capitalismo, costumes, economia, Ensaio, Filosofia, história, modernidade, opinião, Politica, prosa, reflexão, Sociedade

Aí está o século que previmos

Ao que parece, o século XXI começa agora. É o que leva a crer a leitura de tantas análises desta pandemia e tantas reflexões sobre suas consequências sociais e econômicas. E isto, venham de onde vierem: epidemiologistas, estatísticos, antropólogos, filósofos, historiadores, até mesmo economistas. Ou seja, o mundo não será o mesmo depois de meses com populações trancadas em casa, empresas e autônomos indo à falência, cadeias de valor rompidas, pacotes de estímulo governamentais, vigilância total (fundindo a tradicional vigilância sanitária com formas menos bem-intencionadas).

Talvez seja cedo para decretar algo tão drástico como a inauguração de uma era. A rigor, nada impede que o trauma acabe sendo curto, ao menos no campo da saúde (no econômico é um pouco mais difícil), e continuemos a operar como nas últimas, digamos, duas décadas. Mas isto seria só um outro adiamento: mais cedo ou mais tarde, o século XXI vai começar. Mesmo que – vamos supor – do dia para a noite as infecções e mortes mundo afora começassem a diminuir e desaparecessem, como parece ter sido o caso com outros vírus do passado. Então vale a pena simplesmente postular que esta pandemia é o marco inicial do século e explorar o que isto quer dizer.

*

HxB: 110.9 x 156.4 cm; Öl auf Leinwand; Inv. 1055

Mas que século XXI? Esta é mesmo a primeira pergunta: o que quer dizer uma passagem histórica, o início de um século, como tantos estão – estamos – prevendo? O que quer dizer isto que coloquei acima: “o mundo não será o mesmo”? E talvez ainda possamos ampliar a pergunta, deixá-la mais interessante e difícil de explorar: é mesmo o século XXI que está começando, por oposição a “século XX” ou “século XIX”, ou é algum outro tipo de período, talvez mais extenso, talvez mais restrito?

Temos o hábito de tratar 1914 como o início do século XX, porque foi quando Gavrilo Princip matou o arquiduque austríaco em Sarajevo e, na reação em cadeia, a ordem mundial pós-napoleônica, eurocêntrica e imperialista foi a pique. Essa é a cronologia famosa de Hobsbawm e ajuda muito a pensar em termos de transições súbitas e traumáticas. Mas é importante frisar que não foi só uma transição geopolítica. O Século XX começa com a Primeira Guerra Mundial também por ser o gesto inaugural dos fenômenos de massa – uma matança em massa! –, que se rebate nas funções e tipologias das técnicas e das instituições características do tempo que começava.

É claro que não dá para comparar uma doença que se espalha pelo planeta durante alguns meses, como tantas outras já fizeram, a uma guerra de mais de quatro anos que mata milhões, derruba impérios e força uma transformação profunda nas mentalidades. Mas essa é exatamente a comparação que estamos sendo forçados a fazer, então nada nos resta senão explorá-la. Que tipo de fenomenologia, que tipo de tecnologia, que geopolítica etc., estão em jogo se admitimos que o século XXI começa agora?

O cerne do problema está no seguinte ponto: o que se espera para o século XXI? E aqui é que chegamos ao que há de realmente desconfortável, aquilo que explica por que estamos entrando num mundo novo e incerto. E talvez explique também por que estamos tão impacientes para declará-lo inaugurado. Agora é a hora de encarar a evidência de que as perspectivas para as próximas décadas, na boca de quase todo mundo, por todo lado, são bastante sombrias. É assim no campo do clima, da agricultura, da economia, da política e também da saúde.

Seja qual for a atitude que temos no dia-a-dia em relação a todos esses campos, sugiro tomarmos como ponto de partida uma postura otimista. Por motivos puramente metodológicos: mesmo que você seja catastrofista e acredite que a humanidade (como espécie) ou a civilização (como forma de organização) não vão chegar até 2100, peço que deixe de lado por um momento essa filosofia e considere que, sim, vamos desenvolver tecnologias, sabedorias e práticas que nos ajudarão a contornar desafios como a mudança climática (e, se quiser, os exércitos de robôs superinteligentes e psicopatas), chegando saudáveis e prósperos ao próximo século.

Pois bem. Mesmo adotando essa perspectiva, o que se espera para o século XXI é que seja um período duro, eivado de catástrofes – ondas de calor, quebras de safra, pandemias, cidades inundadas, territórios ressecados, migrações forçadas, pragas, guerras por água e terra arável. Por um lado, sabemos que a lógica que orientou o grosso da atividade humana nos últimos séculos é incompatível com os sistemas naturais dos quais essa mesma lógica depende. Por outro, não temos ideia de como transitar para uma lógica compatível, embora alguns grupos tenham muitas, muitíssimas ideias para modos de vida diferentes. Acontece que a viabilidade da transição segue mais do que incerta.

Antes de avançar, podemos chegar a uma primeira resposta. Dizer que o século XXI começa com a pandemia do Sars-CoV-2, com uma doença de nome tão pouco impactante (Covid-19, uma porcaria duma sigla!), é dizer que estamos pela primeira vez encarando uma situação que, já esperávamos, será típica do nosso século. Estamos vendo, concretamente, nas nossas cidades, nos nossos bolsos e, para alguns, na própria carne, o que significa um mundo de desastres amplificados, multidimensionais, rapidamente disseminados em escala global, que inviabilizam a vida normal por períodos indeterminados.

Discutimos sobre estratégias de mitigação com um horizonte de possibilidades cada vez mais exíguo; preparamos formas de adaptação cada vez mais drásticas. Mas dificilmente conseguimos incluir no cômputo dessas atitudes todo o escopo das transformações necessárias, porque, no fim das contas, os piores cenários são praticamente inconcebíveis para nós. Pelo menos, porém, enquanto tentamos enfiar na cabeça a seriedade do que será o século XXI, podemos nos dedicar a alguns exercícios de pensamento.

I – A moldura moribunda

A primeira consequência de reconhecer a próxima etapa histórica como uma etapa de adaptação – conflituosa ou harmoniosa, tanto faz – a condições duras, já podemos ver, é que está ficando claro como as instituições montadas no século XX, ou mesmo nestas duas primeiras décadas de século XXI (no sentido cronológico estrito) são insuficientes para dar conta dos problemas que temos adiante. Mas me parece que o problema vai além do institucional. Estamos atados a um campo conceitual e mesmo categorial que não dá mais conta de recobrir nosso mundo com sentido.

Provavelmente nossa maior falha, como geração, tenha sido o parco aprendizado que tiramos de episódios como a crise financeira de 2008, as secas, inundações, queimadas e pragas, as milhares de mortes de refugiados no Mediterrâneo etc. No mínimo, o que essas catástrofes expõem é uma certa tendência inata nossa de fazer todo o possível para manter intactos os arranjos institucionais, modos de existir, formas de organização da vida em comum (chame como quiser) com que estamos acostumados. Mesmo quando já é patente que se tornaram obsoletos, inviáveis, até mesmo suicidas. Talvez isso aconteça porque o discurso e o próprio pensamento fluem e aportam em categorias moribundas.

Algumas pistas dessa morte anunciada: a chamada “ascensão do populismo” encarnada em Trump, Orbán e outros (que nem merecem menção) é muito mais a conclusão lógica desse esforço de manter os arranjos (ou as aparências) do que uma ruptura, como gostamos de pensar – ou mesmo um sintoma, já que ela não sinaliza o problema, ela dá sequência ao problema. Pensar que se trata de uma ruptura, isso sim é um sintoma: revela a crença voluntariamente ingênua de que “isto vai passar”, ou seja: de que vamos voltar aos arranjos civilizacionais em seu estado, por assim dizer, puro.

“Ascensão do populismo”, “volta do nacionalismo”, tudo isso são expressões anêmicas, eufemismos neuróticos, para a recusa em reconhecer as máquinas de guerra que estão se montando nas esferas de poder. Essas figuras todas professam um discurso negacionista do clima, mas na prática são menos negacionistas do que quem pensa que tem volta, que o mundo dos anos 2020 será um mundo de Clintons, Blairs, Merkels, Fernandos Henriques. Os poderes que orbitam em torno dos “líderes populistas” estão se preparando e armando para manter o acesso a recursos que, já está previsto, se tornarão cada vez mais escassos, enquanto o resto do mundo cai em pedaços. Exatamente como os “survivalists” ou “preppers” americanos que constróem bunkers, os enchem de enlatados e os cercam de metralhadoras. (Não por acaso, essas pessoas, em geral, dão apoio a esses líderes…)

Mas é isso que conduz ao seguinte problema: se 2020 inaugura o século XXI como um período de pessimismo e catástrofes em série, então o que se encerra com o século XX, ou esse intervalo que foram as últimas décadas (talvez desde a queda da União Soviética, se formos continuar seguindo a cronologia de Hobsbawm), é um período de grande otimismo. Se for assim, então a página a ser virada não é a de um século, mas de algo muito mais extenso, correspondente a toda a era de espírito expansivo, de crença na prosperidade e no progresso contínuos, material e espiritualmente. É um período que remete, pelo menos, ao século XVIII, era do Iluminismo, da industrialização, das revoluções na França, no Haiti e nas 13 colônias americanas.

