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A regra impossível

O futebol aderiu tarde às tecnologias de verificação. Mas quando aconteceu, as consequências foram metafísicas. Esqueça as intermináveis discussões sobre o toque de mão involuntário ou a violência de uma falta. Todas as polêmicas do “árbitro assistente de vídeo” (ou VAR) empalidecem perante o fato de que uma das regras do esporte dito bretão é tornada inviável, desprovida de sentido, ontologicamente absurda, quando aplicada graças à imagem. Trata-se da lei do impedimento, criada há mais de 150 anos, sempre contestada e nunca abandonada, irritante, mas tenaz. Em casos de impedimento, seja para acertar ou errar, o VAR está sempre mentindo.

Deve ser um caso único. O uso da tecnologia para garantir decisões mais precisas e justas é coisa antiga no esporte. Já nos anos 80, aquele jogo americano da bola oval contava com juízes vendo as partidas pela televisão. Modalidades tradicionais, como atletismo e natação, instalam sensores nas linhas de chegada há tempos. Sem falar do turfe, com seu célebre photo finish. O futebol, esnobe que só, fez fama de refratário à modernidade, recusando-se a ouvir falar em dispositivos tecnológicos quando até mesmo as redes de televisão já se valiam de replay, câmera lenta, linha de impedimento e outras distrações para entreter o espectador.

Até que chegou o VAR, recebido como a salvação para os infindáveis erros de arbitragem. Foi em 2018, já valendo na Copa do Mundo da Rússia. Ironicamente, a IFAB, que estabelece as regras do futebol, escolheu como lema “mínima interferência, máximo benefício”. Como vamos ver, é por definição um mote inviável.

A novidade trouxe alguns pequenos problemas. Uma queixa comum é a frustração de esperar pela confirmação de um gol, desinflando a alegria de torcer. Mas em geral os vitupérios contra o VAR dizem respeito a erros de decisão; justamente o que se esperava que ele resolvesse, quem diria. Mas até aqui não temos nada de surpreendente: a esperança de que o vídeo fosse uma panaceia, que daria fim às brigas com a arbitragem, sempre foi exagerada.

Impactante mesmo é perceber que essa tecnologia, só por existir, inviabiliza a aplicação de uma regra específica, tal como está enunciada. Simplesmente porque o texto tem uma base metafísica com a qual a lógica do dispositivo bate de frente. Pois é isso que acontece no impedimento. Tão logo está disponível o recurso ao vídeo, ele se revela como a ficção que é. Isso, por si só, não seria um problema: regras são mesmo ficções, sem as quais todo jogo é impossível. Mas o VAR impõe tratá-la como uma realidade quase natural.

11a regra

Todo amante do futebol conhece sua 11a regra. Está impedido o jogador que, no momento em que o companheiro lhe passa a bola, tem menos de dois adversários à sua frente, ou seja, mais perto da linha de fundo; o goleiro costuma ser um deles, mas nem sempre. Isto só vale no campo de ataque e passes “para trás” estão excluídos. Mãos e braços não contam e “na mesma linha” não é posição irregular. Diz o livro de regras que deve ser considerado como momento do passe “o primeiro ponto de contato da ‘jogada’ ou ‘toque’ da bola”.

Uma fonte de controvérsias é o adendo de que a infração só é marcada se o jogador “em posição de” impedimento interfere ou participa do lance. São expressões difíceis de definir, deixando ao bom senso do juiz decidir quem participou do quê na jogada. Mas o verdadeiro problema, o que pode mesmo dar briga, é que a regra sempre exigiu da arbitragem uma atenção e um olho clínico a toda prova, sobretudo na velocidade em que o jogo é jogado hoje. É facílimo errar um impedimento. Justamente essa falha humana era o que se esperava resolver com o VAR. Em boa medida, funcionou, ainda que imperfeitamente.

Já se questionou de tudo na 11a regra: o jogador “em posição irregular” participou ou não do lance? O atleta bloqueou o campo de visão do goleiro? Seria o caso de restringir o impedimento para espaçar o jogo, ou quem sabe abrir mão dele, legalizando a “banheira”? E por aí vai. Mas uma coisa nunca foi posta em dúvida: o sentido da interessante expressão “momento do passe”. Jamais foi preciso perguntar o que é esse momento, nem tampouco o que quer dizer um momento, questão ainda mais obscura e, bem, metafísica.

Leve em conta a vigilância da câmera e o cenário muda. Um exemplo concreto ocorreu em 2019 na Inglaterra. Um gol do Manchester City sobre o Tottenham foi anulado, provocando uma breve celeuma. O jogo terminou empatado e a anulação decorreu de um impedimento, como se diz, milimétrico. Acontece que a câmera que capta as imagens da partida gera 50 quadros por segundo, acima do dobro dos 24 tradicionais do cinema, mas bem abaixo da câmera “ultra-lenta”, que produz nada menos que 10 mil imagens nesse piscar de olhos.

A liga inglesa explicou que o encontro entre pé e bola, no “momento do passe”, ocorreu entre dois quadros, ou seja, no intervalo de 0,02 segundo. Porém, ponta-de-lança, atacante e zagueiro corriam a toda velocidade, o que implica um deslocamento de até 38 centímetros nesse vazio da imagem. Para uma decisão milimétrica, essa centimetragem é uma distância quase planetária. Os juízes, na sala do VAR e no campo de jogo, tiveram que escolher entre dois quadros congelados: no primeiro, não havia impedimento. No segundo, sim. Ficaram com o último. Acerto ou erro?

“Ora (direis), se pelo menos fossem mais quadros por segundo!” Ledo engano. Essa resposta erra o alvo completamente. O problema não está em determinar o instante do contato entre pé e bola; longe disso. Mesmo que fosse, ainda assim não tem velocidade da câmera que resolva. Toda a embrulhada está na noção do momento do passe. Quando fizeram a regra, ninguém podia prever que a tecnologia nos obrigaria a perguntar: que momento é esse?

O momento

Se agora, depois de tantas gerações, passa a fazer sentido perguntar o que é o momento do passe, é porque existe um aparelho que diz exibi-lo, explicitá-lo, para além da dúvida razoável. Esse objeto é a imagem congelada em um quadro. Nela se aplicam as linhas que, conforme aceitamos por convenção, marcam a posição do atacante e do defensor. Com isso, acreditamos piamente que está bem definida a condição de impedimento.

A primeira pergunta que vem à cabeça de qualquer um é a mesma que foi feita pela imprensa inglesa em 2019: como se chega a esse quadro? Por que não o quadro imediatamente anterior, ou posterior?

Antes do VAR, o momento não tirava o sono de ninguém. Não havia contradição entre a imprecisão da regra e o caráter arbitrário da decisão. Porque o passe não é um ponto no tempo, mas um movimento, ainda que rápido. Mesmo que se convencione determinar o primeiro toque do pé na bola como momento do passe, ainda falta explicar que primeiro toque é esse, em que escala devemos procurá-lo, se é a tangente geométrica, uma fricção molecular, um contato claramente visível na imagem, a deformação da bola. É o retorno do velho problema da lógica: quantos grãos de areia configuram um monte?

Mas a verdadeira crise não é lógica, é metafísica. Olhando mecanicamente para o momento do passe, supondo que seja um chute, o que vemos? Uma perna que se ergue, avança, impõe sua força à bola; cujo couro se deforma, cujo ar se comprime, enquanto o pé segue avançando impulsionado pela musculatura; até que o material da pelota reage, volta a se expandir, e as trajetórias do pé e da esfera se separam. Tudo isso é o passe, realizado em frações de segundo.

Não é à toa que usamos termos tão imprecisos: “momento”, “instante”, “hora”. Tempo curto, porém espesso. E durante esse intervalo, os demais jogadores também se movimentam. Não se trata de nenhum ponto no tempo, coisa que aliás não existe, exceto como recurso que inventamos para facilitar nossos cálculos.

A definição do “momento do passe” como “primeiro contato” é uma admissão velada de que o enunciado da regra tem uma imprecisão intrínseca. Talvez isso explique por que, no livro das “leis do jogo”, está expresso em uma mísera nota de rodapé. O “primeiro contato” não só não corresponde ao momento do passe, como não é nem sequer o que diz ser, seu “início”. Com a mesma validade, poderíamos considerar que o passe nasce antes: quando o jogador começa a tomar a atitude de chutar, levantando a perna; ou depois: quando a bola já se desgarrou do pé e o gesto já não pode mais ser outra coisa senão um passe, descartando o drible e o arremate. Qualquer uma dessas definições seria convencional e insuficiente.

Não adianta. O passe é um movimento, ainda que rápido. Aliás, é um gesto, movimento humano. No mais das vezes, o atacante que pretende receber a bola e o defensor que quer evitar o perigo também estão se movendo. Assim como o bandeirinha, cujo dever é fiscalizar as posições. Sua percepção, que é humana, deve captar os deslocamentos e coordenar suas temporalidades, para tirar uma conclusão sobre a adequação das trajetórias à 11a regra.

Parece impreciso, prenhe de erros. No entanto, tudo vai bem enquanto todos os envolvidos estão no mesmo plano de realidade: o da capacidade humana de agir, reagir, perceber e relacionar. O momento do passe, então, é uma coisa só, captada em sua duração, junto com a duração dos outros jogadores e a do próprio bandeirinha. O impedimento é imperfeito, mas viável. Faz sentido para todos, porque é da mesma natureza de qualquer experiência que temos do simultâneo. Podemos aceitar, com falha humana e tudo.

O VAR implode essa naturalidade porque lança por terra a coerência do mover-se, questionando a essência do movimento. O vídeo congelado trata como realidade e concretude o que é convenção, ferramenta do pensamento: a decomposição do tempo em pedaços ou, em outras palavras, a divisão do deslocamento em uma série de etapas, todas imóveis. Esquecemos que fatiar o tempo é um recurso intelectual, talvez porque costuma ser eficaz, talvez porque com a câmera em alta velocidade não chegamos a ver a imagem borrada.

Mas continua sendo um recurso mental. Há um século, o filósofo Henri Bergson já insistia que o deslocamento, como tal, é indecomponível: cada parte do movimento é também um movimento. Ainda contém algum passado e já envolve algum futuro. A imagem congelada promete o impossível: ao decompor o gesto do atleta, deveria revelar milagrosamente o momento do passe, o instante fixo, um “T0” que não aceita se limitar a ser uma abstração, exigindo a condição de prova definitiva no julgamento do lance. Quando vemos a imagem congelada, acreditamos nesse instante fixo, esquecendo que o quadro anterior e o seguinte mostrariam algo um pouco diferente, sem deixar de ser também momento do passe.

Mentira

Com as demais regras para as quais a tecnologia tem sua contribuição a dar, nada parecido acontece. A diferença entre o impedimento e infrações como a falta violenta ou o toque de mão é de natureza, não de grau. Por exemplo, a introdução do VAR provocou uma enxurrada de pênaltis por bola na mão. É provável que acabem fazendo algum ajuste na interpretação dessas infrações, antes que o jogo se torne uma sucessão de penalidades “braçogênicas”. Mas casos como esse são um mero problema de adequação, talvez incômodo, mas circunstancial: ajustada a orientação dos árbitros, segue o jogo.

Ou então: pode um sensor nas traves julgar se a bola entrou inteira ou não no gol? Perfeitamente. Não é preciso determinar em escala nanométrica onde terminam a bola e a linha no gramado. A convenção basta: se o dispositivo no poste captou a passagem da pelota, então o tento será validado. Para todos os efeitos, isso é uma regra, talvez a nova definição de gol, levando em conta a existência da tecnologia.

Mas o caso do impedimento não é de convenção. Não está em jogo o limite espacial em que ocorre o primeiro contato do pé com a bola. O problema é, de fato e de direito, metafísico: o que é o momento do passe? Como lidamos com a duração? Que violência podemos fazer ao tempo e seu modo de fluir? E, de fato, decompô-lo dessa maneira, postulando uma noção vaga como o primeiro contato do pé para especificar o momento do passe, é uma violência.

A lei do impedimento foi criada tendo em vista a sensibilidade humana. Não no sentido de que leva em conta as suas limitações, mas no de que corresponde à sua estrutura, ou melhor, ao seu funcionamento. Enquanto não surgisse um aparelho que operasse segundo o princípio específico da decomposição do tempo, o problema metafísico jamais teria emergido.

Mas o dispositivo veio, o problema emergiu. O VAR abala o impedimento na essência. O enunciado faz perfeito sentido quando o passe é um movimento, ocorrendo no meio de uma série de outros: atacantes, defensores, árbitros. Mas é absurdo quando ele é um ponto, um quadro fixo, uma imagem congelada. Não pode haver mínima interferência se a própria natureza da regra é posta em xeque. A interferência é absoluta, para o bem e para o mal. O VAR é enganador quando dá a crer que captou o momento do passe. O que ele fez foi decompor o movimento em quadros estáticos, decretando um deles como matriz de uma determinação que é toda sua, pouco tem a ver com o texto da regra e colide com a matéria do jogo. Isso não quer dizer que ele não funcione, não cumpra seu papel. A máquina, para funcionar, não precisa dizer verdades. Só precisa dar um resultado que nos sirva – ou que aceitemos, ao fim e ao cabo. E isso, em geral, o VAR faz, graças à sua falsidade metafísica.

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barbárie, Brasil, desespero, direita, economia, eleições, Ensaio, escândalo, esquerda, guerra, história, hitler

A barbárie se acelera?

Chegamos a meados de 2022 e parece que já não é mais a cada poucos meses que somos confrontados com um novo episódio de barbárie em algum canto do Brasil – agora, poucas semanas separam o anúncio de um massacre no Rio, uma câmara de gás em Sergipe, um assassinato brutal na Amazônia ou no Cerrado, para citar só os mais midiatizados. São todos acontecimentos hediondos, à primeira vista sem conexão direta entre si, mas temos a impressão de que estão mais frequentes.

Viramos as páginas dos jornais – quem ainda faz isso – para a seção nacional ou de política e damos com um noticiário de outra natureza, mas igualmente perturbador. Ou melhor, igualmente bárbaro: a diferença é que o sangue não salta diretamente das páginas. Uma decisão como a do rol taxativo no STJ; a pressão dos militares sobre o processo eleitoral; os bilhões canalizados pelo orçamento secreto; os milhões gastos por municípios com concertos misturados a propaganda; a proposta, ou ameaça, de um estado de calamidade que permitiria desviar ainda mais recursos para fins eleitoreiros, e por aí vai. Desta vez, estamos falando de degradação institucional, mas a sensação é a mesma: o processo está se intensificando ou acelerando.

O que dizer desse sentimento de aceleração? Os golpes estão mesmo cada vez mais frequentes ou seria apenas um reflexo de nossa ansiedade com a aproximação de um período já normalmente tenso, como é o processo eleitoral? Ou ainda: se os episódios de barbárie e degradação institucional estiverem mesmo se precipitando, é justo imaginar que exista alguma coordenação entre eles, proposital ou involuntária? Se houver, realmente, algum mecanismo pelo qual uma causa comum leva à sucessão desabalada de iniciativas destruidoras, ele pode ser identificado?

Coloquei as perguntas nessa ordem porque uma das características do conflito assimétrico e informal, majoritariamente cibernético, que caracteriza nosso tempo é justamente torná-las quase irrespondíveis. Mesmo assim, creio que, se atravessarmos esse “irrespondível” e a confusão que o acompanha, podemos identificar um movimento que talvez seja proteiforme, mas é coeso. Lamento dizer, o que parece estar atrás da cortina é aterrador.

Chegamos a meados de 2022 e tudo indica que está em curso uma iniciativa de “guerra total” quase – veja bem, quase – espontânea, e por isso mesmo ainda mais potencialmente destruidora. Mas antes de começar qualquer tentativa de diagnóstico, é preciso recuar alguns passos e buscar um olhar um pouco mais abstrato, para que o cenário de fundo esteja minimamente acessível. Seja paciente.

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Começado pela última questão: a coordenação e a causa comum a todos esses episódios é indemonstrável, porque é desnecessária. Ou melhor, o que é desnecessário é um centro inspirador ou decisório único. Basta que exista alguma modalidade de comunicação – que pode ser um único sistema ou a conjunção de vários – capaz de alinhar o desejo de realizar determinada ação com a capacidade de levá-la a cabo. A única coisa indispensável para conseguir que algo se opere, tenha efeitos, é que os agentes mobilizados na ponta – digamos assim, os “terminais” ou “receptores” – obedeçam a motivações mais ou menos coerentes – ou seja, coerentes o bastante. Em outras palavras, não são as ações que precisam ser coordenadas, mas as motivações; aquilo que, cá e lá, dispara uma ação.

Ora, é precisamente essa questão comunicacional que conduz ao irrespondível das primeiras perguntas. Se ficamos ansiosos ao ser confrontados com a repetida barbárie, em sua versão sanguinolenta e em sua versão institucional, parte da razão é que as mesmas modalidades de comunicação que alinham motivações também semeiam ansiedade. Os mesmos estímulos emitidos constantemente, a mesma cacofonia, que galvaniza as ações de um lado, do outro geram confusão. A avalanche de imagens e mensagens é tanto paralisadora quanto mobilizadora, conforme a predisposição das pessoas espalhadas pelo território – os “terminais”.

Por isso, não faz sentido opor a sensação do horror intensificado e a realidade material que poderia sustentar essa percepção. Essa condição da comunicação reticular, entranhada no tecido social, provoca a impressão de que esses acontecimentos horríveis que testemunhamos podem ser postos em ação, um tanto paradoxalmente, por si próprios. Somos quase conduzidos a dizer que ninguém é responsável, mas, como já não conseguimos nem mesmo afirmar a realidade do complexo de eventos que estamos testemunhando, não chega a ser surpreendente.

Poderíamos contrastar essa nebulosidade, por exemplo, com o que aprendemos no caso Cambridge Analytica, em que agentes muito específicos manipularam indivíduos em um vasto território, com ferramentas discretas e disponibilizadas com essa precisa finalidade. Algo semelhante ocorreu em torno de 2018, com os disparos de mensagens e os robôs que todos conhecemos, a começar por Carluxo. Também dá para fazer um contraste com o episódio da invasão do congresso americano, em 6 de janeiro do ano passado. Também aí havia um centro emissor na figura de Trump, que colocou em movimento seus seguidores a partir da acusação de fraude eleitoral e o slogan, ou grito de guerra, “stop the count”.

Mas mesmo nesses dois casos, o que realmente disparou as atitudes, as ações, até mesmo as crenças – o que poderíamos chamar de sua “causa eficiente” – foi a disposição dos próprios receptores, cultivada ao longo de um extenso período e disponíveis para aquelas mensagens. O caso Cambridge Analytica é mais evidente, porque justamente aqueles com alguma inclinação a se conectar com as mensagens enviadas eram focalizados – e vendidos como alvos.

No caso da extrema-direita brasileira, a radicalização se deu por vias semelhantes, mas não idênticas. Ao inundar os dispositivos com mensagens que tocavam em todos os temores possíveis do brasileiro – raciais, sociais, religiosos, o que for –, era praticamente garantido que uma quantidade suficiente de pessoas seriam capturadas para uma rede de influência que se retroalimenta e se torna cada vez mais coesa.

Em tempo: não estou falando especificamente das tecnologias algorítmicas usadas no disparo de propaganda (explícita ou implícita), embora elas sejam, é claro, um elemento capital do problema. Mas elas se articulam com todo tipo de dispositivo que dissemina opiniões, impressões e convocações: dos púlpitos aos editoriais, das mesas de bar aos seminários, da sala de jantar aos intervalos entre aulas. Quanto mais modulações diferentes um estímulo lograr, melhor ele se embrenha no tecido social e se naturaliza.

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Entre contrastes e semelhanças, o que se passa hoje no Brasil tem suas singularidades, que me parecem determinantes para esclarecer a questão da aceleração do horror, a “guerra total” a que estamos submetidos. Em primeiro lugar, estamos falando de um complexo com ao menos duas dimensões, como já mencionei. De um lado, os atos de barbárie estúpida, espalhados por várias regiões e no quotidiano das pessoas; do outro, a degradação institucional no Congresso, nos tribunais, em determinadas autarquias, no Executivo federal e também nas esferas inferiores – menção desonrosa para as ditas forças de segurança, tanto as forças armadas quanto as polícias.

É preciso olhar um pouco para o cenário em que tudo isso se desenrola, ou seja, o contexto, a massa preparada com fermento para se tornar o bolo de destruição hoje se expandindo tão rápido.

Primeiro ponto: não é difícil remeter a barbárie quotidiana ao discurso funesto que se expandiu assustadoramente no país a partir de 2014, mais ou menos, e que explodiu com a candidatura e eventual vitória do atual ocupante do Planalto, quatro anos mais tarde. A “foice no pescoço da Funai”, o envio de adversários à “ponta da praia”, o “fuzilar a petralhada”, e assim por diante, são sementes que se espalham e, juntando-se a outras emitidas por personagens menos notórios – alguns deles, inclusive, hoje nominalmente de oposição –, criam um terreno de naturalidade para que atos de violência e crueldade emerjam conforme as circunstâncias.

Veja bem: criam o terreno, mas o potencial para a violência e a crueldade estavam disponíveis, já compunham a massa complexa do dia-a-dia brasileiro; caso contrário, não poderiam vingar. O caráter claramente racial de muita dessa violência; a tentativa de acelerar a eliminação dos povos indígenas, e dos biomas em que vivem, para avançar o extrativismo; o elitismo presente em alguns desses crimes; a virada opressiva e aniquiladora de certa religiosidade. Nada disso foi inventado em 2018. Foi, isso sim, realçado, em detrimento de tantas outras características igualmente presentes no quotidiano do país, das formas de solidariedade à disposição em abraçar o outro, o diferente – o que é mais que tolerância e, sim, pode estar em baixa hoje, mas é um traço bastante frequente no brasileiro.

O segundo ponto é um pouco mais difícil de tratar; tentei fazer isso neste texto de 2018. Hoje, já está em plena vista muito do que, naquele momento, ainda tínhamos que tentar demonstrar. É evidente que, ao menos desde meados de 2020, o atual governo só se sustenta porque funciona como uma espécie de mediador, um “buffer” para que forças políticas de dominação local – leia-se centrão – e grupos de interesse encastelados, a começar pelo latifúndio, ampliem seu controle já enorme sobre o Estado e os recursos do país. O que esses grupos identificam como principal inimigo? Muito simplesmente, o conjunto de todos os ganhos trazidos pela redemocratização e os anos seguintes. Ganhos institucionais, como o SUS e o controle sobre as decisões de agentes públicos (e aí se contam desde os tribunais de contas até a LRF, com todos os seus defeitos). Ganhos sociais, como os programas de distribuição de renda, a proteção de terras indígenas, as cotas no ensino superior. E, principalmente, tudo que possa ser um obstáculo a uma economia primária e dependente. Como previsto, vamos sair dessa lamentável experiência com um país ainda mais oligárquico, parasitário e paralisado.

Assim, quando sentimos que algo parece estar se acelerando, trata-se de uma conjunção, uma espécie de aliança informal (às vezes formal) entre os aspectos mais nefastos da nossa realidade social, realçados e coordenados por um sistema de comunicação quase orgânico, e os aspectos mais atrasados – e também nefastos, por que não dizer – da nossa realidade política. Se muitas vezes você pensou que o pior de nós está no poder, é porque está.

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Resta tentar explicar por que estou falando em “guerra total” para me referir à aceleração dos horrores, sanguinolentos e institucionais. Com o risco de estar cometendo uma “reductio ad Hitlerum”, algo ainda mais delicado em se tratando de grupos políticos que evidentemente têm o fascismo como princípio ativo em sua fórmula, acho que não é absurdo enxergar no que está se passando hoje no Brasil a atitude de quem vê o fim, aliás a derrota, se aproximando e, sem poder apagar o rastro de seus crimes, escolhe o caminho inverso: intensificá-los. Nesse caso, é difícil não fazer um paralelo com “der Totale Krieg” (guerra total).

Guardadas as devidas proporções, foi o que se passou a partir de 1943, quando Goebbels fez seu chamado ao “Totaler Krieg”, em discurso no Sportspalast de Berlim. Naquele momento, já era evidente que as chances de vitória do Eixo na guerra eram ínfimas. Duas semanas antes, o exército alemão havia sido humilhado em Stalingrado, a campanha no norte da África estava praticamente perdida, a economia germânica já não tinha condições de fazer frente às demandas do front. A derrota era certa.

Na camada mais superficial de seu infame discurso, Goebbels decretou que o país não aceitaria os fatos e que estava disposto à completa aniquilação, como se ainda houvesse uma vitória no horizonte. Na realidade, o que estava sendo formalizado era um suicídio coletivo: o nazismo exigia da população como um todo um sacrifício, para esticar por um par de anos a sobrevivência de seu grupo criminoso.

Mas este resumo não dá conta de descrever o que se passaria nos anos seguintes, com o arquiteto Albert Speer como ministro dos armamentos: a escravidão dos prisioneiros de guerra (e dos campos de extermínio) foi intensificada, levando à morte por inanição de milhares de trabalhadores forçados; adolescentes foram enviados ao front sem treinamento para missões inviáveis; populações inteiras foram deixadas sem comida; toda matéria prima possível foi desviada para a produção militar. As vítimas se contam aos milhões, não só entre os povos ocupados, mas também entre os próprios alemães. E o mais importante: quanto mais os soviéticos de aproximavam de Berlim, maior era a disposição para a infâmia suicida.

Como eu disse, é preciso “guardar as devidas proporções”. Não estou dizendo que houve no Brasil algo semelhante ao Sportspalastrede. Pelo contrário, sua ausência é o que mais me perturba, porque acredito, sim, que o princípio de radicalização suicida que mobilizou Speer está disseminado, mesmo sem um apelo direto. É por não precisar da convocação explícita à barbárie que o caso brasileiro é ainda mais insidioso. Ao contrário do que ocorria num sistema totalitário como o alemão, não é preciso moldar o conjunto da população para uma ação coordenada, em bloco, comandada a partir de um ponto singular. Basta multiplicar a emissão de estímulos, que se reproduzem de um jeito que parece orgânico; quando chegam na ponta, esses estímulos entram em consonância com motivações e convicções, gerando atos ao mesmo tempo isolados e conectados. E mais: não é preciso arregimentar a todos, como nas massas uniformizadas de Nuremberg. Basta que, cá e lá, a destruição emerja, faça seu dano e perpetue a angústia e a confusão. E o medo.

No plano mais propriamente institucional, a coordenação é um pouco mais explícita, principalmente porque há um evidente núcleo de tratoramento do princípio republicano. Tendo conquistado um poder quase irrefreável e com o Executivo na coleira, o enorme pântano fisiológico do Congresso procura consolidar sua posição e garantir que ela dure além do atual mandato. Os casos das emendas de relator e da execução impositiva, são cristalinos: deixarão qualquer governo futuro à mercê de deputados que controlarão um naco maior do orçamento sem responder a ninguém. O que serviu na origem, ao que parece, para comprar apoio a um governo inepto, torna-se assim um mecanismo de perenização de poderes despóticos. Ao mesmo tempo, pautas caras aos lobbies mais retrógrados avançam com urgência, como a mineração em terra indígena ou o “PL do Veneno”, sem falar em todos os projetos que almejam implodir a educação e a saúde no país.

Resumindo: a intensificação da barbárie, esse “totaler Krieg” a que aparentemente estamos submetidos, responde à urgência que certos grupos de poder provavelmente estão experimentando de obter o tanto de espólio que puderem até a implosão do governo ou do país como um todo – que país consegue aguentar tanta morte, tanta fome, tanta frustração? E se não ficou evidente como a cacofonia dos constantes estímulos se reflete nos avanços de bancadas predatórias, grupos fisiológicos e corporações burocráticas sobre os recursos e as leis do país, eu coloco em palavras: a velocidade de renovação das pautas – no sentido jornalístico e no sentido administrativo – favorece a aprovação das piores medidas, porque a resistência não consegue se organizar. Quantas vezes as oposições não comemoraram a vitória de bloquear uma votação aqui e outra ali, enquanto passavam outras tantas igualmente anti-republicanas?

