance de F. Scott Fitzgerald): torna-se também odioso, reflui todo aquele ódio que foi contido durante o período de conciliação. Incrível como a história do PT, e de Lula em particular, é parecida com a de Barry Lyndon.
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Chegamos, com isso, ao outro lado do movimento: a construção da candidatura petista. É provavelmente este o aspecto que mais expressa a transformação da figura de Lula numa fonte de paralisia, principalmente para o potencial criativo que deveria haver na sensibilidade de esquerda e, por extensão, nos movimentos e partidos que se apresentam como de esquerda. Ao contrário, estão todos em compasso de espera para decidir se se alinham à força hegemônica, construída no processo de redemocratização há quase quarenta anos e que já deu todas as mostras possíveis de incapacidade para se renovar e fazer frente aos desafios do século XXI. Isso, claro, sem explorar o que há de mais obviamente inglório para as esquerdas: uma candidatura presidencial que supostamente é a proposta da esquerda para o país está sendo construída como desagravo individual e estratégia de sobrevivência partidária.
À parte isto, o que permanece aberto à discussão é a noção de que uma eleição sem Lula é uma manobra, uma fraude, um golpe. Essa frase pode ser discutida em três planos. No estritamente jurídico, aquele em que se apoiarão sem dúvida os defensores da sentença, sobretudo os mais bacharelescos, certamente não há fraude nem golpe, uma vez que a lei da ficha limpa está aí desde 2010 e, certa ou errada em bloquear candidatos condenados em segunda instância, deve ser obedecida. Ainda neste plano, porém, certamente há um bom tempero de manobra, já que o cronograma do julgamento, como antes tinha sido com o das investigações, foi evidentemente calculado para coincidir com o calendário político (sem falar nos acontecimentos diários da política, como foi o caso do vazamento da conversa entre Lula e Dilma).
Note-se que, na maior parte das vezes, essa manobra foi feita dentro dos limites das normas de procedimento, ainda que fora, aliás longe, do habitual (como a marcação da apreciação do recurso para 24 de janeiro, um prazo curto e uma data pessoalmente cruel para Lula). Digo isso porque é sempre bom lembrar: regras de procedimento e outras pequenas formalidades meio ridículas servem justamente para garantir o espaço de manobra, o exercício de um pequeno poder e, por fim, o arbítrio pessoal, desde que dentro dos parâmetros aceitáveis para escalas superiores de poder.
No plano do processo político (no sentido estrito), é evidente que o manuseio das regras de procedimento e todo o aparato do Judiciário está servindo a uma finalidade que lhe é alheia. Ou seja, o aparato está instrumentalizado pela disputa política – naturalmente, já que sua cúpula e os cargos mais importantes de sua hierarquia são ocupados por herdeiros de elites tradicionais e de estratos que aspiram a se juntar ao clube. Assim sendo, não creio que haja controvérsias a respeito do fato de que a ofensiva contra Lula visa eliminá-lo da corrida presidencial de outubro. Por sinal, esse é o ponto de vista do mercado financeiro, que precificou o processo, apostando sem muita base empírica na idéia de que Lula seria um mau presidente para seus interesses. Assim sendo, existe mesmo algo de fraudulento, algo que pelo menos flerta com um certo golpismo, nos esforços para remover Lula da disputa. Esses esforços escancaram o recurso das oligarquias a meios que estão fora da normalidade institucional, pelo menos na forma.
Mas é justamente isso que nos traz ao terceiro plano: os esforços “escancaram” a naturalidade com que oligarquias se dispõem a recorrer a meios questionáveis. Mas não introduzem nada. O terceiro plano, portanto, é o dos mecanismos políticos mais profundos, aquilo que não se deixa traduzir inteiramente em códigos, processos institucionais, imagens precisas. É aquele plano em que a caracterização do Brasil como “uma democracia” é mera contingência; é um plano em que a sociedade civil não figura como “fonte da soberania” e suas opiniões não passam de banalidades dignas de migalhas. Nesse plano, não há nem sequer espaço para que uma proposição dessas seja verdadeira ou falsa. Nele, a exclusão de Lula ou sua inclusão na lista dos candidatos expressa o triunfo de uns e o fracasso de outros.
Evoquei este terceiro plano porque sem ele a arquitetura do sistema fica incompleta. Os três planos não são camadas isoladas, nem simples recursos de análise, como se bastasse escolher um só para definir o que se pensa sobre o assunto. Eles se coimplicam e, principalmente, os mais “baixos”, imediatos, quotidianos, servem para manifestar e realizar os mais abstratos e decisivos. Neste último plano a lógica binária (“é” ou “não é”) já não vale, porque é ele que estabelece as bases em que uma proposição como “é golpe” pode receber valor de verdade. É o plano em que se define o peso da institucionalidade formal na vida política do país, assim como é (por exemplo) o plano em que a gramática geral da sociedade vai considerar como normal ou como aberração um juiz se referir ao acúmulo de auxílios-moradia como “um direito”.
Referindo-se a outro assunto (o mecanismo da instituição monetária), gente como Aglietta e Orléan designam esse plano como o da “confiança ética” (os outros sendo o da “confiança metódica” e o da “confiança hierárquica”). Ou seja, acima dos procedimentos formais e regrados (metódicos), acima da instituição operando, legiferando, administrando (hierárquica), podemos ver em ação, no caso de Lula, um movimento mais sutil, decisivo e abstrato: um espaço de determinação, ou seja, tomada de forma, para a gramática do nosso sistema ético. E um sistema ético significa: como nos comportaremos, que tipo de juízo emitiremos, que espaços abriremos para tais, tais e tais pessoas e grupos. Não é pouca coisa.
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É por isso que a comparação entre a condenação, digamos assim, duvidosa de Lula e o verdadeiro estado de exceção em que vive boa parte da população brasileira é pertinente, mas insuficiente. É uma comparação com que me deparo freqüentemente nas redes sociais e na internet (que não são a mesma coisa), e sua formulação é mais ou menos a seguinte: “como podem os defensores de Lula acusarem um desvio da democracia (ou até seu fim) por causa das manobras feitas para eliminá-lo da disputa de outubro, se esse tipo de manobra é fichinha em comparação com o que se passa diariamente com réus negros, pobres, moradores de favelas etc.? Para essas pessoas, nunca houve uma democracia que pudesse estar sendo destruída agora.”
Não há nada nesse argumento que seja estritamente falso: se o conceito de soberania envolve a legalidade como universal, mas uma boa parte da população é deixada à margem da lei (e outra parte, pequena, acima dela – como vimos), então a democracia não existe para ser destruída, ou pelo menos existe de um modo suficientemente imperfeito para que mais um caso em que ela é ignorada não signifique uma ruptura em particular. O argumento costuma prosseguir lembrando do papel que os governos do PT tiveram na manutenção e até aprofundamento da exceção, sobretudo no quadro da preparação para a Copa e os Jogos Olímpicos. Isso também é verdade e serve para refrescar a memória, mas não modifica em nada o argumento.
Acontece que, como já pudemos ver, o que há de significativo na condenação de Lula está em outro plano. Ou melhor: o julgamento de Lula se desenrola em outro plano, mas o que está em jogo é a modalidade da comunicação entre planos. Tudo isso, é bom frisar, se desenrola na cabeça dos atores relevantes: os juízes, os militantes, os analistas, colunistas, aliados e adversários políticos. O julgamento de Lula faz parte de um processo de “purificação” do controle político sobre o país, de modo que a decisão é uma mensagem lançada para todos os cantos, para todos os estratos sociais. Assim, a questão não está em afirmar ou questionar a sobrevivência do Estado de direito, da democracia, da universalidade da lei. O que está em jogo é o conjunto de linhas demarcatórias para a validade da lei, que não é universal – certamente não aqui, provavelmente em lugar nenhum.
Linha demarcatória, ou seja, espaço de indefinição; ou seja, fronteiras dos modos de atuação da lei e sobre a lei. Que o Judiciário e a polícia podem deitar e rolar em cima da população pobre no Brasil é inegável. Se é inegável, é porque este é um espaço plenamente definido, um espaço de arbitrariedade e subjugação claro, quase inteiramente fora da lei – mas não totalmente, porque existe um minúsculo respiro, ali onde qualquer migalha de vitória por parte de um defensor público, por exemplo, é um triunfo heróico e surpreendente, mas real, e que libera um pouco de pressão quando ela se torna excessiva. Que, do outro lado, esse mesmo judiciário e essa mesma polícia farão tudo para evitar problemas a oligarcas, grileiros, especuladores, togados e políticos, também sabemos. Esse é um espaço bem demarcado, acima do alcance da lei, e que pode causar problemas graves a advogados, investigadores ou jornalistas, se tentarem estender a validade da lei até ali.
O que nos ensina todo esse fuzuê (me deu vontade de usar essa palavra) em torno de Lula é que ainda havia, no mínimo, um espaço cuja determinação não conhecíamos. O que não sabemos é: a que grupo pertence alguém com a trajetória de Lula? Vale a pena parar um instante para contemplar o absurdo da situação: o que estamos presenciando, como nação, é a decisão entre incluir um ex-presidente, ex-líder sindical e ex-pobre no rol daqueles que o poder, na figura do Legislativo (OK: a lei) favorece em qualquer circunstância, ou relegá-lo à mesma categoria em que estão os inúmeros despossuídos do país. Ou, melhor dizendo: retorná-lo a essa categoria, já que ele nasceu nela. Parece estar fora de cogitação que ele não esteja em nenhuma das duas categorias: ou seja, nem abaixo, nem acima de uma lei universalmente válida. Dado o peso de seu nome, de sua imagem, de tudo que ele mobiliza, para isso seria necessário que a lei fosse realmente de aplicação universal, ou seja, que essas duas categorias nem existissem. Mas isso é impossível para nós. Lula também é o nome disso, no fim das contas.
Por um lado, é evidente que existe um oceano entre o que está acontecendo com Lula e o que acontece diariamente nas favelas, periferias e zonas rurais do Brasil, de modo que fazer de Lula o símbolo da nossa deficiência de democracia é (quase?) um insulto a tanta gente presa sem julgamento, assassinada, torturada, condenada por furtos minúsculos etc. Por outro, no plano dos espaços de poder, o que estamos experimentando é o anúncio público de que a linha demarcatória da casta à qual tudo é permitido passa aquém, e não além, de uma pessoa com a trajetória, a biografia e, digamos assim, o aspecto de Lula. Se há uma conexão entre as manobras em torno da condenação de um ex-presidente e a exceção concreta e ilimitada a que está sujeita grande parte da população, ela está no próprio fato de que a questão exista, ou seja, de que haja castas capazes de determinar sem grandes questionamentos os espaços de exclusão. Por sinal, Lula também é o nome disso: a descoberta de um certo critério para fazer parte dos inacessíveis.
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É preciso fazer uma pausa e atentar para o seguinte: tudo, absolutamente tudo nesta situação é inglório. A trajetória política de Lula costumava ser comparada à de Lincoln (lembra?); agora está em boa medida reduzida ao esforço pessoal (meritocrático?) de adentrar o clube dos privilegiados brasileiros, um clube restrito, mas recompensador. Onde à primeira vista estamos combatendo abusos de poder e desvios de verba, na verdade estamos apenas fazendo um ajuste de contas político e afastando uma parte dos já restritos grupos de poder.
Aliás, se já é ruim perder a imagem de um Lincoln (não temos muitas personagens dessa envergadura), ainda pior é perdê-la para uma imagem de alpinista político. Principalmente no caso de alguém cuja imagem atual contamina todas as categorias sociais que se acumulam em décadas de trajetória e de história do país: retirante, sindicalista, fundador de partido, candidato, presidente…
Melhor dizendo, não é só inglório: também é trágico. Do ponto de vista do equilíbrio político, o PT, com Lula à frente, pôs tudo a perder depois da derrubada de Dilma. O que houve como força de oposição a Temer foi desinflado pela estratégia petista de canalizar todas as energias (na sociedade) para sua própria salvação – e a de Lula, claro. As primeiras manifestações contra Temer tinham um tamanho bastante respeitável, mas em vez de crescerem proporcionalmente aos escândalos e aos projetos impopulares (aliás, também à impopularidade estatística do próprio Temer), foram deliberadamente congeladas e mortas pela instrumentalização partidária. Quem paga por isso é o país, particularmente o trabalhador que perde seus direitos, não só por causa do projeto hoje no poder, mas também porque foi rifado pelo partido que leva seu nome.
