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Aqueles que celebramos e humilhamos

Sempre achei deliciosa a definição de Jorge Luis Borges para a Guerra das Malvinas: era como a briga de dois carecas por um pente. Mas na sala escura de um teatro de São Paulo entendi que essa analogia tem uma limitação cruel. Em assuntos de guerra, política, diplomacia ou alta finança, os carecas que brigam mal querem saber do pente. Não ligariam se ele se esfarelasse. O que os carecas disputam é a própria disputa, para desgraça dos que vão para a linha de frente. Se são carecas, é porque assim lhes cai melhor a coroa – de ouro, de louros ou de latão. É simplesmente em nome do caimento dessa coroa que se põem a brigar pelo pente, como disputariam um botão ou um dedal ou qualquer outra desculpa para brigar. No caso das Malvinas, os carecas em questão eram Margaret Thatcher e Leopoldo Galtieri, ambos com dificuldade em manter a coroa na cabeça.

Não foi este o único estalo que me deu enquanto assistia a Campo Minado, peça-documentário de Lola Arias que esteve na Mostra Internacional de Teatro de São Palo (MIT-SP). A diretora pôs no palco seis ex-combatentes, três argentinos e três ingleses, nenhum deles ator profissional. Meia dúzia de homens com quase sessenta anos, que na casa dos vinte foram mandados para o pente de Borges a fim de bombardeá-lo, miná-lo, metralhá-lo, até que um dos dois carecas perdesse a coroa de vez – foi Galtieri, como sabemos. Os ingleses, vencedores, tiveram em compensação que engolir Thatcher por mais oito anos.

Das muitas coisas a comentar sobre o espetáculo e principalmente a partir dele, há uma que deve reter nossa atenção. Algo no relato do que aqueles homens viveram há tantas décadas é muito familiar. Ressoa com o noticiário de mais curto prazo e também com algumas sensações atávicas que povoam a subjetividade de qualquer brasileiro. Eu diria que é um enigma, algo que deveria nos atingir diretamente na cara.

I

A maior parte das leituras que já fiz sobre essa guerra destaca o absurdo de uma ditadura que manda seus jovens para serem massacrados em nome de um delírio. Este é o sentido do pente de Borges: a idéia de que a conquista de um território de pingüins representaria um triunfo contra o imperialismo. Mas existe um substrato para todo esse absurdo que precisa ser trazido à superfície.

Uma ditadura como a argentina – e como a nossa; e como a chilena; e como tantas outras na América Latina – costuma se apresentar como profundamente nacionalista. Geralmente se instala com a promessa de proteger o povo honesto e trabalhador contra fantasmas terríveis que o ameaçam. Como sempre fazem os regimes autocráticos, a ditadura argentina apoiou grande parte de sua propaganda na imagem da juventude e das crianças. A imagem central, sem surpresas, é a da família. No discurso dos generais, a ditadura é um governo de salvação nacional, que existe e trabalha para “defender” ou “proteger” essa categoria tantas vezes martelada: a família.

A família, como sabemos, é conceituada como instituição que cuida de seus membros e os mantém a salvo. É a principal fonte de solidariedade e, em sistemas que visam a exclusão completa de qualquer outra forma de solidariedade (como no regime thatcherita, por sinal), é o único apoio para o indivíduo que o resguarde da crueldade do mundo exterior. No caso das ditaduras, porém, o aparato estatal, militarizado, sob o comando de um braço forte e seguro, é uma espécie de “segundo grau” desse exercício de cuidado e atenção. É como a família das famílias.

E quanto àqueles três argentinos de meia-idade que vi em cima do palco: o que eram, em 1982, senão meninos arrancados, justamente, às suas famílias (e escolas, namoradas, amigos etc.) para ir à guerra, em nome de um “pente” e da coroa-de-careca de Gualtieri e demais tiranos? No discurso oficial, porém, eram muito mais que isso. É importante lembrar, como faz Campo Minado, que o jovem soldado é objeto de todo um trabalho de propaganda para que a população o trate como herói.