É dessa era que herdamos o principal das nossas categorias de pensamento e parâmetros de ação; e, consequentemente, nossos arranjos institucionais na política, na economia e em tantos outros campos. Quase tudo que se disse, fez e pensou nesse período considerava que, dali por diante, as condições de vida só melhorariam – para os humanos, claro –, e com elas a humanidade como um todo, espiritualmente – ou melhor, a humanidade que subscrevesse às categorias de vida e pensamento disseminadas a partir da Europa. Estávamos “aprendendo a caminhar com as próprias pernas”, sem a tutela de autoridades espirituais ou seculares, pensava Kant. O saber se tornaria enciclopédico e acessível a todos, pensava Voltaire. A miséria seria eliminada, a democracia se tornaria dominante, a tecnologia avançaria tanto que a subsistência estaria garantida com 15 horas de trabalho por semana, chegou a pensar Keynes. Na década de 1990, além da ideia de “fim da história” que ficou marcada na testa de Francis Fukuyama para sempre, os economistas acreditaram, com um espírito que faz pensar nos delírios dos alquimistas, ter desenvolvido a fórmula da “grande moderação” – e, portanto, as recessões estavam superadas para sempre.

Vale dizer que o subtexto dos movimentos revolucionários de todo esse período, pelo menos a grande maioria deles, também era o da plena realização dos potenciais criativos da humanidade. A tomada dos meios de produção pelos trabalhadores não chegou a ser, na prática, uma ruptura com o passo faustiano da modernização. Ao contrário, desde Fourrier, Owen e Saint-Simon, sempre se colocou como decorrência dessa mesma modernização, necessária e conceitualmente demonstrada, para Marx (embora ele tivesse, assim como Engels, uma visão mais elaborada do que viria a ser a questão ecológica). Não é outro o espírito de Lênin quando fala do socialismo como “eletricidade e sovietes”, para dar um exemplo sonoro.

*

Evoquei todos esses nomes para dar estofo a um único argumento: estamos nos iludindo, um pouco como já nos iludimos depois de 2008, ao acreditar que a crise do coronavírus é um ponto de partida para a volta de políticas sociais, seguridade pública, uma nova era do Estado de Bem-Estar, uma espécie de keynesianismo-fordismo sem as amarras da produção fordista, ou seja, só com a conciliação de classes de inspiração keynesiana. Dizer que “o neoliberalismo morreu” porque os Estados Unidos, a Europa e vários países asiáticos estão dispostos a despejar trilhões de dólares no mercado, não apenas com afrouxamento monetário, mas com políticas fiscais e transferências diretas a trabalhadores e pequenos empresários, é um enorme exagero. Quem talvez vá parar na UTI é a globalização, ainda mais depois que os americanos saltaram para absorver toda a oferta de material hospitalar, numa demonstração de ausência de cooperação entre nações. Mas essa seria só uma decorrência pontual.

Podemos até esperar que alguns mecanismos emergenciais sejam perenizados, para fazer frente a outras situações de crise súbita, mas dificilmente passará disso. A resistência dos poderosos a responder à epidemia, seja com o isolamento social, seja com os pacotes de estímulo, é mais instrutiva do que o açodamento com que depois tiveram de correr atrás do prejuízo. As máquinas de mentiras que sustentaram medidas suicidas em várias partes, mas sobretudo nos Estados Unidos e ainda mais no Brasil, são instrumentos característicos de nosso tempo e isso não vai mudar tão facilmente.

Por sinal, as medidas de vigilância, para não dizer espionagem, usadas na Coreia do Sul e, em seguida, Israel, com a finalidade momentânea de traçar as linhas de transmissão do vírus, estarão disponíveis na condição de laboratório em tempo real, assim que o momento mais agudo da crise passar, para aperfeiçoamento e generalização por esses mesmos governos, e outros. A propósito, vale dizer que, no caso de Israel, o laboratório em tempo real já estava funcionando antes, ele foi apenas expandido para ficar de olho também na população israelense. Este é um ponto sensível, porque sabemos que todos os esforços da última década para denunciar os gigantescos esquemas de vigilância digital, envolvendo multinacionais e governos, foram fragorosamente derrotados: os “whistleblowers” da última década ou bem estão presos, como Julian Assange e Chelsea Manning, ou exilados, como Edward Snowden, ou mortos, como Aaron Swartz.

É tão absurdo imaginar que, depois da pandemia, vamos recuperar o papel socioeconômico dos governos ou a solidariedade entre cidadãos quanto crer, como coloquei acima, que a onda dos políticos xenófobos e estúpidos vai passar para dar lugar a novos anos 90. Trata-se de uma ingenuidade escolhida, porque a alternativa, pelo menos no curto prazo, é terrível. Pode-se analisar o fracasso de Corbyn e mesmo a perda de impulso de Sanders a partir dos erros que cometeram ou das conjunturas eleitorais de seus países, mas o fato é que seu papel histórico parece ser o de anteparos a forças terríveis, e os anteparos, por natureza, não vão muito longe.

Infelizmente, há um descompasso muito grande entre os incentivos para mudar a lógica da atividade humana – nem sequer se sabe ainda, ao certo, de que maneira – e os incentivos para recrudescer os esforços para encastelar-se (aqueles que podem) nos restos possíveis do século XX, adiando, contornando e terceirizando os grandes riscos e as grandes crises, reprimindo e, quando necessário, exterminando os focos de revolta e perturbação – o que inclui os migrantes. Por enquanto, ainda é muito fácil identificar perturbações e aniquilá-las (o termo da moda é “neutralizar”) antes que causem maiores danos, ou então lançá-las às costas de países e populações com menos capacidade de se defender. Por sinal, Saskia Sassen se refere a esse procedimento como “expulsões”, em livro de título homônimo.

*

FRIEDRICH, Caspar David_Barco de pesca entre dos rocas en una playa del Mar Báltico, c. 1830-1835_(CTB.1994.15)

Em geral, os analistas da geopolítica têm apostado que um resultado de toda essa crise será o recrudescimento do nacionalismo, do controle sobre as populações e das mensagens ditas “populistas”, contra a aparente volta da confiança na ciência, da solidariedade e das redes de proteção social. Ou seja, quem vai dar a letra são os Orban, Netanyahu e quejandos deste mundo. E nesse sentido, a recusa dos europeus em criar os tais “coronabonds” é péssimo sinal.

Nada de luz no fim do túnel, portanto? Acho que não é bem assim. O subtexto desse pessimismo é que a humanidade vai entrar no século XXI trabalhando com as mesmas categorias de interpretação de seu mundo e de orientação de sua ação com que atravessou os períodos anteriores, mas numa era em que as condições concretas do planeta são amplamente desfavoráveis a esses modos de proceder.

No curto prazo, essas análises parecem ter razão, já que a intenção de desenvolver novas categorias e formas de vida parece quase nula, restrita a nichos com pouquíssima reverberação. Mas é claro que estamos falando apenas do começo do século, ou do começo de uma época, podemos dizer; nada está escrito na pedra e a dissonância entre a estratégia de poder que passou do tempo e as pressões da realidade pode acabar se mostrando excessiva. Resta ver quanto tempo isso vai levar.

Ainda por cima, as projeções de uma perda maior de liberdade e de influência da sociedade civil ressoam com preocupações que já se ouviam, não só em relação às ações dos líderes mais retrógrados, tentando forçar a barra para manter ao máximo o equilíbrio de poder parecido com o anterior, mas também ao que poderiam fazer governos mais alinhados com os desafios do século. É o que leva André Gorz, por exemplo, a falar em “ecofascismo”, temendo que as restrições impostas por esses governos, num mundo que deixa de se expandir, exigissem chegar ao ponto do uso reiterado da força, em suma, ao autoritarismo, para pôr em prática as medidas necessárias de adaptação.

Em todo caso, todas essas previsões trabalham com a perspectiva de que as categorias tradicionais da economia, da política e da diplomacia se manterão intactas. Todo o problema reside aí. Também reside aí o alcance daquele exercício que sugeri no início: para poder ser otimista quanto ao estado em que estaremos no fim do século, vai ser preciso um trabalho cuidadoso sobre essas categorias, em todas as áreas da vida.

2 – O óbvio e o absurdo

Não faltarão referências para dizer que, apesar de algumas indicações pontuais em sentido contrário, a humanidade nunca viveu período melhor. É o que lemos, por exemplo, no livro de divulgação do badalado economista Angus Deaton, que faz uma ode da modernidade industrial e capitalista por meio da comparação com o mundo que veio antes, pré-industrial e pré-capitalista.

Sempre me pareceram estranhas essas defesas do capitalismo – que se apresentam, de fato, como defesas contra seus detratores – que o contrapõem à vida como era até o século XVIII. A estranheza vem do fato de que muito pouca gente estaria disposta a assumir uma postura de defesa da vida material tal como era, digamos, entre os séculos XV e XVIII, o que faz a apologia da modernidade soar como se ecoasse no vácuo. Além disso, não estamos na era clássica ou pré-moderna, de modo que nossos problemas e nossas escolhas nada têm a ver com o que foram naquele momento. Pouco importa o que a humanidade conseguiu fazer no tempo da máquina a vapor. Temos que enfrentar o que nos aflige hoje. Agora.

Deaton, em particular, faz a curiosa escolha de comparar o desenvolvimento econômico ao filme “The Great Escape” (Fugindo do Inferno), que narra a tentativa de fuga de prisioneiros de guerra americanos de um campo nazista. Escolha curiosa, mas ilustrativa: para o economista, ao inventar a produção industrial, as finanças modernas e tudo que vem junto, a humanidade teria escapado das amarras de uma natureza hostil. Posso até entender que se queira comparar o mundo sujeito aos rigores da natureza a uma prisão (nazista?!), mas se escapamos… escapamos para onde? Estaríamos então num mundo de puro espírito, descolado de qualquer determinante material? Ou será que simplesmente assumimos, nós mesmos, o papel de natureza hostil, encarnada numa monstruosidade que acreditou estar liberta da própria carne (e foi assim que se tornou monstruosa)? Sempre me surpreende que pessoas tão qualificadas possam repetir tanto uma argumentação tão pueril.