É claro que nada disso aconteceria se o PT não tivesse conseguido manter sua posição dominante na esfera dos partidos e movimentos de esquerda – do ponto de vista das sensibilidades, sem dúvida, e da capacidade de mobilização, também. A tibieza das alternativas à mão, a covardia das lideranças do PSOL, a mediocridade dos nomes disponíveis para a disputa eleitoral, tudo isso é inglório; provavelmente boa parte disso se explica pela transição de modelo econômico no Brasil e no capitalismo global, mas isso é assunto para outro texto.
3) Paralisia e propostas
Essas últimas considerações nos trazem à terceira das perguntas elencadas na introdução, ou seja: como a paralisia atual e a derrocada de Lula se encaixam em escolhas políticas feitas nas últimas décadas. É uma questão difícil e, revendo as notas que resultaram nos parágrafos e itens acima, percebo que todas as considerações passam ao largo do ponto mais inglório de todos, no que diz respeito à candidatura de Lula. Como podemos achar normal, aceitável, que o candidato a presidente das esquerdas em 2018 seja o mesmo que foi em 1989? De que serve o progressismo que não é capaz de progredir nas lideranças – lembrando que a liderança é supostamente aquele indivíduo que “porta” a mensagem do partido, suas idéias, seus projetos, suas propostas?
Provavelmente existe aí um elemento da falha mais grave nas esquerdas latino-americanas: um personalismo pronunciado, que repete o culto tipicamente conservador a “grandes fundadores da pátria” (como é o caso do bolivarianismo, sem dúvida), mas que sobretudo denota uma contaminação pelo espírito místico presente em certos movimentos contestatórios da história do continente, com pouca carga de invenção política propriamente dita. Isso me parece contrário a tudo que funda a própria noção do progressismo (um nome mais elegante e aparentemente carregado de mais sentido que às vezes se dá à esquerda), que envolve princípios como decisões coletivas, rejeição à autoridade, negação à transcendência encarnada numa insígnia e numa pessoa.
Vale lembrar que o PT foi fundado para ser precisamente o oposto de um partido personalista, rígido e mistificador (assim como o novo sindicalismo tinha sido fundado para ser o oposto de um sindicalismo pelego…). A reunião de grupos vindos da religião, do movimento operário, da intelectualidade, projetava um partido colegiado, múltiplo, pluralista. Vê-se como o crescimento do partido cobrou seu preço. A notável expansão sob a batuta do CNB (leia-se Dirceu) trouxe o poder e a glória, mas esclerosou as estruturas. Não se pode atribuir a insistência em Lula como candidato apenas ao processo judicial contra ele. Desde o início, não se falava em outra candidatura, nem sequer como “alternativa” (sic!). Eis a maior derrota do PT, muito maior do que essa que o Judiciário está impondo.
É a maior derrota porque mesmo os reveses dos últimos anos não teriam acontecido, pelo menos não de maneira tão destrutiva, se o PT não se convertesse numa máquina de reverberação e reforço para uma personalidade carismática. Não haveria motivo para perseguir com tanta veemência uma figura simbólica como Lula se seu partido tivesse um leque renovado de quadros portadores de idéias adaptadas aos desafios do mundo atual (que é o mundo da ascensão da China, da automatização, da mudança climática e conseqüente transição energética, da “gig economy”, do esgotamento neoliberal no mundo rico etc.). Se um ataque como esse foi tão eficiente e deixou o partido em frangalhos, como indicaram as eleições municipais de 2016, é porque estava ali um elo fraco. Era um ponto de apoio para todo o peso do edifício; uma vez removido, toda a estrutura veio abaixo.
Em outras palavras, o PT já estava derrotado como alternativa de futuro para o país em 2010, quando consagrou uma candidatura indicada por Lula. A candidata em questão se revelou uma presidenta ineficaz, mas isso é irrelevante para o ponto em questão: nunca um partido com a história do PT poderia ter um candidato imposto pelo “dedaço iluminado” de uma grande mente, de um líder inquestionável. Ainda menos considerando que o verdadeiro desejo, no partido e na tal da grande mente, era que Lula voltasse a se candidatar em 2014. Tudo isso expressa uma estrutura esclerosada.
Em tempo: é pouco crível o argumento de que tudo seria diferente se não tivesse havido o escândalo do mensalão em 2005. Basta lembrar que o candidato que vinha sendo preparado para 2010 era José Dirceu, artífice do enrijecimento do PT (e da aproximação com as empreiteiras) e personagem da mesma geração de Lula. Além disso, o desejo de ter Lula de volta em 2014 (e agora em 2018 de novo) revela que o partido se afastou completamente daquilo que teria sido sua missão histórica, não produziu renovação, não trouxe novas idéias, não está pensando os desafios do futuro.
Resumindo: se o PT e a esquerda como um todo (com exceções) não tivesse caído na armadilha personalista e, a exemplo do chamado “voto crítico” de 2014, no canto da sereia de um mal disfarçado messianismo do PT, não haveria espaço para uma concentração tão grande de ataques a Lula. Ele seria uma personagem importante, mas jamais seria esse totem em que se transformou. O PT e, em boa medida, toda a esquerda com peso social e eleitoral no Brasil se enrijeceram tanto por apego à figura de Lula que sua derrocada será a derrocada da esquerda em geral.
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Entretanto, está bastante claro que esse não é o fim da história. Veja-se o lado oposto: editoriais na imprensa, colunas de opinião, documentos de trabalho emitidos por bancos e fundos, manifestações partidárias e, sobretudo, as patéticas candidaturas aventadas demonstram de maneira cabal que não existe nenhum projeto de futuro na direita. Tudo que os partidos fisiológicos, a centro-direita e a voz das elites têm a oferecer é uma restauração oligárquica – com o beneplácito do sistema financeiro, para o qual pouco importa a estrutura produtiva de tal ou tal país, contanto que o retorno sobre as aplicações seja satisfatório e mais ou menos seguro.
Não há idéia de adaptação para a economia altamente tecnológica das próximas décadas; nada disso é necessário se o país vai ser um exportador de commodities. Isso que tem sido chamado de reforma da previdência, como a trabalhista do ano passado, não passa de um desarranjo do sistema que, em suas bases, continua sendo rigorosamente o mesmo – só não vai funcionar. É o suficiente para liberar recursos que seriam destinados ao trabalho e às pensões, e que agora poderão ser capturados normalmente pelas oligarquias. Não é por acaso que esse tipo de reforma só se faz por meio da ilegitimidade política, como está sendo agora.
No início dos anos 90, a centro-direita (com personagens oriundos da centro-esquerda, por sinal) oferecia ao Brasil a entrada no mundo promissor da globalização financeirizada, ou seja, no neoliberalismo, que então se expandia a passo acelerado pelo mundo, levando capitais em profusão às bocas sedentas de governos do Terceiro Mundo. Era um tempo em que o que havia de mais avançado… e progressista… era a candidatura de Fernando Henrique – vamos, admita, leitor socialista saudoso de Geisel.
E o que tem a oferecer a centro-direita hoje (admitindo que seu candidato seja Alckmin, e não uma piada grosseira como Dória ou Huck)? Mais ou menos a mesma coisa. Aprofundar o mergulho do Brasil nesse mundo encantado da globalização financeirizada… mas agora, nesse momento em que está claramente fazendo água. “Flexibilização” do mercado de trabalho sem um instante de pausa para pensar o que são as condições de trabalho na era da “gig economy” e da automatização. “Desarmar a bomba da previdência” sem responder como viverá o aposentado que passou décadas precarizado. “Atrair investimentos” sem investir previamente na capacitação da força de trabalho, para que os investimentos efetivamente atraídos tenham um teor produtivo. Basta ver o histórico de Alckmin como governador no setor de educação; aliás, também o do falecido Paulo Renato, que foi ministro de FHC. Ou seja: palavras vazias. E para se somar ao cenário já tão inglório, surge um partido supostamente “novo” para defender rigorosamente as mesmas propostas, com um quarto de século de atraso.
(Em tempo: na esquerda, esclerosada, também não tem muitas propostas para lidar com relações de trabalho e aposentadoria nas próximas décadas. Na verdade, o que temos recebido da esquerda são projetos mais ou menos como os do governo Dilma.)
Assim, é fácil perceber que, tanto como a esquerda enrijeceu sob Lula e o PT, a direita também parou no tempo. Sente-se confortável em ser o que sempre foi. Quando se fala em “direita” no Brasil, personagens histriônicos são uma mera ponta-de-lança; “raios privatizadores” e outras defesas extremas da preeminência do mercado financeiro são meras vertentes. A direita no Brasil é um poder oligárquico, patrimonialista, bacharelesco e estamental. Nenhuma novidade nesse front. Acredite: nada de bom no Brasil sairá das direitas. Da direita brasileira, só o que podemos esperar é parasitismo. O fato de que as esquerdas tampouco contribuam com grande coisa não muda nada nessa constatação. Só acrescenta um pouco de tempero na agitação da nossa paralisia.
É por isso que o quadro político parece uma repetição histórica. Afinal, não são só seus defensores que vêem Lula como um “novo Getúlio”: também seus inimigos fazem esse paralelo, inclusive quando lhe atribuem um populismo semelhante, como sendo um novo “pai dos pobres”. As comparações ponto a ponto entre os dois não são determinantes: o importante é que Lula exerce um papel que remete ao de Getúlio, do ponto de vista dos “donos do poder”. Por mais que ambas as lideranças sejam antes de tudo vetores de conciliação, aquilo que eles vêm conciliar são focos de tensão bastante concretos na sociedade, de modo que as demandas que eles encarnam, com ou sem razão, são demandas reais. Mas principalmente: são demandas que eles não atendem completamente, não atendem suficientemente, mas que os representantes dos poderes instalados não atendem em absoluto e não querem ver de jeito nenhum atendidas. Enquanto a repressão pura e simples der conta do recado, um Getúlio ou um Lula são dispensáveis.
Resumindo: há demandas que são reais e não têm por que diminuir, já que o país é urbano, complexo, extenso e injusto. Há uma diminuta casta de poderosos que procura abafar tanto quanto possível essas demandas, recorrendo a arbitrariedades jurídicas constantemente e a diferentes graus de violência sempre que necessário. Obviamente existe um descompasso nesse cenário, uma fonte de tensões disponíveis para a política que serão captadas de um jeito ou de outro. Conclusão: sempre há de surgir alguma personagem mais ou menos na linha de Getúlio e Lula. Mais cedo ou mais tarde, haverá outra liderança carismática para encarnar (e provavelmente desinflar) as demandas de uma sociedade desigual, agitada, oprimida, viva. Houve Getúlio, houve Lula, mas por que ficar só nos dois? Guardando as devidas proporções e o sentido político de cada um, houve também o padre Cícero, houve Antônio Conselheiro. Cada um à sua maneira; e nada garante que o próximo não será uma personagem religiosa tão mística quanto Conselheiro. Ai de nós.
Nesse meio-tempo, quando uma confluência de forças tomou forma e deu origem ao PT, ao fim da ditadura, esse foi o mais longe que a sociedade civil já chegou no Brasil em termos de projeto político plural, horizontal e inventivo. Juntou os resquícios da pujança criativa e intelectual que chegou a haver no Brasil antes do AI-5 com as forças que foram surgindo na luta contra a ditadura, principalmente depois do fracasso da luta armada. Mas esse projeto se enrijeceu, fez água, implodiu e agora recebe o tiro de misericórdia de seus adversários. Em certa medida, Lula também é o nome disso.
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Dizem os defensores de Lula que “a direita” (às vezes se diz “os tucanos”) não quer enfrentá-lo nas urnas porque sabe que vai perder. É duvidoso – o que não quer dizer que seja falso. É verdade que as pesquisas de opinião colocam Lula em primeiro lugar, seguido por Bolsonaro, e que sua exclusão dobra o índice de votos brancos e nulos. É verdade também que as reformas acochambradas dos atuais controladores do poder são impopulares e exageradamente cruéis, o que poderá favorecer uma candidatura “de esquerda”, ou pelo menos que se aproveite de uma retórica à esquerda, como a de Ciro Gomes. Também é verdade que Lula leva vantagem no corpo-a-corpo, sobretudo contra um adversário como Alckmin, pelo menos enquanto tiver saúde.