Lola Arias expõe, em projeções, as reportagens, as peças de propaganda, as imagens de arquivo, que foram mobilizadas para que aqueles jovens recebessem o carimbo de heróis, essa categoria social muito prezada, sobretudo postumamente. Uma categoria que mobiliza alguns afetos bem conhecidos: o orgulho dos pais, a admiração das namoradas (e potenciais namoradas), a inveja dos demais rapazes, os que seguiram com suas vidas e não receberam esse carimbo. Nos depoimentos dos ex-combatentes, ou seja, na voz dos próprios objetos da transformação simbólica, fica evidente como se dá o processo.

Com um certo distanciamento, passado o furor da mobilização, graças às décadas de trabalho de memória e trauma, podemos fazer uma descrição um pouco mais objetiva desse processo. Quando os rapazes vão à guerra, a “família de segundo grau” os extrai (compulsoriamente) da família de primeiro grau, de modo que, quando um jovem está no serviço militar, seu bem-estar é responsabilidade do Estado. É o Estado, na figura das forças armadas, que deve protegê-lo, mantê-lo vestido, alimentado, aquecido. E, na medida do possível, vivo – mas é claro que, numa guerra, isso nem sempre é possível.

Está muito bem documentado que, no caso das forças armadas argentinas, em plena ditadura militar e militarista, esse papel foi executado de maneira nada satisfatória; e a guerra deixou isso muito claro. Os soldados não tinham equipamento para o frio, não recebiam munição suficiente e passavam fome. Na voz daqueles homens de pele enrugada, cabelos brancos e expressão triste, tornam-se ainda mais concretos e patentes os relatos de roupas insuficientes, cargas de alimentos que se perdiam, comunicações deficientes, soldados argentinos explodidos em campos minados que os próprios argentinos tinham instalado.

Até aí, não há muito mais a aprender, senão que a linguagem heróica e patriótica em que se apóia o militarismo, com sua pretensa fundação numa “defesa da família” e seu propalado “amor à juventude”, é uma mentira descarada; mais do que uma falácia, portanto. Uma mentira. A propósito, precisamos recuperar a disposição para fazer o “j’accuse” de Zola. Não se trata de refutação, mas de desmascaramento. Até hoje, há quem repita essa enorme mentira, ainda mais no Brasil (que não passou pelo processo de construção de memória que houve na Argentina, infelizmente). Então precisamos escancarar o fato de que o amor de um regime militar (ou militarizado) à pátria, à família e à juventude é falso, deliberadamente falso. Ao afirmá-lo, uma pessoa não está equivocada, está mentindo. Está sendo desonesta e enganando a população.

II

Isto posto, surgiu algo nos relatos que tocou profundamente a minha sensibilidade, e que eu desconhecia – talvez porque li sobre a guerra das Malvinas já há alguns anos, antes que os arquivos fossem abertos (em 2015) e certos segredos viessem à tona. Em dado momento do espetáculo, ouvimos de um dos ex-combatentes argentinos que seus comandantes torturavam os soldados para que eles não abandonassem seus postos quando já era inútil defendê-los, para que não reclamassem das condições desumanas, ou mais simplesmente, para que não se rebelassem. Sem comida, abrigo e vestimentas adequadas, os soldados ainda por cima eram espancados, amarrados no chão congelado, obrigados a se humilhar perante os colegas.

Outro ex-combatente relata que, na volta para casa, após a derrota, foi obrigado, junto com seus companheiros, a assinar um documento em que se comprometia a não revelar nada do que havia se passado. O filho dileto, o herói da pátria, foi reduzido por sua “família de segundo grau” ao silêncio perpétuo. Neste ponto, vale uma digressão: todos os ex-combatentes passaram por algum grau de estresse pós-traumático, inclusive os ingleses. Mas este indivíduo em particular entrou em profunda depressão, não conseguiu se fixar nos muitos empregos que teve, tornou-se cocainômano e quase morreu afogado. Ironicamente, era o único dos argentinos que tinha entrado para o exército voluntariamente. Saiu da depressão quando passou a se dedicar ao esporte e hoje é triatleta.