Mas não é preciso adotar esse simplismo apologético para reconhecer que a modernidade, naquilo que ela se propôs a fazer (sem querer antropomorfizá-la), foi muito bem-sucedida. Basta entrar nos indicadores da Agenda 2030, da ONU, para ver que a proporção de indivíduos passando fome no mundo nunca foi tão baixa, centenas de milhões de pessoas foram alçadas para fora das condições de miséria, doenças transmissíveis matam muito menos do que há um século, o analfabetismo está em baixa no mundo e assim por diante. Deixando de lado a constatação de que esses mesmos indicadores apontam um ligeiro retrocesso a partir de 2015, pode-se perfeitamente aceitar como verdadeira a avaliação otimista e, mesmo assim, manter-se pessimista quanto ao futuro. O primeiro motivo é evidente: todos esses indicadores falam sobre o passado e só dão sustentação ao espírito esperançoso da modernidade pós-Iluminismo. O segundo motivo é que justamente esses dados tão encorajadores podem estar na raiz de muitos dos problemas que esperamos enfrentar em breve – ou melhor, já estamos enfrentando, ainda que sem perceber. (E se a pandemia tivesse coincidido com a seca de 2014-2015?)

É neste segundo motivo que temos que nos concentrar. Assim como não é o caso de louvar os ganhos técnicos, econômicos, sociais e mesmo políticos dos últimos séculos, como se ainda estivéssemos enredados nos mesmos problemas, tampouco é o caso de deplorar as escolhas do passado, como se quem as fez estivesse mergulhado nos nossos problemas atuais. É importante não distorcer o passado, isto é, o caminho que nos trouxe até aqui, que é o que aconteceria se fôssemos julgá-lo com um olhar contaminado por tudo que estamos vivendo agora – ou, se preferir, por tudo que sabemos agora. Os excessos, as falhas, as crises daquilo que se encerra com esta eclosão do século XXI são precisamente aquilo que nos revela os desafios vindouros, porque as mudanças pelas quais nós passamos, e conosco nosso mundo, são as próprias fontes dos problemas que mudam e, com eles, as questões e, por fim, os conhecimentos.

Cabe ainda acrescentar uma outra pequena pergunta: não seriam os próprios indicadores dependentes de categorias cujos prazos de validade já começam a expirar? São, afinal, recortes do mundo que surgiram e se desenvolveram na era da modernidade otimista, ou seja, pertencem a ela. Neste caso, o problema estaria na insistência em tentar entender os desafios à frente com a lógica adequada a problemas e condições que ficaram para trás.

*

O que quer dizer, então, uma mudança de categorias? Pensemos nas palavras que mais usamos para entender ou avaliar o mundo em que vivemos; coisas como “eficiência”, “crescimento”, “desenvolvimento”, que associamos à economia; mas também palavras que usamos em outros contextos, como o par “democracia”/”ditadura”, “opinião pública”, “liberdade”, no ambiente político; e algumas noções mais híbridas, como “emprego”, “família”, “nação”; dá mesmo para entrar em mais detalhes, como “setor privado/público”, “exportação”, “aposentadoria”, “civilização”, “modernidade”, “produção”. E nem mencionei termos mais técnicos, como PIB, déficit público, inflação.

Sem usar palavras como essas, dificilmente conseguimos entender o que nos cerca, tomar decisões que afetam as nossas vidas e as dos outros, dialogar com quem quer que seja. É graças a essas noções que podemos diferenciar a mentalidade moderna como sendo “contratualista” e “individualista”, em vez de “comunitária” ou “hierárquica”. Isso mostra que não dá para separar o que entendemos por “nosso mundo” da linguagem que desenvolvemos para organizar nossa relação com ele – o que não quer dizer que a linguagem seja o ponto de partida do mundo ou sua fronteira, porque ela mesma vai tomando forma na medida dos problemas que aparecem na relação que constitui o mundo. A linguagem pode ser performativa, mas é ao mesmo tempo parte de individuações que a ultrapassam.

Daí a importância disso que estou chamando de “as categorias” – ou seja, ideias, ou melhor, conceitos – pelos quais é preciso passar para pensar de maneira estruturada nosso mundo e parametrar nossa ação nele. Elas são fundamentais e são razoavelmente rígidas, mas não totalmente. Basta ver como “democracia” deixou de ter o sentido de bagunça política (ainda empregado, por exemplo, pelos fundadores da democracia americana) e se tornou o nome de um sistema muito bem estruturado, termo carregado de valor altamente positivo, mesmo quando o exercício de um determinado regime com seu nome não lhe faça jus (i.e. sempre). A noção do “direito divino dos reis”, por exemplo, foi praticamente extinta, embora haja desvairados tentando ressuscitá-la, ou algo parecido com ela. A noção aristocrática de “honra” perdeu quase todo o peso que tinha no edifício das virtudes, enquanto as categorias econômicas de eficiência e produtividade se tornaram excelências, e por aí vai.

Agora, o que está sendo posto em questão são essas mesmas categorias que triunfaram sobre as mais ultrapassadas, como “honra”, “glória” e “direito divino dos reis”, mas também uma série de princípios feudais e eclesiásticos que hoje nem sequer fazem sentido para nós. Também vale lembrar que esses esquemas de pensamento suplantam outros, anteriores, mas às vezes recuperam ou retrabalham alguns de seus princípios. Quando a eficiência, o profissionalismo e outras noções semelhantes se tornam os alicerces da virtude, tomam o lugar de noções como justiça, temperança e bem-viver (eudaimonia, às vezes traduzida também simplesmente como “felicidade”), marcas de um mundo tão diferente que se tornou quase incompreensível.

Por que estou dizendo isso? Porque a força das categorias é parecerem óbvias, o que envolve tornar outros esquemas categoriais incompreensíveis e aparentemente absurdos. Pois bem, com o século XXI chega o momento de explorar alguns campos que nos soam absurdos, porque é o óbvio que está se tornando inconcebível.

Algo dessas mudanças já vem tomando corpo, sobretudo na maneira como o próprio conceito de civilização vem sendo posto em questão: em muitos meios, não carrega mais automaticamente um valor de incremento do espírito humano ou algo assim, passando a envolver boas doses de violência, um certo caráter ilusório, uma desmesura dos povos que subjugaram os demais e forçaram uma definição do curso adequado às vidas de todos. Cada vez mais, a noção de civilização carrega um subtexto de colonialismo, quando associada à história dos últimos quinhentos anos – e o próprio termo “colonialismo” passou a ter conotações negativas que, há um século, não tinha. Por sinal, ainda hoje é possível ouvir gente formada nas escolas de décadas atrás (muitas décadas) repetindo que as potências coloniais “levaram a civilização” a “povos atrasados”. São categorias que já se desvaneceram… e outras mais estão por fenecer.

3 – Mais do que uma economia

É sintomática, por exemplo, essa mórbida dicotomia entre “salvar a economia” e “salvar vidas”, que grassou por algumas semanas, na crítica às medidas de confinamento contra o avanço do vírus. Mas vamos deixar de lado a morbidade, por um momento, olhando só para o caráter sintomático. Pois é sintoma de quê, ao certo? De que colocamos a economia acima (ou à frente, se preferir) da vida? Ora, mas como isso foi possível, se é imediatamente evidente que só há qualquer tipo de economia se houver vida? Talvez seja mais, então, um sintoma de que perdemos a noção do que vem a ser uma economia.

Convenhamos que uma epidemia, manifestação escandalosa de uma doença, é algo inseparável da vida como um todo e, portanto, algo que precede e deve ser pressuposto por qualquer forma de organização da vida. Se uma pandemia é capaz de bloquear e comprometer o sistema dessa operação para além da duração de seus próprios surtos, então forçoso é constatar que há uma falha fundamental no mecanismo que sustenta nossas vidas em sua forma determinada corrente. Isto é evidente para além de qualquer comparação com épocas anteriores.

Falando em épocas anteriores, a experiência atual dá até vontade de voltar a pensar ao modo dos antigos fisiocratas (Turgot, Quesnay etc.), que consideravam o setor agrícola como sendo o único que gerava riqueza, de fato. Para eles, era assim porque só na agricultura se traduzia para o universo dos humanos algo do mundo natural que era a condição da vida. “Valor” designava a transferência do natural para o humano, a energia do sol e do solo concentrada no trigo e na cevada, por sua vez transubstanciados como alimento e como mercadoria. Os demais setores se limitavam a transformar esses elementos condicionantes da vida, fazendo-os circular, tornando-os mais complexos e diversos. No fundo, a tradicional teoria do valor-trabalho, sobrevivente hoje quase apenas entre marxistas, levava esse princípio adiante e o atualizava para a era industrial: valor nada mais é do que a transformação das energias do mundo, por meio dos corpos e das máquinas, em formas da vida social. Um metabolismo. Valor, no fim das contas, é uma noção poiética.

E no entanto chegamos ao ponto em que se tornou aceitável pensar que a economia é algo oposto à vida, ou pelo menos além da vida, mais ou menos como na imagem da “grande fuga” de gente como Deaton. Isto é que é enigmático. Uma adulteração lógica a examinar. Sem entrar em detalhes, parece ser o caso extremo da grande ilusão moderna apontada por Latour e Stengers, e mesmo antes, por Whitehead. Ela consiste em estabelecer uma cisão rígida (mas mediada) entre o mundo social dos humanos e o mundo natural, bruto; em termos científicos, consiste em isolar os fenômenos de toda valoração ou implicação que pudesse ser dita cósmica (nos termos de Bachelard, um obstáculo epistemológico), para revelar apenas suas relações diretas de causalidade.

Enquanto se trata apenas de método científico, vá lá; mas a atividade que dizemos econômica não é redutível à linearidade causal expressa no par produção/consumo, como quer a mentalidade moderna. Mesmo assim, ela não pensou duas vezes antes de aplicar a esse campo, equivocadamente, a mesma lógica que lhe serviu na epistemologia. Nesta última, de modo controlado, ou ao menos assim se acreditava. No mundo concreto, vivido, social, de modo brutal, cego, desmesurado.