Mas essa vitória está longe de ser tão evidente. Lula nunca esteve tão vulnerável a ataques, o PT diminuiu muito em termos de penetração e ocupação de cargos, as alianças forjadas para 2010 e 2014 parecem fora o alcance – para dizer o mínimo. Sem o acesso às alianças fisiológicas, dificilmente uma candidatura tem penetração no eleitorado.
Além disso, a direita anda bastante confiante depois de 2016, que foi um desastre para o PT – mesmo que temporário, como parece ser o caso em São Paulo, cujos habitantes estão aprendendo “the hard way” que o ódio partidário não é um bom jeito de escolher um prefeito. O anti-petismo, o desgaste do próprio Lula, a irritação com o desempenho de Dilma e o discurso desenvolvimentista, a fraqueza programática e retórica da esquerda, tudo isso joga muito a favor da direita, nem que seja somente a direita mais hidrófoba. E a direita conta com isso, tanto a centro-direita tucana quanto a extrema-direita ensandecida que botou as asinhas de fora ultimamente.
Provavelmente o motivo pelo qual a direita não quer bater Lula eleitoralmente é outro. Uma vitória “normal” em eleições restabelece o jogo, ali onde ele sempre esteve, ou melhor: desde a redemocratização. A vitória eleitoral atesta a legitimidade do vencedor – mas também a do vencido. Depois de 2018 haverá 2022 e, mesmo antes, as municipais de 2020. É tempo suficiente para a articulação de novos discursos de oposição e inclusive para uma renovação da esquerda – se é que a esquerda brasileira tem capacidade de se renovar. A história do Brasil desde o começo do século passado mostra que sempre há espaço, e um espaço bastante grande, para forças políticas que representem alguma oposição às oligarquias. Falei em representar a oposição, não em opor-se efetivamente, ou frontalmente, porque essas forças sempre foram mais bem-sucedidas quando fizeram um jogo dúbio, de Getúlio a Lula. Em todo caso, uma vitória eleitoral seria legítima demais… e seria efêmera demais.
Uma vitória judicial, sobretudo se for polêmica, duvidosa, cheia de espaços cinzentos, é um gesto de poder. É, como eu disse acima, um ato decisório sobre os espaços do poder efetivo e sobre aqueles que podem ocupá-lo. É um gesto muito mais propriamente político do que tudo que o processo político pode proporcionar. É fundador de direito, em suma. Por isso, tem um efeito muito mais poderoso, porque lança seu recado para o conjunto da sociedade, reverberando ainda por um bom tempo: o clube é restrito, muito restrito para aceitar uma figura incômoda como essa.
Por isso, expelir Lula do sistema numa vitória judicial, e não política, é um duplo triunfo: ao mesmo tempo é uma vitória do ponto de vista da ocupação do Executivo em 2019 e uma vitória sobre a “noção completa” do personagem político mais importante dos últimos 40 anos. É também uma demonstração de força contra a idéia de que a esquerda consegue colocar em movimento a sociedade civil, já que o PT usou e abusou da retórica da “força das ruas” para defender Lula (e, por um momento, também Dilma). As ruas, no entanto, preferiram não.
Mas há ainda um terceiro importante grupo em ação, nomeadamente a casta política, com seus fabulosos caciques, seu baixo clero, seus assessores obscuros e tanta gente que orbita esse universo de eleitos com suas verbas de gabinete e, com sorte, mais uns caraminguás de emendas e repasses. Este grupo é interessante porque, embora seja majoritariamente oriundo das velhas elites, tem seus próprios interesses a zelar, o que envolve reeleger-se, continuar tendo acesso às verbas e aos gabinetes, fazer a ponte entre a dominação efetiva sobre a economia e a sociedade e o exercício formal do poder, principalmente nos ramos Legislativo e Executivo, mas também no Judiciário.
Pois bem, o que deseja esse grupo em relação a Lula? Bem, na medida em que são membros da nossa casta tradicional de poder, querem expelir esse intruso incômodo com que foram obrigados a conviver nas últimas décadas. Porém, como políticos, querem antes de mais nada garantir que vão continuar sendo intocáveis e não correrão o risco de acabar como Delcídio do Amaral, Marcelo Odebrecht ou Paulo Maluf. Nesse sentido, a prisão de Lula representa um perigo, mesmo se é bastante razoável supor que a válvula jurídica vai se fechar novamente tão logo o “sapo barbudo” tenha passado pelo ralo. Sinais disso são a absolvição de Roseana Sarney e a prescrição que já beneficiou Eduardo Azeredo, Aécio Neves e José Serra. Mas continua sendo um perigo: como bem disseram Romero Jucá e Sergio Machado, para a classe política a operação Lava-Jato ainda representa uma sangria.
Portanto, não é absurdo apostar que a preferência das lideranças políticas é pelo impedimento de Lula participar das próximas eleições, mas que ele não vá parar na prisão. A classe política está andando no fio da navalha, neste momento em que o combate à corrupção se tornou um tema e, até certo ponto, uma realidade. Uma eventual absolvição de Lula pela turma de Carmem Lúcia, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, mas só daqui a muito tempo, depois das eleições e possivelmente durante as calendas gregas, viria bem a calhar para essa turma: o petista estaria razoavelmente (suficientemente?) desmoralizado, as eleições deste ano se desenrolariam sem essa presença que desequilibra e, de lambuja, não teria sido criado mais um mártir, grande temor dos herdeiros de Lacerda desde 1954. É uma estratégia delicada, mas terrivelmente conveniente.
* Adendo *
As primeiras notas para este texto são tão velhas que foram tomadas antes da divulgação daquela capa da revista Piauí de agosto, em que Lula aparece, mais do que “tomado para Cristo”, efetivamente no lugar de Cristo, pregado à cruz, com Moro, Gilmar Mendes, Dória, Bolsonaro e Skaf no papel de soldados romanos e um pato de borracha no lugar da esponja embebida em vinagre. Fiquei sabendo de uma breve polêmica nas redes sociais por causa dessa capa, mas ficou por aí (afinal de contas, a revista pertence aos Moreira Salles, que têm muito mais condição de resistir a um ataque de arruaceiros fascistas do que a classe artística inteira).
A capa tem o mérito de expor uma evidência, que pode ser incômoda para a maior parte dos campos em que se divide a polarização política no Brasil de hoje: a figura de Lula atingiu, para todos os efeitos, o nada saudável patamar de emblema sacro. Não estou dizendo que Lula realizou aquilo que John Lennon acreditou ter feito com os Beatles: ser “mais popular que Jesus Cristo”. Mas se existem comparações como essa, e no íntimo as pessoas sentem que faz sentido, a ponto de ficarem horrorizadas (e não indiferentes), é porque as idéias e energias mobilizadas pela noção do sagrado estão sendo mobilizadas também pela efígie, ou o ícone, que se vê comparada ao divino.
Não segui essa linha aí acima porque me parece que a ênfase maior é o significado que cada parte da biografia de Lula representa para o inconsciente coletivo do país: a miséria, a migração interna, a saída da ditadura, os movimentos sociais, a criação de um partido de massas, a eleição de um ex-operário para a presidência, a inclusão social, o prestígio no exterior, a derrocada sob acusações de corrupção.
Mas tem outro porém: nossa tradição monoteísta separa rigorosamente a imagem destinada à adoração da imagem destinada à abominação, mas a mobilização afetiva de uma efígie como a de Lula funciona de modo diferente, concentrando e até mesmo misturando a adoração e a abominação. Nesse tipo de imagem, comum em outras configurações religiosas, o mesmo tipo de reverência trêmula, íntima, é dedicado àquela figura transcendente sendo amada e odiada. (Mesmo no monoteísmo, a ambivalência da personagem sagrada não desaparece por completo. Basta ver como freqüentemente o mal nasce da ação de um anjo caído, como Lúcifer.)
Lula é um caso muito significativo dessa ambivalência no plano político. Seu nome faz convergir tanto a veneração quanto a repulsa. A figura de Lula recolhe esses sentimentos, construídos paulatinamente ao longo dos últimos anos, até décadas (ou seja, no passado), e os dirige, consonantes, embora ainda divergentes e incompatíveis, para o futuro. Por ora, pelo menos, esse futuro tem um ponto definido, ou seja, um nome: outubro de 2018.
Não é por acaso que andem se referindo a um “novo sebastianismo” para aludir ao sentimento de muitos petistas em relação a Lula. É uma boa analogia, com a diferença nada irrelevante de que o rei português em questão estava morto e Lula está vivo: a possibilidade de que D. Sebastião voltasse de fato nunca existiu, o que fazia de sua figura uma excelente efígie religiosa, já que servia de orientação, com cunho religioso, para determinar como os portugueses (e muitos brasileiros, a começar por Antônio Conselheiro) agiriam, eles mesmos, no futuro imediato. Isso era o sebastianismo, ao passo que o sebastianismo lulista é (ou era, até recentemente) a espera por uma volta efetivamente possível, o que, pelo que podemos ver, está mais próximo de determinar a paralisia do que a ação.
Do outro lado, temos aquilo que muito justamente tem sido visto como demonização de Lula, e que se manifesta na expectativa de que fique inscrito na pedra que o “sapo barbudo” foi o maior criminoso da história deste país. Pelas imagens que suscita e as emoções que revela em filigrana, a expectativa pela sua prisão manifesta bem mais um desejo de destruição (ou seja, uma iconoclastia) do que a busca de uma qualquer justiça. Nunca houve um clamor semelhante para qualquer caso de corrupção ou mesmo crimes comuns no Brasil, nem mesmo no caso de Collor. O clamor para que Lula seja preso evidentemente não decorre do pedalinho, nem da Petrobras; nem do triplex, nem dos gastos da Copa. Decorre do fato de que é Lula.
(Este adendo é o que sobrou das notas tomadas em agosto.)
No último texto que publiquei por aqui sobre o que se passa na política brasileira, tentei avançar duas idéias relacionadas ao destino que nos espera. Resumindo bem, são as seguintes: primeiro, que o governo Temer representa o ponto-chave de um retrocesso que não começa com ele e não reverte nem os governos petistas, nem a Nova República, mas uma dinâmica histórica muito mais extensa. Por isso, melhor seria pensar na dinâmica atual como um “retorno” à lógica geral da Primeira República, tradicionalmente conhecida como “República Velha”. Um “retorno”, como eu disse, a uma lógica, a um modus operandi, e não à fase histórica propriamente dita, é claro.
Em segundo lugar, defendi que esse processo de regressão se choca com uma realidade social e demográfica do país, e esse choque torna, quero crer, impossível (pelo menos, impensável) sua chegada a termo com sucesso. Isso significa que o grau de involução que se tentará impor ao país, e que em menor grau já vem sendo sugerido há tempos, é tal que, necessariamente, algo explodirá no caminho. Portanto, o processo ruiria, provavelmente com violência. É inviável.
Mas acho que é preciso explorar em mais detalhes essas duas teses para entender melhor onde estamos, o que significa o retrocesso e que tipos de tensões vêm pela frente. Por isso, o que segue complementa o escrito de setembro, mas ainda é só um passo preliminar para uma questão muito ampla e intrincada.
* * *
Sem dúvida, o coração da crise, no sentido amplo, pode ser designado com a tradicional rubrica do “conflito distributivo“. Na medida em que não dá para todos ganharem algo, como parecia ser o caso na década passada, cada grupo social tenta garantir o que puder do butim. E nesses casos, como é mesmo que se diz? – “Quem pode mais chora menos”… Por outro lado, esse termo não me satisfaz completamente, porque geralmente se refere a recursos financeiros, particularmente em discussões sobre a inflação. E essa visão unidimensional muitas vezes nos leva a esquecer que há outras dimensões para esse conflito.
Por isso, vale a pena olhar separadamente para as três dimensões do problema. Ele se desdobra, e não é de estranhar, em processos econômicos, sociais e políticos. É claro que são dimensões que facilmente se misturam, mas a divisão é útil, nem que seja para escapar à tentação de se contentar com a leitura moral ou moralista. Ou seja, ficar satisfeito em dizer que triunfaram corruptos, mafiosos, e por aí vai, ainda que pareça ser mesmo o caso…
Além de moralista, como se a política fosse um epifenômeno da moral, essa explicação peca pelo curto-prazismo, tornando-se cega para as dinâmicas determinantes do caminho brasileiro. Não é o melhor dos caminhos, por sinal, e se mirarmos nos problemas errados, nunca vamos reunir forças para sair dele.