Voltando ao tema: no meio das cadeiras do teatro, ouvindo os relatos e a trilha sonora (basicamente Beatles, tocada pelos próprios atores), comecei a entender que estava diante dos dois lados de uma moeda que circula não apenas na Argentina, mas certamente em toda a América Latina e talvez muito mais amplamente.

A “Cara” é a reiterada propaganda sobre os heróis nacionais; a justificação do poder ditatorial, ou simplesmente autoritário, pela vaga “defesa da família”; a constante louvação ao povo (em geral no sintagma “povo trabalhador”) e à juventude (que é “o futuro do país”); a crença irrefletida na disciplina, uma imagem de ordem que destoa de todo o mau funcionamento com que a população está acostumada no dia-a-dia.

A “Coroa” consiste em tratar esses mesmos jovens como gado, pagá-los com salários de fome, humilhá-los, torturá-los, mandá-los para a morte; destruir famílias; produzir um oceano de síndromes pós-traumáticas; fornecer um espetáculo de má organização e indisciplina na cúpula decisória; humilhar os trabalhadores, os jovens, os pobres; reduzir aquele povo tão incensado, aqueles heróis tão propagandeados, a uma condição de silêncio e apatia.

Pensando bem, esta parece ser uma tônica latino-americana. Neste nosso continente de veias abertas, o deslumbramento com fardas, armas, vozes de comando, escaramuças, é patente. O Cone Sul é pródigo em guerras caudilhescas. Do México para o Sul, os governos militares são recorrentes e as ordens para que soldados rasos abram fogo contra seus próprio compatriotas se repetem tristemente. O ponto comum entre Pinochet, Stroessner, Chávez e Figueiredo é a farda. Mas eu também poderia dizer Deodoro, Rosas e Porfírio Díaz.

O soldado, por sua vez, é em geral mal pago, mal equipado e maltratado. Para o Paraguai, no Império, foram mandados os que não conseguiam se safar; na Marinha da Primeira República, os maus tratos levaram à revolta da Chibata. Os comandados de João Cândido, o “Almirante Negro” que manobrou a frota melhor que os brancos, foram traídos pelo governo e os oficiais, e terminaram massacrados. Quando, inadvertidamente, uma dessas lideranças engalanadas se vê na situação de sair do mero discurso e entrar na prática da guerra, os resultados tendem a ser desastrosos, como ocorreu aos argentinos nas Malvinas e aos mexicanos contra os EUA. Sorte dos nossos pracinhas na Itália, que puderam tomar armas e equipamentos emprestados dos americanos.

Será coincidência essa insólita dicotomia do discurso laudatório com a prática do desprezo e da humilhação? O que é que faz com que, em todo o continente, o patriotismo, o conservadorismo e o militarismo estejam tão intimamente ligados aos maus-tratos, ao desprezo e à incompetência? Não faltaram, na história do continente, indícios de que o tipo de comando que se associa à figura do militar, envolvendo autoridade e disciplina, costuma levar a resultados opostos aos esperados e desejados. Mas ainda se ouve muito falar, sobretudo no Brasil, sobre a seriedade e a organização inerentes às forças militares. Por quê?

III

Depois de tantos parágrafos, finalmente chego ao ponto que buscava: o Brasil, onde tem crescido um evidente fascínio pelo militarismo. A intervenção diversionista de Temer no Rio é o cúmulo (pelo menos por enquanto) e a intenção de voto em Bolsonaro é um sintoma grave (esperemos que fique só nisso). Mas deveríamos ter ligado o alerta quando atletas brasileiros passaram a bater continência nos pódios olímpicos, só porque um programa federal os pôs para treinar em instalações militares. Era uma impostura, como sói acontecer: os atletas receberam patentes, mas é evidente que isso não faz deles militares; ademais, não estavam ali representando as forças armadas, mas o país. Mesmo assim, muita gente na classe média achou aquilo lindo.

Em todo caso, é claro que o problema que quero apontar não é só o do fascínio com o exército propriamente dito. O sucesso histriônico do capitão Nascimento, desde o longínquo ano de 2008, é um exemplo de como a polícia é tanto mais encantadora para uma boa parte da sociedade quanto menos ela age como polícia e mais como milícia, uma variação urbana da jagunçagem.