Talvez o sintoma mais grave e de efeitos mais duradouros da sanha antidemocrática seja a apresentação do documento preparado por três assim chamados “think tanks” ligados aos militares, com um projeto de terra arrasada para o Brasil a ser implementado até 2035. Em que pese o tom delirante de algumas das análises e o teor regressivos das propostas de política pública, é mais um caso em que se consolida como normalidade as forças armadas se apresentarem como partido político, com fundo programático – no caso, “desprogramático” – e, no lugar da “força de lei”, a força de um cano de canhão apontado contra nossas têmporas. A presença do vice-presidente da República no evento de lançamento do tal projeto é, não custa repetir, um acinte. Somado à tentativa de intervir no processo eleitoral, temos aí mais um caso de agressão à sociedade civil – mas até aí, nada de novidade em tempos de bolsonarismo.

Na verdade, neste caso, vale atentar mais para a própria apresentação do documento, a fanfarra em torno dele, associada à insistência em intervir nas eleições, com envio de “sugestões” ao TSE e reclamação de falta de “prestígio”. Do ponto de vista institucional, esse tipo de atitude corresponde às bravatas do próprio presidente, suas repetidas “motociatas”, das quais a mais funesta é essa última, a de Manaus – metrópole da Amazônia sob ataque e da população sem oxigênio. Muito mais do que o conteúdo de qualquer dessas iniciativas, dessas imagens, desses memes, o que conta é o estímulo afetivo, para correligionários e para inimigos. Aos primeiros, o que se diz é: “vocês têm rédea solta!” E aos últimos: “confundam-se! Protestem para cá e para lá! Tremam de medo!”

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Nesse meio-tempo, lemos algo quase todo dia sobre o perigo de que a patota hoje encastelada no Planalto tente um golpe de Estado no sentido clássico, ou quase. O golpe se aproveitaria do questionamento ao resultado das urnas para semear o caos, recorrendo ao extenso apoio nas forças armadas e nas de segurança estaduais, além de grupos civis armados – esses mesmos cujo armamento vira e mexe é encontrado nas mãos de criminosos comuns. A partir dessa situação de descontrole, conforme a expectativa de golpe clássico, o governo teria uma desculpa para fechar o regime.

É uma preocupação legítima, considerando todas as manifestações dessa intenção nos últimos anos, o motim cearense de 2019 e a prévia de sete de setembro do ano passado. Isso para não falar no exemplo americano, a invasão do capitólio em 6 de janeiro, agora sob investigação no Congresso de lá. Mas essa perspectiva de golpe bolsonarista, em geral, deixa de lado um detalhe quase prosaico. Um golpe tramado às claras, à vista de todos, não é bem um golpe; é antes uma ameaça ou uma promessa. Por isso, traz consigo a perspectiva de um acordo, já que alguém ameaçado é colocado diante da possibilidade de escolher entre diferentes caminhos.

Por isso, do ponto de vista deste texto, é mais importante se concentrar no próprio fomento a essa projeção do possível golpe. Uma vez mais, ele serve tanto para estimular a sanha agressiva dos apoiadores quanto para intensificar a confusão e o medo dos opositores. Enquanto houver ameaça de que as eleições sejam meladas, a mensagem está no ar: toda barbárie é aceitável, para não dizer desejável. Há sustentação institucional, há garantias das lideranças políticas. A impunidade é certa. Tudo somado, parece que não é no sentido clássico que estamos diante de um golpe – ou dentro dele; mais parece um extenso período de exceção não declarada, mas sugerida nas entrelinhas e reafirmada a cada episódio de horror impune e sancionado por meias-palavras dos centros de poder.

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Dito isto, é difícil não lançar a pergunta mais incômoda, que, devo confessar, não tenho ideia de como responder. Como agimos, sabendo da radicalização em curso, da guerra total em que o inimigo somos todos nós? Como se comportar no dia-a-dia, como bloquear a barbárie, como escapar da espiral de angústia?

A maior dificuldade, na tentativa de dar uma resposta a essas perguntas, é que o problema comunicacional não é uma via de mão dupla. Para o funcionamento regular dos mecanismos de manutenção de uma certa estabilidade social e institucional, não há nada que corresponda à cacofonia de estímulos, esses que constantemente mobilizam e desmobilizam afetos. A democracia, no sentido formalizado em que a conhecemos, depende, ao contrário, de uma comunicação capaz de produzir sentido e relevância, não entropia e espasmos violentos; opiniões e ideias, e não pavor e ódio. Assim, não adianta ficar procurando estratégias para contrabalançar o bombardeio simbólico com um outro bombardeio, mas de anticorpos.

Já ajudaria bastante se pudéssemos escapar da armadilha que consiste em reagir individualmente, repetidamente, a cada novo episódio, correndo atrás dos estímulos e passando de exasperação a exasperação, de desespero em desespero. Tenha a impressão de que o que de melhor se pode conseguir é que o vínculo estreito e reticular entre esses sucessivos atos horrendos e decisões políticas regressivas seja reconhecido, e que nosso repúdio seja estruturado, voltando-se para o conjunto como um todo. Seria bastante desejável se pudéssemos reinventar os estímulos que poderiam trazer à tona a capacidade de organização coletiva, de solidariedade, daquilo que tem sido chamado de tolerância, palavra talvez um pouco fraca demais para o que realmente é necessário.

Mas falar é fácil. Estamos cientes, em maior ou menor grau, de como todos esses episódios e todas essas iniciativas estão conectados. Constantemente, repetidamente, denunciamos a normalidade, aliás a hegemonia, de uma linguagem regressiva, obscurantista, fascista, no dia-a-dia do Brasil, e associamos esse estado de coisas a personagens que detêm poder e incentivam o avanço da barbárie. Se isso não basta para murchar o estímulo à guerra total, talvez seja apenas a expressão de que esse discurso segue forte no país e essa bomba só possa ser desarmada em um prazo mais longo, para nossa infelicidade.

*

O que conduz à última questão: basta derrubar essas figuras funestas para afastar de vez a cacofonia? Bastaria reagrupar uma “coalizão democrática” em torno de um novo governo a partir do ano que vem? (Melhor não perguntar se existe disposição para uma tal coalizão em nossos grupos políticos.)

Dificilmente. Não foi o caso em outros países e não deverá ser aqui. Um dos núcleos do problema é que esse discurso, com um pé no fascismo e outro na tradição colonial, se legitimou suficientemente na sociedade brasileira para se fixar. A cacofonia ainda reverbera, mesmo que seus pólos emissores desapareçam – aliás, não vão desaparecer, só vão perder alguns de seus dispositivos e uma parcela de seus recursos. Ou seja, devemos reconhecer que não vamos retornar tão cedo a uma condição que poderia ser considerada normal. A bem dizer, um olhar um pouco mais detido sugere que já não há mais sentido no termo “normalidade”, se quisermos aplicá-lo ao que vivemos nas décadas de 1990-2000.

Para ficar só naquilo que foi transformado por esses quatro anos de barbárie oficial, há vários problemas já fáceis de identificar. Sabemos que os grupos radicalizados permanecem, seguirão com a mesma radicalidade e alguma forma de coordenação, ainda que os atuais líderes acabem sendo substituídos por outros, talvez até mais sagazes e, portanto, perigosos. O caso do professor de cursinho para agentes rodoviários federais que, filmado, ensinou a improvisar uma câmara de gás, sem o menor constrangimento, é ilustrativo. É preciso um estado muito degradado da mentalidade em um país para que alguém se disponha a falar daquela maneira em público, sendo registrado ou não.

O perigo maior, neste caso, é que se os membros mais ativos desses núcleos se sintam traídos e prejudicados quando o golpe clássico não ocorrer, pelo menos não com intensidade suficiente para sacramentar o triunfo da barbárie. A partir daí, dois caminhos opostos são possíveis, e ambos são perspectivas assustadoras. Eles podem reforçar seus laços, renovando a coordenação fascistizante; ou podem se fragmentar em pequenos grupos violentos, atuando espalhados pelo território e mais presentes no dia-a-dia da sociedade. Com fácil acesso a armas e um ódio dirigido a categorias vulneráveis, não é absurdo esperar o pior, em ambas as hipóteses.

Também devemos nos preocupar, e muito, com a renovação da fantasia característica dos militares – e ao chamar de fantasia não estou querendo dizer que não possa ter impacto real – de que constituem um dos poderes da república, ou melhor, um de seus alicerces. O tal documento dos “think tanks” é, além de uma ameaça (mal e mal) velada a todos nós, um sinal de que essa auto-imagem falsa, perigosa e inconstitucional segue sendo cultivada nos quartéis.

Outro elemento importante é o expressivo apoio ao projeto regressivo e recolonizador no meio empresarial, inclusive depois que se tornou evidente o caráter fraudulento da imagem intelectual e gestora de Paulo Guedes. Olhando nome a nome a lista de empresários que mergulharam com mais gosto no universo do bolsonarismo, encontramos um perfil ligado a setores pouco produtivos, como o comércio de grandes superfícies e a alimentação rápida, ao lado de exportadores de soja e gado. Uma característica que reúne esses nomes é sua pouca dependência da estabilidade econômica, social e política do país. É diferente, por exemplo, do que foram as lideranças do setor privado no passado (pense em Roberto Simonsen, Horácio Lafer etc.). E também é diferente de quem investe em mercados altamente tecnológicos, como os setores ligados à chamada “bioeconomia” – por mais questionável que o conceito possa ser, do ponto de vista ecológico. Para esses empresários da baixa produtividade, embora possam perder receitas com a instalação do caos e da pobreza, suas empresas são capazes de absorver o choque, seja por meio de demissão e achatamento de salários, seja batendo na porta de um governo amigo em busca de ajudas diretas. Diferentemente de grupos industriais, ou mesmo de serviços, da fronteira tecnológica, não precisam se preocupar com a concorrência de companhias que atuam em ambientes de muito maior segurança institucional e são pouco afetados pelas variações exageradas do câmbio.

Resumindo: o enraizamento da mentalidade autoritária e obscurantista no país é duplo: está tanto no dia-a-dia dos conflitos sociais quanto no âmbito daqueles que de fato controlam o país – isto é, sua economia, sua política, sua comunicação. Duplo, mas, é claro, articulado, já que um lado se alimenta do outro e os “donos do poder”, como diria Raymundo Faoro, têm todo interesse em fomentar uma sociedade atomizada, conflituosa e desesperançada. Livrar-se dessa mentalidade vai ser tarefa difícil e para muitas décadas.

Para terminar em tom um pouco menos funéreo, quero repetir o que disse antes, e que em condições normais nem precisaria ser dito: o Brasil não é, de modo algum, “essencialmente” autoritário e obscurantista, até porque essas “essências nacionais” são tolice, coisa digna dos Le Pen deste mundo, e nada mais. O autoritarismo e a violência que reconhecemos no nosso dia-a-dia se desenvolveram com o passar das gerações; são reforçados sempre que se reproduzem as estruturas de dominação e exploração herdadas do período colonial e transformadas a cada etapa histórica. Mas em outros planos a mesma sucessão de gerações produziu muito de criativo, gregário, solidário, nos interstícios dessas estruturas. Não é à toa que os estrangeiros nos veem como um povo tolerante e acolhedor.

Não faltam organizações, grupos e indivíduos que reafirmam e se alimentam desse Brasil solidário e cooperativo; somos, sim, perfeitamente capazes de atrofiar a abjeta e obscura aliança do fisiologismo com a barbárie, do fascismo com a predação; temos mais do que o necessário para articular um sistema sólido de cooperação e democracia. O terremoto político do último decênio teve o efeito lamentável de desagregar muito dessa trama de organizações que constituem a sociedade civil, abrindo o caminho para a avalanche de cacofonia e ruído que nos colocou na atual situação catastrófica e potencialmente suicida. Mas desagregação não é desaparecimento. Cá e lá, surgem novos cristais e novas coalizões. Inclusive, alianças até ontem improváveis. São sinais de caminhos que se abrem.

As ilustrações são desenhos de Käthe Kollwitz
Padrão
arte, barbárie, Brasil, capitalismo, direita, economia, Ensaio, esquerda, história, modernidade, Politica, prosa, reflexão, Sociedade, trabalho

Do empobrecimento: um esboço

Não é fácil traduzir em palavras o quanto é ruim a situação do Brasil. Ainda mais difícil é admitir algo que talvez saibamos todos, no íntimo: a trajetória de longo prazo é catastrófica em várias frentes. Esse desconforto poderia explicar por que estamos tão presos em análises de conjuntura, formando um ciclo amargo de interpretações dos nossos desastres de curto prazo. Sim, a gravidade do momento e o efetivo encurtamento dos nossos prazos justificam esses esforços. Mas todas essas tentativas vão ficar pelo caminho até que aceitemos a necessidade de tomar um certo recuo; o que determina o nosso naufrágio, infelizmente, é uma tempestade prolongada.

Não é só por colocar na presidência um Bolsonaro que há algo de errado com o Brasil. Todo corpo social tem energias subterrâneas que carregam um forte potencial auto-destrutivo, se não houver dispositivos que as controlem e impeçam de explodir (ironicamente, nas máquinas a vapor o nome desse dispositivo, em inglês, é “governor”). Quando acontece uma explosão dessas, a pergunta não é “como isso foi acontecer?”, nem “vai durar?”, mas: “que forças eram essas que não queríamos ver?”, ou “o que deu errado com os dispositivos?”. E se sonhamos em reconstruir o sistema, mas com um funcionamento melhor e mais seguro, então temos que situar o fracasso segundo o conjunto das circunstâncias que levaram a ele, para poder estabelecer parâmetros novos e melhores.

Trocando em miúdos, o problema não está tanto em entender por que (ou como) o Brasil acabou elegendo alguém como Bolsonaro. É bem provável, infelizmente, que a resposta seja amargamente prosaica: foi porque todas as demais dinâmicas se esgotaram. E alguém poderia perguntar: mas ele vai se consolidar no poder? Em última análise, tanto faz. Isto é, a questão não está em saber se ele vai falhar tanto assim, a ponto de perder por conta própria em 2022. A questão é que nada indica que venha em seu lugar algo muito melhor.

É enganoso crer, por exemplo, que a emergência de uma figura de centro-direita (mais provável) ou centro-esquerda (menos provável), com um certo grau de respeitabilidade – e a esta altura, por contraste, já estamos achando qualquer pangaré, qualquer picareta, suficientemente respeitável – vá estabilizar o sistema político e trazer dinamismo para a sociedade e sua economia. Não vai, porque não há condições objetivas para tal no horizonte, a não ser que as circunstâncias mudem radicalmente (com o mercado de commodities, por exemplo). Na tendência corrente, mesmo que consigamos algo melhor para o próximo ciclo eleitoral, em pouco tempo sofreríamos uma nova derrocada – na eleição seguinte ou até antes.

Diante dessa perspectiva nada animadora, vale mais se concentrar sobre uma outra série de questões: o que significa dizer que todas as demais dinâmicas se esgotaram? Em que consiste esse esgotamento, que dinâmicas são essas, qual foi a causa da perda de dinamismo? Naturalmente, em se tratando de política e, mais especificamente, de política eleitoral, a primeira camada do problema está na incapacidade das demais forças, supostamente mais organizadas e estabelecidas, para responder a uma situação de crise prolongada. Nessa primeira camada, o que aparece, de cara, é que as esquerdas se perderam em disputas internas, cálculos de sobrevivência e pautas esfaceladas. As direitas, por sua vez, ou bem escorregaram para uma situação em que se tornaram linhas auxiliares desse nosso neofascismo de pernas tortas, ou bem reduziram seu discurso a um economicismo pretensamente libertário – ou, no mais das vezes, fizeram ambas as coisas.

Mas também aqui é preciso continuar cavando, porque a capacidade de organização e proposição dos partidos não surge por geração espontânea, mas se constrói a partir dos potenciais que vêm da conjuntura, da sociedade e, claro, das circunstâncias históricas.

1 – Um exercício: quatro tendências

Creio que muitos compartilham comigo a sensação de que o que estamos atravessando, e que Bolsonaro vem acelerar (para muitos, ele é causa, mas discordo), é não só uma decadência (termo que tenho ouvido bastante), mas principalmente um processo de empobrecimento. Sem querer soar cafona, a manifestação mais evidente é o empobrecimento espiritual de um país cujos representantes máximos são aproveitadores vulgares, incultos e grosseiros, sem a menor centelha de carisma, dinamismo ou visão.

Mas o que gostaria de tentar mostrar é que já estávamos empobrecendo quando chegamos a Bolsonaro e é provavelmente por causa do empobrecimento que as portas se abriram para ele e sua turma. Vou tentar defender essa ideia por meio de um exercício compartilhado com você que está lendo. Vamos pensar historicamente; o que o Brasil tem ou já teve como fonte de riqueza? E mais: o que o país tem como fonte de riqueza em potencial? Estou falando de riquezas de qualquer tipo. Pode ser renda nacional, produção cultural, bem-estar, “felicidade bruta”, prestígio, orgulho. Pode até ser uma mistura disso tudo.

Matutando a respeito, cheguei a quatro itens, definidos de modo bastante amplo. São eles:

1) No último século, o Brasil chegou a ter uma economia industrial razoavelmente avançada, competitiva em diversos setores e que integrava quase a totalidade das cadeias produtivas. Vale lembrar que este exercício de pensamento não é uma apologia. É possível ter críticas muito corretas à estratégia da substituição de importações, bem como ao protecionismo, aos subsídios, à relação promíscua que empresários industriais falidos e ineficientes mantiveram com o Estado, sobretudo na fase final da ditadura. É claro que havia insuficiências graves, tanto é que o edifício ruiu ao primeiro vento mais forte.

Mas devemos reconhecer que a manufatura chegou a estar em uma situação em que, com uma abertura mais bem planejada, investimentos em pesquisa e qualificação do pessoal, poderia dar um salto de competitividade global. Com indústria de base, bens de capital, bens de consumo duráveis e não duráveis, alguns com alto teor tecnológico para a época, como carros (a Gurgel chegou a fabricar um veículo elétrico, por sinal) e aviões, não era absurdo imaginar que subíssemos mais algumas etapas na escala da complexidade econômica.

Sem dúvida, perder a revolução tecnológica dos anos 80 foi um golpe e tanto. Os juros de Volcker e a crise da dívida nos pegaram de jeito, como amplamente documentado; a largueza de Delfim e dos PNDs certamente não ajudou. A renúncia a fazer as reformas de base, tampouco, já que a estrutura fundiária se manteve intocada e o impulso para universalizar a educação (e a cultura!) foi frustrado.

Mas deixemos as mazelas para depois. Por enquanto, só quero elencar os tais motivos de orgulho e fontes de riqueza. Dos problemas, podemos tratar depois.

2) Pode não parecer tão importante assim, mas o Itamaraty tem que entrar nessa lista. O Brasil desenvolveu ainda no período do Império uma diplomacia competente e profissional, que certamente trouxe benefícios consideráveis. O tamanho do território, com a ausência quase absoluta de conflitos de fronteira, é um exemplo, e o devemos sobretudo ao Barão de Rio Branco. A participação de Ruy Barbosa na 2a Conferência de Haia (1907) é uma fonte duradoura de prestígio. A atuação na OMC e outros foros globais não seria possível sem um quadro de profissionais qualificados. As políticas de aproximação com os vizinhos foram sempre um trampolim para a participação em tomadas de decisão mais amplas, na condição de liderança regional.

Se o prestígio diplomático não parece ser uma “fonte de riqueza” importante, basta voltar os olhos para a França, que manteve uma relevância no concerto de nações da Europa, após Waterloo, absolutamente desproporcional a seu poderio militar. Parabéns a Talleyrand e ao Quai d’Orsay. Ou mesmo a Alemanha, já que a possibilidade de reunificação do país foi inaugurada pelos esforços de Willy Brandt, contra o desejo de muitos compatriotas, para normalizar as relações com o Leste. O movimento incluiu um gesto, na época, polêmico (acredite se quiser): um pedido de perdão pelo Holocausto que incluiu prostrar-se de joelhos perante o memorial às vítimas, em Varsóvia.

Quanto a nós, com todas as mudanças de regime, o Brasil conseguiu manter razoavelmente intactos seus princípios de política externa, da autonomia das nações à não-intervenção – vale lembrar que um dos principais pontos de ruptura entre Kennedy e Jango foi a recusa do Brasil em participar da intervenção em Cuba. Até pouco atrás (digamos, dezembro de 2018), este gigante sul-americano era considerado confiável no concerto das nações.

Chega a ser engraçado que um porta-voz israelense (Yigal Palmor) tenha se referido ao Brasil como “anão diplomático” em 2014. Na verdade, a atuação diplomática do Brasil sempre foi desproporcional a seu ínfimo peso geopolítico e militar. O Brasil seria melhor descrito como um anão geopolítico, mas com músculo diplomático hipertrofiado.

Assim como no caso da indústria, também é possível apontar falhas e limitações, é claro. Como tanta coisa no país, a diplomacia, com seus altos salários e o prestígio que carregava, foi sempre uma instituição elitista. (Vale registrar que, nas últimas décadas, houve alguns esforços em direção contrária.) Pode-se argumentar que demorou muito a se preocupar em apresentar ao mundo um rosto que correspondesse ao país real. Consequentemente, seguiria o argumento, o Itamaraty serviu não só para perpetuar uma sociedade excludente, como também para favorecer decisões no plano internacional que reproduziam estruturas hierárquicas do mundo tal como era.

Seria um argumento válido, mas, outra vez, minha pequena lista tem outro propósito.

3) Pode ser um pouco esquemática demais a divisão entre “soft power” e “hard power” (Wall Street é soft ou hard?), mas serve para designar um dos principais ativos do país, principalmente porque é muito amplo e ajuda a manter minha lista curtinha. Aliás, “soft” é bem o termo para um país que atraía simpatia mundo afora por ser considerado (com ou sem razão) pacífico e alegre. Por não ter guerras, não ser agressivo na política externa, receber bem os turistas e por aí vai.

Mas é claro que não era só isso. “Soft power” não é só pacifismo. É também cultura, arte, comportamento pessoal. Houve, por exemplo, um tempo em que o mundo todo queria ver Pelé jogar. Seja com o samba, seja com a bossa nova, a cultura brasileira era ao mesmo tempo admirada e estimada. Até mesmo a construção de Brasília, que me parece um grave erro estratégico, serviu pelo menos para colocar o Brasil no mapa.

Jovens de todas as partes, de Johannesburgo a Hebrom, de Bobigny a Guadalajara, vestem a camisa da seleção brasileira até hoje, não só por causa de Rivellino, Romário e Ronaldo (para fazer uma aliteração geracional), mas também porque a magia canarinho representava o triunfo de um país pobre, miscigenado e periférico que vencia, cativava e acolhia. Sim, houve um tempo em que simpatizavam conosco. Talvez o mundo tenha acreditado demais (e nós também) no mito de exaltação da mistura de raças, até mesmo na “democracia racial” de Gilberto Freyre. Ainda assim, era um retrato inspirador que chegava às pessoas e lhes dava algo da ordem da esperança. Será que teriam consumido nossas novelas nos confins da Rússia, Grécia, Turquia, se já não tivessem uma simpatia pelo Brasil? Voltando ao tema da diplomacia, se foi possível em algum momento que o Brasil liderasse um movimento de aproximação estratégica do mundo subdesenvolvido (Sul-Sul), isto se deve em boa medida à imagem de país acolhedor, pacífico e ao mesmo tempo ambicioso.

Procuro resistir à tentação de argumentar um pouco mais por este ponto, que parece menos relevante e talvez menos convincente. Torno a dizer que essa imagem tão gentil do país não era um retrato lá muito fiel, já que esta sempre foi uma terra de exploração, genocídio, mandonismo, jagunçagem, tortura. Ainda assim, consolidou-se essa imagem, que algo de verdadeiro tem (talvez porque o olhar se voltasse ao explorado, não ao explorador); e essa imagem rendeu frutos. Por maior que seja o cinismo daqueles que souberam lucrar com a face mais luminosa do “homem cordial”, foi um ganho do mesmo jeito, e nos beneficiamos disso. Quando nem a imagem duvidosa conseguimos mais sustentar, algo está muito errado!

4) Este é sem dúvida o potencial mais evidente, e também o mais frustrado. Cá entre nós, também é um campo no qual o Brasil não tem mérito nenhum, propriamente falando. É uma circunstância histórica e geográfica: estamos sentados em cima dos mais extraordinários recursos naturais, e não estou falando de ferro, urânio ou, sei lá, nióbio. Hoje, o termo consagrado é “biodiversidade”, então que seja. Some-se a ela a abundância de água, a incidência de vento e sol (e raios, por que não?), a variedade topográfica, a extensão do litoral.

Se o futuro da economia está na sustentabilidade e na circularidade, o Brasil teria todas as condições de ser um dos grandes pólos econômicos do planeta. Se insumos e determinados produtos serão desenvolvidos a partir do código genético de plantas, fungos e animais, um gigantesco laboratório a céu aberto está cravado em plena América do Sul. Já em 1966, Celso Furtado entendeu que desenvolvimento e ecologia teriam de andar de mãos dadas. Hoje, porém, a verba do Plano ABC, por exemplo, é insuficiente.

Em parte por atavismo, em parte por preguiça, a economia que se pratica no Brasil é quase inteiramente oposta àquela que nos colocaria no caminho da riqueza, da influência e do bem-estar nas décadas vindouras. A monocultura de larga escala, a exportação de bois vivos, os minerodutos que emporcalham os pulmões dos capixabas, até mesmo o pré-sal; tudo isso pode até ajudar a equilibrar a balança de pagamentos. Mas praticamente não reverbera na melhora da vida das pessoas e na complexificação da sociedade. Exceções, claro, são a Embrapa e as pesquisas de engenharia de extração do óleo no fundo do mar, mas mesmo esses esforços poderiam estar sendo aplicados de maneira mais proveitosa.

*

Para continuar com o exercício, proponho agora examinar como estamos em cada um desses pontos. Confesso que atua aqui um certo “privilégio do autor”, já que sou eu que estou escrevendo e, por isso, pude escolher os itens que me pareciam ser os mais convenientes para manusear. Além de mais convenientes, são também quatro campos em que o governo atual está provocando uma hecatombe completa, com seu exército de lunáticos em posições-chave.

Mas não é disso que quero tratar, por enquanto. E, seja como for, se quiser estender o exercício para outros itens, fique à vontade. O que temos com esta minha seleção é o seguinte:

1) Não é segredo para ninguém que o Brasil atravessa um processo acelerado e avassalador de desindustrialização; para ser mais claro, cabe dizer que não se trata, como na Inglaterra, regiões da Europa e partes dos Estados Unidos, de uma perda de fábricas para a China, acompanhada de uma transição para uma posição ainda de vanguarda tecnológica na divisão internacional do trabalho. A economia brasileira está, como se diz, se “reprimarizando”; com isso, em geral se quer dizer que voltamos a nos especializar na exportação de soja, carne, laranja, açúcar, café, minério de ferro e petróleo. Talvez dê para acrescentar o nióbio nessa lista, não sei. Dizem que temos programadores e artistas gráficos muito criativos; é uma pena que tantos tenham que ir trabalhar no exterior, assim como tantos pesquisadores, engenheiros, artistas e demais representantes da economia que gera valor agregado. A perspectiva do jovem de classe baixa, ao entrar no mercado de trabalho, está hoje em trabalhos precários e com pouco horizonte de evolução pessoal. É sintomático como hoje, o personagem-símbolo do jovem trabalhador brasileiro é o entregador de aplicativo.