1: Desindustrialização
Começo pela dimensão econômica, que o leitor provavelmente vai considerar central. Como se sabe, a participação da indústria de transformação no PIB, na estrutura de empregos e na pauta de exportações vem caindo no Brasil desde fins dos anos 80. Essa queda se intensifica em alguns momentos-chave: da abertura de Collor ao período de câmbio artificialmente valorizado, antes de janeiro de 1999; e os momentos sob Lula e Dilma em que o câmbio também se valorizou além do que seria sensato. Por sinal, houve um momento em 2011 em que o dólar chegou a valer R$ 1,55; atualizando pelo diferencial de inflação entre o Brasil e os EUA, chega-se ao dado de que o real estava mais forte do que no início do Plano Real, quando foi sobrevalorizado para driblar especuladores. Era, em resumo, uma irresponsabilidade.
O resultado é que o Brasil voltou a ser basicamente um exportador de commodities, com uma pauta dominada por cinco produtos: soja, minério de ferro, petróleo, açúcar e carne. São produtos de baixo valor agregado, pouco impacto em outros setores produtivos e baixíssimo nível de ocupação de mão de obra, principalmente qualificada. O que os dados mostram é que, no setor agroexportador brasileiro, a cana gera um emprego a cada 100 ha, a soja, um emprego a cada 200 ha e a pecuária, um emprego a cada 350 ha. É muito pouco.
Por mais que queiram nos convencer de que “o agro é pop” (aliás, que lema mais anacrônico), a verdade cristalina é que o dinamismo econômico dessas commodities é bastante opaco. Como se não bastasse, sua produção demonstra uma voracidade tal que destruiu rios importantes, pode eliminar dois biomas riquíssimos e sonha em extinguir etnias inteiras. É sintomático que Kátia Abreu tenha se referido à “questão indígena” do Mato Grosso usando a expressão “solução final”, evocando fórmulas de péssimo augúrio…
Falando em Kátia Abreu, sua proximidade com Dilma Rousseff é uma demonstração de como aquilo que passou por “desenvolvimentismo” nesta década, por fim jogando na lama o termo de “desenvolvimento”, foi uma política de franco favorecimento a esses mercados que desenvolvem tão parcamente, mas destróem com tanta volúpia. Esse foi seguramente o pior legado da era Dilma, sobretudo porque, ao apresentar tamanho parasitismo como única alternativa “racional” ao parasitismo financista do mainstream global, deixou aberta a porta justamente para as medidas que se propõem agora ao país, apresentados como “conserto” às falhas de seu governo. Mas isso é assunto para outra hora.
Por enquanto, é preciso acrescentar que, para piorar, a transição para a economia pós-industrial no Brasil tem se dado da pior maneira possível, com um nível de qualificação da força de trabalho deplorável (embora ascendente) e a geração de empregos concentrada no “setor de serviços”, mas em áreas como telemarketing, construção civil e a rubrica “comércio” – que designa basicamente vendedores do varejo. São setores com pouca repercussão na produtividade do resto da economia e pouca perspectiva de ascensão profissional.
Para o setor financeiro, claro, isso faz muito pouca diferença, de modo que não é por acaso que economistas ligados a bancos vejam a primarização da economia brasileira como irrelevante. Afinal, existe uma inserção para republiquetas na divisão internacional do trabalho, em papéis que o Brasil já desempenhou por bastante tempo. Mas esses papéis, como sabemos por experiência própria, demandam sociedades desiguais, engessadas, pobres e absolutamente sem ambição. Estamos caminhando rapidamente nesse sentido.
Como eu disse, esse processo não começa com Temer e dificilmente se encerra com ele. Houve medidas durante o governo Lula e mesmo no início do governo Dilma que chegaram a produzir algum efeito na direção oposta, mas foram soterradas por uma orientação geral mais nociva, como o abuso do câmbio como ferramenta de controle da inflação, uma política de financiamento de megacorporações muitíssimo mal desenhada, a aposta em obras grandiosas para reforçar a exportação de commodities (e seduzir as empreiteiras…) e tantas outras. Certamente esse fracasso será, por sua vez, o pior legado do governo petista em termos econômicos.
2: Ascensão abortada
A dimensão social aparece em filigrana no que foi exposto acima. Talvez estejamos testemunhando uma reorganização da estrutura profissional e social no país que, de tão paulatina, acaba também sendo insuspeita. Outra razão possível para que esse processo esteja velado é o efeito de algumas políticas dos anos de bonança petistas, como a valorização do salário mínimo e os programas de distribuição de renda. Quando amplas camadas da população parecem estar subindo de vida, podemos esquecer que a perpetuação desse processo exige uma estrutura adequada a essa dinâmica, ou seja, empregos com salários decentes que remunerem uma produtividade crescente; setores econômicos dinâmicos e modernos em expansão; uma posição mais favorável no sistema do comércio internacional.
Ou bem acreditamos que estávamos desenvolvendo essa estrutura, contra todas as evidências, ou bem acreditamos na falácia de que essa estrutura vem se agregar à população que dela precisa, e não o oposto. Em ambos os casos, foi uma escolha pela autoilusão. Uma ilusão em que continuamos incorrendo é a dos incentivos ao setor automotivo. O que se conseguiu, por exemplo, com o longo período de “IPI zero” foi crer que o desemprego não estava subindo, porque o impacto das montadoras sobre o emprego industrial (por meio da sua cadeia produtiva) é significativo. Depois, tivemos de admitir que também esse setor é defasado no Brasil e, no máximo, mascara as estatísticas de emprego industrial, sem efetivamente refletir a sofisticação produtiva.
Com efeito, o que há de mais problemático e potencialmente desestabilizador nesse processo de regressão produtiva é que diferentes configurações produtivas / econômicas requerem, engendram e implicam diferentes distribuições na configuração social. A partir do século XIX, a industrialização, por exemplo, conduziu (não automaticamente, claro, mas através de muitas disputas internas) a sociedades com classes médias mais amplas, pujantes, afluentes. Por ironia, a China é ao mesmo tempo o grande contra-exemplo e o grande exemplo, já que seu maior crescimento industrial foi baseado em salários deprimidos e crescimento da desigualdade, mas sua atual etapa de desenvolvimento induz a um forte aumento dos salários, que já ultrapassam os do setor industrial brasileiro.
Já o mundo desenvolvido está investindo numa “economia do conhecimento” que fomenta o desenvolvimento de uma “classe criativa” que porta seus próprios ideais, projetos e utopias, como outrora foi o caso das classes trabalhadoras da industrialização ou as classes médias de meados do século XX, cada uma à sua maneira e com seus próprios princípios determinantes… É claro que há muito a criticar na imagem dessa “sociedade criativa”, mas não é o caso de tratar disso aqui.
E o Brasil? O que significa para este país abdicar de uma economia industrial como a que se construía por estas bandas até o fim dos anos 70, sem em seu lugar desenvolver uma “economia do conhecimento” ou uma inserção mais favorável e com remunerações melhores nas cadeias de valor tal como estão hoje? Que grupos sociais (ou, falando mais claramente: que classes) estão implicados na reprimarização da economia, na dominação latifundiária e também no retalhamento territorial da cidade entre cartéis como os dos transportes de massa? Mais ainda: e no triunfo do subemprego simbolizado pelo telemarketing? E nos quase-monopólios em mercados como o bancário, o alimentício (e de bebidas) e o de mídia?
Para complicar a questão: como essa configuração social se comporta quando somamos ao modelo a desilusão do cair-na-real, uma vez que a nova classe média (“aquela-que-teria-sido”) se dê conta de que, na posição em que o Brasil se encontra hoje, mal há espaço para uma classe média qualquer, quanto menos para uma nova? Por sinal, é de se notar que a “velha” classe média já se adiantou e deixou claro que não quer novos condôminos no espacinho desconfortável que as oligarquias lhes concederam. A tal ponto que hoje dá apoio, mesmo que velado, a reformas econômicas que a prejudicam diretamente, só para garantir que outros se prejudiquem ainda mais…
Amarrando todas essas questões, o que me deixa mais perplexo é que o Brasil tenha se tornado um país urbano, com instituições razoavelmente bem desenvolvidas, centros tecnológicos com bastante qualidade, altas expectativas para uma parte não negligenciável de sua população, mas esteja se encaminhando para um quadro econômico e uma configuração social que não conseguirá aproveitar nada disso. Estou certo de que, mais dia, menos dia, essas tendências divergentes vão se chocar.
3: Brindam os patrimonialistas
E quanto à dimensão política, o que dizer? Aqui, sim, talvez fosse o caso de começar pela interpretação moralista: o grande vencedor no Brasil, hoje, é o corrupto tradicional. Mas o corrupto triunfou por quê, se a operação Lava Jato ainda está em curso? E tradicional por quê? A escolha das palavras não é casual. E, se me propus a entrar no assunto por esse caminho “moralizante”, é porque ele me parece um jeito eficaz de introduzir o tema mais propriamente político…
Falei em corrupção tradicional no Brasil porque a tradição da corrupção à brasileira tem um aspecto bastante identificável. Ela é um componente determinante e indissociável do patrimonialismo como lógica de organização econômica e política. Já tratei da questão do patrimonialismo em outros textos, mas acho necessário voltar brevemente ao tema.
Acontece que, no âmbito do patrimonialismo, muita coisa que a lógica liberal (e a socialista, e a social-democrata…) de cara identifica como corrupta não aparece desse jeito. Afinal, o próprio do patrimonialismo é que não apenas a distinção entre os assuntos públicos e os pessoais é pouco ou nada relevante para o oligarca, mas sobretudo o poder político e o econômico se confundem, e podem mesmo se identificar.
No caso específico do patrimonialismo estamental brasileiro, estudado por Faoro e herdado diretamente do medievo português, somam-se a essa lógica, mera orientação de fundo, as ondas de choque de um regime jurídico codificado, pelo qual a Coroa entregava tais poderes diretamente e formalmente a seus nobres, principalmente nas vastas áreas recém-adquiridas da Colônia.
Assim, pensemos em determinados fenômenos tão comuns no Brasil, como um oligarca, ou simplesmente alguém poderoso, que se apropria de terras públicas, legisla para dificultar o acesso de classes inferiores a serviços básicos, trata o território que governa (mas pode também ser um ministério, uma empresa etc.) como seu quintal e seu patrimônio. Nessas horas, a tendência intuitiva é não identificar aí gestos de corrupção. De fato, muitos desavisados, influenciados por gente de má fé, realmente creem ser um princípio liberal que ao proprietário (ou posseiro) se permita tudo. Não é obra do acaso que o Brasil seja o país da carteirada.
O trágico nisso tudo é que o desenvolvimento de um Estado nacional e de uma economia mais aproximadamente capitalista nesse contexto não implica imediatamente a supressão do patrimonialismo, substituído por formas de dominação “mais racionais”, como diria um weberiano. Há sempre algum grau de fusão, ou de confusão, entre essas duas lógicas. No Brasil, o resultado é esse capitalismo profundamente patrimonialista que conhecemos, em que o mercado não é um plano de concorrência, mas um repositório de onde se pode extrair renda.
Daí a configuração ineficiente, careira e parasitária dos planos de saúde, das universidades privadas, das telecomunicações, dos bancos… A propósito, duvido que o interminável debate sobre os juros e a inflação no Brasil chegue a qualquer conclusão satisfatória até que se aceite tocar nesse ponto. O que é a Selic, no contexto da economia brasileira atual, senão um mecanismo de retroalimentação patrimonial? Pode-se discutir até a exaustão seu efeito sobre a inflação; aliás, não seria a inflação brasileira um mecanismo de acomodação do conflito distributivo? Em todo caso, a taxa de juros no Brasil é alta por motivos que vão além, muito além, da mera gestão macroeconômica. Ou será que quem sempre esteve acostumado a rendimentos fáceis e polpudos vai aceitar que eles sejam reduzidos… “na marra”? Imagine, só imagine, o que poderia acontecer a um governo que tentasse isso!
Eu diria, inclusive, que a figura mais evidente hoje dessa fusão, ou melhor, desse monstrengo, em que não dá para divisar direito onde está o patrimonialismo e onde está o “racionalismo liberal”, é o atual prefeito de São Paulo. O sujeito passou a vida toda manuseando o que deveria ser o público em benefício próprio, para depois apresentar-se como “não político”, “mero gestor” e outros oximoros. E, sem saber distinguir alhos de bugalhos, embebidos nessa lógica patrimonialista mal e mal misturada com liberalismo, o eleitorado acabou acreditando. Mas essa lamentável figura não é o assunto deste texto.