Vale se deter num ponto interessante: freqüentemente os auto-intitulados defensores da polícia se referem aos policiais – na verdade, só os policiais militares – como pessoas corajosas que arriscam a vida na luta contra os bandidos. O corolário dessa descrição é que qualquer crítica à atuação da polícia (militar) nas favelas é uma defesa da criminalidade e um desrespeito a esses bravos profissionais que se sacrificam em nome das famílias de bem. Provavelmente o cúmulo desse raciocínio foi o episódio em que um menino de dez anos foi morto pelo fuzil de um policial no complexo do Alemão (chamava-se Eduardo) quando estava sentado na soleira da porta da própria casa.

Mas o que há de mais interessante é que essas pessoas que tanto dizem admirar e respeitar os policiais, pelo fato de que se arriscam e muitas vezes morrem, parecem nunca se perguntar se é mesmo necessário que tenhamos tantas mortes de policiais todo ano (só no Rio, ano passado, foram mais de cem). Quando acusam seus oponentes de não se importarem com a família de um policial morto, esses supostos defensores da polícia não se questionam se poderíamos viver de um jeito em que os policiais não morressem, não precisassem se sacrificar, não precisassem ser mártires. Nunca vi um comentário dessas pessoas sobre o fato de que a maior parte das mortes de policiais ocorrem fora do serviço, fazendo bicos de segurança para complementar o péssimo salário.

Na verdade, é bastante evidente que a cultura de fascínio com formas militares – seja o exército, seja a polícia – habita no abstrato. Quando descemos ao concreto, essa mentalidade não se preocupa um segundo sequer com a qualidade da formação dos praças. Não se preocupa com suas condições de trabalho, nem com sua remuneração. Não se preocupa com sua segurança – afinal, se trabalhassem e vivessem em segurança, os policiais teriam de ser vistos como servidores públicos e respeitados como tais, não encarados e reverenciados como heróis e mártires.

As deficiências da formação da polícia são amplamente conhecidas: na maior parte dos Estados, um jovem é incorporado à força tendo treinado um número irrisório de tiros; nas casernas, a tortura física e psicológica é constante. Não estou dizendo novidade nenhuma ao mencionar que os recrutas são formados para algo que pouco tem a ver com policiamento. Em geral, diz-se que são formados para uma guerra; e seria uma espécie de guerra interna. Na verdade, acho que a analogia mais pertinente seria dizer que são formados para uma caçada. Seja como for, mais tarde, nas ruas, o equipamento que usam é defeituoso, os serviços de inteligência são pífios e a relação com a população, e não estou falando da bandidagem, é hostil e improdutiva.

Trocando em miúdos, assim como os soldados argentinos na guerra das Malvinas, os policiais brasileiros são atirados ao trabalho sem as condições necessárias para exercê-lo e, se morrem, não é por heroísmo, mas porque são deliberadamente lançados para a morte. Incensados por uma malta de cidadãos que se consideram de bem, gente conservadora e que diz defender a família, a pátria e outras categorias que vêm juntas, são postos por esses mesmos cidadãos tão íntegros em constante situação de perigo, pobreza e fadiga. Quando sobrevivem, sofrem de depressão e outras doenças crônicas, com atendimento médico insuficiente. Quando morrem, e muitos morrem, deixam atrás de si famílias despedaçadas, viúvas e órfãos. Que bela defesa da família.

Ou seja, como a propaganda de guerra da ditadura argentina, também o deslumbramento com a farda, o giroflex e as sirenes esconde este outro lado, que é o desprezo pela vida do policial; e isso, nos dois sentidos da palavra: a vida como aquilo que é ceifado por uma bala no confronto com traficantes, mas também a vida que ele leva, com seu baixo salário, a impossibilidade de descansar na folga, a formação deficiente, o regime de humilhações e torturas a que é submetido da parte dos superiores. Eleger heróis e humilhá-los; cantar louvores à juventude e mandá-la para o matadouro. Longa tradição latino-americana. Longa tradição brasileira.