E essa desmesura vai além, porque está na base de todo o maquinário de absorção, sujeição e aniquilamento que caracterizou a expansão colonial desde fins do século XV. Da expansão marítima ao fabuloso trabalho de engenheiros que cortavam ferrovias na selva e nas montanhas, marejando os olhos dos espíritos científicos ao mesmo tempo em que enchia os bolsos de quem financiou tamanhas aventuras, a experiência moderna sempre insistiu na cisão com o que lhe parecia ser meramente um mundo natural, para em seguida absorvê-lo como um buraco negro absorve a luz. E pensar que já Sófocles dizia não haver nada mais maravilhoso e temível quanto o ser humano…

*

Sem dúvida, uma parcela da explicação para nossa incapacidade de entender o que é uma economia está na confusão entre a variedade e sofisticação do que pode ser apropriadamente chamado de econômico e o enorme dispositivo técnico que foi montado para mobilizá-lo. Trocando em miúdos, aquilo que constitui uma economia (a elaboração dos modos de vida) foi soterrado por algo que podemos chamar de um gigantesco sistema de pagamentos e compromissos/promessas de pagamento – não no sentido usual da expressão, mas como toda a arquitetura da moeda e dos instrumentos financeiros que a orbitam.

Podemos observar, por exemplo, que na atual crise está intacta toda a infraestrutura necessária para tocar as necessidades da vida, isto é, o sistema econômico, produção, circulação e consumo. O que não está inteiramente de pé é o uso dessa infraestrutura, o que já é suficiente para ameaçar uma ruptura do sistema econômico em níveis sem precedentes, ainda que possivelmente por um período relativamente curto. Materialmente, não há nada que impeça a retomada do sistema tão logo a população se sinta segura. Ou seja, o uso dessa infraestrutura permanece disponível, do ponto de vista material. E mesmo enquanto durar o período de contágio, não há nada, materialmente, que impeça toda a população de viver com um nível de segurança suficiente, até mesmo um certo conforto, contanto que haja coordenação suficiente para tal.

A produção de alimentos e de energia não foi interrompida, as cadeias de distribuição tampouco, a não ser como medida de precaução. Na prática, o único elemento do sistema econômico que congelou, ao ponto da ruptura, com consequências palpáveis para além do momento da epidemia, é o sistema de pagamentos (sem falar, é claro, nos sistemas de saúde, cuja saturação não é primariamente um assunto econômico, embora tenha causas e consequências econômicas).

A rigor, as medidas necessárias para manter uma estabilidade social bem acima do mínimo, aliás bem próxima do satisfatório, estão muito aquém do que países estão preparados para fazer em situações críticas, até mesmo em guerras. Esses são momentos em que pontes, fábricas e cidades são destruídas. Pense em episódios tão diferentes quanto Fukushima ou a Batalha da Inglaterra. Nada disso é o caso agora. Tanto é que as medidas que os governos estão buscando dizem respeito, todas, ao problema dos pagamentos: redução de juros, adiantamento de créditos, títulos públicos com finalidade específica, pagamentos emergenciais a trabalhadores, pequenos empresários, autônomos etc., diferimento de impostos e aluguéis… Nada disso é mirabolante e é bem menos traumático do que os boletins de racionamento típicos dos períodos de guerra, que são, por sinal, um método de distribuição com eficácia limitada, particular a determinadas circunstâncias, como todos os demais. Mas chama a atenção esse detalhe significativo: ora, a metáfora que temos ouvido por aí, a começar pelo pronunciamento de Emmanuel Macron, é justamente a da guerra!

Ora, é nesse preciso ponto que faltam os mecanismos para lidar com interrupções, já que o “sistema de pagamentos” designa tudo que tem a ver com relações monetárias: aluguéis, salários, juros, impostos, ações. São relações que marcam distinções sociais, ritmos do tempo vivido, obrigações entre empresas, bancos e governos. Não é que a economia tenha um “lado real” e um “lado monetário”; assim como tudo que a humanidade faz, o real da economia (que não é um lado) só toma forma por meio de um imaginário codificado, que vincula a ação dos corpos e coletivos a uma modalidade técnica de sentido e propósito. Mas sendo assim, essa codificação é manuseável, como vemos sempre que há uma crise. Foi por perdermos de vista o caráter técnico e sociopolítico do dinheiro que pudemos nos enredar nessa bagunça, dizendo tolices como “dinheiro não dá em árvore”, e que temos tanta dificuldade em projetar medidas que respondam a um tempo de paralisia sem traumas desnecessários. Entre economistas, quem entendeu melhor esse ponto foram os “folclóricos MMTers”.

A parte fácil é entender que não deve mais ser considerado algo tão surpreendente que o ciclo habitual da atividade econômica seja interrompido de súbito, por períodos de meses a cada vez. Isto significa que, no mínimo, será preciso estabelecer mecanismos de “ligar/desligar” para os momentos de catástrofe. Desta vez, nem vamos precisar de um profeta para sonhar com vacas magras. Mas isso, por sua vez, implica uma ruptura com a crença tão disseminada de que um sistema econômico é uma espécie de máquina que funciona por conta própria, e que tem suas próprias leis, e que elas se manifestam em indicadores aritméticos, veladamente monetários. Este é o coração do problema das categorias, no campo econômico.

Isto significa que, como sistema complexo de natureza socio-técnica, nossa economia financeirizada é nada menos do que incompatível com o que o século XXI – esse que começa agora – promete ser. Neste exato momento, instantes iniciais do século, a questão de curto prazo posta à nossa frente pode bem ser essa que estamos discutindo nas últimas semanas: se a economia consegue sobreviver quando centenas de milhares de pessoas estão hospitalizadas, outras tantas morrendo, e muitas mais sob risco de ser infectadas e sobrecarregar os hospitais. A versão empobrecida desse dilema transparece nessa dúvida sobre se restringir a circulação das cidades derruba o sistema de pagamentos.

Mas a tendência é que essa pergunta seja potencializada em proporções terríveis: se a economia pode sobreviver quando centenas de milhares estão se afogando (imagine as cidades costeiras…), outros milhares estão sufocando (pense nas queimadas), centenas de milhões de agricultores perdem suas plantações, outros tantos ficam sem água, e isso sucessivamente, ano após ano. Toda essa lista trata de episódios que já vêm acontecendo, mas até agora a coordenação do sistema econômico-financeiro global – um sistema complexo e resiliente – foi capaz de conter possíveis danos à capacidade de pagamento em nível global. A pandemia do coronavírus foi a primeira vez que essa capacidade foi amplamente posta em questão.

*

Para muitos, a resposta a essa incompatibilidade consistiria em reinstalar mecanismos de solidariedade social mediados pelo Estado, à moda do período social-democrata do pós-guerra. Mas é preciso ir muito além, já que as categorias e instituições social-democratas têm os dois pés muito bem fincados na modernidade da grande indústria, estão baseadas na relação salarial, no emprego fabril e formalizado, na pura aritmética do nível de produto (ou, mais simplesmente, o PIB), das taxas de variação, uma capacidade produtiva inabalável. Em breve, já não será mais o caso de trabalhar com essas categorias.

Para se restringir aos momentos de ruptura, como o atual: seria preciso que houvesse mecanismos de interrupção de todas essas relações estabelecidas, para que os danos de uma catástrofe ficassem contidos em suas próprias fronteiras. Seria preciso que dívidas, juros, aluguéis, impostos, pagamentos de toda ordem, se congelassem e retomassem com o retorno à, digamos, normalidade. Mecanismos emergenciais como as rendas mínimas emergenciais teriam de ser disparados automaticamente, para não chegar à possibilidade ainda um tanto controversa de que se tornassem rendas universais, perenes. Seja como for, a consideração de tudo que se entende por econômico teria de passar inteiramente ao largo de categorias como o “nível de produto” e, com ele, do crescimento.

Já isto, hoje, parece inconcebível e inteiramente fora do nosso quadro de pensamento. Uma economia cuja moldura institucional levasse em conta a certeza de eventuais interrupções?! No entanto, estou falando apenas do que seria preciso para lidar de modo um pouco menos traumático com a série de interrupções do processo econômico esperadas para as próximas décadas. Ou seja, esse é o mínimo necessário para tentar responder às ameaças dentro do esquema conceitual com que estivemos acostumados, mantendo pelo menos os princípios da vida econômica que levamos desde o século XVIII.

Mas se a idéia for passar a uma vida conforme aos problemas concretos do século XXI, mais ou menos como a industrialização e o desenvolvimento das finanças lidaram com as condições e possibilidades do século XVIII, então vai ser preciso uma capacidade inventiva muito maior. Neste caso, para ficar no âmbito do pensamento econômico, os institucionalistas são uma fonte mais interessante do que as demais escolas, já que reconhecem as condições sociais e políticas para o funcionamento de qualquer sistema econômico, particularmente a tão incensada economia de mercado. Nada garante que o arcabouço institucionalista seja suficiente, mas será preciso pensar as condições para que mercados funcionassem de modo intermitente, subordinados às condições materiais e concretas de um mundo natural que, se dependesse do próprio mercado e de seus teóricos, seria abordado apenas pelo ângulo dos seguros (o relatório Brundtland já previa o encarecimento das apólices, por sinal) e das externalidades – este, aliás, é o primeiro conceito a ser sacrificado, já que, num sistema complexo em que a atividade econômica testou os limites do planeta, o que aparece como externo é simplesmente o que há de mais interno.