O fisiologismo de que tanto se fala nos partidos brasileiros e particularmente no Legislativo tampouco é fruto do acaso: o político fisiológico nada mais é que um patrimonialista querendo garantir o seu. Aliás, quando você estranhar que uma polícia tão incapaz de elucidar crimes como é a nossa se esmera tanto em reprimir reivindicações legítimas, lembre-se: ela está protegendo o patrimônio tácito de alguém contra aqueles que teriam o direito legal àquele patrimônio, na medida em que, oficialmente, ele é público…
* * *
É nesse sentido que dá para afirmar que a corrupção está ganhando de lavada, sem que essa afirmação seja mero moralismo. Uma demonstração cabal está na indicação escandalosa de Alexandre de Moraes para o STF, com sua pronta aprovação, conduzida sem sobressaltos e com um pessimamente disfarçado apoio de veículos de mídia. Por sinal, muitos desses veículos bradavam poucos dias antes contra sua presença no Ministério da Justiça, por incompetente.
E não é nem preciso evocar as suspeitas quanto à morte de Teori Zavascki, ainda que sejam suspeitas legítimas. O problema vai além da implicação direta da presença do títere no Supremo sobre os futuros julgamentos de políticos próximos ao usurpador, principalmente no contexto da operação Lava Jato. Com Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Luiz Fux e Alexandre de Moraes, há pouca esperança de que o STF seja qualquer coisa além de um escudo reforçado para garantir o sossego de oligarcas e de seu patrimônio (ou seja, o país).
Não é o caso de se estender sobre o Judiciário, já que se trata da instituição a que o patrimonialismo recorre sempre que necessário, e portanto um assunto interminável. Mas vale mencionar a facilidade com que poderosos se livram de pagar por seus crimes. Esse nosso traço tão conhecido reflete bem aquilo com que abri esta discussão: se o público se confunde com o privado, como se dar conta de que determinados gestos são corruptos ou, mais especificamente, criminosos? Ainda que sejam tipificados como tal, a fronteira embaçada ente a lógica patrimonialista e a racionalidade jurídica permite aliviar as penas para alguns escolhidos…
Também é possível ler nessa chave o processo oposto ao “fenômeno Alexandre”: que os controladores da economia brasileira aproveitem um governo ilegítimo, fisiológico e infinitamente chantageável para moldar essa economia da maneira que lhes pareça mais conveniente, sem ter que passar pelo incômodo de negociações com o resto da sociedade. Afinal de contas, a economia brasileira, dentro desse registro, não é um assunto comum a todos que nela tomam parte, mas um patrimônio desse punhado de grupos e famílias.
Note-se: por mais que alguém seja favorável, abstratamente, a um dispositivo constitucional que limite os gastos primários, a uma completa transformação das relações de trabalho ou à reformulação do funcionamento da Previdência, é forçoso admitir que o atual governo não tem legitimidade para impor essas pautas. E não só porque o presidente não foi eleito: é também porque os parlamentares que hoje o apóiam chegaram ao cargo graças a chapas alimentadas por dinheiro desviado, e depois mudaram a cabeça do Executivo ao sabor das ofertas de favorecimento que iam recebendo. A aprovação de emendas constitucionais em tal cenário é uma afronta à democracia em seus princípios mais básicos, pouco importa se “operacionalmente” tudo segue os ritos. Neste caso, os ritos são secundários, a não ser que pensemos com a cabeça de um Eduardo Cunha ou um Gilmar Mendes.
No entanto, em defesa da “ponte para o futuro”, o empresariado, grande parte da mídia e sobretudo um caminhão de economistas ignoram solenemente a exigência de que, numa democracia, mudanças tão profundas no quotidiano do país sejam decididas democraticamente. Ou seja, que as propostas sejam debatidas com a população por períodos suficientes e, em seguida, sejam votadas por representantes legitimimamente eleitos (ou melhor: eleitos com um mínimo de legitimidade). É um escândalo que não se levante essa questão, e não se cogite de uma insuficiência democrática no processo. Para mim, é a demonstração de que “nossas elites” enxergam a sociedade como um apanhado de súditos, e não como uma rede de cidadãos. Não há futuro para um país com essas condições.
* * *
Com esse interlúdio sobre o patrimonialismo, acredito que já é possível enxergar como as três dimensões estão tão articuladas que chegam a se confundir, a ponto de não sabermos ao certo quando estamos tratando de um tema econômico, político ou social. Assim, a perda de dinamismo econômico do Brasil pode ser ao mesmo tempo a causa do triunfo das oligarquias (patrimonialistas) como a conseqüência de sua notável capacidade de se agarrar ao poder ao longo de todo o período da industrialização, de Vargas aos generais, e de compor, na condição de parceiro inescapável, com todas as forças da redemocratização.
Muitos dos epiciclos e outros volteios absurdos que aparecem na Constituição resultam das pressões desse grupo, reunido sob a alcunha de “Centrão”, que de centro não tem nada. Vale a pena se perguntar até que ponto esses episódios políticos foram responsáveis por enfraquecer a base produtiva do país daí por diante. Por outro lado, eles também demonstram que não havia suficiente força ou atenção na sociedade civil para barrar os esforços patrimonialistas. Aliás, não é nenhum acaso que Eduardo Cunha tenha ressuscitado esse nome de “Centrão” quando presidiu a Câmara dos Deputados. Deveríamos ter atentado mais para esse detalhe.
No período da Nova República, provavelmente a principal perda de poder desses grupos tenha sido a renegociação da dívida dos Estados, no primeiro governo de Fernando Henrique. Mas o golpe não foi tão duro, pelo visto. E, se fosse, aliados daquele governo como Michel Temer, Eliseu Padilha, Antônio Carlos Magalhães e Renan Calheiros não teriam permitido que fosse adiante. O mesmo vale para aquilo que pareceu ser a destruição do PFL, hoje renascido com um nome mentiroso: olhando para o mapa eleitoral de 2010, era possível acreditar que as oligarquias estavam feridas de morte. Que ilusão!
Ao contrário, com o enfraquecimento das forças associadas à redemocratização, todas elas, desde aquele antigo PSDB de Montoro até o PT dos tempos de sua combatividade, as oligarquias podem reivindicar aquilo que sempre foi seu de facto, embora todas as constituições do Brasil independente tenham tentado fazer com que fossem públicas, de jure. Com a derrocada final do governo Dilma e o mercado financeiro implorando por alguém que aplique sua cartilha sem precisar recorrer a difíceis refregas com um Congresso hostil, o caminho estava aberto, e nossos barões, tubarões, pantagruéis, não perderiam jamais a oportunidade. Hoje, eles até mesmo disputam espaço internamente, no governo das oligarquias. Há quem veja aí sinal de fraqueza, como se fossem destruir-se mutuamente. Acho improvável: eles se destruiriam se ocupassem um espaço exíguo, mas me parece que, com a porteira aberta como está, da para acomodar todos…
* * *
Esse é o cenário em que nos encontramos atualmente. Na falta de uma economia dinâmica e de um setor produtivo diversificado e na fronteira tecnológica, que seja capaz de exigir do Estado uma legislação que lhe seja adequada; na ausência de uma classe média em expansão, qualificada e bem formada, que seja capaz de pressionar seus representantes; na ausência de uma classe trabalhadora articulada e, como a classe média, bem formada e qualificada, capaz de exigir uma parte da riqueza produzida, sobretudo por meio de serviços públicos decentes (nada de “padrão Fifa”), há muito pouco anteparo para o avanço das oligarquias sobre o butim daquele país que tentou ser, mas ficou pelo caminho.
Afinal, são eles que têm acesso mais direto às riquezas, seja por meio da posse da terra, seja pelos super-salários do Judiciário, seja pela ocupação dos cargos públicos de comando e do controle sobre o sistema partidário, seja pelas aplicações a juros altos com a mais absoluta tranqüilidade. São eles, também, que têm acesso aos mecanismos de exercício de controle do poder, seja pelos cargos do próprio Judiciário (juízes, desembargadores, ministros…), seja pelos cargos eletivos, seja pelo poder que organizações como a CNA adquirem, seja pelo conluio com instituições religiosas que colocam a fé em segundo plano, seja pelo acesso direto ao comando das polícias.
Falei em riquezas e em mecanismos de poder político – e o que se obtém quando se somam esses dois fatores? Ora, nada menos do que o controle social. Como se sabe, quem controla a riqueza e os mecanismos de poder tem controle quase absoluto sobre a sociedade. Qual é a conseqüência? É essa que estamos vivendo. Cada vez mais, a bancada ruralista e seu discurso retrógrado e falsamente liberal ganham peso. Cada vez mais, as instituições que deveriam sustentar o capital industrial (CNI, Fiesp etc.) se tornam apêndices do capital agroexportador. Setores políticos ligados ao trabalho industrial e/ou urbano se transformam a ponto de ficar irreconhecíveis, e se não o fazem, minguam. Mas se o fazem, também minguam, na medida em que dependiam da proximidade perdida com o governo.
Talvez esteja aí a resposta para um enigma que vem incomodando muita gente à esquerda: por que movimentos recentes e embrionários que deram as caras nos últimos anos, como a luta pelos transportes, os direitos dos índios, os movimentos feminista e negro, os sem-teto e, mais recentemente, os estudantes secundaristas, não foram capazes de articular uma oposição consistente na sociedade e nas ruas a um governo usurpado e declaradamente contrário a todos esses grupos?
O problema pode ser que uma tal articulação exigiria um poder de pressão dos setores populares, dos trabalhadores, de camadas urbanas, que não está dado. E de onde viria esse poder de articulação, se as categorias que se mobilizam com mais eficiência, principalmente as industriais, estão com a espinha quebrada? Será por acaso que nos últimos anos as greves têm sido feitas basicamente pelo setor público e pelos bancários, com efeitos limitados? A propósito, os bancários também não compõem uma categoria com perspectivas muito luminosas para o futuro…
Some-se a isso que as centrais sindicais se tornaram dependentes de um governo que deixou de existir; o aparato repressivo foi inflado com enorme colaboração desse mesmo governo (cujos apoiadores, ironicamente, agora gostariam de estar na rua ao lado daqueles que reprimiram…); grupos financiados por Skaf, Lehmann e outros desinteressados patriotas para fazer protestos até o ano passado hoje já completaram a transição para milícias cujo modo de atuação não deve nada, mas nada mesmo, aos bandos fascistas dos anos 30 ou aos dezembristas de Luiz Napoleão.
Com isso tudo, o curso me parece livre para que as oligarquias recuperem cada centímetro do pouco de poder que foram obrigadas a ceder ao longo do último século. Cito um caso apenas, que me parece bastante ilustrativo, porque vai ao cerne da mobilização que iniciou todo esse processo, e também porque atinge o coração do problema da extração de renda no ambiente urbano, que é a tendência do século XXI. Lembra-se de quando os empresários dos transportes estavam acuados e corriam o risco de ter de melhorar o serviço ou, se for permitido sonhar, retorná-lo ao setor público? Pode esquecer. A pauta da melhoria das condições de vida foi perdida completamente por um bom tempo e os cartéis do transporte podem dormir tranqüilos. A propósito, esse é um tema que merece um texto só para si: como se manifesta o patrimonialismo oligárquico no mundo urbano e tecnológico de hoje.
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Existem esperanças de que a operação Lava Jato, desestabilizando o governo Temer, dificultando sua relação com o Congresso e comprometendo seus ministros possa pelo menos frear um pouco o processo político de regressão. Que pelo menos suas medidas mais drásticas e cruéis não passem, ou que haja tempo de alguma recomposição de forças em contraponto às oligarquias. Na verdade, essas esperanças refletem o sonho de uma recomposição da esquerda.
Confesso que tenho muito pouca esperança por esse lado. Primeiro, porque, como eu disse, o processo não começa com Temer e nem se encerra com ele: o “mordomo de filme de terror” é só um ponto de convergência. Por mais que seu governo seja desestabilizado, permanece o problema de que não há nem plataforma comum, nem base social para forças que se contraponham efetivamente ao avanço da tradição patrimonialista nos próximos anos. É provável que 2018 traga um fortalecimento desses grupos, dessa vez em toda legitimidade, e isso me assusta bem mais que a ascensão do grupo de Temer.