Em tempo: a brutalidade policial no Brasil, da qual não conseguimos nos livrar quando tivemos a chance, e que, ao contrário, é motivo de celebração para muita gente, só faz sentido nesse registro. Um indivíduo se torna brutal quando age sem parâmetros, ou seja, nem orientações claras e corretas de procedimento, nem regras plenamente vigentes de comportamento. Tanto a humilhação quanto o incensamento conduzem à brutalidade, a primeira por trazer à tona as paixões mais cruas, o segundo por insuflar os espíritos com uma sensação de onipotência. Mas não devemos nos enganar: o policial se torna brutal porque sua situação é frágil; porque, socialmente, ele é na prática um descartável, por obra daqueles que, no discurso, o tratam como paladino.

IV

Guardando as devidas proporções, a intervenção no Rio está para a presidência de Temer como a invasão das Malvinas esteve para a ditadura argentina. Uma manobra diversionista e irresponsável realizada por alguém que se sabe ao abrigo de denúncias e persecuções judiciais, com o objetivo de desviar o foco para problemas distantes. No nosso caso, Temer está enrolado na incapacidade de entregar ao mercado financeiro todas as transformações econômicas esperadas, somando-se à necessidade de escapar a um eventual cerco da Justiça, já que nosso atual presidente faz um pau de galinheiro parecer transparente como vidro.

Na analogia de Borges, Temer é o nosso careca, precisando manter sua coroa maculada na cabeça. O Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, ex-capital, cartão postal, símbolo do Brasil para o mundo, etc. etc., se vê reduzido à condição de pente. E pode se quebrar, também. A população e, em particular, os soldados envolvidos na intervenção no Rio são os peões de que nosso careca se serve para se manter agarrado a seu pente.

Claro está que Temer compreendeu bem a natureza do militarismo latino-americano e, em particular, do fascínio atual com as fardas e o armamento pesado no Brasil. Ele sabe perfeitamente que as medidas concretas para promover a segurança da população nada têm a ver com o assunto – tanto que reduziu drasticamente a verba da proteção de fronteiras, tema que candidatos conservadores tanto gostam de tratar como prioritário. Vale a pena ler a Diretriz do Comando do Exército para 2017-2018. Lá se aprende bastante sobre a redução do efetivo e a substituição de combatentes de carreira por temporários – ou seja, jovens fazendo o serviço militar obrigatório. O usurpador tem dito também que os militares deveriam participar mais da vida pública; talvez esteja saudoso do tempo em que a atuação pública militar consistia numa série interminável e impune de conspirações, sem falar nas ditaduras.

O que o usurpador compreendeu é que o cerne desse militarismo está no espetáculo: a aparência de disciplina, limpeza, ordem, força bruta. As operações grandiosas, que dão uma certa demonstração de poder. A garantia de que haverá boas fotos e manchetes, com o apoio de grupos de mídia cujos controladores fazem parte dos mesmos extratos sociais cujos olhos brilham com o militarismo. E ao lado, uma certa sensação de desconforto e medo, que mesmo os mais profundos militaristas devem ter quando vêem passar uma coluna de tanques.

Esta imagem é do Espírito Santo, mas coloquei aqui porque é ótima.

Já os resultados propriamente ditos – digamos, a redução dos índices de violência do Rio, ou o desbaratar de alguma quadrilha mineira que traga pasta de cocaína em helicópteros – são irrelevantes. No fundo, provavelmente são indesejados. Como tem martelado Celso Barros (o sociólogo, não o médico), até hoje não foi divulgado um plano de ação, um projeto, metas, nada. A revista Piauí revelou que o alto comando militar foi tomado de surpresa pela intervenção – e ficou contrariado, muito contrariado. Não existe nem sequer o esforço de esconder que a intervenção federal/militar no Rio é mera pirotecnia.

De fato, com essa intervenção, até o momento o usurpador tem conseguido o que quer, e vai continuar conseguindo por algum tempo. As pessoas que se encantam com Bolsonaro aplaudem os tanques e blindados estacionados diante de favelas. Atitudes inconstitucionais como o fichamento de moradores levam famílias inteiras ao delírio nos bairros ditos “nobres” (com o que descobrimos que ainda estamos na monarquia). Não porque tenham efeito prático, mas porque demonstram força. Temer vai se safando e o ovo da serpente vai crescendo.