2) É preciso dizer algo sobre o que se passou com a diplomacia brasileira nos últimos dois anos? A transformação desse ativo construído com tanto esforço em uma máquina de cuspir abobrinhas e perder alianças figura entre aqueles crimes tão graves que mal nos damos conta. Que tenhamos sujeitado os interesses do país aos caprichos de um único líder estrangeiro é algo que pode deixar nossa imagem arranhada por bastante tempo. Ter um mandatário que balbucia mentiras delirantes na Assembleia Geral da ONU apequena o Brasil muito mais do que uma goleada sofrida em casa para a Alemanha (pelo menos eles terminaram como campeões!). Unir-se a ditaduras teocratas contra alguns direitos humanos básicos pode nos tornar párias por toda a eternidade.

No campo econômico, aliás, até agora não sei dizer se nossos governantes são a favor ou contra o acordo da União Europeia com o Mercosul. Chegaram, é verdade, a um texto definitivo (costurado antes, como se sabe); mas não só o ministro da Economia já vinha bombardeando o Mercosul antes mesmo de tomar posse, como depois da assinatura do acordo a diplomacia brasileira e o governo têm feito de tudo para garantir que ele não será ratificado pela contraparte europeia.

3) Também não é difícil perceber que nosso “soft power” está, para dizer o mínimo, bastante abatido. As imagens de animais carbonizados no Pantanal estão correndo o mundo. Em escala, alcance e importância bem menores, as declarações de Bolsonaro e sua entourage sobre Brigitte Macron fizeram o mesmo no ano passado. A negligência com o petróleo nas praias do Nordeste não passou despercebida.

Mas a perda de prestígio e portanto “soft power” não data das votações obscurantistas na ONU ano passado, nem do “golden shower”, nem do jogo de acusações cínicas sobre as queimadas. Tudo isso são bombas, é claro, que revelam ao mundo algo do que está por trás daquela máscara de país simpático. Mas o mundo já tivera, a essa altura, alguns aperitivos do que realmente constitui o modo de atuação do brasileiro.

Provavelmente a primeira ocasião tenha sido a Minustah, embora aquele ainda fosse um momento de otimismo e admiração com o Brasil, que tinha candidatura para sediar Copa e Olimpíada, presidente operário e ministro da Cultura tocando guitarra com Kofi Annan. Pois bem, ao mesmo tempo, os militares deste país deixavam de ser “médicos sem paciente” para encabeçar a desastrosa operação de paz no Haiti, onde não faltaram massacres, estupros, disseminação de doenças contagiosas e, ao final, claro, uma situação de violência e abandono praticamente sem alterações.

Há algo particularmente grave nesse caso, por sinal. Sabemos que as ditaduras latino-americanas tinham um gosto pronunciado por sumiço de cadáveres. No Haiti, porém, não só os soldados brasileiros foram instruídos a alvejar até mesmo quem se aproximasse dos corpos abatidos pelas tropas, para lhes dar sepultura digna. Para piorar, lideranças brasileiras da Minustah falam abertamente e com aprovação dessa ordem, tripudiando dos mortos.

Como dar a dimensão da imagem de horror que um país transmite quando age assim? O respeito aos mortos, mesmo inimigos, mesmo criminosos, é um elemento cultural quase universal. É tema de uma das principais tragédias gregas (Antígona). Pois bem, o Brasil fez papel de Creonte, o rei delirante que ofende os deuses e termina isolado em meio às ruínas de sua dinastia. Ao se decidir por esse papel, reencenando em escala reduzida o pecado original da Guerra do Paraguai, o país deu um primeiro passo para se tornar o que hoje já se consolida: alguém que não se importa de ser apresentado perante o mundo como abjeto, indigno de qualquer estima. Um país capaz de deixar terra arrasada e uma trilha de animais mortos pelo chão, só para vender gado e soja; capaz de premiar com a impunidade quem assassina rios com minério tóxico ou deixa adolescentes morrerem para economizar em alojamento. Uma terra que, por trás da aparente jovialidade, empilha atrocidades sem remorso e celebra os algozes de seus filhos.

Por quanto tempo aqueles tais jovens de Bobigny e Soweto ainda vão se dispor a simpatizar com um país desses? E que chefes de Estado vão aceitar a diplomacia brasileira como mediadora de seus conflitos? Que grande corporação vai ter interesse em colocar aqui a sede de suas operações regionais? Tudo isso são empobrecimentos, perdas que custarão décadas a reparar.

4) Por fim, parece bastante evidente que o país está renunciando a tratar seus recursos naturais com a devida seriedade. Além de tudo que já foi dito sobre o horror dos habitats destruídos, a aceleração de extinções, o risco de alteração perene, irreversível, do regime de chuvas, a intensificação da erosão, a perda de nutrientes, a destruição de modos de vida, o genocídio dos povos indígenas, devemos ter em mente que também é consumida pelas chamas a principal perspectiva de garantir a prosperidade, ou pelo menos o bem-estar da população nas próximas décadas. Tudo em nome do curto-prazismo de quem espera milagres da soja e do gado para manter um certo equilíbrio na balança de pagamentos. Sem falar, claro, no papel da especulação de terras na ocupação da Amazônia e do crime organizado na derrubada de madeira.

Vale dizer que a catástrofe da gestão ambiental no Brasil também precede Bolsonaro; quanto a isto, duas palavras bastam: Belo Monte. Vá lá, uma terceira: Samarco. A usina no Xingu, por sinal, se justificava com o pressuposto de que transmitir eletricidade da floresta amazônica para o sul serviria para garantir a segurança energética necessária àquela indústria que há muito já se decompunha. Por cínica e sinistra que seja a assim-chamada política ambiental deste governo, ela se estrutura a partir de uma matéria-prima amplamente disponível no país: o gozo da devastação.

*

Ficam de fora dos quatro itens muitos retrocessos que estamos vivendo, e que são pelo menos tão graves quanto os citados. A destruição dos mecanismos de transparência do Estado e de combate à corrupção, por exemplo, tem potencial para ser o legado mais duradouro do período bolsonarista – isto, é claro, se a destruição de biomas ora em curso não se tornar irreversível. A sabotagem à LAI, a sujeição do MPF, o aparelhamento do Judiciário e da PF, as tentativas de controlar o pensamento nas universidades e a informação na imprensa podem pôr a perder tudo que se conquistou desde 1988. Mas o objetivo do exercício não é mapear todos os nossos retrocessos, e sim apontar uma dinâmica de empobrecimento; e a esta altura ela me parece clara.

Podemos ver que, dos quatro itens destacados, o período com Bolsonaro só é plenamente responsável por causar a reversão ou a derrocada no caso da diplomacia. Nos demais, sem dúvida, esse caótico mandato provocou uma aceleração da piora, em quadros que já eram ruins, ou desequilibrou para o lado destrutivo situações até então ainda em aberto. Podemos colocar assim: estamos em queda-livre dentro de um abismo, mas antes já estávamos rolando em direção a ele. Assim sendo, Bolsonaro, longe de constituir um “choque externo”, é antes um sintoma de processos patológicos em curso no (digamos) organismo do país, ou uma perturbação que precipitou reações em cadeia já potencialmente dadas.

Sem dúvida, a aceleração de um processo destrutivo ou sua precipitação, por si mesmas, são desastres terríveis, já que achatam a possibilidade de reagrupamento, resposta, busca por alternativas. Mais perniciosa ainda é a capacidade que figuras como Bolsonaro têm de manter as atenções sobre si, ou seja, sobre o sintoma, e não sobre o processo e seus determinantes, e menos ainda sobre o que pode ser imaginado para além dele. Esta é, claramente, uma grande força; figuras assim triunfam porque compõem sumidouros afetivos e intelectuais que engolfam as atenções do país, reduzindo o debate político e o raciocínio estratégico a uma tática de confronto voltada, no máximo, para a próxima eleição. No caso dos políticos da era digital, é até pior, porque a munição é sempre esgotada escaramuça a escaramuça. A ansiedade com que acompanhamos as oscilações da popularidade do ocupante do Planalto é neurótica, mas principalmente no sentido de ser o signo de uma grande neurose coletiva.

Falando em neurose, o Brasil de hoje faz pensar em alguns esquemas psicanalíticos; é como se, de súbito, todos os seus monstros viessem à tona, de uma vez só. Mas ainda que coloquemos as coisas nesses termos, continuam sendo os nossos monstros, nossos velhos monstros. Por isso, é tentador atribuir o pesadelo que atravessamos a atavismos, ou seja, a formas recorrentes, talvez permanentes, da vida política do país, que residiriam numa espécie de inconsciente coletivo. Eu mesmo já adotei várias vezes essa estratégia e não considero que seja um erro, contanto que não se confunda o percurso mental com alguma descrição factual. Efetivamente, lógicas de exploração colonial, escravista e patrimonialista permanecem, se reproduzem e se adaptam ao longo da nossa trajetória, o que está visível, hoje, mais que nunca.

Um perigo dessa abordagem é recair no conformismo ou no fatalismo, como se houvesse um – me desculpe – destino manifesto. Acontece que algumas das monstruosidades são, de fato, atavismos. E sua característica de “reemergência de um passado” é tanto mais forte na medida em que o processo de empobrecimento é a perda de algo que chegou a ser ganho. Que o salário inicial de juízes, diplomatas e procuradores seja mais alto do que o rendimento no ápice da carreira dos professores titulares de universidades federais é, claro, um escárnio; muito mais, porém, é a expressão de um país bacharelesco e cartorial que nunca foi embora. Que magistrados tenham praticamente licença para cometer crimes (já que punições dignas do nome são impensáveis), idem: não deixamos de ser um país onde o acesso às esferas mais altas do poder público é um salvo-conduto para a infâmia. Os efeitos práticos dessas nossas distorções são diluídos em épocas de prosperidade, já que o bolo é maior; mas em tempos de retrocesso, são um veneno.

Por isso, as leituras do momento atual acabam oscilando entre dois pólos. De um lado, a análise de conjuntura – sendo que a conjuntura em questão muda violentamente a cada poucos meses (ainda mais este ano!). Do outro, a repetida denúncia dos vícios eternos a que estamos sujeitos como país, nossos “pecados originais”, por assim dizer. Mas há uma enorme conexão entre esses dois pólos – aliás, é isso que faz com que sejam, justamente, pólos de algo. Isto é que precisamos explorar: como esta conjuntura se produz, no contexto de uma etapa histórica em que a tradição de distribuição de poderes se manifesta de determinada maneira? Como se encadeiam as circunstâncias conjunturais, ou seja, como uma determinada configuração leva à seguinte? Que direções é possível tomar para produzir outro encadeamento, talvez até mesmo uma desconexão e uma ruptura com a referida tradição de distribuição e exercício dos poderes?

Em tempo: alguém poderia objetar que há, ou houve (quem dera!) uma onda internacional de vitórias eleitorais de líderes caricatos e, como se tem dito, populistas, o que não se explica pelo processo de longo prazo do Brasil, com seu empobrecimento. A objeção prosseguiria: a manipulação das massas por meio das redes sociais teve papel determinante na vitória de cada um desses líderes. De fato, essa onda existe; e o aparato técnico, comunicacional, informacional foi um instrumento importante para as tais vitórias. Mas é preciso entender que em cada um desses países, e também naqueles onde houve candidaturas igualmente populistas, mas derrotadas, foi necessário aos candidatos mobilizar afetos e dinâmicas já presentes. Um triunfo extremista não acontece do nada e não se alimenta de nuvens. O mesmo vale para as ferramentas digitais, que precisam de matéria-prima para trabalhar. Elas amplificam agitações latentes do campo social, porque lhe permitem constituir uma linguagem própria, uma estética, uma identificação, um mecanismo de disseminação que permite arregimentar, convencer, alinhar o discurso.

Assim, ao argumentar que o bolsonarismo acelera um empobrecimento já em curso, não estou negando sua participação nessa onda – o que seria impossível, dada sua mania de imitar Trump em tudo –, nem estou desprezando o peso das ferramentas digitais, “fake news”, “tio do zap” ou coisa assim. Ao contrário, o que ocorre é um ciclo vicioso, em que ao mesmo tempo esses dispositivos fazem de Bolsonaro o acelerador da derrocada e, no sentido inverso, o empobrecimento alimenta o estágio de vulnerabilidade que permite sua ascensão. É sua matéria-prima.

2 – Dinâmicas do empobrecimento

Vale a pena se concentrar um pouco no primeiro item do exercício, que contém mais elementos do que pode parecer à primeira vista. A questão da desindustrialização não está tanto na perda de fábricas, mas nas ondas de choque que a acompanham. Ao longo do meio século em que se tornou um país industrial razoavelmente relevante, o Brasil também se urbanizou, ainda que de forma desorganizada. As grandes empresas industriais fomentaram a diversificação do emprego, com maiores salários e exigências de qualificação do que havia na economia agrícola anterior. Não se trata só da emergência de um operariado consumidor, mas também a classe média urbana com suas funções de escritórios, de gerentes a advogados, publicitários a jornalistas. O acréscimo de produtividade financiou a expansão universitária do período, além da expansão da burocracia, para gerir essa sociedade mais complexa, e da emergência da célebre “burguesia nacional”, ou melhor, burguesia industrial, em torno da qual gravitavam os bancos e a trinca comércio/serviços/logística.

Não estou querendo promover aqui o elogio das sociedades industriais do século XX, que tiveram seu tempo e legaram muitos dos problemas gravíssimos, existenciais, que enfrentamos hoje. Nem quero obliterar todos os conflitos distributivos que se manifestaram nesse período, com efeitos muitas vezes trágicos e sujeitos ao “tunnel effect” de que falava Albert Hirschman: com conjunturas mais favoráveis, a transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos (na qual somos pós-graduados) aparecia como aceitável; nos momentos desfavoráveis, revelava-se um tanto menos aceitável, mas era mantida à força – isto, por sinal, não parece ter mudado.
O que estou tentando esboçar aqui, como contraste com o cenário atual, é a questão do que se costumava chamar de “excedente”. Grosso modo, trata-se da ideia de que as sociedades vão criando formas de agir, gostos e confortos, a partir do que são capazes de gerar além do estrito necessário para viver. Também é uma representação um pouco esquemática, já que faz parecer tudo que denominamos “cultura” como algo que emerge após a resolução do problema da subsistência, um pouco como na famosa pirâmide de Maslow. Mesmo assim, continua valendo a pena pensar o termo “desenvolvimento” desta maneira, aliás fiel à etimologia; não se trata de explorar mais e mais territórios, mais e mais recursos para continuar fazendo mais do mesmo, com os mesmos resultados. Trata-se de construir em cima do consolidado, encontrando modos de aproveitar as capacidades que vão se configurando para incrementar a vida. Caso contrário, o termo nem sequer faz sentido.

A questão é que aquela sociedade industrial não precisava só da tal “burguesia nacional” (não confundir com donos de lojas de departamento ou redes de hamburgueria), mas de uma classe de executivos, analistas, pesquisadores, engenheiros, juristas, comunicadores e gestores públicos, e assim por diante, todos capazes de antever os movimentos do sistema global de produção, circulação e financiamento. Caberia a esse vasto grupo de pessoas garantir que o sistema produtivo local se mantenha competitivo e em condições de se revolucionar internamente, na medida em que o próprio capitalismo vai se revolucionando. Tendo falhado em responder às demandas por maior investimento no célebre “capital humano”, além de uma série de outras falhas bem conhecidas, o Brasil perde justamente o impulso de produtividade que levaria adiante esse processo. Mais ainda, perde a capacidade de produzir o excedente que permitiria pagar por ainda mais complexificação, reforma urbana, investimento em educação e ciência etc. Ou seja, mais do que o problema da participação do setor secundário nas exportações e no PIB, a desindustrialização diz respeito, primeiro, à renúncia a continuar participando das transformações tecnológicas; já não participamos da dita “terceira revolução industrial” e nem sequer sonhamos em participar da quarta.

Resumindo, não tivemos nem uma Samsung, nem uma Huawei. Por sinal, nem mesmo uma Embraer temos mais condições de manter. E justamente essa renúncia vai reverberar nos demais itens da minha pequena lista: a perda de ambições diplomáticas reflete a degradação da materialidade dessas ambições. O ataque aos biomas e a ofensiva violenta do extrativismo se sustentam no ganho de poder relativo desse setor. Quanto ao “soft power”, que inspiração pode vir de um país que se entrega de corpo e alma, prostrado, à regressão?

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Um aspecto trágico desse processo de empobrecimento é que, na verdade, uma reversão ao estágio anterior não é possível. Tudo seria menos traumático, embora igualmente lamentável, se desse para simplesmente regressar ao estágio de pequeno país despovoado e agrário. Mas as ruínas de uma construção interrompida não são um terreno baldio. O cenário de um país que empobrece não é o mesmo do velho país pobre. As cidades estão todas aí, inchadas e deficientes em infraestrutura. Categorias sociais que se acostumaram a ter expectativas razoáveis não vão simplesmente recair na aceitação da miséria. Por mais incompetentes que sejam os gestores públicos (e nem sempre são); por mais mal desenhada que seja a lei de licitações (uma unanimidade!), nada disso basta para dar conta da degradação urbana, da logística defeituosa, da dominação territorial de facções criminosas, da desmontagem de equipamentos culturais. Estamos vivendo um processo ao mesmo tempo político e econômico (duas dimensões que se retroalimentam e, na prática, se confundem) que, ao promover empobrecimento e enfraquecer o cotidiano democrático, conduz a todos esses efeitos.

Daí decorre uma série de outros problemas, o primeiro dos quais está diretamente relacionado ao tema da biodiversidade e dos recursos naturais. Estarão na vanguarda das próximas décadas os países que forem capazes de fazer a transição para uma economia menos destrutiva e mais regenerativa. A capacidade de investir em materiais biodegradáveis e em energias não poluentes será crucial. Mas não é só porque biomas inestimáveis como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal estão sendo destruídos que o Brasil fica em péssima posição para essa corrida. É também porque as universidades e demais centros de pesquisa que poderiam ser os motores dessa dinâmica da transição, com invenções, patentes, práticas, estão sendo sufocados e vilipendiados. E porque os cérebros que se investe para formar acabam precisando se instalar em outros países, ou se ocupam aquém de sua capacidade – o famoso “brain drain”.

Este resumo também ajuda a entender um pouco melhor o fracasso da versão dilmo-manteguista do nacional-desenvolvimentismo, que foi artificial (projetando um apoio empresarial que há muito já não estava lá), anacrônico (favorecendo setores caducos e redundantes) e distorcido (reforçando, ao contrário do que pretendia, a posição degradada do país na divisão internacional do trabalho). O primeiro ponto a ressaltar é que, a esta altura, um esforço de reindustrialização não pode ser literal. A tarefa não é restabelecer as indústrias que o país já teve – que, afinal, eram adequadas à década de 70, ou melhor, ao salto que era preciso e possível dar naquele momento. Uma vez que se decidisse tomar a rota de um novo impulso para o desenvolvimento (a expressão que se usava era “superação do subdesenvolvimento”, que talvez devamos voltar a adotar), seria preciso encontrar as brechas pelas quais os setores produtivos instalados no país poderiam penetrar as cadeias de valor, progressivamente ampliando (o mais rápido possível, na verdade) o nível tecnológico da presença nessas cadeias. Nesse sentido, as fábricas de alumínio alimentadas por Belo Monte seriam praticamente irrelevantes.

3 – Esgotamento político

Ainda um tanto esquematicamente, poderíamos aproveitar essa noção do excedente para tentar explicar a crescente instabilidade social e política. Vale começar observando que, apesar de todos os avanços institucionais e da enorme melhora de muitos indicadores, todo o período da Nova República foi pontuado por crises econômicas pequenas e grandes, transições nem sempre harmoniosas de poder, escândalos de corrupção e improbidade, abafados ou não. Não me refiro só aos dois impeachments, ao aventureirismo que nos trouxe Collor e Bolsonaro, aos inúmeros programas de estabilização que precederam o real, às avalanches financeiras dos anos 90, à série de escândalos de corrupção, à recessão em 2015 e 2016, a junho de 2013 e a subsequente dominação das ruas por uma direita cada vez mais extremista.

Mesmo os momentos aparentemente mais tranquilos foram abalados por tensões graves. Em 1998, foi necessário o famoso “estelionato eleitoral” do câmbio para garantir a reeleição de Fernando Henrique; em 2002, a eleição de Lula não se deve apenas à articulação do PT, mas também à decepção da sociedade, em geral, com o desempenho econômico dos anos anteriores (lembrando que 2001 teve a crise energética); em 2006, o que parece hoje uma vitória de lavada de Lula sucedeu à crise do mensalão, em que a oposição fez a aposta (que se revelou equivocada) de “deixar sangrar” o presidente, em vez de tentar derrubá-lo (se é que teriam os votos necessários); comparada com 2014 e 2018, hoje nos parece que a eleição de 2010 foi um mar de sossego absoluto, mas foi até então o que de mais agressivo eu tinha visto, com um uso desavergonhado da (falsa) religiosidade que só faria se ampliar dali por diante.

É possível atribuir boa parte desses problemas ao recrudescimento do conflito distributivo (já mencionei isso antes) em tempos de produtividade estagnada e excedente idem. A relativa tranquilidade da era Lula, em que se dizia que, dessa vez, o Brasil ia “chegar lá” e “decolar” (lembra da Economist?), pode se explicar pela razoável folga, essencialmente financeira, ofertada por um mercado externo favorável. Não estou dizendo que a equipe de Lula é desprovida de méritos por seus sucessos, sobretudo na inclusão social – que, por sua vez, também alimenta o bom desempenho econômico –, e em uma série de avanços institucionais que, de fato, ajudam a justificar o otimismo. O que posso dizer, aí sim, é que nada disso teria sido possível durante um período de tormentas no plano externo e apertos no balanço de pagamentos. Com tudo isso, foi um período de câmbio sobrevalorizado, o que não favorece investimentos na produção local e serve, no mínimo, como indício de que, no fundamento, algo ia mal. Sem chegar a explicar predominantemente pela sobrevalorização do câmbio as agruras do setor produtivo e da economia como um todo, vale a pena se concentrar na ideia do câmbio valorizado como signo e sintoma. Não se trata de apontar que, para segurar a inflação, o dólar barato corrói a economia local; e que garante o consumo no curto prazo à custa de juros altos e produtos importados. A questão é que esse equilíbrio de curto prazo era mais instável do que parecia, reforçando a tendência a apoiar a estabilidade política numa certa engenharia econômica que, na verdade, não está garantida, e cujos alicerces vão se corroendo com a passagem do tempo.

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O problema é que muito da estrutura política com que estamos acostumados é tributária do período histórico em que ocorria a industrialização e a sociedade que se constituía a partir de suas dinâmicas. Se o Brasil chegou a produzir um partido de massas do porte do PT, é porque havia massas suficientemente fortes, coesas e organizáveis, com ambições políticas e influência social, ainda que desigualmente distribuída no país e, portanto, não tão forte assim. O PT começou com as greves do ABC, mas também com as demandas de uma classe média letrada e progressista, sobretudo nas grandes cidades. Ao mesmo tempo, se havia uma direita liberal capaz de compor com essas massas, ou meramente se opor a elas com possibilidade de mediação, é porque no dia-a-dia os grupos de classe média e alta que nela votavam tinham de incorrer em constantes negociações com as demais classes, ao mesmo tempo em que viviam em constante ligação com a vertente mais progressista de sua própria classe.

É claro que este retrato é parcial. As configurações que as mensagens políticas vão assumindo ao longo do tempo são complexas e não se encaixam perfeitamente em divisões como esta, porque são moldadas de acordo com as particularidades do país. Por exemplo, à esquerda o trabalhismo chegou a ser comandado por latifundiários e se confundiu muitas vezes (aliás, continua se confundindo) com um certo corporativismo do médio funcionalismo público. À direita, as tentações gêmeas do udenismo e do malufismo (aqui, estou tomando Maluf como representante mais longevo do que um dia foi o “ademarismo”), muitas vezes vitoriosas, mais de uma vez deixaram entrever, por baixo do moralismo e do discurso de ordem por meio de violência estatal, raízes mais profundas na exclusão e opressão de classes inferiores.

Ainda assim, as recorrentes recaídas do país em governos autoritários, tradicionalistas, opacos, quando analisadas à luz do que se acreditava ser o processo histórico que o país atravessava, entravam na conta do “atraso”. Ou seja, pareciam representar o triunfo (temporário) de um bloco que se movimentava “mais lentamente” em direção “à modernidade”, um resquício de algo que ficaria inevitavelmente para trás. Hoje, podemos desconfiar de que havia dinâmicas mais vivas nesses episódios, e que a modernidade assim concebida tinha algo de quimérico, mal e mal calcada no modelo euro-americano. Em todo caso, vale observar que, além dos fenômenos mais recentes da política brasileira, o bolsonarismo também conjugou ambas as tendências regressivas das direitas (udenismo e malufismo); estamos longe do tempo em que, por exemplo, Covas e Maluf eram antagonistas virulentos.

Ao mesmo tempo, dizer que o surgimento de um partido como o PT foi possível graças à estrutura social do período não significa, é claro, que foi nessas condições que ele chegou ao poder, nem que se sustentou assim quando era governo, muito menos que seja assim hoje. A trajetória do partido é bem contada no livro de Lincoln Secco e as transformações de sua base de apoio geraram a expressão “lulismo”, destrinchada por André Singer. A burocratização é um fenômeno razoavelmente esperável; no mais, as transformações do PT são perfeitamente explicáveis pelo que se passou no mundo, no Brasil e no cenário político. O que resta a trazer à luz é como essas dinâmicas de transformação, tendo tomado impulso por conta própria e com a inércia de um transatlântico, tornaram o PT incapaz de responder às agitações dos últimos anos. Mais ainda, desconectado de sua base popular – ou seja, privado da base que chegou a ter –, tornou-se uma casca vazia, que se alimenta do mecanismo eleitoral que chegou a montar (como nenhum outro) e do prestígio que mantém graças à memória de tempos melhores e um certo número de quadros ainda bastante respeitáveis.

“Casca vazia”, aliás, descreve bem o destino dos principais partidos da nova democracia brasileira. Além do que já foi dito sobre o PT, o que foi que transformou o partido de Montoro e Covas nesse arremedo representado por João Dória? Cuja maior esperança de voltar ao proscênio é uma figura tão limitada como Luciano Huck? Por muito tempo, quando pensamos em centro-direita no Brasil, a imagem que vinha era a do PSDB. Hoje, é um grande vazio. Parte disso é porque, quando pensávamos nos votos “da Faria Lima” (leia-se “mercado financeiro”), também pensávamos no PSDB, mas hoje temos o Novo, um partido que se diferencia do bolsonarismo sobretudo porque preferia Paulo Guedes na cabeça da chapa. À parte isso, não tem lá muitas ideias, quando justamente estamos precisando de ideias.

Todo esse movimento tem bases mais profundas, me parece, do que a mera “desilusão” com os tucanos na esteira da Lava-Jato.

Afinal, como sabemos, o sistema político como um todo caiu em desgraça perante a opinião pública depois da Lava-Jato, que centrou fogo no PT, é verdade, mas respingou nas oposições e justificou o discurso do “ninguém presta”. Mas não devemos atribuir peso demais a Moro, Dallagnol e associados. O sistema já vinha murchando, como um balão escanteado, muito antes dos escândalos. A direita tradicional se colocou na areia movediça antes mesmo da esquerda petista, provavelmente por estar na oposição, a tal ponto que Dilma se reelegeu quando já estava mal avaliada, já que o candidato da oposição era profundamente insatisfatório.

Assim, é preciso ter claro que um dos motivos pelos quais os tucanos e demais representantes da direita tradicional embarcaram na arriscada estratégia do impeachment (quando se começa, nunca se sabe onde vai terminar), paralela ao projeto de cassação da chapa Dilma-Temer, é a constatação de que já vinha falhando em se apresentar como alternativa desde muito antes. Em 2014, com o governo Dilma já em frangalhos, ainda assim o PT pôde apostar na destruição da campanha de Marina Silva, porque se sentia seguro de que venceria contra Aécio Neves.