Segundo, porque quando se fala em “recompor a esquerda” ou coisas parecidas, imediatamente se imiscui aí a idéia de “recompor o PT”. Mas o próprio PT, com seus satélites na esfera pública, não parece estar compondo nada de muito novo. A demonstração mais clara disso é a insistência no projeto de Lula para 2018, só porque as pesquisas de opinião o mostram bem posicionado. Não aprendemos nada com Getúlio em 1951?
E mais importante ainda: que raio de projeto progressista é esse? Quer dizer que para não regredir 88 anos é preciso regredir 15? O projeto de eleger Lula novamente em 2018, para além de seu aspecto como mera tentativa de resolver o problema pessoal do ex-presidente com aqueles que tentam fechar o cerco contra ele (jurídico, midiático, político…), é a prova cabal de que desapareceu no Brasil a esquerda eleitoral com diagnóstico e projeto para o país. E isso não é só trágico. É também sintomático: se uma tal esquerda desapareceu (primeiro com o trabalhismo, depois com o petismo), é provavelmente porque sua base social se desmilingüiu.
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Falando em base social em frangalhos, na segunda parte do argumento de setembro, eu levantava a idéia de que o retrocesso não tem como ser bem-sucedido. De modo geral, é claro que nenhum retrocesso é estritamente uma volta para trás, tal e qual. Eu seria louco se o afirmasse. Por outro lado, não se surpreenda se alguns dos operadores do retrocesso imaginarem que estejam fazendo exatamente isso. Pense em Rodrigo Maia dizendo que a Justiça do Trabalho não deveria existir… Pense em Michel Temer dizendo que a mulher é importante para o país porque faz compras no supermercado… Mas creio que foi Talleyrand que, na restauração dos Bourbons na França, após a Revolução e após Napoleão, advertiu que não seria prudente esperar que tudo voltasse efetivamente ao que era antes de 1789: a plebe não se conformaria com um retorno à vida anterior depois de ter experimentado uma vida civil mais participativa e, na medida do possível, mais livre.
Em alguma medida, é o caso no Brasil, onde o último século testemunhou o surgimento de classes médias e trabalhadoras urbanas e diversas; de uma camada de funcionalismo público com aspirações à ascensão para seus filhos, ou ao menos à manutenção do status conquistado, considerado um direito adquirido; de uma infraestrutura passável, com uma rede de estradas e aeroportos que, tudo bem, deixa a desejar, mas conecta todo o país: não é mais um agregado de regiões quase isoladas, como no tempo dos governadores; de redes de telecomunicações que, em que pese o quase-monopólio “global”, também ligam as populações das várias regiões. Este não é mais o país do Jeca-Tatu.
Na década passada, novas transformações vieram ampliar o nível de exigência sobre a evolução institucional e sociopolítica do país. Não só de ilusão foi feita a saga da “classe C”, que de fato incluiu no sistema do consumo, da produção e da interação urbana grupos, inclusive raciais, que nossas tradições arraigadas e em geral veladas relegariam à categoria de “humilháveis”. Programas de distribuição de renda e combate à miséria podem promover mudanças importantes nas relações hierárquicas em nível local. Cotas raciais em universidades permitem pequenas trincas na noção de instrução como patrimônio de classe, ou seja, no célebre “bacharelismo” brasileiro.
Além disso, as metamorfoses ocorridas no último século ganharam, neste século, um certo grau de consolidação, de modo que a fragilidade patente daquele processo quando ainda em curso já se transformou em muito mais solidez. Os bairros estão assentados, com associações atuantes; hoje, há identidades a defender, no sentido dos vínculos entre populações e territórios, onde antes havia migrantes em estado precário. Assim, a exigência de melhorias nas condições de vida têm um peso multiplicado. Mas este foi o lado que explorei mais a fundo no texto de setembro, então não vou me repetir.
O que ainda preciso explorar aqui é outro problema, mais grave: se por um lado não há articulação social bastante para se contrapor ao retrocesso oligárquico/patrimonialista e, por outro lado, não há como retroceder como esses grupos gostariam e tentarão, sem a completa dissolução do tecido social no Brasil, então para que lado a corda é puxada? O que acontece quando um projeto é impossível, mas barrá-lo também é impossível? E, nesse meio-tempo, quem se beneficia? Que formas surgem para tapar o buraco quando as formas bem delineadas se desmancham?
Essas são, me parece, as perguntas do Brasil de 2017, ou do Brasil de 2013 a 2018, e provavelmente muito além de 2018… Sobre as formas que tapam os buracos: receio que sejam, pelo menos no primeiro momento, formas monstruosas. A bem dizer, tenho muito pouca esperança no futuro próximo do Brasil. Esse desalento não pode me isentar de procurar qualquer nesga de luz que possa haver, mas me parece bastante evidente que os próximos anos vão testemunhar conflitos terríveis e que há poucas chances de que, pelo menos nas primeiras refregas, o resultado penda para um lado mais humano e uma sociedade menos cruel e sanguinária que a bem conhecida realidade brasileira.
Esperança, medo, desalento
É claro que não tenho como descrever em detalhe como são essas “formas monstruosas”, mas acho que posso esboçar com razoável fidelidade como elas se constituem. Categorias, formas, grupos, instituições, se formam como respostas a anseios de grupos, difusos a princípio, mas que se esclarecem à medida que, justamente, tomam forma: se delineiam. É para isso que servem as categorias: dar nomes às aspirações, aos afetos, que perpassam a massa ainda disforme, o “corpo social” naquilo em que ele não parece ainda ser um corpo, porque não tem suas funções e divisões internas bem definidas.
A pergunta passa a ser, portanto: a quantas andam esses anseios? Aqui, para ficar no prazo mais curto, ou seja, o século XXI, pode ser útil evocar aquele dito associado à vitória de Lula em 2002: “a esperança venceu o medo”. Eram tempos de Regina Duarte expressando seu horror à perspectiva do operário no poder, sem atentar para o ridículo do discurso. E também era uma formulação muito justa do que se passava. Alguns tinham muita esperança de que aquele fosse um ponto de inflexão como nenhum outro na história do país, mas também medo de que acabasse não sendo. Outros tinham medo de que fosse um desastre como tantos outros da história deste país, mas também esperança de que tudo caminhasse bem. Sem falar nos tantos que tinham medo de que o governo Lula desse certo e esperança de que falhasse…
Mas é preciso constatar que, naquele momento, triunfou sobre todos os medos a esperança mais ampla de que uma mudança radical na cabeça do Executivo fosse uma alavanca para resgatar o país do ciclo de reafirmação da miséria. Essa foi a “forma” que se consolidou no período: se as transformações trazidas pelo novo governo seriam boas (apoiadores) ou ruins (opositores) para o país. Mas não havia dúvida de que algo estava em jogo. E é preciso sublinhar um ponto essencial: o triunfo da esperança sobre o medo não é uma aniquilação, já que a própria esperança tem sempre um olho para o oposto da realização do que ela espera. Ou seja, o medo está sempre pelo menos na esguelha, e foi assim que ele ficou. Fermentando.
Pois foi essa balança de esperança e medo que andaram trazendo à memória logo antes das eleições de 2014, quando o PT lançou aquela campanha publicitária do “mundo alternativo” (digamos assim), com o argumento central de que remover o partido do poder implicaria na perda de toda a qualidade de vida ganha desde 2003. Sem dúvida, era um argumento forte, que pode ter contribuído para muitos indecisos escolherem a reeleição de Dilma, sobretudo aqueles que perceberam uma melhora de suas vidas sob Lula e tinham esperança de continuar assim, mas medo de voltar ao estado anterior. Essas pessoas podem até mesmo não ter apreciado o desempenho de Dilma no primeiro mandato, mas, com medo de uma guinada da política econômica, preferiram a esperança de que ao menos seus ganhos seriam preservados.
Ou seja, aqui também dá para identificar o jogo da esperança e do medo, esses gêmeos siameses. O medo da queda na miséria vinha com a esperança de retomada do crescimento; essa esperança, quando tomava a dianteira, carregava o medo de ser mera ilusão. E mais alguns outros: a esperança de remover os petistas do poder, acompanhada do medo de não conseguir; o medo de perder os cargos e orçamentos, com a esperança de sustentá-los… E por aí vai.
E não é que a primeira medida de Dilma, uma vez reeleita, foi estilhaçar justamente a esperança desse grupo social que se deixou seduzir pela campanha do “mundo alternativo”? É bastante provável que, nesse momento, ela tenha assinado sua própria sentença de morte política. Mais do que isso, aquilo que ficou conhecido como “estelionato eleitoral” (como já havia acontecido com Fernando Henrique em relação ao câmbio em 1998) reforçou a narrativa de que os pólos da esperança e do medo tinham se invertido: aquele governo não seria mais capaz de representar o lado esperançoso, só o lado amedrontado. Naquele momento, toda a esperança foi jogada no colo de seus adversários, e com ela eles fizeram, de fato, o diabo.
Acontece que, desse ponto de vista, hoje o quadro chegou a um estágio ainda mais terrível. O que me leva a dizer isso é o brutal desinvestimento afetivo que acomete a sociedade civil, ao tratar de suas próprias possibilidades políticas. Mesmo a polarização de que tanto se fala não tem nada da animação que houve em outros momentos, aqueles em que a vontade de triunfar expressava o desejo de aplicar suas idéias a um futuro projetado, sonhado. O ponto, e isso me parece decisivo, é que tanto a esperança quanto o medo foram implodidos. Hoje, só sobrou o desalento puro e simples.
Se há uma disputa, ou antes um bailado, entre a esperança e o medo, é porque existem possibilidades em aberto. Há uma contenda para saber qual imagem vai prevalecer. Daí o pêndulo: esperança, medo, medo, esperança… Mas não há nem medo, nem esperança, quando o destino é certo. Quando há muito pouco em disputa e a prevalência está praticamente dada de antemão. A tal da polarização, hoje, parece que se define meramente pelo “quem quer ver quem na cadeia”. É uma polarização empobrecida demais.
Assim, pela fraqueza das discussões prospectivas entre correntes políticas; pelo descaramento com que os controladores do poder tomam medidas para blindar-se contra eventuais anseios da sociedade; pela ausência de projetos substanciais, hegemônicos como alternativos, para um avanço de qualquer tipo no país; pela pobreza das mobilizações sociais: parece que estamos atravessando um período exatamente como esse. De desalento, desesperança, quase indiferença.
* * *
Reformulando, então, a pergunta, ela fica assim: o que, e quem, toma a frente em situações de desalento? Um momento em que se perdeu a possibilidade de desejar aquilo que poderíamos estar desejando, dado o tanto que a sociedade se transformou no Brasil no último século; um momento em que nos damos conta do caminho que estamos seguindo, contra nossas próprias possibilidades, e não temos força para reverter o curso, se é que pelo menos teríamos disposição para isso…
Muito se fala, por exemplo, na perspectiva da ascensão de Bolsonaro, o caricato grosseirão da vez. A outrora risível figura se tornou o espantalho e também a tábua de salvação moral para os grupos que ainda contam com o petismo de cúpula para renovar a esquerda no Brasil, não porque vejam efetivas possibilidades aí, mas por mero desalento e falta de energia para buscar outros caminhos.
Mas Bolsonaro é só um nome. Aqueles que repetem seus disparates e o chamam de “bolso-mito” estão projetando nele suas próprias frustrações, ou seja, estão expressando mais o “mito” que o “bolso”, ainda que muita gente estipule que os problemas do “bolso” levam as pessoas a recorrer a um “mito”… Isso não significa, em todo caso, que o ex-capitão/sindicalista seja carta fora do baralho, claro. Muito pelo contrário. Quanto mais o cenário de desalento se aprofundar, mais será lançada sobre figuras como essa a forma de uma resposta, rápida, simples, violenta, que dispensa reflexões.
E o ponto é bem esse: que justiceiros, sacerdotes, profetas, charlatães, tragam respostas que, embora não resolvam nada, insuflem um mínimo de desejo, de libido, no conjunto da população. Isso é o que faz um Bolsonaro da vida, com sua mensagem de violência. E não é só ele. Todo o discurso em cima da PM, dos grupos de extermínio, dos bandos de “justiceiros” dispostos a linchar, do saudosismo com a ditadura, toma apoio justamente nessa função que a violência opera: insuflar, estimular a produção de adrenalina, passar a impressão de que a passividade é ação e a multiplicação da morte é sinal de vitalidade.