Seguindo por essa linha de raciocínio, mais ainda do que os institucionalistas, seria o caso de recuperar o “substantivismo” de Polanyi, aquele que aponta a inversão característica da modernidade: considerar o social como incorporado à economia, em vez do contrário. Para garantir condições de subsistência e conforto, o mecanismo de mercado é apenas um dos caminhos (Polanyi elencou outros dois, que denominou “formas de integração”: reciprocidade e redistribuição). Há condições necessárias para que funcionem: com muita incerteza – financeira, política ou, agora, ecológica –, o sistema de pagamentos pode entrar em colapso. Em funcionando, há condições necessárias para que os mercados sejam úteis: quando alguém como o governo americano pode desviar para si todos os bens mais essenciais só porque tem condições de pagar, há um problema grave. Assim como há um problema grave quando todos os incentivos do mercado vão na direção de uma promoção insuficiente da saúde. Essas são algumas das questões que vamos ter que enfrentar.

4 – Riscos existenciais

Quando se fala nas principais fontes de catástrofes e, de modo geral, perigos no século que ora se inicia, a lista costuma incluir os seguintes pontos: mudança climática, biotecnologia, inteligência artificial, poderio nuclear. Grosso modo, são esses os nossos principais “riscos existenciais”, para usar a expressão de Nick Bostrom. É importante ter em mente que cada um deles alimenta os demais, já que são componentes de um sistema cada vez mais integrado e complexo, que é o sistema do planeta (“Earth system”), hoje tão geofísico quanto econômico, tão ecológico quanto tecnocientífico.

É real, por vários motivos, o problema da complexidade dos sistemas geo-bio-físico e tecno-financeiro-econômico, cada vez mais indistinguíveis. O primeiro está na própria recursividade dos sistemas complexos: eles tendem a aumentar o próprio nível de complexidade. No caso da vida, isto acaba significando evolução, mas, no caso de sistemas técnicos, envolve igualmente uma perda de controle – e acho que não há muita controvérsia em dizer que é preferível poder controlar os sistemas técnicos. Mas também é uma característica de sistemas complexos que sejam mais “resilientes” (anglicismo que parece já ter sido plenamente adotado em português), porém ao mesmo tempo mais vulneráveis. É assim que sistemas ecológicos se adaptam a mudanças consideráveis, climáticas ou até mesmo internas a eles mesmos, transformando-se para isso, sem maiores traumas aparentes – isto é resiliência –, mas eventualmente chegam a um ponto de virada em que não podem mais subsistir, e entram em colapso – isso é vulnerabilidade. As extinções em massa ocorreram dessa maneira: foram rápidas e súbitas.

A relação entre resiliência e vulnerabilidade pode se explicar mais ou menos assim, tomando o caso de zoonoses e outros patógenos. No noticiário sobre o atual coronavírus, lemos que laboratórios mundo afora estão correndo atrás de vacinas e que, eventualmente, dentro de um ano e meio, talvez, teremos resultados. Lemos também que bactérias estão cada vez mais resistentes a antibióticos, mas que também estão sendo desenvolvidos novas classes de medicamentos contra essas superbactérias. Com a exceção de pessoas que seguramente não estão lendo este texto, sabemos todos que as vacinas foram fundamentais para controlar doenças como pólio, sarampo e varíola, e continuam sendo fundamentais para mantê-las sob controle. Sabemos que o saneamento nos protege do cólera e da febre tifóide. Sabemos que um bom urbanismo é fundamental contra o avanço da tuberculose e outras doenças respiratórias. Metrópoles superpovoadas são espaços ideais para a transmissão em massa de vírus como esse da atual pandemia, mas também são onde melhor se previnem as doenças e mais se tem acesso a tratamentos de saúde. Sabemos que o aumento da ingestão de calorias foi um fator na melhora dos indicadores de saúde e no aumento da expectativa de vida dos últimos séculos (deixando de lado o problema da má nutrição com o avanço recente dos alimentos ultraprocessados, sobretudo nos países ricos).

Pois bem, todos esses elementos estão profundamente conectados. Uma zoonose como o ebola ou o coronavírus não apaga a humanidade da face da Terra porque os sistemas de prevenção e tratamento dão conta de evitar os maiores estragos. Isto significa que podemos continuar avançando sobre florestas, escravizando animais e ampliando manchas urbanas sem constituir nenhum risco sistêmico. Microorganismos outrora assassinos que estão presentes no nosso organismo não nos afetam mais porque temos como combatê-los ou estão enfraquecidos. Não se pode mais separar nossa saúde, individual ou coletiva, dos dispositivos técnicos no interior dos quais vivemos e que constituem boa parte do nosso mundo.

*

A coisa vai mais longe, porém. Os laboratórios que investigam curas e vacinas são ou bem públicos, ou bem privados, e seja como for, dependem de financiamento, seja por meio de impostos, investimentos ou empréstimos (contra a perspectiva de lucros). Os sistemas de distribuição dependem igualmente de financiamento, mas também de transportes, que por sua vez dependem de energia extraída, ainda hoje, majoritariamente de combustíveis fósseis. O urbanismo e o saneamento que garantem boa parte da nossa saúde dependem, além do financiamento, da disponibilidade de mão-de-obra, o que implica sistemas de educação, distribuição de alimentos e – veja a recursividade – saúde, urbanismo etc. O acompanhamento e combate de qualquer doença, praga ou catástrofe depende de redes extensas de informação e comunicação, que dependem de computadores, satélites, pesquisadores, universidades, eletricidade…

Todo esse enorme conjunto de sistemas está integrados também aos ciclos ecológicos, o que significa todo tipo de coisa: chuva, vento, rotação e translação da Terra, efeito-estufa, correntes oceânicas. Mas, como vimos com os dados da poluição na China, depois na Europa, hoje nem mesmo essas variáveis podem ser desconectadas da ação humana – ação dita econômica, essa mesma que está soterrada no sistema de pagamentos que faz as vezes de economia.

Assim sendo, já se vê que o sistema é resiliente porque é capaz de enfrentar um sem-número de crises sem romper, mesmo que precise se transformar. “Sem-número” porque, de fato, é bastante indeterminado quanta crise esse sistema todo pode enfrentar e ainda se manter quase incólume. Mas não é uma infinidade. O problema de sistemas complexos como esse que envolve o planeta e a atividade humana é que, de uma hora para outra, o que eram dispositivos de compensação (e, portanto, estabilização), se convertem sem aviso em mecanismos de reforço, provocando uma reação em cadeia que é destrutiva e muito veloz. Este é o sentido da vulnerabilidade contraposta à resiliência.

Para ficar no exemplo da saúde, uma vez que entendemos o quanto a complexidade técnica, social e econômica nos protege contra eventuais doenças, também podemos entender o quanto estamos expostos uma vez que esses sistemas entrem em colapso. Se faltar financiamento para os laboratórios, os remédios e vacinas que nos mantêm saudáveis podem desaparecer de imediato. Nesse momento, também é provável que falte financiamento para os sistemas de tratamento. É provável que também falte para a produção de energia que alimenta os sistemas de transporte e distribuição que traziam os remédios e vacinas, mas também traziam o alimento. As redes de comunicação emudecem. Também fica comprometido o saneamento e, dentro em pouco, o mesmo acontece com o urbanismo, como foi quando a manutenção dos aquedutos se tornou inviável nas cidades do Império Romano decadente. Assim, em pouco tempo, nós, que estávamos tão bem protegidos contra novas doenças – e mesmo velhas doenças –, de súbito estamos completamente expostos.

Como cada um desses sistemas – inteligência artificial, biotecnologias, clima, nuclear, mas também finança, indústria etc. – é complexo por si só e todos estão conectados de múltiplas maneiras, constituindo um super-sistema-mundo, todas as tendências da complexidade se reforçam, da acelerada complexificação à resiliência e à vulnerabilidade. Muitas pequenas rupturas podem ocorrer sem derrubar o “sistema de sistemas”, muitas vezes inclusive reforçando-o, embora acumule resíduos que podem depois se revelar fatais.

Talvez o acúmulo dessas tensões, ao aumentar o estresse do sistema, leve ao seu colapso; talvez leve a uma supersaturação que induza à completa reconfiguração do sistema como um todo, levando a uma nova lógica, novos atratores, novas categorias, novas instituições etc. Esta é a maior esperança. J.-P. Dupuy, que cunhou a expressão “catastrofismo esclarecido” para designar a postura racional e esperançosa perante uma catástrofe já encomendada e que se torna cada vez mais palpável, teme que os sistemas em tensão acabem redundando em guerras que ponham tudo a perder. Pois bem, a corrida contra o tempo pode ser posta nesses termos: invenção ou guerra. Inventar novas categorias e parâmetros para novas configurações do sistema-mundo, antes que estejamos afogados num dilúvio de ferro, fogo e sangue.

5 – Para novas categorias

Com toda essa conversa de categorias que se tornam obsoletas, resta se perguntar sobre a emergência de novas categorias – aliás, “emergência” é um péssimo termo, já que se trata de um lento trabalho de invenção e amplificação, sem que nada pule “para fora” de nada. Ou seja, se o século nascente demanda uma passagem a novos conceitos de base, de onde eles virão?

Aqui é que reside toda a beleza das possibilidades abertas, da esperança e da coragem de viver – e viver consiste em construir as maneiras como essa vida vai se constituindo, se desenvolvendo, percolando pelas nossas relações conforme se desenvolvem. Aqui aparece novamente aquela proposta do começo do texto: se queremos fazer a aposta de que vamos chegar bem ao fim do século XXI, mesmo sabendo que será um período difícil, traumático, temos que ver quais são as condições para isso. Ou seja, explorar as possibilidades, examinar com cuidado o que parecia funcionar e não funciona, apontar as limitações das categorias usuais, investigar os potenciais de categorias concorrentes, vendo onde falham e onde prosperam… e assim por diante.