De volta a Borges: falei do careca, falei do pente, mas todas essas reflexões começaram com um estalo, no meio de uma peça de teatro, em que seis ex-combatentes, três dos quais argentinos, falam de suas experiências na linha de frente, tomando na cara chuva, vento, neve, balas e bombas. Então vale lançar mais uma pergunta: no nosso caso, quem é que está na linha de frente? Quem são essas pessoas, ou melhor, quem são esses heróis, os jovens defensores da família e da pátria, em nome desta família de segundo grau que é o governo do usurpador?

São o mesmo de sempre, claro: praças, recrutas, meninos que ontem estavam empinando papagaio e hoje estão lançados aos leões. É bem provável que muitos deles estejam em pleno serviço militar obrigatório, ou seja, preferiam estar fazendo outra coisa. Garotos que poderiam, aliás podem, ser filhos dos trabalhadores que lhes coube fichar e revistar. Podem também ser irmãos e amigos de traficantes que eventualmente virão a enfrentar, ambos atirando com armamentos exclusivos do exército, por sinal.

É claro que não tem comparação entre mandar jovens para enfrentar a marinha britânica num arquipélago remoto e gelado e colocá-los para caçar traficantes em ruelas cariocas. (E milicianos? Esses não vão ser enfrentados?) Mas uma mesma lógica rege esses dois processos, além de muitos outros. Esses garotos não são enviados para a linha de frente, para o enfrentamento, enquanto pessoas. Eles são a imagem avançada de todo um aparato simbólico de poder: emblemas, fardas, fuzis, blindados. Os “heróis” não são os próprios soldados, mas um soldado abstrato, imaginário, que absorve todas aquelas imagens de família, pátria, ordem, dever etc., tão difíceis de executar na prática em países autoritários e caudilhescos.

Os próprios garotos, seres humanos de carne e osso, são a mesma coisa que um dia foram esses senhores que vi no palco do teatro em São Paulo, tocando músicas dos Beatles, recuperando as cartas recebidas no front e guardadas num baú durante décadas. São gente que tem uma família concreta, mas para defender “a família” abstrata pode acabar esfacelando a sua própria. São gente que o cidadão de bem aplaude, admirando sua farda e sua postura ereta, mas que recebe um soldo vergonhoso e é colocado para fazer um trabalho para o qual não tem qualificação. São objetos de uma celebração irreal, mas vítimas de um desprezo concreto, como tem sido há mais de 200 anos.

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Faits divers à brasileira

fait divers

I

Saiu na semana passada a notícia de que morreu o prefeito de um determinado município de Minas Gerais. Seu avião caiu enquanto ele sobrevoava um acampamento do MST, que ocupava uma fazenda de sua propriedade.

Os acampados dizem que esse e um outro avião davam rasantes sobre os barracos para assustar as famílias. Também segundo os sem-terra, coquetéis molotov eram jogados dos aviões. Um bombardeio, em suma.

O advogado do prefeito morto disse à imprensa que tinha apenas pedido que o falecido mandatário fotografasse a área invadida, para poder entrar com um pedido de reintegração de posse.

Seja um bombardeio, seja um reconhecimento aéreo, o motivo para o próprio prefeito estar lá, e não um fotógrafo contratado – ou capangas, seria o caso de dizer, em se tratando de um bombardeio – é coisa que não se explica racionalmente. Seria preciso recorrer a uma explicação afetiva: o gozo do sadismo, talvez.

Não se sabia, da última vez que li a notícia, se o avião foi abatido ou caiu sozinho. Já o outro piloto, que não nasceu ontem, se mandou e não se falou mais nele. Pelo menos na imprensa.

II

Em 30 de abril de 1981, uma bomba explodiu no colo do sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, dentro de um automóvel de marca Puma, no estacionamento do Riocentro, que naquela época ficava longe pra burro de tudo.

Dentro do centro de convenções, um espetáculo que reunia 18 mil pessoas comemorava o Dia do Trabalho. No horário da explosão, Elba Ramalho estava no palco.