E muito embora a gente se esforce para acreditar que está “do outro lado”, o mesmo vale para as grandes corporações do crime organizado que disputam mercados e poder (não que sejam coisas inteiramente distintas) Brasil afora, operando a partir das prisões. Para determinados grupos populacionais, o caráter de “solução” que essas empresas armadas até os dentes carregam é rigorosamente simétrico ao que outros grupos sociais esperam de violências amparadas pelo Estado ou pela opinião pública (e publicada). Do ponto de vista operativo, funciona do mesmo jeito.
Não é só a violência como proposta explícita que consegue atingir esse efeito, claro. O vazio deixado pelo desalento pode ser preenchido por um recurso à transcendência, como nas religiões. Mas também pode ser preenchido pela obediência a quem promete operar esse recurso, fazer acontecer a transcendência sem os ritos normalmente necessários. É o que perceberam alguns líderes que se aproveitam do sentimento religioso em benefício próprio (financeiro, político, de status social…).
A propósito, ainda me preocupa muito a questão da teologia da prosperidade em tempos sem prosperidade, que mencionei no texto de setembro. Que curso tomam as mensagens dos pastores nessas circunstâncias? Quando não é mais possível guiar (ou manobrar) os anseios, desejos, ambições de quem estava ganhando e agora está perdendo, como fazer para manter sua atenção e, principalmente, sua fidelidade?
Não é uma pergunta estéril. Quando alguns desses sacerdotes, tão bem treinados na oratória e na retórica, concluem que a melhor estratégia é designar um inimigo, sustentar um discurso de divisão social, tomar o caminho da política mais rasteira, seu potencial para fazer estragos é enorme. Pense nos Malafaias e Felicianos espalhados pelo país. Pense nos “gladiadores do altar”. Pense no acesso desses pregadores aos meios de comunicação. É provável que ainda não tenhamos visto a metade do mal que podem produzir.
O terceiro elemento é, que ironia, mais messiânico ainda que aquele que se define abertamente como religioso e espera a volta do Messias propriamente dito (não confundir com o Bessias; se quiser, pode confundir com o Mises). Acho notável como o discurso que se faz passar por liberal hoje (não só no Brasil) lança aos ombros do empresário enquanto indivíduo, mas dotado de atributos um tanto quanto sobrenaturais, a tarefa de resolver todas as crises, todas as dúvidas, todos os impasses. Os horrores da política, por exemplo, se resolvem abrindo caminho ao empresário, ao “gestor”, que não está contaminado e pode simplesmente “fazer e acontecer”.
Se o mundo é sujo, difícil, nebuloso, traiçoeiro, então entregue-se o destino nas mãos de um deus ex machina, que, como os ditadores da República romana, não precisará dar ouvidos a ninguém, reintroduzindo a harmonia quase de imediato e sem traumas. E, como mostram os Trumps e os Dórias deste mundo, de fato essas panacéias encarnadas não dão ouvidos, fazem o que bem entendem.
Uma lógica miliciana, a manipulação pela fé, uma doutrinação pseudo-econômica que busca pintar o oligarca com as cores de um grande empreendedor. Uma trinca de peso, venenosa, que vem ocupando muito da nossa atenção nos últimos anos. E pensar que essa atenção poderia estar sendo dedicada à busca de alternativas concretas para construir uma sociedade pujante e pulsante no mundo difícil que será o século XXI!
E esses três papéis freqüentemente se fundam, como nessas jovens milícias que repetem a mensagem supostamente liberal mas se comportam como as SA alemãs e outros bandos de arruaceiros. Ou no mensageiro da violência pura que viaja até Israel para se converter a alguma dessas religiões neopentecostais. Ou nessa estranha idéia de que a Bíblia é um panfleto em defesa da grilagem e do bezerro de ouro de Wall Street (na verdade, um touro de bronze). Misturas perigosas, que tendem a se cerrar e inchar enquanto não houver respostas mais consistentes contra o desalento e a marcha segura das oligarquias.
* * *
Parece que não consegui encerrar o texto em tom menos pessimista. Afinal, uma virada para o otimismo me levaria a dizer duas coisas. Primeiro, que é preciso recuperar tanto a capacidade de ter esperança quanto a de ter medo. Ou seja, a capacidade de se mobilizar por algo que queremos, perante a tristeza que seria não atingi-lo. Segundo, que para chegar a esse primeiro estágio teríamos que conseguir, ainda antes, imaginar meios de reverter o processo, em curso há 30 anos, de retomada oligárquica. Teríamos que ser capazes de imaginar e delinear o caminho de uma nova idéia do que seria “desenvolver” um país como este. Mas teria que ser um “desenvolvimento” atento às três dimensões e livre dos vícios que envenenaram a idéia de “desenvolvimentismo” que nos levou à falência e ao ecocídio nesta década.
E como por trás de todas essas palavras pessimistas há um otimista inveterado (é mais forte do que eu), devo dizer que até acredito que, dentro de alguns anos, o desalento vai dar lugar a novos projetos e novas esperanças. Afinal, como eu disse, o retorno oligárquico é, em última análise, inviável. Além disso, muitas das idéias que fundamentam os terríveis discursos que se irradiam hoje pelo Brasil estão fazendo água no plano global: a desregulamentação irresponsável dos mercados, a guerra às drogas, a troca da deliberação política pela obediência cega a alguns illuminati do Vale do Silício.
Mas eu me pergunto: e até lá? Enquanto estamos eletrizados por crises momentâneas como o julgamento da chapa Dilma/Temer de 2014, a possibilidade de que tal ou ta político “vá para a cadeia”, as tentativas de tirar Lula do páreo, será que achamos que o resto do mundo congela? Pois não congela. Os últimos meses nos deram mostras bastante sensíveis dos efeitos práticos que podem sobrevir nos próximos anos, quando os recursos que sustentam nosso ensaio de sociedade civil estiverem definitiva e constitucionalmente congelados. Motins de policiais, massacres em presídios, escolas e orquestras fechando, linchamentos, casuísmo na política e na aplicação da lei…
Não há motivo para acreditar que esse cenário vá melhorar no curto prazo, exceto se um “choque positivo” nos mercados globais insuflar uma nova lufada de otimismo, e de ilusão, nos pulmões do país. Mas seria só uma brisa passageira, que não tocaria na dinâmica de longo prazo. Então prossegue a pergunta: e até lá? Quantas vítimas não vão sucumbir? Quanta destruição não vamos ter que testemunhar, impotentes e desesperançados? O que vai ter restado de pé quando as energias da barbárie começarem a se dissipar?
Faz bastante tempo desde a última vez que me deu ganas de vir aqui para falar de imagens que “não fizeram história“. Quase dois anos. E por um desses acasos que acabam virando significação, quando volto ao tema é para tratar de uma fotografia de Brasília. No terceiro artigo desta série, comentei uma fotografia de Brasília, justamente. Eram índios debaixo de chuva, à frente do monumento conhecido como “aos candangos” (chama-se, na verdade, Os Guerreiros). Agora, é questão de uma fotografia de candangos visitando o Palácio do Planalto; e com o Congresso ao fundo.
A imagem tem essa potência notável de produzir seus próprio relatos, principalmente quando ultrapassa seu enquadramento particular e abraça outras imagens. Elas demarcam todo um território imagético, atravessando continentes ou gerações. Para além do aspecto indicial da imagem fotográfica, o “isto aconteceu” de Barthes, temos de reconhecer um outro caráter, mais assertivo, que diz “isto está acontecendo” ou “isto ainda acontece”. Um efeito de ilusão, direis, e pode ser mesmo. Mas é muito mais uma reverberação afetiva, sem a qual a fotografia provavelmente só valeria pelo seu caráter documental e não circularia pelas coletividades; ou pelas redes, como tem sido com esta.
Por isso, quando as pessoas se deparam com essa família (seus olhares de admiração, o modo apurado como se vestiram, a patente humildade debaixo dos monumentos de concreto), sentem algo suficientemente forte para deter o olhar. É algo sobre o passado, certamente, mas é na mesma medida, ou até mais, algo sobre o presente: isto ainda acontece, isto ainda está acontecendo, esta foto está sendo tirada agora. Está sendo tirada a cada vez que olho para ela. É graças a esse efeito, essa dobra nas décadas que Einstein não menciona, que esta imagem de René Burri pode se conectar com a dos índios, que circulou em 2015, ou com tantas outras tiradas em Brasília. Ou até em outras cidades, dependendo do território espaço-temporal que queremos delimitar.
* * *
E no entanto não foi nada disso que chamou minha atenção de imediato, ao ver pela primeira vez essa imagem, que apareceu um dia desses nas redes, nem sei bem por quê. A primeira coisa que me saltou aos olhos foi o fundo ligeiramente estourado, bem no centro do quadro, apagando os detalhes de alguns andares do prédio do Congresso e o pé da coluna do palácio. Acontece que René Burri, fotógrafo suíço morto em 2014 com um portfólio contendo retratos de Niemeyer, Fidel, Le Corbusier, De Gaulle e muitos outros, tirou centenas de fotos de Brasília. Não só durante a construção, mas também em 1977, em plena ditadura. Um bom número com caráter essencialmente documental; um bom número explorando a geometria modernista; outras tantas, como esta, lembrando a presença daqueles que de fato construíram a Novacap e que nem sempre são mencionados.
Fiquei encantado com esse ligeiro estouro, mas preciso dar uma breve informação: fui ao site da agência Magnum, que exibe em versão pequena todas as fotografias do livro de Burri sobre Brasília. A imagem, tal como a apresentam ali, não está tão estourada, mas também não tem tanto contraste e os rostos estão na penumbra. Não sei se a versão da agência foi “corrigida” ou se alguém resolveu aumentar o brilho ao postar a foto na internet. Cá entre nós, prefiro a versão com estouro, pressupondo que, de todos os seus cliques, o experiente fotógrafo suíço tenha escolhido este para deixar uma nesga de luz excessiva, chapada como é a luz, no meio do dia, em pleno planalto central deste país tropical.
Faço essa pressuposição, confesso, porque me convém, tanto pela narrativa que quero sobrepor à fotografia quanto pelos demais territórios que ela pode traçar. O que acontece é que lidar com a luz inclemente e brilhante demais, com sombras tão escuras que o contraste pode não ser administrável, sempre foi um problema para quem queria retratar esta parte do mundo. Ainda mais se tivesse no fundo da cabeça os padrões de luminosidade da pintura europeia. A maior parte das representações de paisagens brasileiras que conhecemos de séculos anteriores, de Franz Post a Debret, foram executadas pacientemente no começo da manhã ou no fim da tarde, dizem os livros de história da arte, para aproveitar uma luz mais suave e saturada. A grande exceção está na obra de João Batista da Costa, que fazia paisagens em pleno meio-dia justamente para marcar as diferenças das grandes áreas de cor. (Mais detalhes neste link.)
Refletindo sobre tudo isso, acabei pensando em Albert Camus. Nos textos do célebre existencialista pied-noir, as referências ao Mediterrâneo, Argélia em particular, sempre falam da luz ofuscante. Meursault menciona o sol opressivo e o reflexo cegante na praia diversas vezes, durante a narração que leva ao assassinato do árabe, em O Estrangeiro. No texto teatral O Mal-Entendido, a motivação declarada das assassinas é deixar o frio e passar a viver sob o sol. A imaginação européia sobre a luminosidade tropical é extensa e fértil. Posso mesmo imaginar a insolação que os primeiros exploradores tiveram ao desembarcar das caravelas.
Por isso me chamou a atenção esse pedacinho de luz estourada na fotografia de René Burri, que, afinal de contas, era mesmo um fotógrafo europeu, como Rugendas, Eckhout e Taunay foram pintores europeus. Na minha cabeça, Burri tinha se decidido a gravar a luz tal como é, em vez de procurar compensações, esconder o reflexo do sol atrás do corpo de alguém, algo assim. Como se fosse um comentário de fundo, de natureza técnica, para seu retrato da família, de natureza temática; como se quisesse sublinhar o fato de não estar apenas documentando, mas revelando algo sobre o que viera documentar.