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Já deve ter ficado claro que estou tentando transmitir a ideia de que a perda de potência das forças políticas – principalmente os partidos, mas não só – reflete, ou pelo menos acompanha o empobrecimento generalizado do país. Em traços gerais, era disso que eu estava falando quando me referi ao esgotamento de todas as forças políticas relevantes, abrindo espaço para combinações teratológicas como a que estamos testemunhando. Ou seja, elas são sobretudo consequência, embora sejam capazes de intensificar o problema e criar problemas novos. Mas ao mesmo tempo é preciso enxergar que mesmo as formas teratológicas, em última análise, se mantêm a partir de uma estrutura de poder que de novidade não tem nada. A implosão das legendas de maior renome desnuda os mecanismos desse poder, por meio da proliferação de partidos novos ou com nomes mudados, e que na verdade são meros vetores para as categorias que sempre foram as mais poderosas no Brasil: latifúndios, cartórios, estamentos, sacerdotes. Com a derrocada de PT, PSDB, PMDB, PFL, o que cai é a cortina. O palco segue agitado como um formigueiro.

Sendo assim, podemos estimar que a incapacidade das esquerdas em propor alternativas viáveis não se deve nem a um emburrecimento generalizado, nem à calcificação burocrática do petismo, nem ao desaparecimento das pautas históricas. Se as correntes da oposição se perdem em brigas paroquiais e patrulhamentos estéreis, é porque não conseguem compor um projeto coerente de avanço social e econômico que contemple o conjunto dos setores que, a princípio, se sentiriam representados por plataformas de esquerda. Seria preciso recompor com esses setores, se isso for possível, ou desenvolver modos novos de compor com o que há. Voltar à prancheta, aprender outras linguagens. Ocasionalmente aparecem algumas sugestões de como isso poderia se dar, mas ainda há muito chão a percorrer.

Também podemos atribuir ao estreitamento do excedente o que parece ser uma limitação da efetividade dos movimentos sociais, em diversas frentes. Populações indígenas, por exemplo, estão basicamente na defensiva, embora tenham obtido vitórias importantes ao garantir demarcações e evitar retrocessos. Mas a perspectiva continua sendo de que os retrocessos precisem ser evitados, e nem todos serão – aí estão as queimadas como um sinal de alerta. Também a ocupação de espaços de decisão por pessoas negras ainda não reflete a expansão de sua presença em universidades, embora um certo número de empresas já tenham reconhecido a urgência de um esforço concentrado pela diversificação e o combate ao racismo. Houve ganhos nas pautas das mulheres, da violência policial, do direito à expressão (notadamente nas artes), na moradia. Podemos colocar nessa conta, também, o auxílio emergencial da pandemia, surgido da mobilização da sociedade civil organizada.

Mesmo assim, a sensação generalizada é a de que esses ganhos não conseguem criar raízes. Sentimos que as próximas ameaças serão sempre maiores. Todo dia, lemos notícias dizendo que policiais expulsos por sua relação com milícias serão readmitidos; que mesmo depois que se garantiu a uma criança estuprada o direito de interromper a gravidez, forças obscurantistas instaladas dentro do aparelho de Estado trabalham para intensificar as perseguições; que há dezenas de milhares de pessoas ameaçadas de despejo e nenhum interesse do poder público em evitá-lo; que vozes críticas ao governo têm sofrido assédio de instituições como o Ministério Público.

4 – Balanço

Nada disso deve ser entendido como negando que houve muitos avanços nas últimas décadas. Pelo contrário, o que realmente vale a pena apontar, e sempre, é o caráter crítico da tensão entre avanços sociais e institucionais, de um lado, e suas condições concretas, de outro; uma tensão que vai se intensificando e pode levar a sabe-se lá quais peripécias no futuro próximo. Como já mencionei em outro texto, muito do que ganhamos nos últimos tempos, devemos ao que se costuma chamar de “espírito da Constituição Federal de 1988”, o que pode soar um pouco místico, talvez idealista, mas faz sentido se pensamos que a Carta é fruto de um momento histórico particular e da atuação daquelas gerações que tinham grandes esperanças e expectativas. Resumindo bem, de gente que via a redemocratização como um retorno aos trilhos da modernização – que, como se tinha percebido sob a ditadura, não podia se limitar a ser a quimera da “modernização conservadora”.

Gostamos muito de lembrar dos defeitos da Constituição, seja por dar garantias pouco realistas do ponto de vista fiscal, seja por conter uma infinidade de penduricalhos (resultado da estrutura de votações da Constituinte), mas é bastante evidente que, de lá para cá, houve melhora substancial em diversos indicadores. O serviço público ganhou muito em organização, profissionalizou-se claramente. Os mecanismos de participação social foram muito fortalecidos. Este ano deixou claro como o SUS é indispensável; além disso, instrumentos como o Fundeb, por exemplo, são fundamentais para fortalecer a sociedade civil e elevar o grau de exigência com o poder público. Para dar só um exemplo, quando observamos quantas vezes o latifúndio teve de investir contra leis ambientais e terras indígenas, muitas vezes saindo derrotado, podemos constatar que temos um ordenamento jurídico que serve de anteparo contra as investidas das forças empobrecedoras (e cretinizadoras) do país. Resta ver, é verdade, até quando as normas constitucionais serão capazes de resistir. Não é tanto com eventuais reformas do texto constitucional que estou preocupado. Me causa muito mais frio na espinha a perspectiva de que efetivos poderes de uma conjunção de forças reacionárias e obscurantistas lhes permita simplesmente passar por cima do que está escrito aí ou em qualquer outro canto, lançando mão da pura brutalidade.

É fabuloso como as ferramentas desenvolvidas no período pós-redemocratização deram um bom fôlego à vida civil nas últimas décadas. De fato, a sociedade civil foi e continua sendo muito atuante, de maneira cada vez mais profissionalizada e conseguindo comunicar com o público. Já mencionei, de passagem, as articulações cada vez mais fecundas do movimento negro, feminismo, secundaristas, moradia urbana, quilombolas, indígenas, agricultura familiar. Vejo com aquela ponta sempre agradável de esperança a emergência de novas lideranças políticas, com muita energia e tocando no âmago de algumas das nossas maiores contradições, isto é, nos mais arraigados e funestos dos nossos elementos constitutivos.

A grande preocupação é que, em todo esse período, as condições concretas da transformação social a que essas mobilizações podem almejar, e que não são poucas, foram sendo minadas por debaixo de seus pés. Apesar de todas as vitórias, os avanços não chegaram a tomar uma dinâmica própria a partir de sua recente base institucional, porque ocorria simultaneamente uma degradação estrutural invisível; só agora podemos ver com clareza como bastava um baque para pôr muito (não tudo!) a perder. No cabo-de-guerra entre os movimentos emancipatórios e as forças do retrocesso, estas últimas parecem estar com um jogo mais forte, apesar de toda a persistência, de toda a luta. Por quê? Porque as transformações sociais precisam se apoiar em condições efetivas pelas quais elas possam ser incorporadas e vividas. Assim, por exemplo, quando forças políticas se valem de um certo tipo de religiosidade em benefício próprio, é verdade que estão remexendo alguns recônditos culturais bastante profundos, que remetem tanto ao papel das religiões na ocupação do território quanto ao uso de mão-de-obra sequestrada e forçada. Mas há algo a mais: para que esses elementos estejam tão disponíveis e em tanta abundância, é preciso que as populações tenham perdido outros fios de esperança. É preciso que essas mensagens, que são exigentes e muitas vezes inverossímeis, encontrem o terreno fértil de uma população à procura de respostas. Estamos perante o mesmo fenômeno de esgotamento de dinâmicas com que este texto se abriu.

Apesar de todos os desentendimentos que se seguiram, é preciso tratar a aliança de ocasião entre militarismo jagunço e religiosidade distorcida, que foi instrumental no triunfo do bolsonarismo, não só pelo aspecto (verdadeiro) da manipulação dos afetos políticos, mas também como sintoma do estreitamento de horizontes na vida quotidiana do país. O desejo da carnificina floresce quando a perspectiva de uma vida social satisfatória se torna inconcebível: a adoração cega às tropas como Rota e Bope é simplista e recorre ao que há de obscuro em todos nós, mas seu combustível é uma realidade encurralada e degradada, familiar a boa parte da população.

Ao mesmo tempo, lembro que, quando a maré começou a virar na economia brasileira, há coisa de seis anos, eu me perguntava, um tanto angustiado, o que aconteceria com a dita “teologia da prosperidade” depois que a tal prosperidade se esvanecesse. Sem surpresas, estamos vendo agora que o que aconteceu foi um recrudescimento de outra abordagem afetiva frequentemente encontrada, mas em geral secundária, em fenômenos religiosos: passou-se a investir em uma versão crescentemente paranóica do moralismo, onde a culpa pela situação econômica cada vez mais difícil recai sobre o comportamento acusado de extremamente pecaminoso dos outros. Um pouco como se o castigo para Sodoma e Gomorra não fosse fogo e enxofre, mas recessão e desemprego.

Não quero dizer com tudo isso que a expansão de formas agressivas, obscurantistas e excludentes de religiosidade seja um fenômeno restrito à população mais vulnerável, ainda mais empobrecida pela perda de renda dos últimos anos (vale lembrar que mesmo o parco crescimento depois da recessão esteve sempre abaixo da taxa de reposição populacional). Inúmeras camadas de classe baixa e média compartilham do mesmo sentimento de risco social e financeiro, já que uma proporção considerável da população precisa se desdobrar para pagar as contas (só o endividamento das famílias está em 67%, consumindo 30% da renda, o que não é pouco). Não ajuda nada que este seja um país onde o acesso a escola, saúde e mesmo transporte privado é um ponto de distinção (ou seja, que mesmo as famílias mais sufocadas financeiramente estejam dispostas a fazer de tudo para não ter de andar de ônibus e para que seus filhos não estudem em escola pública).

Ninguém se surpreenderia, portanto, ao constatar que são esses mesmos sentimentos que fomentam o fascínio pelos uniformes e os gatilhos leves – afinal, é a imagem de um pouco de ordem irrompendo na bagunça – e, por fim, a figura de Bolsonaro. Este último, embora objetivamente não esteja à altura de qualquer uma dessas vertentes (foi um militar fracassado, é moralmente repreensível em todos os níveis), conseguiu reunir todas elas e aproveitar sua dinâmica em benefício próprio. Paradoxalmente, embora fosse uma dinâmica de morte, era a única dinâmica realmente viva disponível no país. No momento em que escrevo, parece que há uma certa dissonância (além da cognitiva) entre os diferentes grupos que apoiaram Bolsonaro e seguem apoiando o, digamos, “espírito do bolsonarismo”. Assim como já havia acontecido quando da saída de Moro do ministério e em outras ocasiões, com a indicação de Kássio Nunes para o STF voltam os gritos de “traição” e coisa pior. Na revista Piauí, por sinal, podemos ler sobre como batem cabeça aqueles que não sabem bem definir se “são liberais” ou “são conservadores”, com essa tocante ingenuidade da identificação individual, tão característica do nosso tempo. Mas prestando atenção ao problema das dinâmicas vivas e mortas, recomendo não se animar com a barulheira: na primeira ocasião, ainda que com outro nome, malufistas, udenistas, militaristas, extremistas religiosos, fascistas “de facto” e aproveitadores de todos os matizes vão caminhar de braços dados novamente.

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Como caracterizar uma situação dessas? A resposta habitual tem sido discutir se o bolsonarismo é um tipo de fascismo; isso me parece quase uma obviedade, mas não vejo como avançar muito a partir daí. Talvez valesse mais a pena subir um degrau e perguntar que tipo de momento faz com que os fascismos, de qualquer tipo, emerjam de suas sombras habituais. Melhor ainda, poderíamos perguntar: mas o fascismo é um tipo de quê? Tudo isto nos traz mais para perto do problema, com sua dinâmica própria, do que a mera tipificação; classificar não é o nosso problema, superar a tendência catastrófica ao empobrecimento é.

Agora, se o tipo de vinculação afetiva que conduz aos fascismos e ao bolsonarismo é algo que, como afirmei no início, permeia o campo social em toda parte, emergindo nos momentos de dinamismo esgotado e conflitos incontroláveis, então cabe a todo não-fascista, a todo democrata, buscar modos de constituir dinâmicas mais fecundas e construtivas, devolvendo as pulsões de morte aos cantos obscuros onde costumam viver, de onde causam menos danos.

Nosso desafio imediato é esse mesmo em que temos nos concentrado, ou seja: vislumbrar como se pode sair do buraco. É enorme a vontade de acreditar que só é preciso melhorar a organização das forças políticas, com ou sem frente ampla; ou ainda, que basta a população tomar consciência de que está no buraco, para que pelo menos o país viva suas crises intermináveis sem a dose diária de vulgaridade oficial. Mas acho que, no fundo, sabemos todos que não vai ser assim.

Se os antecedentes servem para algo, neste caso vai ser para nos deixar com as barbas de molho. Nas outras ocasiões em que dinâmicas destrutivas e opressivas chegaram a constituir governos, foram bem mais estáveis do que se poderia apostar, ainda que graças a fortes doses de violência e corrupção. Dinâmicas mórbidas geram insatisfação mesmo em quem as apoiou (e passa a se dizer traído). Mas tomam corpo, conseguem disseminar sua própria lógica, se tornam o ritmo hegemônico da vida. Sim, os fascismos podem ocupar o centro de nossas vidas, a ponto de não encontrarmos nenhum ponto comum de ancoragem melhor do que se declarar “anti-fascista”. Ora, mas ser anti-fascista é o mínimo! O que temos a oferecer à população além de “sair do buraco”, se nem somos capazes de descrever o que existe para além do buraco?

Desconfio que só sairemos desta enrascada quando enfrentarmos a questão do processo de empobrecimento – que é, repito, multidimensional, envolve a perda de prestígio, de sofisticação, de diversidade, de perspectiva, até mesmo de esperança. E em que consiste enfrentá-lo? Antes de mais nada, o enfrentamento teria que passar longe do saudosismo (espero não ter soado saudosista neste texto!); teria que se alimentar das aspirações de fato presentes no campo social, e que são muitas. Teria que ressoar com os desafios e possibilidades abertas hoje, em nosso tempo.

Neste ponto, os quatro itens do exercício da primeira parte podem servir de guia (sem querer ser presunçoso); mas se buscamos interromper a reprimarização, se não queremos que o território seja definitivamente uma enorme monocultura pontuada de minas, então o que aspiramos a produzir? E se não desejamos ser párias, que rosto esperamos mostrar ao mundo? O quarto item talvez seja o mais fecundo, considerando o peso da crise ambiental para o futuro da humanidade. Temos condições técnicas, intelectuais e financeiras para refundar nossa economia em bases completamente diferentes: descolonizada, sustentável, regenerativa, equitativa. Existem, portanto, bandeiras disponíveis e caminhos a seguir. O que nos cabe, então, é redirecionar nossos afetos, sufocar as tendências mórbidas dos fascismos, amplificar as dinâmicas férteis.

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Da série citações: Celso Furtado

Passagem extraída do artigo “As ideias de Celso Furtado sobre a questão ambiental”, assinado por Renato Nataniel Wasques, Walter Luiz dos Santos Júnior e Danilo Duarte Brandão:

“Em uma entrevista concedida a Cristovam Buarque, em março de 1991 , Celso Furtado afirma que demorou a perceber a importância da ecologia na economia. A propósito disso, observou: “É difícil no Brasil se perceber a importância da ecologia, porque é um país que tem uma margem muito grande para o desperdício” (Furtado, 2007, p. 78). Ele relata que se deparou pela primeira vez com a questão ambiental no início dos anos 1960 , quando chefiava a Sudene [Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste].

Naquela ocasião, Celso Furtado trabalhava no projeto do Maranhão. “[…] aí se colocou o problema das florestas e dos rios. Era uma coisa mais ou menos evidente que no centro da ecologia estava a própria preservação dos índios, o habitat dos que viviam ali” (Furtado, 2007, p. 79).

Elaborou-se, então, um plano de colonização para a região maranhense, com a finalidade de preservar a floresta . O autor comenta que foi influenciado por leituras sobre as técnicas dos
índios na Amazônia, principalmente pelo “[…] fato de eles usarem, nas margens dos rios, várzeas recuperáveis” (Furtado, 2007, p. 80). Essa constatação demonstrava que a agricultura praticada pelos indígenas não era predatória, pelo contrário, se recuperava permanentemente. Verificou-se, portanto, que era “[…] preciso partir da preservação da floresta, pois se houver destruição está tudo perdido, vem a desertificação” (Furtado, 2007, p. 80).

Nessa mesma entrevista, Celso Furtado busca responder à seguinte problemática: os recursos naturais não renováveis constituem um limite ao crescimento econômico? Ele argumenta que o uso predatório desses recursos “[…] está criando problemas tremendos para o planeta inteiro, não somente pela questão da escassez, mas pelas consequências, como a contaminação da atmosfera, a poluição geral, todos os problemas que vêm surgindo” (Furtado, 2007, p. 56). Apesar desse diagnóstico, o autor expressa certo otimismo em relação à capacidade da tecnologia em reverter aqueles problemas, inclusive na área energética. Nesse particular, assevera: “[…] creio que podemos pensar que a tecnologia vai, em grande medida, resolver esse problema dos recursos naturais” (Furtado, 2007, p. 57).”

*

O Celso Furtado de 1991 se revela uma pessoa capaz de reconhecer suas limitações: demorou a perceber, diz, a importância da ecologia para qualquer pensamento que se queira econômico.

Ainda assim, na verdade, ele foi um dos primeiros economistas em todo o mundo a perceber que a questão ambiental seria decisiva. Em seu livro de 1974, O Mito do Desenvolvimento Econômico, o economista brasileiro já leva em conta o relatório Limites do Crescimento (1972), considerado um documento fundador da interface entre economia e ecologia. Furtado mostra ter familiaridade com nomes que apenas começavam a tratar do problema, como Nicholas Georgescu-Roegen, Herman Daly e Kenneth Boulding.

Nesse livro, Furtado já escreve: “A evidência à qual não podemos escapar é que, em nossa civilização, a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis de degradação do mundo físico”.

Passaram-se 46 anos desde esse livro e 29 anos desde a entrevista. Na política brasileira atual, nem no governo, nem na oposição, encontramos alguém com a clarividência de Celso Furtado. Inspirar-se nos índios para uma agricultura regenerativa? Implementar projetos para desenvolver as potencialidades da própria floresta, dos próprios rios, sem destruí-los e àqueles que vivem deles? Nem pensar. Aqui, alguns são pelo fogo, outros pelo concreto.

À parte isso, poderíamos perguntar, tomando por base o otimismo tecnológico do final da passagem destacada: o que pode, de fato, a tecnologia, perante a crise ecológica? O que é preciso para tornar a tecnologia uma efetiva mediação entre a vida econômica e a vida como um todo, no planeta?

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Sábado: o veranico

Saio para regar as plantas e avisto à distância, no meio de um céu ocre e desolado, uma andorinha voltejando. Uma única andorinha, ágil como sempre, mas estranhamente solitária. Estranha como o próprio céu – que cheira a lenha, ou a cinzas de cambarás, piúvas, bocaiúvas e carandás.

Perto da janela dos fundos, as andorinhas fizeram um ninho, então estou acostumado a vê-las em bando. Só que, desta vez, é uma só. O velho dito popular sobre o “não fazer verão” me vem à mente, mas impregnado de ironia: pelo calendário oficial, estamos em pleno inverno, mas a imagem que me ocorre é a do estio, que a presença da andorinha vem negar.

É inverno e faz calor. E antes mesmo da primavera, a natureza já indica que o verão foi abolido.

Se fosse no tempo da minha adolescência, os jornais já estariam dando alguma trivialidade sobre o “veranico”: uma ou duas semanas de calor, que permitiam enxertar uma retranca prosaica no meio da torrente de notícias pesadas.

“Veranico”, palavrinha recorrente em outro século! Desapareceu, foi esquecida, junto com o período que servia para nomear – a breve interrupção do inverno em São Paulo.

Hoje é sábado, faz calor no meio do inverno, mas não é um veranico. É só mais um dia quente, acima dos trinta graus. Como foi ontem e como amanhã deve ser.

O noticiário, então, tem que se contentar em fazer o oposto: dar palanque a gente do naipe de Aldo Rebelo ou Eduardo Bolsonaro, quando se aproveitam da semaninha de frio que tem feito no inverno para negar a evidência de que os anos têm ficado cada vez mais quentes.

Virou notícia, fazer frio no inverno! Por que não adotamos “invernico”, como antes tínhamos um “veranico”? Fica a ideia: se por acaso calhar de fazer frio no inverno em São Paulo, podemos pautar um “invernico” e aligeirar o noticiário. Que tal?

Falando nisso, esse frio passou por aqui faz uma quinzena, mais ou menos. Agora, só ano que vem – com sorte. Vamos deixar o “invernico” guardado, então.

Hoje, a andorinha voa no calor e no céu ocre que cheira a cinzas. No sentido literal, ela não fazer verão seria até boa notícia. Como costumavam dizer os cariocas, e agora dizemos todos, o oposto do inverno é o inferno.

No sentido figurado, ao contrário, parece que nunca mais teremos um verão. Pensando bem, parece mesmo é que estamos presos indefinidamente num monstruoso inverno escaldante.

A andorinha volteja atrás de insetos, sozinha. Será que ela baila no ar para informar que não podemos almejar um verão, que nunca mais viveremos uma primavera?

No fundo, nem penso em primaveras, mal lembro o que é isso. Penso nas plantas, que estavam secas e agora estão molhadas. Penso por um instante na garganta, que arranha, e nos olhos, irritados pelo ar denso, carregado com os restos de biomas mortos. Fecho a torneira, volto para dentro, lembro de não deixar a janela aberta.

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Imagens que não fizeram história (5): a caixa térmica e a máscara

[Prelúdio: escrevi o que segue abaixo entre domingo (31/5) e segunda-feira (1/6). De lá para cá, boa parte do assunto que motivou o texto perdeu relevância, soterrado por eventos mais impactantes e relevantes, como a mobilização anti-racista que ecoa a partir de Minneapolis. Eis aí mais uma maneira pela qual uma imagem pode não fazer história: quando é surpreendida por uma avalanche de estímulos – coisa que, de uns anos para cá, não tem faltado…]

*

Manifestações em geral sempre rendem um bom número de imagens interessantes, por bem ou por mal – quer dizer, pelas bandeiras agitadas ou pela fumaça das bombas. Desde 2011, tivemos tantos protestos que pareceria impossível surgir algo digno de nota. Tolice: o campo de possibilidades para que emerja algo capaz de ressoar conosco está sempre em expansão. Considerando a infinita redundância de imagens que nos inundam, seria de se esperar que o universo daquelas que são significantes e informativas estivesse em contração; mas é justamente da atmosfera sufocada em redundância que pode saltar o relevante. Parece que isso ocorreu domingo em São Paulo.

O embate entre neofascistas e antifascistas de 31/5 produziu tudo que costuma se produzir em termos de iconografia de protesto. Bandeiras, punhos erguidos, gente segurando microfone, policial apontando arma, escudos, bandanas, fumaça. Tivemos até algumas novidades bem desagradáveis, como a exibição de tacos de beisebol (velho símbolo anglo-saxão de agressividade) e bandeiras ucranianas de inspiração neonazi. Do ponto-de-vista iconográfico, porém, nada seria novo, a princípio; editores de jornais e revistas poderiam escolher qualquer das imagens corriqueiras de seus fotógrafos ou das agências para ilustrar suas capas.

Mas no próprio domingo, quando os envolvidos mal tinham voltado para casa, em plena indignação pela repressão policial (e o tratamento amistoso à fascista com o taco de beisebol), as redes sociais já tinham elegido uma fotografia como favorita: esta com o entregador de aplicativo (bicicleta? moto?), com a caixa térmica nas costas, máscara de hospital no rosto, prestes a lançar uma pedra, provavelmente contra a polícia.

O gesto, o movimento, a postura do corpo, nada disso tem qualquer coisa de novo e é provavelmente por esse exato motivo que o fotógrafo (Nelson Almeida, da AFP) abriu o obturador nesse momento preciso – e depois escolheu esse clique em particular para editar no computador. De relance, a memória de quem estudou semiótica e a história do fotojornalismo captou a possibilidade de produzir uma imagem relevante não pela novidade, mas pela citação, isto é, pela inserção numa trajetória canônica. Mas é claro que o interesse não se encerra aí: a partir dessa inserção, aí sim, e por causa dela, poderão emergir as diferenças, que tornam essa imagem significativa a ponto de ter conquistado a atenção, mesmo que por poucas horas, das redes sociais – tão inundadas, tão sufocadas por imagens.

*

Talvez tenha sido com o maio de 1968 francês que a figura de manifestantes atirando pedras se tornou canônica. Por sinal, a sublevação estudantil da rive gauche forneceu uma série de padrões tanto para protestos urbanos quanto para sua representação nas décadas seguintes. Mas frequentemente capas de livros ou cartazes de filmes sobre o episódio trazem a escolha de alguma das fotografias de jovens se fazendo de catapulta humana, apertados em seus paletós “dandy”.

Desde então, a personagem do jovem que arranca o calçamento e o atira contra policiais ou soldados se tornou uma espécie de ícone do conflito social deflagrado. São abundantes as imagens de rapazes palestinos prestes a lançar uma pedra contra armamentos vastamente superiores – inclusive com o uso de fundas, o que traça um vínculo estranho, que começa no estético e o ultrapassa, entre nosso tempo e o Antigo Testamento.

Gênova, Primavera Árabe, Occupy, praça Taksim, junho, sempre fornecem algumas imagens nessa linha, às vezes muitas. Talvez a consagração do gesto do lançador como síntese da manifestação de rua esteja no mural de Banksy em Jerusalém (“Love is in the Air, or: Rage, the Flower Thrower”), em que o manifestante, de rosto coberto por uma bandana e boné virado para trás, se prepara para lançar flores: o corpo em preto-e-branco, as flores coloridas. Graças à agilidade do estêncil, a imagem se espalhou por paredes e cartões postais de todo o planeta, empapada com o mesmo tipo de ironia que acomete aquele retrato do Che feito por Alberto Korda, hoje quase uma logomarca.

É, de toda forma, um gesto como poucos para atiçar o interesse de fotógrafos e todo tipo de artista fascinado pelo corpo. Rodin, se tivesse vivido um século mais tarde, sem dúvida ficaria encantado com os braços esticados, o peito aberto, as pernas dispostas de modo a lembrar vagamente o “Gong Bu” (posição do arqueiro), e teria esculpido de alguma maneira o manifestante com o petardo engatilhado. Não foi à toa que a personagem se consolidou no imaginário da iconografia política. Se quisermos voltar ainda mais longe, dá para dizer que a figura remete também à antiguidade clássica: o atirador de lança da escultura grega, como no célebre “bronze de Artemísio” do período austero. E foi também uma das personagens escolhidas pelo pioneiro Eadweard Muybridge para suas fotografias quase cinematográficas de decomposição do gesto.

*

O entregador de aplicativo não é um estudante da Sorbonne ou de Nanterre, nem um soldado das falanges gregas, nem um esportista. Ou, para dizer a mesma coisa de maneira um pouco mais direta: o entregador de aplicativo é uma figura paradigmática da nossa década. Precarizado, sujeito ao controle algorítmico da economia de plataformas (ou, mais amplamente, a “gig economy”), tratado como empreendedor individual pelo patrão e pela Justiça, serpenteia pela cidade da “big data” atomizada, em busca de boas avaliações e uma remuneração fundada sobre baixas porcentagens do preço das entregas.