Seja o que for que vai constituir o esquema de interpretação do mundo no século XXI, o que parece seguro dizer é que seus principais elementos já estão flutuando pelas margens do mundo. Algum gaiato poderia dizer que essas figuras políticas monstruosas que vêm ganhando espaço também vêm das margens dos sistemas políticos estabelecidos. E esse gaiato teria razão, até certo ponto. Quando os modelos da era anterior começam a exibir trincas e pouco a pouco se põem a ruir, quem sai na frente são essas suas formas adulteradas, teratológicas, das margens do sistema estabelecido mas ainda orbitando nele e se alimentando dele. Mas elas só têm a oferecer o esforço violento de postergar qualquer invenção propriamente de fundo, tarefa que tende a se tornar cada vez mais trabalhosa, na medida em que requer volumes cavalares de recursos e energia. Além disso, é mesmo de se esperar que haja linhas de conflito e que justamente esses nomes monstruosos sejam a linha de frente do atraso.

Mas o que imposta é investigar de onde virão as invenções, que serão capazes de esvaziar essas forças do atraso. E aqui há uma miríade de possibilidades, é claro, já que são categorias da margem e é da natureza da margem multiplicar-se, variar infinitamente, provocar múltiplas diferenciações, algumas das quais se desvanecem logo em seguida, enquanto outras prosperam. Se as energias que circulam nas margens podem ser capturadas por essas figuras monstruosas e destrutivas, seu efeito é esfriá-las. Mas também podem ressoar umas com as outras e criar formas inesperadas, cuja fecundidade é impossível prever e depende das tendências mais amplas com as quais poderá se conectar.

Isto posto, é difícil escapar à tentação de fazer um arrazoado de iniciativas que introduzem novas lógicas (ou lógicas marginais) e, com elas, o potencial de uma reconstrução de categorias. Sem procurar muito longe, basta falar em princípios como a permacultura, os laboratórios maker, os circuitos de troca, que funcionam nos interstícios das cadeias globais de valor, em canais que resistem a traumas que seriam – e são – capazes de romper os vínculos de escala maior. Ainda no plano da produção/circulação/consumo, pululam mundo afora esquemas de comércio justo (ou “equitável”), moedas complementares, bancos comunitários, que permitem um manejo muito mais adaptável e fluido da distribuição dos meios necessários à vida, bem como sistemas de pagamento mais controláveis e sujeitos ao imperativo do bem-estar ou bem-viver.

Recuando um pouco, para poder avançar melhor: em momentos como o desta pandemia, vemos como essas categorias são maleáveis, ainda que busquem se manter rígidas. De um lado, governos e outras instituições abrindo exceções em suas maiores crenças, mas a muito contragosto: auxílios aos desempregados e pequenos empresários, rendas básicas emergenciais etc. De outro, o reforço ou ressurgimento, sobretudo nas periferias, de redes de solidariedade que se acreditava terem sido soterradas ou tornadas obsoletas pela modernidade individualista, contratual. Redes como essas podem até mesmo ser capazes, no fim das contas, de evitar o cenário apocalíptico esboçado por muitos, com roubos a supermercados e famílias pobres levadas a passar fome. Não estou dizendo, valha-me Deus, que basta contar com redes de solidariedade e podemos ficar tranqüilos a respeito das categorias que organizam nosso mundo. O que estou dizendo é que podemos aprender com elas, enxergar nelas elementos de novas dinâmicas sociais, políticas e econômicas.

*

Como sabemos, o coronavírus, assim como, antes dele, o ebola, o HIV e vários tipos de influenza, é uma zoonose, ou seja, patógeno que transita dos animais para os humanos. Não deixa de oferecer uma ocasião propícia para especular sobre outras instâncias de um trânsito entre mundos que nos forçamos a pensar como separados; a zoonose, como a queimada, a praga, a inundação e, muitas vezes, o câncer, apareceria então como um mediador, um viajante, um diplomata cujas mensagens (Botschaft, diriam os alemães) são a morte, a doença ou, se for o caso, misérias de outros tipos. Naturalmente, só pode nos parecer assim porque imaginamos essa divisão absolutamente ficcional.

Não há propriamente um trânsito, se entendermos que a relação entre mundo humano e mundo animal é uma questão de mera topologia, nada mais do que os movimentos forçados que a lógica divisora da modernidade impôs às dinâmicas que a ultrapassam. Mas o mais relevante é notar que o agente dessa comunicação das doenças entre humanos, morcegos, porcos, frangos e outros bichos, esse minúsculo xamã da morbidade, é um ente microscópico, tão simples, tão estranho – um vírus! Um pedaço de código genético encapado que nem sequer conseguimos determinar como sendo vivo – ou melhor, como sendo um ser vivo de pleno direito (direito!). Um ente que só pode existir com alguma clareza nas conexões, de um corpo a outro, de uma espécie a outra, sendo parte da vida só quando salta entre os infectados.

Existe um curioso paralelismo entre o simples vírus e toda a complexidade do aparato tecnológico humano. A diferença é que o primeiro nos lembra da nossa inserção inescapável (e bem tentamos escapar!) nas dinâmicas naturais – ou cósmicas, para empregar um termo mais carregado de implicações. Enquanto isso, o aparato técnico, mesmo ao operar justamente na mediação física e psíquica com o meio associado, tem nos servido mais para esquecer de seus dinamismos necessários, patentes, inescapáveis, fazendo parecer que nos isola deles.

Na verdade, boa parte da reconstrução das categorias sociais, políticas e econômicas consistirá em refundar a lógica dos dispositivos técnicos, para que sejam os operadores da tarefa de enxergar nossa inserção nos dinamismos naturais, ampliar os modos dessa inserção, reforçar a conexão entre nosso metabolismo e os demais. Também isto existe nas margens, aparece em filigrana nas ciências do clima e do sistema-Terra mais amplamente. De um modo mais próximo ao quotidiano, aparece no esquema de Kate Raworth com os círculos concêntricos da economia possível, que ela compara a uma rosquinha (Donut Economics). Por sinal, o subtítulo do livro dela é: “pensar como um economista do século XXI”, o que só reforça a ideia de que este era um século ainda por começar.

Aparece também na paulatina reemergência de tantos saberes subordinados (expressão de Foucault), que foram suprimidos ou absorvidos pelo saber magno do “espírito científico” moderno, objetivante, isolante, triunfal ao silenciar sobre valores e vínculos cósmicos, enquanto agia tecnicamente sobre esses mesmos valores e vínculos. Pelo menos, vejo assim a retomada de interesse em pachamama, sankofa, ubuntu, motainai, candomblé.

Desnecessário dizer que este é um trabalho árduo e de longo prazo, que só pode ser levado a cabo por meio de muita reflexão, mobilização e articulação. A seguir no exercício de pensamento em que reconhecemos na pandemia do coronavírus um verdadeiro evento, um ponto de virada, ato fundador, chame como quiser, o que se apresenta diante de nós é um chamado à invenção. O mundo passou a última década, pelo menos, postergando transformações cuja necessidade estava patente. Sem reação digna de nota, assistimos à perpetuação de uma mecânica econômico-financeira fracassada, suicida, reconhecidamente alienada – isto é, desconectada de seus próprios princípios. Pasmos, mortificados, acompanhamos a ascensão irresistível de figuras políticas doentias, alimentadas por medos, vergonhas e dores indefiníveis. Uma autêntica necropolítica, engordando com a perspectiva do mortífero.

Talvez faltasse engrenar o século XXI. Talvez estivéssemos meramente na fase de transição para ele. Mas com o coronavírus, mensageiro da vida indecidível, irrompe um século em que a vida, ela mesma, é uma questão de decidir. Se for assim, encerrou-se a década do impasse, com um chamado a encerrar a agonia da modernidade. Eventualmente vamos sair de casa e lá vai estar o século XXI, esperando por nós.

Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, crime, desespero, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, modernidade, morte, obrigações, opinião, Politica

Naturam expellas (Parte 1)

[Nota: o ecocídio no Rio Doce me motivou a retomar um texto que vinha tentando escrever desde setembro. O resultado segue aí abaixo, embora esteja ainda apressado e com ar de rascunho. Mas é rascunho mesmo, respirando com a pressa que o tema exige. Esta é a primeira parte de um raciocínio que ficou mais longo do que o usual. Por isso, resolvi postar em fascículos, para não me cansar, nem ao leitor. Calculo que poderei postar cada parte com um intervalo de dois dias. Eu não poderia fazer diferente, dada a gravidade do assunto.]

Mariana (MG) - Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco (Antonio Cruz/Agência Brasil)

Naturam expellas furca tamen usque recurret

et mala perrumpet furtim fastidia victrix.

Horácio (Quintus Horatius Flaccus, 65aC-27aC)

Talvez seja uma barbaridade tratar de uma tragédia criminosa e desmesurada evocando um poema da antiguidade clássica. Mas acho que essa estratégia pode pelo menos servir como um recurso para tentarmos pensar à frente, quando nos damos conta de que, lá atrás, alguém já avisou, já deu a real, e a gente segue se estropiando por conta da nossa própria irresponsabilidade e cegueira.

Diz o poeta, escrevendo em 50 a.C.: “você pode expulsar a natureza com um ancinho, ela volta cedo ou tarde / irrompendo vitoriosa contra o seu tolo desprezo”. Nos últimos anos, enquanto subia a temperatura e descia a Cantareira, tomei gosto por esses dois versos da epígrafe. A estrofe a que eles pertencem compara a vida nas cidades e no campo.1 Mas para nós, claro, a imagem adquire um sentido bem mais urgente.