É sempre inspirador testemunhar um encontro entre o tema e a técnica como este. Burri, afinal, deu de cara com o quê quando fotografou Brasília? Seu álbum tem inúmeros cliques de Niemeyer trabalhando, tem Juscelino em reunião com seu arquiteto, tem esqueletos de edifícios que sobem, tem vistas dos prédios prontos contra um território ainda dominado pelo barro, tem vistas dos acampamentos de peões. Tem até imagens de trabalhadores estrangeiros na obra, algo que eu nem sabia que tinha acontecido (são espanhóis). O que ele ouviu de cada grupo desses? Como avaliou o que diziam os políticos, os engenheiros, os jornalistas, os militares, os peões, suas famílias?
Talvez esta imagem revele um pouco disso: que postura tinha o fotógrafo diante daquilo que viera documentar. De quando veio acompanhar uma gigantesca obra de engenharia, com motivações políticas, neste país onde a luminosidade é tanta que se pode ter luz estourada e sombras profundas na mesma composição.
* * *
Em quase todas as fotografias, e também nos vídeos, da inauguração de Brasília, vemos gente vestida em sua melhor roupa. A mais famosa dessas fotografias, que tem inclusive uma versão colorida, é aquela em que Juscelino, com lenço na lapela, agita seu chapéu, sorrindo para além das próprias gengivas. Há também registros da esquadrilha da fumaça, de ginasiais fazendo demonstrações (talvez sejam colegiais, pouco importa), de tropas que desfilam, dos deputados tomando seu assento pela primeira vez (ou, pelo menos, oficialmente pela primeira vez, para as câmeras). Ninguém nessas imagens está vestido de qualquer jeito, ou com a roupa com que vai trabalhar no dia-a-dia.
Esta imagem de Burri não é exceção: também a família humilde (e a legenda, no site da Magnum, acrescenta: “worker from Nordeste”) está com sua melhor vestimenta, sua “roupa de domingo”. Vale a pena se deter nesse detalhe. A esposa do candango carrega, inclusive, um guarda-sol, que, além da óbvia utilidade prática (ainda mais para quem tem um bebê no colo), é um tradicional signo de elegância. O marido veste paletó claro, algo que, pelo visto, perdeu o direito de existir nas nossas cidades, apesar de todo o sol. Talvez a única coisa que destoe seja o colarinho do trabalhador, que não usa gravata. Curiosa ausência.
Em nome do contraste, pense nas imagens que temos dos operários que ergueram aquela cidade (enganosamente) austera no meio do nada. Algumas são tomadas à contra-luz, agigantando suas figuras de heróis anônimos de uma pátria pujante (etcétera e tal). Outras são tomadas distantes, mostrando-os como pontinhos frenéticos de um formigueiro, para expressar a grandiosidade de uma obra em que a figura humana chega a desaparecer. Há ainda as imagens mais jornalísticas, poderíamos até dizer de denúncia, mostrando caminhões apinhados que chegam ao Planalto Central, despejando gente no Areal ou em Ceilândia, ou ainda as instalações em que viviam os candangos. O álbum do próprio Burri fornece exemplares de ambos os tipos.
O que temos nesta imagem é outra coisa. O fotógrafo suíço acompanha a família, e não é uma tomada de surpresa; há outra foto em que eles aparecem por trás, caminhando. Eles exploram as construções monumentais e ainda nuas, não só no sentido físico de não estarem sendo usadas, ocupadas por escritórios e repartições, mas também no sentido simbólico: não carregam o peso das atividades que se desenrolarão ali dentro, e que o visitante ou espectador atual não pode se prevenir de ficar imaginando quando contempla cada uma dessas construções. Sabemos que o grupo está de pé no Palácio do Alvorada por uma única das colunas, que se ergue atrás deles com dimensões acachapantes. Aos olhos de quem se acostumou a ver essas colunas nos últimos 50 anos, associadas a todo tipo de evento triste, traumático e cruel, essas dimensões não podem ser tomadas como mero acaso.
Burri toma a foto ligeiramente de baixo, o que normalmente aumentaria as pessoas, daria a elas dimensões mais fortes e agressivas. Não é o caso de quem está debaixo dessas colunas, também alongadas pelo ângulo de tomada. O que temos são figuras um pouco deslocadas, todas olhando para cima, um pouco intimidadas, com exceção do bebê que dorme, indiferente; logo ele, que vai conviver com a imagem desses edifícios por uma parcela maior de sua vida…
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Mesmo assim, é uma família que se vestiu com o melhor de suas roupas e saiu para passear. Estão ao largo das grandes cerimônias, mas nem por isso menos aprumados. Depois de um longo período de dificuldades, de trabalho duro, o descanso, o lazer. E, claro, a admiração, a reverência, diante das edificações monumentais – erguidas ao longo de um eixo que carrega o mesmo nome.
A reverência diz muito. Pode-se ver que o operário e sua família têm respeito pelo palácio, em grande medida pelas próprias dimensões da obra arquitetônica, mas também pelo contexto em que foi feita, um contexto carregado de promessas e expectativas. É bem possível que também tenham orgulho da energia física e do “dispêndio de músculo e nervo” (uma definição marxiana para o trabalho) necessário para produzir aquele monumento. Certamente há um componente de esperança, que era o que prometia todo o projeto de desenvolvimento de Juscelino.
Seja lá de onde vem esse “worker from Nordeste”, ele não teria saído de casa se não imaginasse um incremento nas condições de vida em outra terra. Mesmo que, na verdade, ele tenha sido expulso, seja por um grileiro, seja pela seca, seja por ambos. O que quer que tenha acontecido, ele provavelmente nutria a esperança de que a Novacap representasse um país melhor. E isso quer dizer, de seu ponto de vista: um país onde se viveria melhor. Conhecemos uma boa parte da história, no entanto: atraídos pela possibilidade de fugir da miséria, retirantes “from Nordeste” como este trabalhador largaram o que restava de suas terras para tentar a inclusão na civilização, na sociedade de massas, ou de consumo, chame como quiser. Foram tratados como sempre são tratados os pobres, os mestiços, os trabalhadores no Brasil.
Por sinal, quando compartilhei esta fotografia nas redes sociais, uma amiga de cliques contou uma história familiar que não vou reproduzir aqui, porque cabe a ela contá-la, e não a mim. Mas é um relato que contém tudo que conhecemos da história do Brasil ao rés-do-chão: grilagem, jagunços, escravidão por dívida, golpes, violência e morte. Não dá para descolar a história da construção de Brasília da história das secas, das oligarquias, do arrasamento do território e de seus habitantes. Tanto quanto ressoa com a fotografia dos índios de 2015, a imagem de René Burri também ressoa com a pintura de Cândido Portinari, cuja Os Retirantes data de 1944.
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Repetindo o que eu disse no início, a fixidez da imagem lhe confere a característica curiosa de adquirir significações em retrospecto. Como captura de um intervalo no mais das vezes ínfimo, de uma fração de segundo, a fotografia pressupõe necessariamente o tempo que a precede e sucede. E se, nesse instante raptado graças à luz que refletiu, o filme (ou o sensor) foi impressionado com formas prenhes de sentido, pode pressupor ainda mais, muito mais. O operador que tem um dedo no disparador e outros dois na abertura do diafragma tem consciência de algumas dessas possibilidades, mas certamente não de todas. O autor é poderoso, mas a obra tem seus poderes também, que ele simplesmente não pode alcançar. E deve se alegrar por isso.
Mesmo que nada do que eu imaginei acima esteja correto e o Burri de 1960 quisesse apenas fotografar uma inauguração, o Burri de 1977, que retornou a Brasília num momento em que a ditadura já rateava, provavelmente tinha outra idéia. E é bem possível que tivesse outra idéia também sobre suas fotos de 1960. No fim da vida (ele morreu em 2014), talvez tivesse ainda mais uma outra idéia sobre o que portavam de significativo essas imagens de Brasília. É como se os personagens se movessem debaixo das colunas, na medida em que elas vão sendo impregnadas do significado histórico do que acontece entre elas e em volta delas. É como se, ainda hoje, quem passa por aí carregado de pastas (se é que por aí passa alguém) esbarrasse nos candangos extasiados.
Assim, para nós, hoje, esta imagem provavelmente evoca ilusões e desilusões, enganos e engodos, decepções, traições. Penso no bebê que dorme no colo da mãe e cujos pais talvez o imaginassem livre da miséria e da opressão, educado, trabalhando em bons empregos (públicos, talvez). Onde terá crescido essa criança? No Núcleo Bandeirante? Na Candangolândia? Teve acesso às benesses da civilização? Recebeu uma educação emancipadora? Teria idade para escapar dos eventos relatados em Branco Sai, Preto Fica, de Adirlei Queiroz? O que você acha? O que te parece mais provável?
O respeito que o operário tem pela construção, ou por quem a encomendou, dificilmente será recíproco. Depois de Getúlio, depois de Juscelino, depois de Lula, uma das coisas que podemos dizer sobre o Brasil, e que transparece nesta imagem e em tudo que ela pode nos dizer em retrospecto, é que todas as vezes que se vendeu a idéia de um grande impulso adiante para o país, caímos, depois de alguns anos, em retrocessos. Ou melhor, caímos na real. E tudo para descobrir que o grande impulso, o grande facho de esperanças e expectativas estava incompleto, porque continha muitas propostas e poucas rupturas; muita acomodação, muito acordo, e pouca revolução.
As imagens desta família, esta em particular, mostram um instante silencioso (porque, afinal, algumas fotografias, como muitas pinturas, têm som). O evento ocorre em um espaço praticamente vazio. O contraste que se impõe não diz respeito apenas às multidões estridentes que freqüentarão a Novacap daí por diante, preenchendo os ministérios com concursados, terceirizados e comissionados, as casas parlamentares com eleitos, assessores e jornalistas, os palácios com lobistas, solícitos líderes políticos e seus funcionários a servir café.
Mais ainda, o ambiente em que a família visita essa Brasília ainda quase mágica contrasta com o alarido da inauguração oficial, a festa de diplomatas e burocratas, o desfile de Nonô e os discursos de senadores e deputados. Terá sido no dia (e na noite) anterior? Pela ordem das fotografias, é o que parece. E vou admiti-lo, mais uma vez, porque convém à minha narrativa.
Lendo os relatos da época, a inauguração de Brasília foi a marcha triunfal de um país que vencia, batia na porta do clube dos civilizados, demonstrava ser capaz de qualquer coisa, mesmo os planos mais ousados e absurdos. Um país com os olhos voltados para o futuro. Quero dizer: o país do futuro, nada mais e nada menos. Mas quem assistia, das bancadas do plenário ou das galerias, ou mesmo pela televisão, um bem de consumo ainda relativamente raro em 1960, eram aqueles que garantiam os pés do país (eu deveria dizer: “da nação”) muito bem fincados na derrota, no passado, no fracasso, no clube dos expropriados.
René Burri mostra com esta família o dia seguinte desse alarido tão confortável, ou melhor, o silêncio em que se esconde aquela esperança quando recomeça o dia-a-dia. E mostra esse espaço dúbio, ambivalente, da maneira como divaguei até aqui. Com a luz ligeiramente estourada de um ambiente subtropical que não se deixa simplesmente apagar assim tão fácil (nem com os aparelhos de ar-condicionado dos ministérios). Com uma perspectiva de baixo para cima, paradoxalmente reduzindo os personagens ao amplificá-los. E com a constatação de uma reverência humilde perante as colunas em que Oscar Niemeyer revelou um naco de seu gênio (e de sua utopia).
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Como sabemos, quatro anos depois de todo o alarido, nessa mesma cidade, Auro de Moura Andrade declarava vaga a presidência da República, que pouco depois seria tomada pelos militares e sua máquina de tortura, censura e retrocesso. Não consta que a família do “worker from Nordeste” tenha visitado o Alvorada nesse período. Pelo menos não tem fotos disso. Consta, por outro lado, que as tentativas fracassadas de estabilizar a economia depois das despesas com a construção do referido palácio e demais novidades da Novacap foram um fator determinante na queda de Jango e da democracia. É difícil imaginar uma fotografia que represente esse vínculo, exceto pelas imagens de arquivo mostrando Celso Furtado com olhar de cansaço, ou melhor, de derrota. A não ser que tentemos fazer da luz estourada no fundo deste clichê de René Burri uma espécie de alegoria dos estouros em geral, inclusive os estouros de orçamento. E por que não?