A bem dizer, o entregador de aplicativo é praticamente o oposto do estudante da Sorbonne. Mas se uma foto sua, congelado em pleno gesto de preparar o lançamento da pedra, se conecta com essas figuras icônicas e canônicas, sejam históricas ou ficcionais, justamente essa dissonância é que chama nossa atenção. Esta é, digamos assim, a diferença que resulta da repetição, como o isótopo que escapa do átomo. É difícil determinar se a estereotipia do lançador irrompe na nossa realidade ou se é a nossa realidade que irrompe na linhagem estereotípica. O resultado no espectador, em todo caso, é algo da ordem do abalo afetivo, na linha do envolvimento subjetivo que Barthes denominou o “punctum” da fotografia, e que se destaca do contexto objetivo (“scriptum”) em que está representado um episódio ocorrido durante um domingo de protestos.

O abalo afetivo serve para trazer à superfície da consciência e do discurso essa personagem social contemporânea do entregador de aplicativo. Ela possui alguns traços que a tornam particularmente significativa neste momento. Ao longo dos últimos dois anos, tempo em que acompanhamos a chegada da extrema direita ao governo, essa categoria foi frequentemente analisada como sendo a porção da classe trabalhadora que não se abalou com a destruição de seus próprios direitos tradicionais, como classe. Motoristas, entregadores e outros braços da economia de plataforma teriam, supostamente, adotado a ideia de que são de fato pequenos empresários, que mandam em si mesmos e não dependem de ninguém.

É claro que o problema é bem mais profundo. Se a própria perspectiva de emprego com alguma segurança e direitos se esfacela, como tem sido a tendência e não só no Brasil, é natural que quem está tendo que se virar no precariado demonstre pouco interesse em lutar pela manutenção de direitos aos quais nem sequer teve acesso. A desconexão entre trabalhadores tradicionais e membros do precariado tem razão de ser e, além disso, caberia às instituições da classe trabalhadora organizada expandir suas pautas para abraçá-los, em vez de lhes apontar o dedo. Se os precarizados frequentemente acabaram adotando discursos incompatíveis com seu próprio interesse, se muitos chegaram a abraçar o bolsonarismo em algum momento, se não poucos ainda o abraçam apesar de tudo, é um efeito da posição que ocupam nas relações de trabalho e sociais em geral; algo que, pensando bem, não deveria surpreender.

Ao mesmo tempo, esses trabalhadores continuam sendo o que sempre foram, no essencial, aqueles trabalhadores que década após década tiveram que circular nas grandes cidades em situação mais ou menos precária, mas sem ter, efetivamente, acesso à cidade. Gente que vai de portaria em portaria, e não mais longe; ou que entrega documentos importantes na avenida Paulista, sem espiar o que dizem, e passa na frente de seus cinemas, livrarias e centro culturais, sem poder tomar um minuto que seja para visitá-los. O precário circula pela cidade como o sangue por um corpo, mas fora dos horários de trabalho é confinado à sua quebrada. No tempo da economia da informação e da comunicação, uma economia detalhada e instantaneamente logística, este personagem é mais decisivo para o metabolismo social e urbano do que os próprios produtores.

*

Esta é a figura que conseguimos ver, tacitamente que seja, quando olhamos para um entregador de aplicativo, de máscara, atirando uma pedra. Do fato de estar carregando a caixa térmica nas costas, podemos deduzir que não foi à avenida, originalmente, para protestar, mas para trabalhar. É claro que uma imagem como esta esconde pelo menos tanto quanto mostra, o que significa que mil outras possibilidades existem: que tenha pensado em trabalhar depois de sair da manifestação, que tenha esticado seu tempo de trabalho para protestar, aproveitando que já estava ali, ou que tenha carregado a mochila consigo só para reduzir o risco de ser abordado de modo truculento pela polícia. Ainda assim, a associação entre seu trabalho – precário, algorítmico, urbano etc. – e a manifestação salta aos olhos: o trabalho foi o passaporte para a cidade, a manifestação e a fotografia.

Vale lembrar também que as manifestações políticas da última década foram reiteradamente criticadas, com razoável dose de razão (mas não toda), por atraírem um público sobretudo da classe média e das regiões centrais da cidade. Como se dizia, as classes mais baixas, os moradores das periferias etc., no geral, permaneciam indiferentes; não tinham acesso ao espaço, nem compravam a narrativa.

Nesse contexto, outra explicação para o abalo afetivo, para o “punctum” do entregador de aplicativo, é que ele seria, graças à representação inscrita na história iconográfica, a exceção ou, melhor ainda, o indício de que as circunstâncias mudaram. Uma correção de rumos, talvez. Em outras palavras: agora, sim, é o povo, o trabalhador, o precário, que está nas ruas contra o governo opressor, e com disposição para enfrentar a polícia e as maltas fascistas… Exagero? Talvez, mas estamos falando de uma sensação, não de um raciocínio.

Seja como for, no dia em que esta fotografia foi feita, tratava-se de uma manifestação em nome da democracia, contra apoiadores do presidente de extrema-direita, que vinham ocupando sozinhos aquele espaço, à sua maneira: com bandeiras do Brasil misturadas a emblemas neonazistas ucranianos, padrões da bandeira americana e da israelense, carros de som, tacos de beisebol (não me conformo com esse taco), gritos por cloroquina. Do lado anti-fascista, a liderança estava nas mãos de torcidas organizadas, sobretudo a do Corinthians – mas também se verificou uma dessas ocasionais confraternização de seguidores de clubes que sempre nos emocionam um tiquinho.

Nesse cenário tão insólito, a imagem que tocou, afinal, o coração dos espectadores foi a do entregador de aplicativo, caixa térmica nas costas, atirando uma pedra. Uma imagem, portanto, com implicações que transbordam a confrontação política ela mesma. E essa é a importância da figura do entregador, percebida subliminarmente por quem se encantou com a foto: está em jogo mais do que a relação entre estado democrático e perigo fascista, entre a população livre e as forças repressivas – não que isso não seja crucial, claro; mas importa muito perceber que estamos tratando das tensões das relações de classe do país como um todo; o destino daqueles que trabalham, ocupam as cidades, tiram delas seu sustento, e carecem do reconhecimento jurídico, institucional, de sua função no tecido social. A imagem é lembrete “do” político, além “da” política, e conclama ao reconhecimento de que é preciso ampliar não só a presença de grupos sociais nas manifestações, mas as próprias pautas. Enfim: é preciso tratar do destino que estamos traçando, enquanto população.

*

Há outros pontos, porém. Uma imagem se deixa apreender e analisar por elementos, combinados no seu próprio quadro, ao contrário da cadência linear de um texto. Temos aí a caixa térmica e a pedra (na verdade, dá para ver que ele segura outras pedras, já pronto para iniciar – ou continuar – um bombardeio), que já foram tratadas. Poderíamos também engrenar uma especulação um pouco anódina, mas nem por isso menos interessante, sobre a ausência de um capacete, o que parece sugerir que é um entregador ciclista, não um “motoboy”.

Mas um outro elemento é mais fecundo e instigante, graças à sua ambivalência: a máscara.

Este é um tempo em que a máscara se tornou obrigatória; e pensar que a proibição de cobrir o rosto andava em voga já faz alguns anos (vide a lei anti-véu na França). Mas há pelo menos duas vertentes interessantes para a simbologia política desta máscara específica, nesta fotografia em particular. A primeira é que um objeto de proteção, de cuidado pessoal, de cunho médico, profilático, acabou sendo revestido de um caráter político surpreendente, a partir do momento em que passou a configurar uma expressão de adesão ao isolamento social, à luta contra o coronavírus – por oposição à parcela tresloucada da população, seduzida pelo fascismo, que pretende negar seja a pandemia, seja sua gravidade.

A segunda é que cobrir o rosto se tornou prática recorrente entre manifestantes há algum tempo, tanto para se proteger dos efeitos do gás lacrimogêneo lançado pela polícia, quanto para evitar a identificação pelo Estado. Hoje, por sinal, a vigilância se dá também por algoritmos, constantemente aperfeiçoados, de reconhecimento facial. A máscara, digamos assim, tomou o lugar da bandana. De modo que, nesse objeto simples, feito de pano, dois vetores de proteção se cruzam, dois vetores de sentido político se cruzam, e esses dois cruzamentos também se cruzam entre si.

Mas há mais cruzamentos: como entregador que circula pela cidade cuja população se recolhe – ou deveria se recolher –, o trabalhador se expõe ao vírus. A máscara que o protege da contaminação, tanto quanto possível, também o protegerá, tanto quanto possível, contra o gás que eventualmente será lançado (e foi). A máscara que em outros tempos, em outras situações, poderia levar policiais a tomá-lo por um ladrão, possivelmente com consequências trágicas, hoje são a marca do “cidadão consciente” (não confundir com “pessoa de bem”).

Será que a máscara o protege de ser reconhecido, caso a imagem seja vista por algum representante da empresa-aplicativo em que se inscreveu para ser entregador, e que lhe cedeu (vendeu? alugou?) a caixa térmica? Será que, ao fotografá-lo, o profissional da France Presse o colocou sob risco de dispensa, comprometendo talvez o sustento de seus familiares, o pagamento de uma faculdade ou de um tratamento médico? É tão mais fácil escrever sobre uma imagem, especular sobre seus sentidos, quando não conhecemos a personagem, quando não sabemos nada sobre ela! No mínimo, podemos ver na máscara um punhado de significados possíveis, mas é a própria possibilidade, quando a evocamos, que nos esclarece algo sobre o real.

Também poderíamos nos concentrar no próprio fato de ele estar portando a caixa térmica. Vamos imaginar por um momento que se tratasse de uma mochila comum, contendo roupas e chuteiras usadas, ou livros e cadernos, ou um tripé dobrado e várias lentes. Ele continuaria com ela nas costas, atrapalhando seu movimento, fazendo peso? Será que ele tem medo de deixar a caixa térmica no chão e ser roubado ou ter que sair correndo, arriscando-se a ficar sem ela? Será que, perdendo a caixa térmica, ele é obrigado a ressarcir a empresa?

Cada elemento da imagem informa algo, não porque assevere ou demonstre qualquer coisa, mas porque conduz a lançar perguntas como essa. Lançar como lança o lançador? Provavelmente não, já que do outro lado não está nenhum batalhão de choque. Mas, em todo caso, a motivação de transformar os elementos da fotografia em questões que a ultrapassam vem das inquietações que já temos, com o que já conhecemos ou intuímos de nosso mundo e das condições de vida que nele vigoram. Esta é provavelmente a diferença mais relevante entre a redundância das imagens repetidas, que nos afogam, e a ressonância da imagem viva, vibrante, que nos afeta.

*

Comecei com essa série sobre imagens falando em “fazer história”, e agora me vejo preso a uma espécie de obrigação auto-imposta – dessas que, supostamente, poderíamos deixar de lado sempre que quiséssemos – de ficar falando em história, quando tropeço em uma imagem que me chama a atenção e quero escrever algo sobre ela neste espaço. E no entanto, como leitor de Flusser, não posso evitar de concordar com a sentença de que a invenção da fotografia inaugurou uma era progressivamente pós-histórica. O tempo das imagens técnicas, diz ele, não é linear como o tempo histórico do texto escrito; tampouco é circular como o tempo mítico da imagem tradicional, à qual voltamos para recordar aquilo que é fixo.

A imagem técnica, diz o filósofo tcheco, emerge da irrupção a-histórica das equações matemáticas no universo da produção de imagens. Flusser se referia à química e à ótica necessárias para produzir uma chapa, mas essa afirmação é infinitamente mais válida para a imagem digital, que é integralmente algorítmica, da fotometria à compressão – sem falar na pós-produção. Ora, a equação está à parte da história, é uma igualdade matemática que, notação à parte, se supõe eterna e universal.

Isto não significa, porém, que a história desaparece com a imagem técnica. Mas significa que a imagem técnica é capaz de manipular, suspender, desviar a história. Pode ser usada tanto para desaparecer com elementos centrais de seu movimento (que Stalin o diga) como para realçar figuras marginais de seu processo, como nas imagens que celebram vitórias post factum: bandeira americana em Iwo Jima, soviética no Reichstag.

Tudo isso para dizer que cabe a quem opera o aparelho definir a relação com a história, assim como lhe cabe determinar entre a redundância sufocante, entrópica, e o sentido informativo, ressonante. Quem aponta uma lente ou monta uma estrutura gráfica define o retorno, o falseamento, o esquecimento, a perpetuação, naquela chapa a-histórica, de um sentido de história.

Esse poder, essa responsabilidade, transparece na imagem do entregador de aplicativo porque com ela o fotógrafo, em frações de segundo, injeta no ato de um trabalhador precário uma carga de significado que vem do cânone, ou seja, da história. O corpo esticado do manifestante sintetiza as tendências do mercado de trabalho, a trajetória dos movimentos trabalhistas, as aspirações dos protestos do nosso tempo, o contraste com a memória de 1968, o tensionamento da democracia brasileira. Mas isto tudo só ocorre porque sua imagem, por um breve instante, rebateu na lente de um aparelho fotográfico, nas mãos de alguém que tinha a bagagem necessária para saber quando disparar o obturador.

*

Outras imagens:

Alguém que não consegui identificar tirou uma foto do lado oposto – quem sabe, da mesma pedra? Ao fundo, vemos uma pessoa tirando foto. Seria o profissional da France Presse?

O bronze de Artemísio (Zeus ou Poseidon, a princípio)

A disposição dos pés na posição do arqueiro (Gong Bu)

Banksy em Jerusalém

O savoir-faire de um sorbonnard

Jovem palestino e sua funda

Muybridge e sua série da “locomoção animal”: 1887

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Da série citações: Walter Benjamin e a polícia

Depois de um domingo em que se discutiu se a polícia de São Paulo estava ou não demonstrando explícito apoio a manifestações anti-democráticas, a terça-feira traz a comprovação de que a família que nos governa, pouco afeita à legalidade como sabemos que é, busca transformar as polícias em geral e a Polícia Federal em particular em instrumentos pessoais de pressão sobre adversários. Ou seja, em milícias pura e simplesmente.

Pode a polícia ser vetor de um golpe de Estado? Com a palavra, Walter Benjamin.

Retirado de Para Uma Crítica da Violência (Zur Kritik der Gewalt), 1920:

“Em uma combinação ainda mais contrária à natureza do que na pena de morte, numa espécie de mistura espectral, estes dois tipos de violência estão presentes em outra instituição do Estado moderno: a polícia. Esta é, com certeza, uma violência para fins de direito (com o direito de disposição), mas com a competência simultânea para ampliar o alcance desses fins de direito (com o direito de ordenar medidas). O infame de uma tal instituição – que é sentido por poucos apenas porque as competências dessa instituição raramente autorizam as intervenções mais brutais, enquanto permitem agir de maneira ainda mais cega nos domínios os mais vulneráveis e sobre indivíduos sensatos, contra os quais o Estado não é protegido por nenhuma lei – reside no fato de que nela está suspensa a separação entre a violência que instaura o direito e a violência que o mantém. Da primeira exige-se sua comprovação pela vitória, da segunda, a restrição de não propor novos fins. A violência da polícia está isenta de ambas as condições. Ela é instauradora do direito – com efeito, sua função característica, sem dúvida,não é a promulgação de leis, mas a emissão de decretos de todo tipo, que ela afirma com pretensão de direito – e é mantenedora do direito, uma que se coloca à disposição de tais fins. A afirmação de que os fins da violência policial seriam sempre idênticos ao do resto do direito, ou pelo menos teriam relação com estes, é inteiramente falsa. Pelo contrário, o ‘direito’ da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência, seja devido às conexões imanentes a qualquer ordem de direito, não consegue mais garantir, por meio dessa ordem, os fins empíricos que ele deseja alcançar a qualquer preço. Por isso a polícia intervém ‘por razões de segurança’ em um número incontável de casos nos quais não há nenhuma situação de direito clara; para não falar dos casos em que, sem qualquer relação com fins de direito, ela acompanha o cidadão como uma presença que molesta brutalmente ao longo de uma vida regulamentada por decretos, ou pura e simplesmente o vigia.”

 

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“In einer weit widernatürlicheren Verbindung als in der Todesstrafe, in einer gleichsam gespenstischen Vermischung, sind diese beiden Arten der Gewalt in einer andern Institution des modernen Staates, der Polizei, gegenwärtig. Diese ist zwar eine Gewalt zu Rechtszwecken (mit Verfügungsrecht), aber mit der gleichzeitigen Befugnis, diese in weiten Grenzen selbst zu setzen (mit Verordnungsrecht). Das Schmachvolle einer solchen Behörde, das nur deshalb von wenigen gefühlt wird, weil ihre Befugnisse zu den gröblichsten Eingriffen nur selten ausreichen, desto blinder freilich in den verletzbarsten Bezirken und gegen Besonnene, vor denen den Staat nicht die Gesetze schützen, schalten dürfen, liegt darin, daß in ihr die Trennung von rechtsetzender und rechtserhaltender Gewalt aufgehoben ist. Wird von der ersten verlangt, daß sie im Siege sich ausweise, so unterliegt die zweite der Einschränkung, daß sie nicht neue Zwecke sich setze. Von beiden Bedingungen ist die Polizeigewalt emanzipiert. Sie ist rechtsetzende – denn deren charakteristische Funktion ist ja nicht die Promulgation von Gesetzen, sondern jedweder Erlaß, den sie mit Rechtsanspruch ergehen läßt – und sie ist rechtserhaltende, weil sie sich jenen Zwecken zur Verfügung stellt. Die Behauptung, daß die Zwecke der Polizeigewalt mit denen des übrigen Rechts stets identisch oder auch nur verbunden wären, ist durchaus unwahr. Vielmehr bezeichnet das »Recht« der Polizei im Grunde den Punkt, an welchem der Staat, sei es aus Ohnmacht, sei es wegen der immanenten Zusammenhänge jeder Rechtsordnung, seine empirischen Zwecke, die er um jeden Preis zu erreichen wünscht, nicht mehr durch die Rechtsordnung sich garantieren kann. Daher greift »der Sicherheit wegen« die Polizei in zahllosen Fällen ein, wo keine klare Rechtslage vorliegt, wenn sie nicht ohne jegliche Beziehung auf Rechtszwecke den Bürger als eine brutale Belästigung durch das von Verordnungen geregelte Leben begleitet oder ihn schlechtweg überwacht.”

Padrão
capitalismo, costumes, economia, Ensaio, Filosofia, história, modernidade, opinião, Politica, prosa, reflexão, Sociedade

Aí está o século que previmos

Ao que parece, o século XXI começa agora. É o que leva a crer a leitura de tantas análises desta pandemia e tantas reflexões sobre suas consequências sociais e econômicas. E isto, venham de onde vierem: epidemiologistas, estatísticos, antropólogos, filósofos, historiadores, até mesmo economistas. Ou seja, o mundo não será o mesmo depois de meses com populações trancadas em casa, empresas e autônomos indo à falência, cadeias de valor rompidas, pacotes de estímulo governamentais, vigilância total (fundindo a tradicional vigilância sanitária com formas menos bem-intencionadas).

Talvez seja cedo para decretar algo tão drástico como a inauguração de uma era. A rigor, nada impede que o trauma acabe sendo curto, ao menos no campo da saúde (no econômico é um pouco mais difícil), e continuemos a operar como nas últimas, digamos, duas décadas. Mas isto seria só um outro adiamento: mais cedo ou mais tarde, o século XXI vai começar. Mesmo que – vamos supor – do dia para a noite as infecções e mortes mundo afora começassem a diminuir e desaparecessem, como parece ter sido o caso com outros vírus do passado. Então vale a pena simplesmente postular que esta pandemia é o marco inicial do século e explorar o que isto quer dizer.

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HxB: 110.9 x 156.4 cm; Öl auf Leinwand; Inv. 1055

Mas que século XXI? Esta é mesmo a primeira pergunta: o que quer dizer uma passagem histórica, o início de um século, como tantos estão – estamos – prevendo? O que quer dizer isto que coloquei acima: “o mundo não será o mesmo”? E talvez ainda possamos ampliar a pergunta, deixá-la mais interessante e difícil de explorar: é mesmo o século XXI que está começando, por oposição a “século XX” ou “século XIX”, ou é algum outro tipo de período, talvez mais extenso, talvez mais restrito?

Temos o hábito de tratar 1914 como o início do século XX, porque foi quando Gavrilo Princip matou o arquiduque austríaco em Sarajevo e, na reação em cadeia, a ordem mundial pós-napoleônica, eurocêntrica e imperialista foi a pique. Essa é a cronologia famosa de Hobsbawm e ajuda muito a pensar em termos de transições súbitas e traumáticas. Mas é importante frisar que não foi só uma transição geopolítica. O Século XX começa com a Primeira Guerra Mundial também por ser o gesto inaugural dos fenômenos de massa – uma matança em massa! –, que se rebate nas funções e tipologias das técnicas e das instituições características do tempo que começava.

É claro que não dá para comparar uma doença que se espalha pelo planeta durante alguns meses, como tantas outras já fizeram, a uma guerra de mais de quatro anos que mata milhões, derruba impérios e força uma transformação profunda nas mentalidades. Mas essa é exatamente a comparação que estamos sendo forçados a fazer, então nada nos resta senão explorá-la. Que tipo de fenomenologia, que tipo de tecnologia, que geopolítica etc., estão em jogo se admitimos que o século XXI começa agora?

O cerne do problema está no seguinte ponto: o que se espera para o século XXI? E aqui é que chegamos ao que há de realmente desconfortável, aquilo que explica por que estamos entrando num mundo novo e incerto. E talvez explique também por que estamos tão impacientes para declará-lo inaugurado. Agora é a hora de encarar a evidência de que as perspectivas para as próximas décadas, na boca de quase todo mundo, por todo lado, são bastante sombrias. É assim no campo do clima, da agricultura, da economia, da política e também da saúde.

Seja qual for a atitude que temos no dia-a-dia em relação a todos esses campos, sugiro tomarmos como ponto de partida uma postura otimista. Por motivos puramente metodológicos: mesmo que você seja catastrofista e acredite que a humanidade (como espécie) ou a civilização (como forma de organização) não vão chegar até 2100, peço que deixe de lado por um momento essa filosofia e considere que, sim, vamos desenvolver tecnologias, sabedorias e práticas que nos ajudarão a contornar desafios como a mudança climática (e, se quiser, os exércitos de robôs superinteligentes e psicopatas), chegando saudáveis e prósperos ao próximo século.

Pois bem. Mesmo adotando essa perspectiva, o que se espera para o século XXI é que seja um período duro, eivado de catástrofes – ondas de calor, quebras de safra, pandemias, cidades inundadas, territórios ressecados, migrações forçadas, pragas, guerras por água e terra arável. Por um lado, sabemos que a lógica que orientou o grosso da atividade humana nos últimos séculos é incompatível com os sistemas naturais dos quais essa mesma lógica depende. Por outro, não temos ideia de como transitar para uma lógica compatível, embora alguns grupos tenham muitas, muitíssimas ideias para modos de vida diferentes. Acontece que a viabilidade da transição segue mais do que incerta.

Antes de avançar, podemos chegar a uma primeira resposta. Dizer que o século XXI começa com a pandemia do Sars-CoV-2, com uma doença de nome tão pouco impactante (Covid-19, uma porcaria duma sigla!), é dizer que estamos pela primeira vez encarando uma situação que, já esperávamos, será típica do nosso século. Estamos vendo, concretamente, nas nossas cidades, nos nossos bolsos e, para alguns, na própria carne, o que significa um mundo de desastres amplificados, multidimensionais, rapidamente disseminados em escala global, que inviabilizam a vida normal por períodos indeterminados.

Discutimos sobre estratégias de mitigação com um horizonte de possibilidades cada vez mais exíguo; preparamos formas de adaptação cada vez mais drásticas. Mas dificilmente conseguimos incluir no cômputo dessas atitudes todo o escopo das transformações necessárias, porque, no fim das contas, os piores cenários são praticamente inconcebíveis para nós. Pelo menos, porém, enquanto tentamos enfiar na cabeça a seriedade do que será o século XXI, podemos nos dedicar a alguns exercícios de pensamento.

I – A moldura moribunda

A primeira consequência de reconhecer a próxima etapa histórica como uma etapa de adaptação – conflituosa ou harmoniosa, tanto faz – a condições duras, já podemos ver, é que está ficando claro como as instituições montadas no século XX, ou mesmo nestas duas primeiras décadas de século XXI (no sentido cronológico estrito) são insuficientes para dar conta dos problemas que temos adiante. Mas me parece que o problema vai além do institucional. Estamos atados a um campo conceitual e mesmo categorial que não dá mais conta de recobrir nosso mundo com sentido.

Provavelmente nossa maior falha, como geração, tenha sido o parco aprendizado que tiramos de episódios como a crise financeira de 2008, as secas, inundações, queimadas e pragas, as milhares de mortes de refugiados no Mediterrâneo etc. No mínimo, o que essas catástrofes expõem é uma certa tendência inata nossa de fazer todo o possível para manter intactos os arranjos institucionais, modos de existir, formas de organização da vida em comum (chame como quiser) com que estamos acostumados. Mesmo quando já é patente que se tornaram obsoletos, inviáveis, até mesmo suicidas. Talvez isso aconteça porque o discurso e o próprio pensamento fluem e aportam em categorias moribundas.

Algumas pistas dessa morte anunciada: a chamada “ascensão do populismo” encarnada em Trump, Orbán e outros (que nem merecem menção) é muito mais a conclusão lógica desse esforço de manter os arranjos (ou as aparências) do que uma ruptura, como gostamos de pensar – ou mesmo um sintoma, já que ela não sinaliza o problema, ela dá sequência ao problema. Pensar que se trata de uma ruptura, isso sim é um sintoma: revela a crença voluntariamente ingênua de que “isto vai passar”, ou seja: de que vamos voltar aos arranjos civilizacionais em seu estado, por assim dizer, puro.

“Ascensão do populismo”, “volta do nacionalismo”, tudo isso são expressões anêmicas, eufemismos neuróticos, para a recusa em reconhecer as máquinas de guerra que estão se montando nas esferas de poder. Essas figuras todas professam um discurso negacionista do clima, mas na prática são menos negacionistas do que quem pensa que tem volta, que o mundo dos anos 2020 será um mundo de Clintons, Blairs, Merkels, Fernandos Henriques. Os poderes que orbitam em torno dos “líderes populistas” estão se preparando e armando para manter o acesso a recursos que, já está previsto, se tornarão cada vez mais escassos, enquanto o resto do mundo cai em pedaços. Exatamente como os “survivalists” ou “preppers” americanos que constróem bunkers, os enchem de enlatados e os cercam de metralhadoras. (Não por acaso, essas pessoas, em geral, dão apoio a esses líderes…)

Mas é isso que conduz ao seguinte problema: se 2020 inaugura o século XXI como um período de pessimismo e catástrofes em série, então o que se encerra com o século XX, ou esse intervalo que foram as últimas décadas (talvez desde a queda da União Soviética, se formos continuar seguindo a cronologia de Hobsbawm), é um período de grande otimismo. Se for assim, então a página a ser virada não é a de um século, mas de algo muito mais extenso, correspondente a toda a era de espírito expansivo, de crença na prosperidade e no progresso contínuos, material e espiritualmente. É um período que remete, pelo menos, ao século XVIII, era do Iluminismo, da industrialização, das revoluções na França, no Haiti e nas 13 colônias americanas.

É dessa era que herdamos o principal das nossas categorias de pensamento e parâmetros de ação; e, consequentemente, nossos arranjos institucionais na política, na economia e em tantos outros campos. Quase tudo que se disse, fez e pensou nesse período considerava que, dali por diante, as condições de vida só melhorariam – para os humanos, claro –, e com elas a humanidade como um todo, espiritualmente – ou melhor, a humanidade que subscrevesse às categorias de vida e pensamento disseminadas a partir da Europa. Estávamos “aprendendo a caminhar com as próprias pernas”, sem a tutela de autoridades espirituais ou seculares, pensava Kant. O saber se tornaria enciclopédico e acessível a todos, pensava Voltaire. A miséria seria eliminada, a democracia se tornaria dominante, a tecnologia avançaria tanto que a subsistência estaria garantida com 15 horas de trabalho por semana, chegou a pensar Keynes. Na década de 1990, além da ideia de “fim da história” que ficou marcada na testa de Francis Fukuyama para sempre, os economistas acreditaram, com um espírito que faz pensar nos delírios dos alquimistas, ter desenvolvido a fórmula da “grande moderação” – e, portanto, as recessões estavam superadas para sempre.