Há um mês, lia-se que o Rio Doce não está mais chegando até o mar no Espírito Santo. E agora, para piorar o que já era trágico, o que vai chegar ao oceano é uma enxurrada de metais pesados e tóxicos, depois do rompimento da barreira em Mariana. É bom lembrar que a barreira em questão é pertencente a uma empresa de nome Samarco, subsidiária de duas das maiores mineradoras do mundo: a anglo-australiana BHP Billiton e a nossa conhecida Vale do Rio Doce – empresa que, grosseira ironia, tira o nome do próprio rio que agora destrói. Morreu gente, morreram peixes, morrerão tartarugas, agriculturas ficarão inviáveis. Não há como exagerar no horror.

No mês passado, um naufrágio no porto de Vila do Conde, em Barcarena (Pará), matou boa parte de uma carga de cinco mil bois. Muitos deles afundaram junto com o barco e suas carcaças estão apodrecendo no leito do rio. Milhares de corpos inchados, milhares de esqueletos, no fundo de uma das principais bacias hidrográficas do mundo. Simplesmente porque precisamos exportar mais e mais toneladas de carne – e soja, e minério de ferro, e alumínio… – para cobrir um déficit de conta corrente que, como sabemos com maior ou menor grau de consciência, não pode ser coberto. Escândalos que se somam a escândalos.

Lamento ter que dizer isso: o mais provável é que esses sejam só os primeiros de muitos desastres que seremos obrigados a testemunhar nos próximos anos e, temo, décadas. Não tenho dúvida. Logo se vê pela reação dos responsáveis e das autoridades: livrando a barra da Vale, falando apressadamente em “desastre natural”, recorrendo a doações da população mais bem intencionada, evocando a importância econômica da atividade mineradora no Brasil, embora um breve raciocínio baste para mostrar que esses benefícios econômicos todos são uma enorme e perversa ilusão.

Indonesia

Eu poderia dizer que hoje a Vale se tornou a nossa BP (petrolífera ex-estatal britânica responsável pelo vazamento catastrófico do golfo do México em 2010). Mas não dá para ignorar que, pela frouxidão com que tratamos o tema ambiental – leia-se, o tema do território, do chão em que pisamos, da comida que comemos etc. –, caminhamos rumo a uma proliferação de casos semelhantes. Pelo andar da carruagem, seremos o país das mil BPs. Falando nisso, foi inspirada pelo desastre no golfo do México que Naomi Klein escreveu em 2014 o livro This Changes Everything; no caso do Brasil, o máximo que posso me dispor a dizer é: “I hope it does”. Mas continuo cético.

Com isso, podem dormir na santa paz de Deus as outras mineradoras, petrolíferas, empreiteiras, incorporadoras, bancos, latifúndios, usinas e por aí vai, que doam os bilhões de nossas campanhas eleitorais para poder esgotar o território (florestas, cidades, campos, mares, rios, subsolos…). Quando o mundo vier abaixo, tudo estará bem para esse pessoal, e mal para o resto de nós, com o beneplácito de todo o espectro político, incluindo a imprensa e os sindicatos. Ainda não entendemos a gravidade da ameaça que ronda nossas cabeças, e não é simplesmente uma crise pertencente aos ciclos produtivos. Essas passam.

E se o assunto é “expulsar a natureza”, parece que essa é uma fixação atávica que nós temos. Já no primeiro reinado, eis o que relata o pintor francês Jean-Baptiste Debret, que retratou algumas de nossas verdades mais desconfortáveis:

Pintor de teatro, fui encarregado de nova tela, representando a fidelidade geral da população brasileira ao governo imperial, sentado em um trono coberto por rica tapeçaria estendida por cima de palmeiras. A composição foi submetida ao ministro José Bonifácio, que a aprovou. Pediu-me apenas que substituísse as palmeiras naturais por um motivo de arquitetura regular, a fim de não haver nenhuma idéia de estado selvagem. Coloquei então o trono sob uma cúpula sustentada por cariátides douradas (…).

Desde o berço, o brasileiro desenvolveu essa mesma relação que temos hoje com o solo em que pisamos e aquilo que nele cresce: há que esconder-se a natureza! Substituí-la por “um motivo de arquitetura regular”! Expulsá-la da representação do que seja o Brasil, naquele que é um de seus símbolos fundadores, a coroa estilizada do primeiro monarca. Nada de palmeiras! A natureza não está aí porque ela não existe. Ou seja: não temos natureza, o que temos são recursos naturais, matérias-primas… Riquezas que fazem nossa pujança e grandeza, como querem nos fazer crer.

debret35a

O que mais me desanima é o quanto tudo isso é evidente. Lembro bem dos meus primeiros anos em São Paulo: verões mais ou menos amenos, invernos frios, com temperaturas de um dígito – exceto em uma ou duas semanas do chamado “veranico”, palavra que caiu em desuso, já que hoje podemos vivenciar um mês de setembro como o deste ano, cujo calor, em pleno inverno, me dava dor de cabeça.

Naquele tempo nem tão distante, tempestades de verão eram impensáveis em setembro. Neste ano, tivemos exatamente isso, embora o mês, de modo geral, tenha sido seco como têm sido quase todos os meses há coisa de dois anos. E se eu cruzar com alguém na rua se referindo a “veranico”, não dá para evitar, sangue vai correr. Tivemos algumas semanas chuvosas em São Paulo em outubro e as pessoas já vêem afastar-se a famigerada crise hídrica (que, para parafrasear uma declaração atribuída a Darcy Ribeiro, parece não ser crise, mas projeto). Mal sabem elas que aqueles pés d’água de outubro mantiveram o mês abaixo da média histórica, apesar de tudo…

E falando em correr sangue, se a coisa continuar nessa toada, já se vê que dezembro, janeiro e fevereiro vão ser meses mortíferos. Basta lançar um olhar para o subcontinente indiano, onde 4500 pessoas foram ceifadas por uma onda de calor em maio e junho. E como já se fala em um “Super El Niño” para este verão – já li até a expressão “um El Niño Godzila” –, é de se esperar que setembro pareça ameno em comparação com o que vem pela frente. Mas nenhum desses sinais basta para que o país, como um todo, a começar por suas elites sociais e econômicas, para não falar nas lideranças políticas, coloque esse tema nas primeiras posições da pauta.

E no entanto é um problema que ultrapassa o Brasil, embora o atinja em cheio, na condição de país continental que é. Desastres mortíferos, água acabando, queimadas generalizadas na Indonésia, ciclones mastodônticos no México. No contexto mais amplo, leio notícias de que 2015 baterá o recorde de 2014 como ano mais quente da história (“literalmente território desconhecido”, diz um comentarista, ao compartilhar o gráfico da evolução de temperaturas este ano).

Soubemos também recentemente que a Volkswagen, malandrinha, andou falsificando uns testes de poluição; que o Reino Unido não vai conseguir atingir sua meta de redução de emissões de carbono; que as metas brasileiras “ambiciosas” para reduzir desmatamento, anunciadas por Dilma na ONU em setembro, de ambiciosas não têm nada. Que a China está mais uma vez coberta de poluição.

A boa notícia do ano foi o anúncio de que Obama rejeitou a construção do oleoduto conhecido como Keystone XL, que carregaria petróleo de Alberta, no Canadá, até o golfo do México (pobre coitado…) no Texas. Um ligeiro vento de esperança, mas dado o esforço que movimentos como o 350.org tiveram de despender para conseguir essa vitória, é uma lufada realmente ligeirinha, facilmente engolfada pelo temor com o que há de vir.

O ancinho e nós

Quintus_Horatius_Flaccus

Por essas e outras, não tem como não admirar a fórmula sucinta de Horácio. Dia após dia, estamos tentando expulsar a natureza, com qualquer coisa que faça o papel do tal do ancinho. Por exemplo: como se abrigar desse calor todo? Ora, comprando um ar-condicionado. Mas se a temperatura fresquinha é conseguida aqui dentro graça a um dispêndio brutal de energia, que vai aquecer o resto do mundo lá fora, cedo ou tarde o abafado volta. Talvez não diretamente aqui, mas em algum lugar.

E se está quente na rua, é melhor ir para qualquer lugar de carro – com o ar condicionado ligado, claro, reproduzindo mais uma vez o problema, em duas frentes: a poluição do motor e o gasto energético da refrigeração. Tudo isso para não falar do consumo de energia elétrica, obtida seja com barragens (que andam com reservatório baixo), seja queimando carvão. E assim por diante, até a irrupção vitoriosa daquela que quisemos expulsar.

Mas é certo que a culpa não é do pobre diabo que ativa o ar-condicionado da sala para aliviar o sofrimento dos filhos. Para evitar esse tipo de leitura culpabilizadora e moralista, tratemos Horácio como o autor de uma enorme metonímia: cada ar-condicionado vale por milhões de aparelhos no mundo; o ancinho é o arquétipo de tudo que já se usou para obter essa magra vitória sobre o mundo natural. Assim sendo, já está evidente para qualquer um com um mínimo de boa vontade que a humanidade foi, mais do que arrogante, verdadeiramente frívola ao pensar que “com um ancinho” (muitas vezes traduzido como “violentamente”) poderia “expulsar a natureza”, e que ela não voltaria, mais cedo ou mais tarde, “furtim fastidia“.

A observação de Horácio, porém, é só a primeira das respostas possíveis. Ah, sim, diz o poeta, ela volta e volta triunfal: “recurret victrix”. Vitoriosa, vingativa, violenta. Nessa resposta, ela passa por cima de tudo e retoma o que era seu – o que sempre foi seu, talvez. No plano de um poema que compara a vida urbana à campestre, como é o do autor romano, o sentido dessa idéia é que o dia-a-dia de quem tenta se livrar da natureza é ocupado em varrer, lavar, pintar paredes, consertar telhas, podar árvores, eliminar mofo, jogar fora frutas podres, matar ervas daninhas.