Vale dizer que o subtexto dos movimentos revolucionários de todo esse período, pelo menos a grande maioria deles, também era o da plena realização dos potenciais criativos da humanidade. A tomada dos meios de produção pelos trabalhadores não chegou a ser, na prática, uma ruptura com o passo faustiano da modernização. Ao contrário, desde Fourrier, Owen e Saint-Simon, sempre se colocou como decorrência dessa mesma modernização, necessária e conceitualmente demonstrada, para Marx (embora ele tivesse, assim como Engels, uma visão mais elaborada do que viria a ser a questão ecológica). Não é outro o espírito de Lênin quando fala do socialismo como “eletricidade e sovietes”, para dar um exemplo sonoro.

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Evoquei todos esses nomes para dar estofo a um único argumento: estamos nos iludindo, um pouco como já nos iludimos depois de 2008, ao acreditar que a crise do coronavírus é um ponto de partida para a volta de políticas sociais, seguridade pública, uma nova era do Estado de Bem-Estar, uma espécie de keynesianismo-fordismo sem as amarras da produção fordista, ou seja, só com a conciliação de classes de inspiração keynesiana. Dizer que “o neoliberalismo morreu” porque os Estados Unidos, a Europa e vários países asiáticos estão dispostos a despejar trilhões de dólares no mercado, não apenas com afrouxamento monetário, mas com políticas fiscais e transferências diretas a trabalhadores e pequenos empresários, é um enorme exagero. Quem talvez vá parar na UTI é a globalização, ainda mais depois que os americanos saltaram para absorver toda a oferta de material hospitalar, numa demonstração de ausência de cooperação entre nações. Mas essa seria só uma decorrência pontual.

Podemos até esperar que alguns mecanismos emergenciais sejam perenizados, para fazer frente a outras situações de crise súbita, mas dificilmente passará disso. A resistência dos poderosos a responder à epidemia, seja com o isolamento social, seja com os pacotes de estímulo, é mais instrutiva do que o açodamento com que depois tiveram de correr atrás do prejuízo. As máquinas de mentiras que sustentaram medidas suicidas em várias partes, mas sobretudo nos Estados Unidos e ainda mais no Brasil, são instrumentos característicos de nosso tempo e isso não vai mudar tão facilmente.

Por sinal, as medidas de vigilância, para não dizer espionagem, usadas na Coreia do Sul e, em seguida, Israel, com a finalidade momentânea de traçar as linhas de transmissão do vírus, estarão disponíveis na condição de laboratório em tempo real, assim que o momento mais agudo da crise passar, para aperfeiçoamento e generalização por esses mesmos governos, e outros. A propósito, vale dizer que, no caso de Israel, o laboratório em tempo real já estava funcionando antes, ele foi apenas expandido para ficar de olho também na população israelense. Este é um ponto sensível, porque sabemos que todos os esforços da última década para denunciar os gigantescos esquemas de vigilância digital, envolvendo multinacionais e governos, foram fragorosamente derrotados: os “whistleblowers” da última década ou bem estão presos, como Julian Assange e Chelsea Manning, ou exilados, como Edward Snowden, ou mortos, como Aaron Swartz.

É tão absurdo imaginar que, depois da pandemia, vamos recuperar o papel socioeconômico dos governos ou a solidariedade entre cidadãos quanto crer, como coloquei acima, que a onda dos políticos xenófobos e estúpidos vai passar para dar lugar a novos anos 90. Trata-se de uma ingenuidade escolhida, porque a alternativa, pelo menos no curto prazo, é terrível. Pode-se analisar o fracasso de Corbyn e mesmo a perda de impulso de Sanders a partir dos erros que cometeram ou das conjunturas eleitorais de seus países, mas o fato é que seu papel histórico parece ser o de anteparos a forças terríveis, e os anteparos, por natureza, não vão muito longe.

Infelizmente, há um descompasso muito grande entre os incentivos para mudar a lógica da atividade humana – nem sequer se sabe ainda, ao certo, de que maneira – e os incentivos para recrudescer os esforços para encastelar-se (aqueles que podem) nos restos possíveis do século XX, adiando, contornando e terceirizando os grandes riscos e as grandes crises, reprimindo e, quando necessário, exterminando os focos de revolta e perturbação – o que inclui os migrantes. Por enquanto, ainda é muito fácil identificar perturbações e aniquilá-las (o termo da moda é “neutralizar”) antes que causem maiores danos, ou então lançá-las às costas de países e populações com menos capacidade de se defender. Por sinal, Saskia Sassen se refere a esse procedimento como “expulsões”, em livro de título homônimo.

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FRIEDRICH, Caspar David_Barco de pesca entre dos rocas en una playa del Mar Báltico, c. 1830-1835_(CTB.1994.15)

Em geral, os analistas da geopolítica têm apostado que um resultado de toda essa crise será o recrudescimento do nacionalismo, do controle sobre as populações e das mensagens ditas “populistas”, contra a aparente volta da confiança na ciência, da solidariedade e das redes de proteção social. Ou seja, quem vai dar a letra são os Orban, Netanyahu e quejandos deste mundo. E nesse sentido, a recusa dos europeus em criar os tais “coronabonds” é péssimo sinal.

Nada de luz no fim do túnel, portanto? Acho que não é bem assim. O subtexto desse pessimismo é que a humanidade vai entrar no século XXI trabalhando com as mesmas categorias de interpretação de seu mundo e de orientação de sua ação com que atravessou os períodos anteriores, mas numa era em que as condições concretas do planeta são amplamente desfavoráveis a esses modos de proceder.

No curto prazo, essas análises parecem ter razão, já que a intenção de desenvolver novas categorias e formas de vida parece quase nula, restrita a nichos com pouquíssima reverberação. Mas é claro que estamos falando apenas do começo do século, ou do começo de uma época, podemos dizer; nada está escrito na pedra e a dissonância entre a estratégia de poder que passou do tempo e as pressões da realidade pode acabar se mostrando excessiva. Resta ver quanto tempo isso vai levar.

Ainda por cima, as projeções de uma perda maior de liberdade e de influência da sociedade civil ressoam com preocupações que já se ouviam, não só em relação às ações dos líderes mais retrógrados, tentando forçar a barra para manter ao máximo o equilíbrio de poder parecido com o anterior, mas também ao que poderiam fazer governos mais alinhados com os desafios do século. É o que leva André Gorz, por exemplo, a falar em “ecofascismo”, temendo que as restrições impostas por esses governos, num mundo que deixa de se expandir, exigissem chegar ao ponto do uso reiterado da força, em suma, ao autoritarismo, para pôr em prática as medidas necessárias de adaptação.

Em todo caso, todas essas previsões trabalham com a perspectiva de que as categorias tradicionais da economia, da política e da diplomacia se manterão intactas. Todo o problema reside aí. Também reside aí o alcance daquele exercício que sugeri no início: para poder ser otimista quanto ao estado em que estaremos no fim do século, vai ser preciso um trabalho cuidadoso sobre essas categorias, em todas as áreas da vida.

2 – O óbvio e o absurdo

Não faltarão referências para dizer que, apesar de algumas indicações pontuais em sentido contrário, a humanidade nunca viveu período melhor. É o que lemos, por exemplo, no livro de divulgação do badalado economista Angus Deaton, que faz uma ode da modernidade industrial e capitalista por meio da comparação com o mundo que veio antes, pré-industrial e pré-capitalista.

Sempre me pareceram estranhas essas defesas do capitalismo – que se apresentam, de fato, como defesas contra seus detratores – que o contrapõem à vida como era até o século XVIII. A estranheza vem do fato de que muito pouca gente estaria disposta a assumir uma postura de defesa da vida material tal como era, digamos, entre os séculos XV e XVIII, o que faz a apologia da modernidade soar como se ecoasse no vácuo. Além disso, não estamos na era clássica ou pré-moderna, de modo que nossos problemas e nossas escolhas nada têm a ver com o que foram naquele momento. Pouco importa o que a humanidade conseguiu fazer no tempo da máquina a vapor. Temos que enfrentar o que nos aflige hoje. Agora.

Deaton, em particular, faz a curiosa escolha de comparar o desenvolvimento econômico ao filme “The Great Escape” (Fugindo do Inferno), que narra a tentativa de fuga de prisioneiros de guerra americanos de um campo nazista. Escolha curiosa, mas ilustrativa: para o economista, ao inventar a produção industrial, as finanças modernas e tudo que vem junto, a humanidade teria escapado das amarras de uma natureza hostil. Posso até entender que se queira comparar o mundo sujeito aos rigores da natureza a uma prisão (nazista?!), mas se escapamos… escapamos para onde? Estaríamos então num mundo de puro espírito, descolado de qualquer determinante material? Ou será que simplesmente assumimos, nós mesmos, o papel de natureza hostil, encarnada numa monstruosidade que acreditou estar liberta da própria carne (e foi assim que se tornou monstruosa)? Sempre me surpreende que pessoas tão qualificadas possam repetir tanto uma argumentação tão pueril.

Mas não é preciso adotar esse simplismo apologético para reconhecer que a modernidade, naquilo que ela se propôs a fazer (sem querer antropomorfizá-la), foi muito bem-sucedida. Basta entrar nos indicadores da Agenda 2030, da ONU, para ver que a proporção de indivíduos passando fome no mundo nunca foi tão baixa, centenas de milhões de pessoas foram alçadas para fora das condições de miséria, doenças transmissíveis matam muito menos do que há um século, o analfabetismo está em baixa no mundo e assim por diante. Deixando de lado a constatação de que esses mesmos indicadores apontam um ligeiro retrocesso a partir de 2015, pode-se perfeitamente aceitar como verdadeira a avaliação otimista e, mesmo assim, manter-se pessimista quanto ao futuro. O primeiro motivo é evidente: todos esses indicadores falam sobre o passado e só dão sustentação ao espírito esperançoso da modernidade pós-Iluminismo. O segundo motivo é que justamente esses dados tão encorajadores podem estar na raiz de muitos dos problemas que esperamos enfrentar em breve – ou melhor, já estamos enfrentando, ainda que sem perceber. (E se a pandemia tivesse coincidido com a seca de 2014-2015?)

É neste segundo motivo que temos que nos concentrar. Assim como não é o caso de louvar os ganhos técnicos, econômicos, sociais e mesmo políticos dos últimos séculos, como se ainda estivéssemos enredados nos mesmos problemas, tampouco é o caso de deplorar as escolhas do passado, como se quem as fez estivesse mergulhado nos nossos problemas atuais. É importante não distorcer o passado, isto é, o caminho que nos trouxe até aqui, que é o que aconteceria se fôssemos julgá-lo com um olhar contaminado por tudo que estamos vivendo agora – ou, se preferir, por tudo que sabemos agora. Os excessos, as falhas, as crises daquilo que se encerra com esta eclosão do século XXI são precisamente aquilo que nos revela os desafios vindouros, porque as mudanças pelas quais nós passamos, e conosco nosso mundo, são as próprias fontes dos problemas que mudam e, com eles, as questões e, por fim, os conhecimentos.

Cabe ainda acrescentar uma outra pequena pergunta: não seriam os próprios indicadores dependentes de categorias cujos prazos de validade já começam a expirar? São, afinal, recortes do mundo que surgiram e se desenvolveram na era da modernidade otimista, ou seja, pertencem a ela. Neste caso, o problema estaria na insistência em tentar entender os desafios à frente com a lógica adequada a problemas e condições que ficaram para trás.

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O que quer dizer, então, uma mudança de categorias? Pensemos nas palavras que mais usamos para entender ou avaliar o mundo em que vivemos; coisas como “eficiência”, “crescimento”, “desenvolvimento”, que associamos à economia; mas também palavras que usamos em outros contextos, como o par “democracia”/”ditadura”, “opinião pública”, “liberdade”, no ambiente político; e algumas noções mais híbridas, como “emprego”, “família”, “nação”; dá mesmo para entrar em mais detalhes, como “setor privado/público”, “exportação”, “aposentadoria”, “civilização”, “modernidade”, “produção”. E nem mencionei termos mais técnicos, como PIB, déficit público, inflação.

Sem usar palavras como essas, dificilmente conseguimos entender o que nos cerca, tomar decisões que afetam as nossas vidas e as dos outros, dialogar com quem quer que seja. É graças a essas noções que podemos diferenciar a mentalidade moderna como sendo “contratualista” e “individualista”, em vez de “comunitária” ou “hierárquica”. Isso mostra que não dá para separar o que entendemos por “nosso mundo” da linguagem que desenvolvemos para organizar nossa relação com ele – o que não quer dizer que a linguagem seja o ponto de partida do mundo ou sua fronteira, porque ela mesma vai tomando forma na medida dos problemas que aparecem na relação que constitui o mundo. A linguagem pode ser performativa, mas é ao mesmo tempo parte de individuações que a ultrapassam.

Daí a importância disso que estou chamando de “as categorias” – ou seja, ideias, ou melhor, conceitos – pelos quais é preciso passar para pensar de maneira estruturada nosso mundo e parametrar nossa ação nele. Elas são fundamentais e são razoavelmente rígidas, mas não totalmente. Basta ver como “democracia” deixou de ter o sentido de bagunça política (ainda empregado, por exemplo, pelos fundadores da democracia americana) e se tornou o nome de um sistema muito bem estruturado, termo carregado de valor altamente positivo, mesmo quando o exercício de um determinado regime com seu nome não lhe faça jus (i.e. sempre). A noção do “direito divino dos reis”, por exemplo, foi praticamente extinta, embora haja desvairados tentando ressuscitá-la, ou algo parecido com ela. A noção aristocrática de “honra” perdeu quase todo o peso que tinha no edifício das virtudes, enquanto as categorias econômicas de eficiência e produtividade se tornaram excelências, e por aí vai.

Agora, o que está sendo posto em questão são essas mesmas categorias que triunfaram sobre as mais ultrapassadas, como “honra”, “glória” e “direito divino dos reis”, mas também uma série de princípios feudais e eclesiásticos que hoje nem sequer fazem sentido para nós. Também vale lembrar que esses esquemas de pensamento suplantam outros, anteriores, mas às vezes recuperam ou retrabalham alguns de seus princípios. Quando a eficiência, o profissionalismo e outras noções semelhantes se tornam os alicerces da virtude, tomam o lugar de noções como justiça, temperança e bem-viver (eudaimonia, às vezes traduzida também simplesmente como “felicidade”), marcas de um mundo tão diferente que se tornou quase incompreensível.

Por que estou dizendo isso? Porque a força das categorias é parecerem óbvias, o que envolve tornar outros esquemas categoriais incompreensíveis e aparentemente absurdos. Pois bem, com o século XXI chega o momento de explorar alguns campos que nos soam absurdos, porque é o óbvio que está se tornando inconcebível.

Algo dessas mudanças já vem tomando corpo, sobretudo na maneira como o próprio conceito de civilização vem sendo posto em questão: em muitos meios, não carrega mais automaticamente um valor de incremento do espírito humano ou algo assim, passando a envolver boas doses de violência, um certo caráter ilusório, uma desmesura dos povos que subjugaram os demais e forçaram uma definição do curso adequado às vidas de todos. Cada vez mais, a noção de civilização carrega um subtexto de colonialismo, quando associada à história dos últimos quinhentos anos – e o próprio termo “colonialismo” passou a ter conotações negativas que, há um século, não tinha. Por sinal, ainda hoje é possível ouvir gente formada nas escolas de décadas atrás (muitas décadas) repetindo que as potências coloniais “levaram a civilização” a “povos atrasados”. São categorias que já se desvaneceram… e outras mais estão por fenecer.

3 – Mais do que uma economia

É sintomática, por exemplo, essa mórbida dicotomia entre “salvar a economia” e “salvar vidas”, que grassou por algumas semanas, na crítica às medidas de confinamento contra o avanço do vírus. Mas vamos deixar de lado a morbidade, por um momento, olhando só para o caráter sintomático. Pois é sintoma de quê, ao certo? De que colocamos a economia acima (ou à frente, se preferir) da vida? Ora, mas como isso foi possível, se é imediatamente evidente que só há qualquer tipo de economia se houver vida? Talvez seja mais, então, um sintoma de que perdemos a noção do que vem a ser uma economia.

Convenhamos que uma epidemia, manifestação escandalosa de uma doença, é algo inseparável da vida como um todo e, portanto, algo que precede e deve ser pressuposto por qualquer forma de organização da vida. Se uma pandemia é capaz de bloquear e comprometer o sistema dessa operação para além da duração de seus próprios surtos, então forçoso é constatar que há uma falha fundamental no mecanismo que sustenta nossas vidas em sua forma determinada corrente. Isto é evidente para além de qualquer comparação com épocas anteriores.

Falando em épocas anteriores, a experiência atual dá até vontade de voltar a pensar ao modo dos antigos fisiocratas (Turgot, Quesnay etc.), que consideravam o setor agrícola como sendo o único que gerava riqueza, de fato. Para eles, era assim porque só na agricultura se traduzia para o universo dos humanos algo do mundo natural que era a condição da vida. “Valor” designava a transferência do natural para o humano, a energia do sol e do solo concentrada no trigo e na cevada, por sua vez transubstanciados como alimento e como mercadoria. Os demais setores se limitavam a transformar esses elementos condicionantes da vida, fazendo-os circular, tornando-os mais complexos e diversos. No fundo, a tradicional teoria do valor-trabalho, sobrevivente hoje quase apenas entre marxistas, levava esse princípio adiante e o atualizava para a era industrial: valor nada mais é do que a transformação das energias do mundo, por meio dos corpos e das máquinas, em formas da vida social. Um metabolismo. Valor, no fim das contas, é uma noção poiética.

E no entanto chegamos ao ponto em que se tornou aceitável pensar que a economia é algo oposto à vida, ou pelo menos além da vida, mais ou menos como na imagem da “grande fuga” de gente como Deaton. Isto é que é enigmático. Uma adulteração lógica a examinar. Sem entrar em detalhes, parece ser o caso extremo da grande ilusão moderna apontada por Latour e Stengers, e mesmo antes, por Whitehead. Ela consiste em estabelecer uma cisão rígida (mas mediada) entre o mundo social dos humanos e o mundo natural, bruto; em termos científicos, consiste em isolar os fenômenos de toda valoração ou implicação que pudesse ser dita cósmica (nos termos de Bachelard, um obstáculo epistemológico), para revelar apenas suas relações diretas de causalidade.

Enquanto se trata apenas de método científico, vá lá; mas a atividade que dizemos econômica não é redutível à linearidade causal expressa no par produção/consumo, como quer a mentalidade moderna. Mesmo assim, ela não pensou duas vezes antes de aplicar a esse campo, equivocadamente, a mesma lógica que lhe serviu na epistemologia. Nesta última, de modo controlado, ou ao menos assim se acreditava. No mundo concreto, vivido, social, de modo brutal, cego, desmesurado.

E essa desmesura vai além, porque está na base de todo o maquinário de absorção, sujeição e aniquilamento que caracterizou a expansão colonial desde fins do século XV. Da expansão marítima ao fabuloso trabalho de engenheiros que cortavam ferrovias na selva e nas montanhas, marejando os olhos dos espíritos científicos ao mesmo tempo em que enchia os bolsos de quem financiou tamanhas aventuras, a experiência moderna sempre insistiu na cisão com o que lhe parecia ser meramente um mundo natural, para em seguida absorvê-lo como um buraco negro absorve a luz. E pensar que já Sófocles dizia não haver nada mais maravilhoso e temível quanto o ser humano…

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Sem dúvida, uma parcela da explicação para nossa incapacidade de entender o que é uma economia está na confusão entre a variedade e sofisticação do que pode ser apropriadamente chamado de econômico e o enorme dispositivo técnico que foi montado para mobilizá-lo. Trocando em miúdos, aquilo que constitui uma economia (a elaboração dos modos de vida) foi soterrado por algo que podemos chamar de um gigantesco sistema de pagamentos e compromissos/promessas de pagamento – não no sentido usual da expressão, mas como toda a arquitetura da moeda e dos instrumentos financeiros que a orbitam.

Podemos observar, por exemplo, que na atual crise está intacta toda a infraestrutura necessária para tocar as necessidades da vida, isto é, o sistema econômico, produção, circulação e consumo. O que não está inteiramente de pé é o uso dessa infraestrutura, o que já é suficiente para ameaçar uma ruptura do sistema econômico em níveis sem precedentes, ainda que possivelmente por um período relativamente curto. Materialmente, não há nada que impeça a retomada do sistema tão logo a população se sinta segura. Ou seja, o uso dessa infraestrutura permanece disponível, do ponto de vista material. E mesmo enquanto durar o período de contágio, não há nada, materialmente, que impeça toda a população de viver com um nível de segurança suficiente, até mesmo um certo conforto, contanto que haja coordenação suficiente para tal.

A produção de alimentos e de energia não foi interrompida, as cadeias de distribuição tampouco, a não ser como medida de precaução. Na prática, o único elemento do sistema econômico que congelou, ao ponto da ruptura, com consequências palpáveis para além do momento da epidemia, é o sistema de pagamentos (sem falar, é claro, nos sistemas de saúde, cuja saturação não é primariamente um assunto econômico, embora tenha causas e consequências econômicas).

A rigor, as medidas necessárias para manter uma estabilidade social bem acima do mínimo, aliás bem próxima do satisfatório, estão muito aquém do que países estão preparados para fazer em situações críticas, até mesmo em guerras. Esses são momentos em que pontes, fábricas e cidades são destruídas. Pense em episódios tão diferentes quanto Fukushima ou a Batalha da Inglaterra. Nada disso é o caso agora. Tanto é que as medidas que os governos estão buscando dizem respeito, todas, ao problema dos pagamentos: redução de juros, adiantamento de créditos, títulos públicos com finalidade específica, pagamentos emergenciais a trabalhadores, pequenos empresários, autônomos etc., diferimento de impostos e aluguéis… Nada disso é mirabolante e é bem menos traumático do que os boletins de racionamento típicos dos períodos de guerra, que são, por sinal, um método de distribuição com eficácia limitada, particular a determinadas circunstâncias, como todos os demais. Mas chama a atenção esse detalhe significativo: ora, a metáfora que temos ouvido por aí, a começar pelo pronunciamento de Emmanuel Macron, é justamente a da guerra!

Ora, é nesse preciso ponto que faltam os mecanismos para lidar com interrupções, já que o “sistema de pagamentos” designa tudo que tem a ver com relações monetárias: aluguéis, salários, juros, impostos, ações. São relações que marcam distinções sociais, ritmos do tempo vivido, obrigações entre empresas, bancos e governos. Não é que a economia tenha um “lado real” e um “lado monetário”; assim como tudo que a humanidade faz, o real da economia (que não é um lado) só toma forma por meio de um imaginário codificado, que vincula a ação dos corpos e coletivos a uma modalidade técnica de sentido e propósito. Mas sendo assim, essa codificação é manuseável, como vemos sempre que há uma crise. Foi por perdermos de vista o caráter técnico e sociopolítico do dinheiro que pudemos nos enredar nessa bagunça, dizendo tolices como “dinheiro não dá em árvore”, e que temos tanta dificuldade em projetar medidas que respondam a um tempo de paralisia sem traumas desnecessários. Entre economistas, quem entendeu melhor esse ponto foram os “folclóricos MMTers”.

A parte fácil é entender que não deve mais ser considerado algo tão surpreendente que o ciclo habitual da atividade econômica seja interrompido de súbito, por períodos de meses a cada vez. Isto significa que, no mínimo, será preciso estabelecer mecanismos de “ligar/desligar” para os momentos de catástrofe. Desta vez, nem vamos precisar de um profeta para sonhar com vacas magras. Mas isso, por sua vez, implica uma ruptura com a crença tão disseminada de que um sistema econômico é uma espécie de máquina que funciona por conta própria, e que tem suas próprias leis, e que elas se manifestam em indicadores aritméticos, veladamente monetários. Este é o coração do problema das categorias, no campo econômico.

Isto significa que, como sistema complexo de natureza socio-técnica, nossa economia financeirizada é nada menos do que incompatível com o que o século XXI – esse que começa agora – promete ser. Neste exato momento, instantes iniciais do século, a questão de curto prazo posta à nossa frente pode bem ser essa que estamos discutindo nas últimas semanas: se a economia consegue sobreviver quando centenas de milhares de pessoas estão hospitalizadas, outras tantas morrendo, e muitas mais sob risco de ser infectadas e sobrecarregar os hospitais. A versão empobrecida desse dilema transparece nessa dúvida sobre se restringir a circulação das cidades derruba o sistema de pagamentos.

Mas a tendência é que essa pergunta seja potencializada em proporções terríveis: se a economia pode sobreviver quando centenas de milhares estão se afogando (imagine as cidades costeiras…), outros milhares estão sufocando (pense nas queimadas), centenas de milhões de agricultores perdem suas plantações, outros tantos ficam sem água, e isso sucessivamente, ano após ano. Toda essa lista trata de episódios que já vêm acontecendo, mas até agora a coordenação do sistema econômico-financeiro global – um sistema complexo e resiliente – foi capaz de conter possíveis danos à capacidade de pagamento em nível global. A pandemia do coronavírus foi a primeira vez que essa capacidade foi amplamente posta em questão.

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Para muitos, a resposta a essa incompatibilidade consistiria em reinstalar mecanismos de solidariedade social mediados pelo Estado, à moda do período social-democrata do pós-guerra. Mas é preciso ir muito além, já que as categorias e instituições social-democratas têm os dois pés muito bem fincados na modernidade da grande indústria, estão baseadas na relação salarial, no emprego fabril e formalizado, na pura aritmética do nível de produto (ou, mais simplesmente, o PIB), das taxas de variação, uma capacidade produtiva inabalável. Em breve, já não será mais o caso de trabalhar com essas categorias.

Para se restringir aos momentos de ruptura, como o atual: seria preciso que houvesse mecanismos de interrupção de todas essas relações estabelecidas, para que os danos de uma catástrofe ficassem contidos em suas próprias fronteiras. Seria preciso que dívidas, juros, aluguéis, impostos, pagamentos de toda ordem, se congelassem e retomassem com o retorno à, digamos, normalidade. Mecanismos emergenciais como as rendas mínimas emergenciais teriam de ser disparados automaticamente, para não chegar à possibilidade ainda um tanto controversa de que se tornassem rendas universais, perenes. Seja como for, a consideração de tudo que se entende por econômico teria de passar inteiramente ao largo de categorias como o “nível de produto” e, com ele, do crescimento.

Já isto, hoje, parece inconcebível e inteiramente fora do nosso quadro de pensamento. Uma economia cuja moldura institucional levasse em conta a certeza de eventuais interrupções?! No entanto, estou falando apenas do que seria preciso para lidar de modo um pouco menos traumático com a série de interrupções do processo econômico esperadas para as próximas décadas. Ou seja, esse é o mínimo necessário para tentar responder às ameaças dentro do esquema conceitual com que estivemos acostumados, mantendo pelo menos os princípios da vida econômica que levamos desde o século XVIII.

Mas se a idéia for passar a uma vida conforme aos problemas concretos do século XXI, mais ou menos como a industrialização e o desenvolvimento das finanças lidaram com as condições e possibilidades do século XVIII, então vai ser preciso uma capacidade inventiva muito maior. Neste caso, para ficar no âmbito do pensamento econômico, os institucionalistas são uma fonte mais interessante do que as demais escolas, já que reconhecem as condições sociais e políticas para o funcionamento de qualquer sistema econômico, particularmente a tão incensada economia de mercado. Nada garante que o arcabouço institucionalista seja suficiente, mas será preciso pensar as condições para que mercados funcionassem de modo intermitente, subordinados às condições materiais e concretas de um mundo natural que, se dependesse do próprio mercado e de seus teóricos, seria abordado apenas pelo ângulo dos seguros (o relatório Brundtland já previa o encarecimento das apólices, por sinal) e das externalidades – este, aliás, é o primeiro conceito a ser sacrificado, já que, num sistema complexo em que a atividade econômica testou os limites do planeta, o que aparece como externo é simplesmente o que há de mais interno.

Seguindo por essa linha de raciocínio, mais ainda do que os institucionalistas, seria o caso de recuperar o “substantivismo” de Polanyi, aquele que aponta a inversão característica da modernidade: considerar o social como incorporado à economia, em vez do contrário. Para garantir condições de subsistência e conforto, o mecanismo de mercado é apenas um dos caminhos (Polanyi elencou outros dois, que denominou “formas de integração”: reciprocidade e redistribuição). Há condições necessárias para que funcionem: com muita incerteza – financeira, política ou, agora, ecológica –, o sistema de pagamentos pode entrar em colapso. Em funcionando, há condições necessárias para que os mercados sejam úteis: quando alguém como o governo americano pode desviar para si todos os bens mais essenciais só porque tem condições de pagar, há um problema grave. Assim como há um problema grave quando todos os incentivos do mercado vão na direção de uma promoção insuficiente da saúde. Essas são algumas das questões que vamos ter que enfrentar.

4 – Riscos existenciais

Quando se fala nas principais fontes de catástrofes e, de modo geral, perigos no século que ora se inicia, a lista costuma incluir os seguintes pontos: mudança climática, biotecnologia, inteligência artificial, poderio nuclear. Grosso modo, são esses os nossos principais “riscos existenciais”, para usar a expressão de Nick Bostrom. É importante ter em mente que cada um deles alimenta os demais, já que são componentes de um sistema cada vez mais integrado e complexo, que é o sistema do planeta (“Earth system”), hoje tão geofísico quanto econômico, tão ecológico quanto tecnocientífico.

É real, por vários motivos, o problema da complexidade dos sistemas geo-bio-físico e tecno-financeiro-econômico, cada vez mais indistinguíveis. O primeiro está na própria recursividade dos sistemas complexos: eles tendem a aumentar o próprio nível de complexidade. No caso da vida, isto acaba significando evolução, mas, no caso de sistemas técnicos, envolve igualmente uma perda de controle – e acho que não há muita controvérsia em dizer que é preferível poder controlar os sistemas técnicos. Mas também é uma característica de sistemas complexos que sejam mais “resilientes” (anglicismo que parece já ter sido plenamente adotado em português), porém ao mesmo tempo mais vulneráveis. É assim que sistemas ecológicos se adaptam a mudanças consideráveis, climáticas ou até mesmo internas a eles mesmos, transformando-se para isso, sem maiores traumas aparentes – isto é resiliência –, mas eventualmente chegam a um ponto de virada em que não podem mais subsistir, e entram em colapso – isso é vulnerabilidade. As extinções em massa ocorreram dessa maneira: foram rápidas e súbitas.

A relação entre resiliência e vulnerabilidade pode se explicar mais ou menos assim, tomando o caso de zoonoses e outros patógenos. No noticiário sobre o atual coronavírus, lemos que laboratórios mundo afora estão correndo atrás de vacinas e que, eventualmente, dentro de um ano e meio, talvez, teremos resultados. Lemos também que bactérias estão cada vez mais resistentes a antibióticos, mas que também estão sendo desenvolvidos novas classes de medicamentos contra essas superbactérias. Com a exceção de pessoas que seguramente não estão lendo este texto, sabemos todos que as vacinas foram fundamentais para controlar doenças como pólio, sarampo e varíola, e continuam sendo fundamentais para mantê-las sob controle. Sabemos que o saneamento nos protege do cólera e da febre tifóide. Sabemos que um bom urbanismo é fundamental contra o avanço da tuberculose e outras doenças respiratórias. Metrópoles superpovoadas são espaços ideais para a transmissão em massa de vírus como esse da atual pandemia, mas também são onde melhor se previnem as doenças e mais se tem acesso a tratamentos de saúde. Sabemos que o aumento da ingestão de calorias foi um fator na melhora dos indicadores de saúde e no aumento da expectativa de vida dos últimos séculos (deixando de lado o problema da má nutrição com o avanço recente dos alimentos ultraprocessados, sobretudo nos países ricos).

Pois bem, todos esses elementos estão profundamente conectados. Uma zoonose como o ebola ou o coronavírus não apaga a humanidade da face da Terra porque os sistemas de prevenção e tratamento dão conta de evitar os maiores estragos. Isto significa que podemos continuar avançando sobre florestas, escravizando animais e ampliando manchas urbanas sem constituir nenhum risco sistêmico. Microorganismos outrora assassinos que estão presentes no nosso organismo não nos afetam mais porque temos como combatê-los ou estão enfraquecidos. Não se pode mais separar nossa saúde, individual ou coletiva, dos dispositivos técnicos no interior dos quais vivemos e que constituem boa parte do nosso mundo.

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A coisa vai mais longe, porém. Os laboratórios que investigam curas e vacinas são ou bem públicos, ou bem privados, e seja como for, dependem de financiamento, seja por meio de impostos, investimentos ou empréstimos (contra a perspectiva de lucros). Os sistemas de distribuição dependem igualmente de financiamento, mas também de transportes, que por sua vez dependem de energia extraída, ainda hoje, majoritariamente de combustíveis fósseis. O urbanismo e o saneamento que garantem boa parte da nossa saúde dependem, além do financiamento, da disponibilidade de mão-de-obra, o que implica sistemas de educação, distribuição de alimentos e – veja a recursividade – saúde, urbanismo etc. O acompanhamento e combate de qualquer doença, praga ou catástrofe depende de redes extensas de informação e comunicação, que dependem de computadores, satélites, pesquisadores, universidades, eletricidade…

Todo esse enorme conjunto de sistemas está integrados também aos ciclos ecológicos, o que significa todo tipo de coisa: chuva, vento, rotação e translação da Terra, efeito-estufa, correntes oceânicas. Mas, como vimos com os dados da poluição na China, depois na Europa, hoje nem mesmo essas variáveis podem ser desconectadas da ação humana – ação dita econômica, essa mesma que está soterrada no sistema de pagamentos que faz as vezes de economia.

Assim sendo, já se vê que o sistema é resiliente porque é capaz de enfrentar um sem-número de crises sem romper, mesmo que precise se transformar. “Sem-número” porque, de fato, é bastante indeterminado quanta crise esse sistema todo pode enfrentar e ainda se manter quase incólume. Mas não é uma infinidade. O problema de sistemas complexos como esse que envolve o planeta e a atividade humana é que, de uma hora para outra, o que eram dispositivos de compensação (e, portanto, estabilização), se convertem sem aviso em mecanismos de reforço, provocando uma reação em cadeia que é destrutiva e muito veloz. Este é o sentido da vulnerabilidade contraposta à resiliência.

Para ficar no exemplo da saúde, uma vez que entendemos o quanto a complexidade técnica, social e econômica nos protege contra eventuais doenças, também podemos entender o quanto estamos expostos uma vez que esses sistemas entrem em colapso. Se faltar financiamento para os laboratórios, os remédios e vacinas que nos mantêm saudáveis podem desaparecer de imediato. Nesse momento, também é provável que falte financiamento para os sistemas de tratamento. É provável que também falte para a produção de energia que alimenta os sistemas de transporte e distribuição que traziam os remédios e vacinas, mas também traziam o alimento. As redes de comunicação emudecem. Também fica comprometido o saneamento e, dentro em pouco, o mesmo acontece com o urbanismo, como foi quando a manutenção dos aquedutos se tornou inviável nas cidades do Império Romano decadente. Assim, em pouco tempo, nós, que estávamos tão bem protegidos contra novas doenças – e mesmo velhas doenças –, de súbito estamos completamente expostos.

Como cada um desses sistemas – inteligência artificial, biotecnologias, clima, nuclear, mas também finança, indústria etc. – é complexo por si só e todos estão conectados de múltiplas maneiras, constituindo um super-sistema-mundo, todas as tendências da complexidade se reforçam, da acelerada complexificação à resiliência e à vulnerabilidade. Muitas pequenas rupturas podem ocorrer sem derrubar o “sistema de sistemas”, muitas vezes inclusive reforçando-o, embora acumule resíduos que podem depois se revelar fatais.

Talvez o acúmulo dessas tensões, ao aumentar o estresse do sistema, leve ao seu colapso; talvez leve a uma supersaturação que induza à completa reconfiguração do sistema como um todo, levando a uma nova lógica, novos atratores, novas categorias, novas instituições etc. Esta é a maior esperança. J.-P. Dupuy, que cunhou a expressão “catastrofismo esclarecido” para designar a postura racional e esperançosa perante uma catástrofe já encomendada e que se torna cada vez mais palpável, teme que os sistemas em tensão acabem redundando em guerras que ponham tudo a perder. Pois bem, a corrida contra o tempo pode ser posta nesses termos: invenção ou guerra. Inventar novas categorias e parâmetros para novas configurações do sistema-mundo, antes que estejamos afogados num dilúvio de ferro, fogo e sangue.

5 – Para novas categorias

Com toda essa conversa de categorias que se tornam obsoletas, resta se perguntar sobre a emergência de novas categorias – aliás, “emergência” é um péssimo termo, já que se trata de um lento trabalho de invenção e amplificação, sem que nada pule “para fora” de nada. Ou seja, se o século nascente demanda uma passagem a novos conceitos de base, de onde eles virão?

Aqui é que reside toda a beleza das possibilidades abertas, da esperança e da coragem de viver – e viver consiste em construir as maneiras como essa vida vai se constituindo, se desenvolvendo, percolando pelas nossas relações conforme se desenvolvem. Aqui aparece novamente aquela proposta do começo do texto: se queremos fazer a aposta de que vamos chegar bem ao fim do século XXI, mesmo sabendo que será um período difícil, traumático, temos que ver quais são as condições para isso. Ou seja, explorar as possibilidades, examinar com cuidado o que parecia funcionar e não funciona, apontar as limitações das categorias usuais, investigar os potenciais de categorias concorrentes, vendo onde falham e onde prosperam… e assim por diante.

Seja o que for que vai constituir o esquema de interpretação do mundo no século XXI, o que parece seguro dizer é que seus principais elementos já estão flutuando pelas margens do mundo. Algum gaiato poderia dizer que essas figuras políticas monstruosas que vêm ganhando espaço também vêm das margens dos sistemas políticos estabelecidos. E esse gaiato teria razão, até certo ponto. Quando os modelos da era anterior começam a exibir trincas e pouco a pouco se põem a ruir, quem sai na frente são essas suas formas adulteradas, teratológicas, das margens do sistema estabelecido mas ainda orbitando nele e se alimentando dele. Mas elas só têm a oferecer o esforço violento de postergar qualquer invenção propriamente de fundo, tarefa que tende a se tornar cada vez mais trabalhosa, na medida em que requer volumes cavalares de recursos e energia. Além disso, é mesmo de se esperar que haja linhas de conflito e que justamente esses nomes monstruosos sejam a linha de frente do atraso.

Mas o que imposta é investigar de onde virão as invenções, que serão capazes de esvaziar essas forças do atraso. E aqui há uma miríade de possibilidades, é claro, já que são categorias da margem e é da natureza da margem multiplicar-se, variar infinitamente, provocar múltiplas diferenciações, algumas das quais se desvanecem logo em seguida, enquanto outras prosperam. Se as energias que circulam nas margens podem ser capturadas por essas figuras monstruosas e destrutivas, seu efeito é esfriá-las. Mas também podem ressoar umas com as outras e criar formas inesperadas, cuja fecundidade é impossível prever e depende das tendências mais amplas com as quais poderá se conectar.

Isto posto, é difícil escapar à tentação de fazer um arrazoado de iniciativas que introduzem novas lógicas (ou lógicas marginais) e, com elas, o potencial de uma reconstrução de categorias. Sem procurar muito longe, basta falar em princípios como a permacultura, os laboratórios maker, os circuitos de troca, que funcionam nos interstícios das cadeias globais de valor, em canais que resistem a traumas que seriam – e são – capazes de romper os vínculos de escala maior. Ainda no plano da produção/circulação/consumo, pululam mundo afora esquemas de comércio justo (ou “equitável”), moedas complementares, bancos comunitários, que permitem um manejo muito mais adaptável e fluido da distribuição dos meios necessários à vida, bem como sistemas de pagamento mais controláveis e sujeitos ao imperativo do bem-estar ou bem-viver.

Recuando um pouco, para poder avançar melhor: em momentos como o desta pandemia, vemos como essas categorias são maleáveis, ainda que busquem se manter rígidas. De um lado, governos e outras instituições abrindo exceções em suas maiores crenças, mas a muito contragosto: auxílios aos desempregados e pequenos empresários, rendas básicas emergenciais etc. De outro, o reforço ou ressurgimento, sobretudo nas periferias, de redes de solidariedade que se acreditava terem sido soterradas ou tornadas obsoletas pela modernidade individualista, contratual. Redes como essas podem até mesmo ser capazes, no fim das contas, de evitar o cenário apocalíptico esboçado por muitos, com roubos a supermercados e famílias pobres levadas a passar fome. Não estou dizendo, valha-me Deus, que basta contar com redes de solidariedade e podemos ficar tranqüilos a respeito das categorias que organizam nosso mundo. O que estou dizendo é que podemos aprender com elas, enxergar nelas elementos de novas dinâmicas sociais, políticas e econômicas.

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Como sabemos, o coronavírus, assim como, antes dele, o ebola, o HIV e vários tipos de influenza, é uma zoonose, ou seja, patógeno que transita dos animais para os humanos. Não deixa de oferecer uma ocasião propícia para especular sobre outras instâncias de um trânsito entre mundos que nos forçamos a pensar como separados; a zoonose, como a queimada, a praga, a inundação e, muitas vezes, o câncer, apareceria então como um mediador, um viajante, um diplomata cujas mensagens (Botschaft, diriam os alemães) são a morte, a doença ou, se for o caso, misérias de outros tipos. Naturalmente, só pode nos parecer assim porque imaginamos essa divisão absolutamente ficcional.

Não há propriamente um trânsito, se entendermos que a relação entre mundo humano e mundo animal é uma questão de mera topologia, nada mais do que os movimentos forçados que a lógica divisora da modernidade impôs às dinâmicas que a ultrapassam. Mas o mais relevante é notar que o agente dessa comunicação das doenças entre humanos, morcegos, porcos, frangos e outros bichos, esse minúsculo xamã da morbidade, é um ente microscópico, tão simples, tão estranho – um vírus! Um pedaço de código genético encapado que nem sequer conseguimos determinar como sendo vivo – ou melhor, como sendo um ser vivo de pleno direito (direito!). Um ente que só pode existir com alguma clareza nas conexões, de um corpo a outro, de uma espécie a outra, sendo parte da vida só quando salta entre os infectados.

Existe um curioso paralelismo entre o simples vírus e toda a complexidade do aparato tecnológico humano. A diferença é que o primeiro nos lembra da nossa inserção inescapável (e bem tentamos escapar!) nas dinâmicas naturais – ou cósmicas, para empregar um termo mais carregado de implicações. Enquanto isso, o aparato técnico, mesmo ao operar justamente na mediação física e psíquica com o meio associado, tem nos servido mais para esquecer de seus dinamismos necessários, patentes, inescapáveis, fazendo parecer que nos isola deles.

Na verdade, boa parte da reconstrução das categorias sociais, políticas e econômicas consistirá em refundar a lógica dos dispositivos técnicos, para que sejam os operadores da tarefa de enxergar nossa inserção nos dinamismos naturais, ampliar os modos dessa inserção, reforçar a conexão entre nosso metabolismo e os demais. Também isto existe nas margens, aparece em filigrana nas ciências do clima e do sistema-Terra mais amplamente. De um modo mais próximo ao quotidiano, aparece no esquema de Kate Raworth com os círculos concêntricos da economia possível, que ela compara a uma rosquinha (Donut Economics). Por sinal, o subtítulo do livro dela é: “pensar como um economista do século XXI”, o que só reforça a ideia de que este era um século ainda por começar.

Aparece também na paulatina reemergência de tantos saberes subordinados (expressão de Foucault), que foram suprimidos ou absorvidos pelo saber magno do “espírito científico” moderno, objetivante, isolante, triunfal ao silenciar sobre valores e vínculos cósmicos, enquanto agia tecnicamente sobre esses mesmos valores e vínculos. Pelo menos, vejo assim a retomada de interesse em pachamama, sankofa, ubuntu, motainai, candomblé.

Desnecessário dizer que este é um trabalho árduo e de longo prazo, que só pode ser levado a cabo por meio de muita reflexão, mobilização e articulação. A seguir no exercício de pensamento em que reconhecemos na pandemia do coronavírus um verdadeiro evento, um ponto de virada, ato fundador, chame como quiser, o que se apresenta diante de nós é um chamado à invenção. O mundo passou a última década, pelo menos, postergando transformações cuja necessidade estava patente. Sem reação digna de nota, assistimos à perpetuação de uma mecânica econômico-financeira fracassada, suicida, reconhecidamente alienada – isto é, desconectada de seus próprios princípios. Pasmos, mortificados, acompanhamos a ascensão irresistível de figuras políticas doentias, alimentadas por medos, vergonhas e dores indefiníveis. Uma autêntica necropolítica, engordando com a perspectiva do mortífero.

Talvez faltasse engrenar o século XXI. Talvez estivéssemos meramente na fase de transição para ele. Mas com o coronavírus, mensageiro da vida indecidível, irrompe um século em que a vida, ela mesma, é uma questão de decidir. Se for assim, encerrou-se a década do impasse, com um chamado a encerrar a agonia da modernidade. Eventualmente vamos sair de casa e lá vai estar o século XXI, esperando por nós.

Padrão
barbárie, Brasil, desespero, direita, economia, eleições, esquerda, guerra

Uma guerra à sociedade civil

Mesmo que nestas eleições não aconteça o pior, parece ter se formado o consenso de que nos próximos anos vamos continuar mergulhados no caos político, no conflito social e na estagnação econômica. É evidente que o triunfo do picareta protofascista torna tudo pior e instala o caos imediatamente. Mas mesmo se o próximo presidente for um dos candidatos do campo democrático, o sistema político está tão bagunçado e o tecido social tão esgarçado, que dificilmente um governo terá a estabilidade necessária para governar sem sustos.

Esse consenso é explicado, no mais das vezes, por dentro do próprio sistema político. A trajetória do PT, tanto no governo quanto fora dele, tentando garantir a hegemonia no campo da esquerda e forçando a candidatura de Lula. As atitudes dos tucanos, que promoveram a tese da derrubada de Dilma logo depois da eleição e estimularam o crescimento da direita raivosa. A falha de Marina Silva em capitalizar seus bons desempenhos eleitorais de 2010 e 2014. Os oligarcas e os fisiológicos que buscam se preservar de todo modo, mesmo que isso signifique jogar o país nas mãos da barbárie.

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Um segundo elemento de explicação muitas vezes levantado é internacional, lembrando da vitória de Trump e do Brexit, além do crescimento da extrema-direita em países como França, Alemanha, Itália, Polônia. Muitos lembram da influência de Steve Bannon, que colocou o laranjão na Casa Branca e pode agora colocar o amarelão no Planalto.

Tudo isso é fato; mas a melhor comparação é com países de renda média, mais semelhantes ao Brasil: Filipinas, Turquia, Hungria, Venezuela. São países que já caíram nas mãos de regimes autoritários ou com tendência ao autoritarismo, nas mãos daqueles que os anglófonos chamam de “strongmen”.

Frágil como é o Brasil – socialmente, politicamente, culturalmente –, não chegará a ser surpreendente se algo semelhante acontecer por aqui. É um risco constante, que não surgiu ontem. E, a seguir o exemplo desses países, não vamos demorar para ter perseguições generalizadas a jornalistas, artistas, políticos de oposição, livre-pensadores.

(Nem preciso dizer, mas demorei a conseguir a energia para sentar e escrever algo, de tanto que temo pela minha própria segurança. E de tão triste, desalentado, que fiquei ao descobrir pessoas que supostamente gostam de mim apoiando a instalação de um regime que poderá me matar.)

Países com perfil parecido com o nosso conseguiram escapar dessa tendência ao obscurantismo, inclusive alguns vizinhos: México, Chile, Colômbia e até a Argentina, com seus megaprotestos e penúria econômica, parecem estar a salvo, ao menos por enquanto. Ainda rezo fervorosamente para que também seja o nosso caso.

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Mas acho que há mais do que a mera explicação política ou internacional para o que está se passando entre nós e para a tendência amplamente percebida de que a ainda há muito a piorar. Essa é, de fato, a dinâmica que está colocada na sociedade e no sistema político: não necessariamente a implosão da democracia frágil e incompleta que construímos nos últimos 30 anos, mas seguramente algum tipo de ruptura, seja com a estrutura de partidos, seja com as formas de lealdade.

Explico (se conseguir): o país está sendo conduzido por duas dinâmicas divergentes, já ativas há pelo menos duas, talvez três décadas, mas que vieram à luz em 2013. Mais cedo ou mais tarde, seria necessário chegar a uma decisão: ou bem uma ação política concreta e consciente para ajustar essas dinâmicas entre si, ou bem deixar chegar à desconexão completa, ou seja, o momento em que o país se torna definitivamente inviável em seu desenho institucional corrente. O que podemos concluir do que aconteceu nos últimos cinco anos é que o sistema político e a sociedade, cada um à sua maneira, estiveram bem aquém do desafio.

Ai de nós.

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A primeira dinâmica é a da inclusão e da diversidade. O lado bom da Constituição de 1988 (e das leis que vieram em sua esteira) é que ela prevê e promove o combate aos nossos maiores males históricos: obriga os três níveis da federação a investir em educação, saneamento, saúde, segurança, infraestrutura. Contém, tanto quanto consegue, a sanha extrativista, latifundiária, sanguinária, de nossas velhas oligarquias patrimoniais. Tudo isso vem de muito antes do governo mais lembrado em termos de inclusão, que foi o de Lula, mas é bem verdade que esse período intensificou os esforços, introduzindo métodos que, inclusive, fogem à lógica da Constituição, como o programa Bolsa-Família.

É evidente que essa inclusão é incompleta e falha em muitos aspectos. Basta pensar em termos de segurança, grande fracasso da Nova República. Para conseguir os ganhos que existiram, insuficientes como foram, foi necessário um sistema político ineficaz, lento, caro, facilmente capturável pela corrupção (se é que se pode falar de captura, quando o objetivo de muitos dos atores envolvidos era justamente promovê-la). O sistema tributário é caótico e regressivo. A geração de receitas para cumprir com as aspirações da Carta Magna é insuficiente (torno a isso depois). Muitos privilégios corporativos foram mantidos e ampliados, notadamente no que diz respeito ao Judiciário. Tudo isso é bem conhecido e documentado.

Mesmo assim, a melhora dos indicadores sociais é patente. Mortalidade infantil, matrículas do ensino fundamental, expectativa de vida, IDH. Não são apenas as ações afirmativas, por exemplo, que garantem a introdução de categorias até então excluídas (a população negra e periférica em geral, sobretudo) nas universidades e principalmente no debate público como um todo. Ao contrário, é porque movimentos sociais se robusteceram que foi possível fazer a pressão necessária para que pudesse haver ações afirmativas.

Se algumas melhorias urbanas incrementais são feitas cá e lá, é porque a população adquiriu energia e poder de pressão suficientes para colocar o poder público em movimento. Se moradores de favelas conseguem obrigar uma prefeitura como a do Rio de Janeiro a abandonar projetos faraônicos em nome do saneamento, agradeça à mobilização social e às normas constitucionais. O Brasil segue sendo um país terrivelmente desigual e injusto, mas é muito menos homogêneo do que há trinta anos. Nesse sentido, a Nova República foi um sucesso.

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A segunda dinâmica é a da derrocada econômica. Já não somos aquele país industrial que chegamos a ser em meados dos anos 70. Este foi um tema que já tratei em outras ocasiões, mas vale dizer que as consequências da mudança de perfil da estrutura produtiva, intensificada, mas não causada, pela ascensão da China e sua gula por soja e minério de ferro, tem impactos graves sobre a capacidade de continuar cumprindo as aspirações da Nova República e de sua Constituição.

O complexo agroexportador e o extrativismo mineral geram pouco valor agregado, pouco emprego, implicam uma cadeia produtiva de baixíssima complexidade. O tão incensado setor agrícola corresponde por algo como 6% do PIB e, mesmo que dobre de tamanho (não vai acontecer), não é capaz de sustentar um desenvolvimento nem sequer próximo ao que precisamos.

Se os empregos criados nas áreas urbanas são quase todos em serviços simples e na construção civil, a renda e os impostos gerados não são suficientes para garantir o fornecimento dos serviços públicos necessários a essa mesma população. E estamos falando de cidades muito grandes, inchadas, como são as brasileiras. Não é por acaso que são cidades feias, violentas, travadas, fábricas de mal-estar e sofrimento psíquico.

O breve, inócuo e atrapalhado plano de incentivo à indústria do governo Dilma é uma das causas próximas do desastre econômico de 2015-2016; mas suspeito que não teria tido um sucesso muito maior se fosse extenso, eficaz e organizado. É preciso mais do que o impulso a certos setores para promover a sofisticação de um parque industrial; é preciso saber se situar, em paralelo ao setor empresarial, na divisão internacional do trabalho.

Mas isto é tema para outro texto (e outro autor). O que quero reter dessa dinâmica é o fato de que toda a lógica da Nova República, com seu espírito inclusivo e diversificador, requer o solo fértil de uma economia que se sofistica, moderniza, complexifica, diversifica. Só assim é possível gerar o valor agregado necessário à realização das aspirações daquele Brasil que retornava à democracia – ou assim acreditava.

No caso do século XXI, isto é algo completamente diferente do que foi nos anos 1950, tempo da substituição de importações, da atração de multinacionais automobilísticas e da expansão da fronteira agrícola. Estamos em era de antropoceno, de modo que é necessário sofisticar o investimento em tecnologias e energias limpas. Mas isto também é assunto para outro texto (esbocei aqui).

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A continuação da primeira dinâmica exige uma transformação da segunda dinâmica. Sem que isso aconteça, e até agora não aconteceu – muito pelo contrário –, o que teremos é a segunda corroendo, canibalizando, a primeira. É o que temos vivido: na tentativa de “equilibrar o orçamento”, de “fazer a Constituição caber no PIB”, o país está abrindo mão de tudo aquilo que aos poucos o vem tornando um pouco menos injusto, um pouco mais diverso. É o caso das universidades, do ensino médio, da ciência e tecnologia, do desenvolvimento territorial.

Mas aquela primeira dinâmica ainda existe e é capaz de expressar sua força. Ela não vai desaparecer só porque as condições objetivas não são mais as mesmas. É por isso que está sendo tão atacada. O conservadorismo “dos costumes”, que logo se traduz em ódio racial, misoginia, homofobia etc., é uma forma de abafamento dessa dinâmica social como um todo. O importante é regredir às antigas distinções da sociedade.

Mencionei um “momento de decisão” e sugeri que ele pode estar se arrastando desde 2013. Nesse caso, não é tanto um “momento” e, como nada foi decidido, não é “de decisão”. Mas o fato é que nem chegamos ainda à ruptura, nem conseguimos instaurar a ação política que sintonizaria as aspirações republicanas ao desempenho econômico. Em outras palavras, o sistema político não se mostrou à altura do país. Não se mostrou à altura da sociedade, por certo.

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Isto é o que traz de volta à tentativa de explicação do nosso possível desastre, agora, neste outubro de 2018. Não vou entrar em detalhes neste texto (outro mais longo se prepara), mas dá para ler as decisões tomadas por todas as forças políticas a partir dessas duas dinâmicas divergentes e da incapacidade de corresponder à necessidade de decisão, perante um esgarçamento que se radicaliza.