A woman wearing a mask walk through a street covered by dense smog in Harbin, northern China, Monday, Oct. 21, 2013. Visibility shrank to less than half a football field and small-particle pollution soared to a record 40 times higher than an international safety standard in one northern Chinese city as the region entered its high-smog season. (AP Photo/Kyodo News) JAPAN OUT, MANDATORY CREDIT

No plano de um mundo ultra-industrial, financeirizado e cego para suas próprias condições de existência, como é o nosso, a interpretação é bem mais sombria: quanto mais labutamos, quanto mais esforço fazemos, quanto mais desenvolvimento para mandar a natureza para longe, mais irresistível ela vai ser quando voltar, engolindo a todos nós. Quanto mais barragens de rejeitos tóxicos, mais enxurradas. Quanto mais usinas atômicas à beira-mar, mais Fukushima. Quanto mais for viável economicamente arrancar o petróleo do leito marítimo, mais desastres no Golfo do México. Quanto mais for necessário expandir a fronteira agrícola para garantir a expansão de cadeias de junk food, mais queimadas fora de controle na Indonésia.

A imagem que temos ordinariamente da mudança climática ilustra bem essa perspectiva apocalíptica, com sua justeza e também seus exageros. Os mares subirão, as cidades serão engolidas, as florestas se tornarão desertos, as lavouras morrerão, metano jorrará (ou já está jorrando) de enormes crateras na Sibéria. Cada um por si e Deus contra todos. A natureza no papel de Conde de Monte Cristo, eliminando pouco a pouco e fazendo sofrer aqueles que a traíram. Quem é que não está cansado de ler alertas assim?

Mas poderíamos explorar uma outra resposta para a mesma fórmula da natureza que tentamos expulsar só para vê-la retornar vitoriosa. Nesta resposta, o problema de querer enxotar a natureza não está simplesmente em sua arrogância frívola, mas acima de tudo em seu caráter de cabo a rabo ilusório. Assim, os desequilíbrios naturais provocados pelo modo de atuação do ser humano “sobre” a natureza – mas na verdade “na” natureza – se situariam não na interação alienada e extravagante entre um dentro (da casa, da cultura, da civilização, da economia, da humanidade) e um fora (a natureza que foi expulsa, as “externalidades negativas” geradas pela atividade humana, econômica em particular), mas por todos os lados, ou seja, na manutenção da própria idéia de uma “casa” que estaria isolada da natureza; na contemplação de uma natureza que está para lá das paredes; no gesto ele mesmo pelo qual cremos estar (violentamente) expulsando a natureza; por fim, no próprio instrumento que usamos para realizar essa pretensa expulsão: o “ancinho”.

Pretendo, daqui para baixo, demarcar as diferenças entre essas duas respostas possíveis, essas duas leituras rivais dos versos de Horácio tal como transplantados, sem considerações sobre o contexto, para nossa realidade. São diferenças cruciais, bem entendido. Como veremos, todos os termos que aparecem nos versos podem ser lidos diferentemente e, com eles, a maneira como nos relacionamos com essa realidade que nos toca – tão urgente, cada vez mais urgente. E com conseqüências profundas, ainda por cima.

Continua na PARTE 2

Leia também a Parte 3

Leia também a Parte 4

Leia também a Parte 5

Leia também a Parte 6

morte dos bois

Notas

1. Pouco antes desses dois versos, há estes outros dois também lindos: “purior in vicis aqua tendit rumpere plumbum / quam quae per pronum trepidat cum murmure rivum?”, que costuma ser traduzido assim: “A água que nas ruas da cidade luta para estourar os canos de chumbo / é mais pura do que aquela que trepida e murmura por um rio?”

Padrão
barbárie, calor, capitalismo, crime

Da série citações: cientistas perante o inconcebível

glaciers

“Há mais de trinta anos, os cientistas do clima têm vivido uma existência surreal. Um volume de estudos vasto e em constante expansão aponta que o aquecimento global tem seguido a evolução da presença de gases de efeito estufa exatamente como seus modelos previam. Os indícios físicos se tornam a cada ano mais dramáticos: o recuo de florestas, os animais que migram para o norte, as geleiras que derretem, as temporadas de incêndios florestais que se estendem, maiores taxas de secas, inundações e tempestades – cinco vezes a mais nos anos 2000 do que nos anos 1970. (…) A mudança climática induzida pelo ser humano é real – as temperaturas nos EUA subiram entre 1,3 e 1,9 graus [Farenheit, suponho], principalmente desde 1970 – e a mudança já afeta a agricultura, a água, a saúde humana, a energia, o transporte, florestas e ecossistemas. Mas isso não é o pior. As temperaturas do ar no Ártico estão subindo duas vezes mais rápido do que no resto do mundo – um estudo da marinha dos EUA diz que o Ártico pode perder por inteiro sua cobertura de gelo do verão no ano que vem, 84 anos antes do que previam os modelos – e os indícios de pouco mais de um ano atrás sugerem que a cobertura de gelo do Oeste da Antártica está condenada, o que vai acrescentar entre 20 e 25 pés ao nível do mar. Os 100 milhões de pessoas que vivem em Bangladesh precisarão de outro lugar para viver e cidades costeiras em todo o mundo serão forçadas a se deslocar, uma tarefa dificultada pela crise econômica e a fome que virão – com o interior dos continentes secando, (…) um bilhão de pessoas vão se ver passando fome dentro de 20 ou 30 anos. Ainda assim, apesar de alguns desenvolvimentos na área de energia renovável e algumas conquistas da liderança internacional, as emissões de carbono continuam aumentando regularmente, e os próprios cientistas (…) foram alvo de ataques incansáveis e bem organizados que incluíram ameaças de morte, convocações por um Congresso hostil, tentativas de conseguir suas demissões, assédio legal (…), tudo amplificado por uma propaganda incansável financiada descaradamente pelas empresas de combustíveis fósseis. Pouco antes de uma reunião de cúpula decisiva em Copenhagen em 2009, milhares de seus e-mails foram hackeados em uma operação de espionagem sofisticada que nunca foi esclarecida – embora as investigações oficiais da polícia não tenham revelado nada, uma análise de especialistas técnico-legais revelou o caminho dos ataques a partir de servidores na Turquia e em dois dois maiores produtores de petróleo do mundo, a Arábia Saudita e a Rússia.”

A citação aí acima foi retirada de uma matéria da Esquire (sugiro fortemente a leitura). Quem recomendou foi a Camila Pavanelli, que até há pouco publicava o indispensável Boletim da Falta d’Água. (Obrigado, Camila.) A extensa reportagem trata de cientistas que, vendo em primeira mão os dados sobre o desastre ambiental, ou seja, o colapso do planeta na medida em que é capaz de suportar a existência dos humanos, entram em desespero. Alguns buscam alternativas para a vida depois do colapso final, outros simplesmente abandonam o trabalho, outros entram em depressão profunda. Uma das cientistas, inclusive, começa a estudar psicologia para tentar entender como é possível que a humanidade ainda não tenha se dado conta de que é preciso mudar radicalmente de vida – caso contrário estaremos todos perdidos.

Foi esta última personagem que fez Camila lembrar-se de um texto que escrevi em janeiro, e que também trata desse estado de negação, esse verdadeiro bloqueio psíquico, que nos faz continuar vivendo como se… bom, como se houvesse amanhã, para colocar de um jeito meio musical. Escrevi em janeiro, quando São Paulo estava estorricando, faltava água, e o pessoal continuava preocupado com o PIB ou com o fim-de-semana em Bertioga. Pois bem, agora é agosto; as pessoas estão preocupadas com o PIB, o campeonato brasileiro, o impeachment e o fim-de-semana em Bertioga. E São Paulo está estorricando.

Tudo isso porque, repito: o colapso é algo que conseguimos dizer, mas não exatamente pensar. É O Inconcebível.

Bem; talvez esteja na hora de conceber.

Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, costumes, crime, doença, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, modernidade, morte, obrigações, opinião, Politica, reflexão, Sociedade, tempo, trabalho, tristeza, vida

O Inconcebível

3077-digital_art_3d_earth_and_moon_wallpaper

“Colapso”. Nossas conversas do dia-a-dia, aquelas do bar, da calçada, do elevador, ganharam agora uma nova palavra, um novo clichê. Colapso, como quando as fundações de um prédio se rompem e ele cai, ou quando um sistema complexo se revela mal planejado e ele entra em parafuso. Ou quando a defesa de algum time bate cabeça e toma uma goleada.

Dizemos assim: daqui a pouco a água acaba em São Paulo e a cidade vai entrar em colapso. Às vezes avançamos no raciocínio, citando que a estiagem veio para ficar, por causa da mudança climática e do desmatamento – afinal, já faz anos que tem chovido paulatinamente menos. Então toda a economia do Sudeste vai entrar em colapso: sem chuvas e com tanto calor, as hidrelétricas não agüentam.

Ocasionalmente, tendo mencionado o clima, o pensamento continua avançando e dizemos: se não fizerem algo, o mundo todo é que vai entrar em colapso. E, de fato, é pequena a probabilidade de “fazerem” alguma coisa, uma vez que, vivendo de abstrações, a humanidade, essa que poderia fazer alguma coisa, passou as últimas décadas espoliando o planeta. No máximo, dá para contar com alguns arranjos perfeitamente dribláveis por quem tem imaginação – coisa que não falta aos empreendedores mundo afora.

Às Últimas Conseqüências

SECA-SP-3

Esse termo, “colapso”, merece um olhar mais atento. Escutando suas três sílabas, percebo que saímos pronunciando a palavra de modo um pouco leviano, como diria o senador Neves. Quantas vezes não afirmei por aí, para puxar papo com um vizinho ou o porteiro, que “o colapso” está ficando cada vez mais provável? Mas será que eu consigo imaginar o que essa expressão implica realmente? Será que sou capaz de representar na minha cabeça o que é o tal colapso? Acho que não. Continuar lendo

Padrão