Resumindo bem, o esforço do PT em manter a hegemonia no campo da esquerda reflete a perda de sua base, não só aquela de que fala André Singer ao discorrer sobre o lulismo, mas também a rarefação do proletariado industrial, de onde vem o próprio Lula. Tendo perdido as classes médias urbanas, só o que lhe resta é ser um partido burocrático interior ao sistema, que tem a oferecer aos demais atores um forte apoio na população mais desfavorecida. Parece ter funcionado até 2014, sobretudo porque o partido controlava boa parte da máquina estatal e podia cooptar alianças. Agora já não basta.

Os tucanos, que se crêem por algum motivo representantes do Brasil mais lúcido e moderno, erraram feio ao apostar sua sobrevivência política na aproximação com as oligarquias e na radicalização à direita. O PSDB acabou se fundindo com as oligarquias e não conseguiu convencer a direita radical, que prefere inventar seus próprios nomes. Sendo um partido de caciques, vai morrendo pela segunda vez – a primeira foi em 2010, até que em 2014 o PT o ressuscitou para conseguir um segundo turno polarizado.

Já a conjunção entre oligarquias, fisiológicos e outros aproveitadores da política está nadando de braçada. Que perigo corre a bancada do boi, da bala, da bíblia? As dinastias políticas que há séculos dilapidam o Estado conseguiram aprovar uma reforma eleitoral destinada explicitamente a mantê-las no poder. Aqueles que não podem concorrer por estarem presos mandam seus rebentos. É o caso de Eduardo Cunha e Sergio Cabral. O Supremo e o TSE estão majoritariamente alinhados com eles, como ficou evidente com a entrevista irregularmente concedida pelo candidato protofascista à televisão do dono de igreja, que não teve reação dos tribunais.

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Esse grupo – que coincide razoavelmente com o “centrão” da constituinte e pode ser chamado assim – encontrou o candidato presidencial perfeito para seus propósitos. Foi pinçar no Baixo Clero, aquele grupo de aproveitadores sem relevância política, que estão no Congresso só por se dar bem, geralmente graças a um discurso eleitoral mentiroso e populista, uma figura facilmente moldável e desprovida de qualquer escrúpulo.

É algo como um novo Severino Cavalcanti. Desta vez, tem boas chances de colocá-lo no Planalto. Nesse caso, pode-se dizer que é um novo Collor, mas muito piorado, porque retira sua energia política das energias mais destrutivas e reativas que há na sociedade. A candidatura protofascista é a realização lógica do grande acordo anunciado por Romero Jucá e Sérgio Machado: com o Supremo, com os generais, com tudo.

Assim, a candidatura protofascista não é primariamente uma arma na guerra contra a esquerda, o PT, o globalismo ou o que for. Não é primariamente um elemento a mais nas ditas “guerras culturais” que tomaram conta de sociedades mundo afora, e que têm a ver com direitos de mulheres, gays, imigrantes, negros etc. Essas são as energias, facilmente convocáveis neste país moldado pela escravidão, de onde as oligarquias e o fisiologismo retiram sua força para realizar a principal guerra em que está metido.

Trata-se da guerra contra a sociedade. Mais especificamente: a guerra contra a dinâmica de fortalecimento e diversificação da sociedade civil, que poderia colocar em risco sua posição histórica. O Brasil atrasado está em vantagem nessa guerra porque a dinâmica social, sua inimiga, tem necessidade daquele solo de sofisticação econômica que está se desfazendo no país. A dinâmica histórica está a favor do atraso, do patrimonialismo, da oligarquia, e contra a sociedade civil.

A candidatura protofascista é uma ofensiva de grande envergadura contra a sociedade civil.

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Que a democracia está em risco, poucos ainda duvidam. Mas de que vale a democracia para esses agentes? Desde quando oligarcas gostam de democracia? Grupos que foram favorecidos por ambas as nossas ditaduras, e que já se beneficiaram em outros períodos de exceção, por que se preocupariam em manter um regime que dá espaço para a sociedade civil, se ela só atrapalha seus desígnios?

Para ficar no exemplo do bispo dono de igreja que apoia o protofascista, recordo que, em alguns textos publicados em 2016 e 2017, lancei a seguinte pergunta: o que acontece à teologia da prosperidade (essa que sustenta algumas das igrejas recentes que se espalham pelo país) quando deixa de haver prosperidade? Ou seja, quando o crescimento econômico, que até 2014 trazia respostas divinas aos anseios dos fiéis (carro novo, casa própria, ascensão social), vai por água abaixo, deixando em seu lugar a penúria, o fracasso, as dívidas?

O próprio bispo dono de igreja trouxe a resposta: alinha-se imediatamente à repressão pura e simples, à tirania anunciada. E vale dizer: uma tirania anunciada nunca deixa de se realizar, quando tem a chance.

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Abri o texto dizendo que talvez não aconteça o pior neste mês. E que, mesmo não acontecendo, ainda estaremos enredados numa crise em que o risco de ruptura com o regime democrático é real. Apesar da tendência de regressão econômica e social, tudo vai depender da capacidade de mobilização que a sociedade civil será capaz de criar, tendo passado por um susto tão terrível.

Se, por outro lado, acontecer o pior, tudo dependerá da força que a sociedade civil terá para resistir à sua própria destruição. Ainda acredito que essa força seja bastante expressiva, apesar da perda de dinamismo nas últimas décadas. Mesmo que a resistência provoque do outro lado um aprofundamento repressivo, com todas as atrocidades que teremos de testemunhar, não me parece que será suficiente para quebrar a espinha de uma sociedade tão variada e complexa como a brasileira.

Talvez seja excesso de otimismo. Ou um último esforço para ter algum otimismo. Seja como for, os ventos são desfavoráveis, mas ninguém, nunca, está obrigado a sucumbir ao horror – e muito menos se unir a ele.

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Aqueles que celebramos e humilhamos

Sempre achei deliciosa a definição de Jorge Luis Borges para a Guerra das Malvinas: era como a briga de dois carecas por um pente. Mas na sala escura de um teatro de São Paulo entendi que essa analogia tem uma limitação cruel. Em assuntos de guerra, política, diplomacia ou alta finança, os carecas que brigam mal querem saber do pente. Não ligariam se ele se esfarelasse. O que os carecas disputam é a própria disputa, para desgraça dos que vão para a linha de frente. Se são carecas, é porque assim lhes cai melhor a coroa – de ouro, de louros ou de latão. É simplesmente em nome do caimento dessa coroa que se põem a brigar pelo pente, como disputariam um botão ou um dedal ou qualquer outra desculpa para brigar. No caso das Malvinas, os carecas em questão eram Margaret Thatcher e Leopoldo Galtieri, ambos com dificuldade em manter a coroa na cabeça.

Não foi este o único estalo que me deu enquanto assistia a Campo Minado, peça-documentário de Lola Arias que esteve na Mostra Internacional de Teatro de São Palo (MIT-SP). A diretora pôs no palco seis ex-combatentes, três argentinos e três ingleses, nenhum deles ator profissional. Meia dúzia de homens com quase sessenta anos, que na casa dos vinte foram mandados para o pente de Borges a fim de bombardeá-lo, miná-lo, metralhá-lo, até que um dos dois carecas perdesse a coroa de vez – foi Galtieri, como sabemos. Os ingleses, vencedores, tiveram em compensação que engolir Thatcher por mais oito anos.

Das muitas coisas a comentar sobre o espetáculo e principalmente a partir dele, há uma que deve reter nossa atenção. Algo no relato do que aqueles homens viveram há tantas décadas é muito familiar. Ressoa com o noticiário de mais curto prazo e também com algumas sensações atávicas que povoam a subjetividade de qualquer brasileiro. Eu diria que é um enigma, algo que deveria nos atingir diretamente na cara.

I

A maior parte das leituras que já fiz sobre essa guerra destaca o absurdo de uma ditadura que manda seus jovens para serem massacrados em nome de um delírio. Este é o sentido do pente de Borges: a idéia de que a conquista de um território de pingüins representaria um triunfo contra o imperialismo. Mas existe um substrato para todo esse absurdo que precisa ser trazido à superfície.

Uma ditadura como a argentina – e como a nossa; e como a chilena; e como tantas outras na América Latina – costuma se apresentar como profundamente nacionalista. Geralmente se instala com a promessa de proteger o povo honesto e trabalhador contra fantasmas terríveis que o ameaçam. Como sempre fazem os regimes autocráticos, a ditadura argentina apoiou grande parte de sua propaganda na imagem da juventude e das crianças. A imagem central, sem surpresas, é a da família. No discurso dos generais, a ditadura é um governo de salvação nacional, que existe e trabalha para “defender” ou “proteger” essa categoria tantas vezes martelada: a família.

A família, como sabemos, é conceituada como instituição que cuida de seus membros e os mantém a salvo. É a principal fonte de solidariedade e, em sistemas que visam a exclusão completa de qualquer outra forma de solidariedade (como no regime thatcherita, por sinal), é o único apoio para o indivíduo que o resguarde da crueldade do mundo exterior. No caso das ditaduras, porém, o aparato estatal, militarizado, sob o comando de um braço forte e seguro, é uma espécie de “segundo grau” desse exercício de cuidado e atenção. É como a família das famílias.

E quanto àqueles três argentinos de meia-idade que vi em cima do palco: o que eram, em 1982, senão meninos arrancados, justamente, às suas famílias (e escolas, namoradas, amigos etc.) para ir à guerra, em nome de um “pente” e da coroa-de-careca de Gualtieri e demais tiranos? No discurso oficial, porém, eram muito mais que isso. É importante lembrar, como faz Campo Minado, que o jovem soldado é objeto de todo um trabalho de propaganda para que a população o trate como herói.

Lola Arias expõe, em projeções, as reportagens, as peças de propaganda, as imagens de arquivo, que foram mobilizadas para que aqueles jovens recebessem o carimbo de heróis, essa categoria social muito prezada, sobretudo postumamente. Uma categoria que mobiliza alguns afetos bem conhecidos: o orgulho dos pais, a admiração das namoradas (e potenciais namoradas), a inveja dos demais rapazes, os que seguiram com suas vidas e não receberam esse carimbo. Nos depoimentos dos ex-combatentes, ou seja, na voz dos próprios objetos da transformação simbólica, fica evidente como se dá o processo.

Com um certo distanciamento, passado o furor da mobilização, graças às décadas de trabalho de memória e trauma, podemos fazer uma descrição um pouco mais objetiva desse processo. Quando os rapazes vão à guerra, a “família de segundo grau” os extrai (compulsoriamente) da família de primeiro grau, de modo que, quando um jovem está no serviço militar, seu bem-estar é responsabilidade do Estado. É o Estado, na figura das forças armadas, que deve protegê-lo, mantê-lo vestido, alimentado, aquecido. E, na medida do possível, vivo – mas é claro que, numa guerra, isso nem sempre é possível.

Está muito bem documentado que, no caso das forças armadas argentinas, em plena ditadura militar e militarista, esse papel foi executado de maneira nada satisfatória; e a guerra deixou isso muito claro. Os soldados não tinham equipamento para o frio, não recebiam munição suficiente e passavam fome. Na voz daqueles homens de pele enrugada, cabelos brancos e expressão triste, tornam-se ainda mais concretos e patentes os relatos de roupas insuficientes, cargas de alimentos que se perdiam, comunicações deficientes, soldados argentinos explodidos em campos minados que os próprios argentinos tinham instalado.

Até aí, não há muito mais a aprender, senão que a linguagem heróica e patriótica em que se apóia o militarismo, com sua pretensa fundação numa “defesa da família” e seu propalado “amor à juventude”, é uma mentira descarada; mais do que uma falácia, portanto. Uma mentira. A propósito, precisamos recuperar a disposição para fazer o “j’accuse” de Zola. Não se trata de refutação, mas de desmascaramento. Até hoje, há quem repita essa enorme mentira, ainda mais no Brasil (que não passou pelo processo de construção de memória que houve na Argentina, infelizmente). Então precisamos escancarar o fato de que o amor de um regime militar (ou militarizado) à pátria, à família e à juventude é falso, deliberadamente falso. Ao afirmá-lo, uma pessoa não está equivocada, está mentindo. Está sendo desonesta e enganando a população.

II

Isto posto, surgiu algo nos relatos que tocou profundamente a minha sensibilidade, e que eu desconhecia – talvez porque li sobre a guerra das Malvinas já há alguns anos, antes que os arquivos fossem abertos (em 2015) e certos segredos viessem à tona. Em dado momento do espetáculo, ouvimos de um dos ex-combatentes argentinos que seus comandantes torturavam os soldados para que eles não abandonassem seus postos quando já era inútil defendê-los, para que não reclamassem das condições desumanas, ou mais simplesmente, para que não se rebelassem. Sem comida, abrigo e vestimentas adequadas, os soldados ainda por cima eram espancados, amarrados no chão congelado, obrigados a se humilhar perante os colegas.

Outro ex-combatente relata que, na volta para casa, após a derrota, foi obrigado, junto com seus companheiros, a assinar um documento em que se comprometia a não revelar nada do que havia se passado. O filho dileto, o herói da pátria, foi reduzido por sua “família de segundo grau” ao silêncio perpétuo. Neste ponto, vale uma digressão: todos os ex-combatentes passaram por algum grau de estresse pós-traumático, inclusive os ingleses. Mas este indivíduo em particular entrou em profunda depressão, não conseguiu se fixar nos muitos empregos que teve, tornou-se cocainômano e quase morreu afogado. Ironicamente, era o único dos argentinos que tinha entrado para o exército voluntariamente. Saiu da depressão quando passou a se dedicar ao esporte e hoje é triatleta.

Voltando ao tema: no meio das cadeiras do teatro, ouvindo os relatos e a trilha sonora (basicamente Beatles, tocada pelos próprios atores), comecei a entender que estava diante dos dois lados de uma moeda que circula não apenas na Argentina, mas certamente em toda a América Latina e talvez muito mais amplamente.

A “Cara” é a reiterada propaganda sobre os heróis nacionais; a justificação do poder ditatorial, ou simplesmente autoritário, pela vaga “defesa da família”; a constante louvação ao povo (em geral no sintagma “povo trabalhador”) e à juventude (que é “o futuro do país”); a crença irrefletida na disciplina, uma imagem de ordem que destoa de todo o mau funcionamento com que a população está acostumada no dia-a-dia.

A “Coroa” consiste em tratar esses mesmos jovens como gado, pagá-los com salários de fome, humilhá-los, torturá-los, mandá-los para a morte; destruir famílias; produzir um oceano de síndromes pós-traumáticas; fornecer um espetáculo de má organização e indisciplina na cúpula decisória; humilhar os trabalhadores, os jovens, os pobres; reduzir aquele povo tão incensado, aqueles heróis tão propagandeados, a uma condição de silêncio e apatia.

Pensando bem, esta parece ser uma tônica latino-americana. Neste nosso continente de veias abertas, o deslumbramento com fardas, armas, vozes de comando, escaramuças, é patente. O Cone Sul é pródigo em guerras caudilhescas. Do México para o Sul, os governos militares são recorrentes e as ordens para que soldados rasos abram fogo contra seus próprio compatriotas se repetem tristemente. O ponto comum entre Pinochet, Stroessner, Chávez e Figueiredo é a farda. Mas eu também poderia dizer Deodoro, Rosas e Porfírio Díaz.

O soldado, por sua vez, é em geral mal pago, mal equipado e maltratado. Para o Paraguai, no Império, foram mandados os que não conseguiam se safar; na Marinha da Primeira República, os maus tratos levaram à revolta da Chibata. Os comandados de João Cândido, o “Almirante Negro” que manobrou a frota melhor que os brancos, foram traídos pelo governo e os oficiais, e terminaram massacrados. Quando, inadvertidamente, uma dessas lideranças engalanadas se vê na situação de sair do mero discurso e entrar na prática da guerra, os resultados tendem a ser desastrosos, como ocorreu aos argentinos nas Malvinas e aos mexicanos contra os EUA. Sorte dos nossos pracinhas na Itália, que puderam tomar armas e equipamentos emprestados dos americanos.

Será coincidência essa insólita dicotomia do discurso laudatório com a prática do desprezo e da humilhação? O que é que faz com que, em todo o continente, o patriotismo, o conservadorismo e o militarismo estejam tão intimamente ligados aos maus-tratos, ao desprezo e à incompetência? Não faltaram, na história do continente, indícios de que o tipo de comando que se associa à figura do militar, envolvendo autoridade e disciplina, costuma levar a resultados opostos aos esperados e desejados. Mas ainda se ouve muito falar, sobretudo no Brasil, sobre a seriedade e a organização inerentes às forças militares. Por quê?

III

Depois de tantos parágrafos, finalmente chego ao ponto que buscava: o Brasil, onde tem crescido um evidente fascínio pelo militarismo. A intervenção diversionista de Temer no Rio é o cúmulo (pelo menos por enquanto) e a intenção de voto em Bolsonaro é um sintoma grave (esperemos que fique só nisso). Mas deveríamos ter ligado o alerta quando atletas brasileiros passaram a bater continência nos pódios olímpicos, só porque um programa federal os pôs para treinar em instalações militares. Era uma impostura, como sói acontecer: os atletas receberam patentes, mas é evidente que isso não faz deles militares; ademais, não estavam ali representando as forças armadas, mas o país. Mesmo assim, muita gente na classe média achou aquilo lindo.

Em todo caso, é claro que o problema que quero apontar não é só o do fascínio com o exército propriamente dito. O sucesso histriônico do capitão Nascimento, desde o longínquo ano de 2008, é um exemplo de como a polícia é tanto mais encantadora para uma boa parte da sociedade quanto menos ela age como polícia e mais como milícia, uma variação urbana da jagunçagem.

Vale se deter num ponto interessante: freqüentemente os auto-intitulados defensores da polícia se referem aos policiais – na verdade, só os policiais militares – como pessoas corajosas que arriscam a vida na luta contra os bandidos. O corolário dessa descrição é que qualquer crítica à atuação da polícia (militar) nas favelas é uma defesa da criminalidade e um desrespeito a esses bravos profissionais que se sacrificam em nome das famílias de bem. Provavelmente o cúmulo desse raciocínio foi o episódio em que um menino de dez anos foi morto pelo fuzil de um policial no complexo do Alemão (chamava-se Eduardo) quando estava sentado na soleira da porta da própria casa.

Mas o que há de mais interessante é que essas pessoas que tanto dizem admirar e respeitar os policiais, pelo fato de que se arriscam e muitas vezes morrem, parecem nunca se perguntar se é mesmo necessário que tenhamos tantas mortes de policiais todo ano (só no Rio, ano passado, foram mais de cem). Quando acusam seus oponentes de não se importarem com a família de um policial morto, esses supostos defensores da polícia não se questionam se poderíamos viver de um jeito em que os policiais não morressem, não precisassem se sacrificar, não precisassem ser mártires. Nunca vi um comentário dessas pessoas sobre o fato de que a maior parte das mortes de policiais ocorrem fora do serviço, fazendo bicos de segurança para complementar o péssimo salário.

Na verdade, é bastante evidente que a cultura de fascínio com formas militares – seja o exército, seja a polícia – habita no abstrato. Quando descemos ao concreto, essa mentalidade não se preocupa um segundo sequer com a qualidade da formação dos praças. Não se preocupa com suas condições de trabalho, nem com sua remuneração. Não se preocupa com sua segurança – afinal, se trabalhassem e vivessem em segurança, os policiais teriam de ser vistos como servidores públicos e respeitados como tais, não encarados e reverenciados como heróis e mártires.

As deficiências da formação da polícia são amplamente conhecidas: na maior parte dos Estados, um jovem é incorporado à força tendo treinado um número irrisório de tiros; nas casernas, a tortura física e psicológica é constante. Não estou dizendo novidade nenhuma ao mencionar que os recrutas são formados para algo que pouco tem a ver com policiamento. Em geral, diz-se que são formados para uma guerra; e seria uma espécie de guerra interna. Na verdade, acho que a analogia mais pertinente seria dizer que são formados para uma caçada. Seja como for, mais tarde, nas ruas, o equipamento que usam é defeituoso, os serviços de inteligência são pífios e a relação com a população, e não estou falando da bandidagem, é hostil e improdutiva.

Trocando em miúdos, assim como os soldados argentinos na guerra das Malvinas, os policiais brasileiros são atirados ao trabalho sem as condições necessárias para exercê-lo e, se morrem, não é por heroísmo, mas porque são deliberadamente lançados para a morte. Incensados por uma malta de cidadãos que se consideram de bem, gente conservadora e que diz defender a família, a pátria e outras categorias que vêm juntas, são postos por esses mesmos cidadãos tão íntegros em constante situação de perigo, pobreza e fadiga. Quando sobrevivem, sofrem de depressão e outras doenças crônicas, com atendimento médico insuficiente. Quando morrem, e muitos morrem, deixam atrás de si famílias despedaçadas, viúvas e órfãos. Que bela defesa da família.

Ou seja, como a propaganda de guerra da ditadura argentina, também o deslumbramento com a farda, o giroflex e as sirenes esconde este outro lado, que é o desprezo pela vida do policial; e isso, nos dois sentidos da palavra: a vida como aquilo que é ceifado por uma bala no confronto com traficantes, mas também a vida que ele leva, com seu baixo salário, a impossibilidade de descansar na folga, a formação deficiente, o regime de humilhações e torturas a que é submetido da parte dos superiores. Eleger heróis e humilhá-los; cantar louvores à juventude e mandá-la para o matadouro. Longa tradição latino-americana. Longa tradição brasileira.

Em tempo: a brutalidade policial no Brasil, da qual não conseguimos nos livrar quando tivemos a chance, e que, ao contrário, é motivo de celebração para muita gente, só faz sentido nesse registro. Um indivíduo se torna brutal quando age sem parâmetros, ou seja, nem orientações claras e corretas de procedimento, nem regras plenamente vigentes de comportamento. Tanto a humilhação quanto o incensamento conduzem à brutalidade, a primeira por trazer à tona as paixões mais cruas, o segundo por insuflar os espíritos com uma sensação de onipotência. Mas não devemos nos enganar: o policial se torna brutal porque sua situação é frágil; porque, socialmente, ele é na prática um descartável, por obra daqueles que, no discurso, o tratam como paladino.

IV

Guardando as devidas proporções, a intervenção no Rio está para a presidência de Temer como a invasão das Malvinas esteve para a ditadura argentina. Uma manobra diversionista e irresponsável realizada por alguém que se sabe ao abrigo de denúncias e persecuções judiciais, com o objetivo de desviar o foco para problemas distantes. No nosso caso, Temer está enrolado na incapacidade de entregar ao mercado financeiro todas as transformações econômicas esperadas, somando-se à necessidade de escapar a um eventual cerco da Justiça, já que nosso atual presidente faz um pau de galinheiro parecer transparente como vidro.

Na analogia de Borges, Temer é o nosso careca, precisando manter sua coroa maculada na cabeça. O Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, ex-capital, cartão postal, símbolo do Brasil para o mundo, etc. etc., se vê reduzido à condição de pente. E pode se quebrar, também. A população e, em particular, os soldados envolvidos na intervenção no Rio são os peões de que nosso careca se serve para se manter agarrado a seu pente.

Claro está que Temer compreendeu bem a natureza do militarismo latino-americano e, em particular, do fascínio atual com as fardas e o armamento pesado no Brasil. Ele sabe perfeitamente que as medidas concretas para promover a segurança da população nada têm a ver com o assunto – tanto que reduziu drasticamente a verba da proteção de fronteiras, tema que candidatos conservadores tanto gostam de tratar como prioritário. Vale a pena ler a Diretriz do Comando do Exército para 2017-2018. Lá se aprende bastante sobre a redução do efetivo e a substituição de combatentes de carreira por temporários – ou seja, jovens fazendo o serviço militar obrigatório. O usurpador tem dito também que os militares deveriam participar mais da vida pública; talvez esteja saudoso do tempo em que a atuação pública militar consistia numa série interminável e impune de conspirações, sem falar nas ditaduras.

O que o usurpador compreendeu é que o cerne desse militarismo está no espetáculo: a aparência de disciplina, limpeza, ordem, força bruta. As operações grandiosas, que dão uma certa demonstração de poder. A garantia de que haverá boas fotos e manchetes, com o apoio de grupos de mídia cujos controladores fazem parte dos mesmos extratos sociais cujos olhos brilham com o militarismo. E ao lado, uma certa sensação de desconforto e medo, que mesmo os mais profundos militaristas devem ter quando vêem passar uma coluna de tanques.

Esta imagem é do Espírito Santo, mas coloquei aqui porque é ótima.

Já os resultados propriamente ditos – digamos, a redução dos índices de violência do Rio, ou o desbaratar de alguma quadrilha mineira que traga pasta de cocaína em helicópteros – são irrelevantes. No fundo, provavelmente são indesejados. Como tem martelado Celso Barros (o sociólogo, não o médico), até hoje não foi divulgado um plano de ação, um projeto, metas, nada. A revista Piauí revelou que o alto comando militar foi tomado de surpresa pela intervenção – e ficou contrariado, muito contrariado. Não existe nem sequer o esforço de esconder que a intervenção federal/militar no Rio é mera pirotecnia.

De fato, com essa intervenção, até o momento o usurpador tem conseguido o que quer, e vai continuar conseguindo por algum tempo. As pessoas que se encantam com Bolsonaro aplaudem os tanques e blindados estacionados diante de favelas. Atitudes inconstitucionais como o fichamento de moradores levam famílias inteiras ao delírio nos bairros ditos “nobres” (com o que descobrimos que ainda estamos na monarquia). Não porque tenham efeito prático, mas porque demonstram força. Temer vai se safando e o ovo da serpente vai crescendo.

De volta a Borges: falei do careca, falei do pente, mas todas essas reflexões começaram com um estalo, no meio de uma peça de teatro, em que seis ex-combatentes, três dos quais argentinos, falam de suas experiências na linha de frente, tomando na cara chuva, vento, neve, balas e bombas. Então vale lançar mais uma pergunta: no nosso caso, quem é que está na linha de frente? Quem são essas pessoas, ou melhor, quem são esses heróis, os jovens defensores da família e da pátria, em nome desta família de segundo grau que é o governo do usurpador?

São o mesmo de sempre, claro: praças, recrutas, meninos que ontem estavam empinando papagaio e hoje estão lançados aos leões. É bem provável que muitos deles estejam em pleno serviço militar obrigatório, ou seja, preferiam estar fazendo outra coisa. Garotos que poderiam, aliás podem, ser filhos dos trabalhadores que lhes coube fichar e revistar. Podem também ser irmãos e amigos de traficantes que eventualmente virão a enfrentar, ambos atirando com armamentos exclusivos do exército, por sinal.

É claro que não tem comparação entre mandar jovens para enfrentar a marinha britânica num arquipélago remoto e gelado e colocá-los para caçar traficantes em ruelas cariocas. (E milicianos? Esses não vão ser enfrentados?) Mas uma mesma lógica rege esses dois processos, além de muitos outros. Esses garotos não são enviados para a linha de frente, para o enfrentamento, enquanto pessoas. Eles são a imagem avançada de todo um aparato simbólico de poder: emblemas, fardas, fuzis, blindados. Os “heróis” não são os próprios soldados, mas um soldado abstrato, imaginário, que absorve todas aquelas imagens de família, pátria, ordem, dever etc., tão difíceis de executar na prática em países autoritários e caudilhescos.

Os próprios garotos, seres humanos de carne e osso, são a mesma coisa que um dia foram esses senhores que vi no palco do teatro em São Paulo, tocando músicas dos Beatles, recuperando as cartas recebidas no front e guardadas num baú durante décadas. São gente que tem uma família concreta, mas para defender “a família” abstrata pode acabar esfacelando a sua própria. São gente que o cidadão de bem aplaude, admirando sua farda e sua postura ereta, mas que recebe um soldo vergonhoso e é colocado para fazer um trabalho para o qual não tem qualificação. São objetos de uma celebração irreal, mas vítimas de um desprezo concreto, como tem sido há mais de 200 anos.

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