A bomba tinha sido preparada para explodir no meio do show, matando sabe-se lá quantos espectadores. O objetivo dos conspiradores, como tantas outras vezes na história, era colocar a culpa em movimentos contrários à ditadura (ou, simplesmente, comunistas). Com isso, achavam que podiam barrar a redemocratização.

Não deu certo e o único cadáver nessa aventura acabou sendo o de um dos criminosos. Só em 2014 a Justiça aceitou a denúncia contra os demais militares envolvidos. Até então, o Judiciário considerava que esse crime entrava no âmbito da lei de anistia, de 1979.

III

O artista plástico Cildo Meirelles relata, em documentário sobre sua obra, a história do seu pai, que foi afastado do Serviço de Proteção ao Índio depois de fazer uma denúncia grave: na região conhecida como Bico do Papagaio, no norte do que hoje é Tocantins, fazendeiros massacravam índios lançando mão de algo que pode perfeitamente ser considerado guerra biológica.

Roupas contaminadas com o vírus da gripe eram atiradas de aviões sobre aldeias. Os índios, ainda não contactados pelo “homem branco”, não tinham anticorpos contra a gripe, essa doença de origem europeia.

O raciocínio lembra de maneira perturbadora o do prefeito mineiro morto na semana passada. Mas naquela ocasião, até onde sei, não caiu nenhuma aeronave. Com isso, morreram algo como 40 mil índios. Dos sobreviventes, diz Cildo, muitos tiveram um colapso mental diante do extermínio de toda a sua aldeia.

O pai do artista conseguiu levar o caso à Justiça. Mas só: o corrompido Serviço de Proteção ao Índio tinha mais interesse em proteger os criminosos e relegou seu incômodo funcionário a funções burocráticas. Algo que não lhe permitisse atrapalhar.

IV

Em 1968, antes mesmo do AI-5, o brigadeiro João Paulo Burnier arquitetou um plano mirabolante para tornar o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) uma organização terrorista no sentido mais literal possível. A idéia de Burnier era usar pára-quedistas para explodir diversas bombas no Rio de Janeiro, a mais destruidora delas Gasômetro de São Cristóvão, às 18h, matando centenas de milhares de pessoas, de uma vez só.

O objetivo – adivinhe! – era acusar as oposições à ditadura, comunistas em particular, claro, e produzir um furor nacionalista sanguinolento como o que gangrenou a Indonésia poucos anos antes.

O plano só não foi adiante porque o pára-quedista Sérgio Macaco se recusou a cumprir a missão e, ainda por cima, entregou tudo à imprensa: o plano foi publicado no hoje extinto jornal Correio da Manhã e, em conseqüência, abortado.

O que resultou dessa aventura genocida? Uma sindicância militar: Burnier, nosso aspirante frustrado a Bin Laden, foi inocentado. Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, que salvou a vida de uma multidão de cariocas, foi expulso da corporação.

V

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Em 1987, uma matéria da revista Veja – que, os mais jovens talvez não acreditem, naquela época era considerada uma fonte digna de informação – dá conta de que um capitão do exército de nome Jair planejava explodir algumas bombas, uma delas numa adutora do Guandu, que abastece o Rio de Janeiro.

O jovem e irresponsável Jair, prossegue a reportagem, pretendia abalar a confiança no ministro do Exército indicado por Sarney. Tudo por causa de disputas em torno do soldo de oficiais. Um croqui da bomba chegou a ser desenhado pelo capitão e publicado pela revista.

Mesmo assim, com evidências feitas pelo próprio punho do conspirador, o episódio de terrorismo planejado não impediu o militar de encetar uma notória carreira política, arrastando consigo boa parte de sua família.

Como sabemos, o tal de Jair não amadureceu muito de lá para cá.

VI

Em 2009, foi premiado no festival de Gramado (e em muitos outros) o filme Corumbiara, de Vincent Carelli. O filme conta a história do “outro” massacre de Corumbiara. Sobre o massacre de sem-terra na mesma região de Rondônia, ocorrido em 1995 e mais conhecido, o jornalista João Peres acaba de lançar um livro.

O massacre do filme de Carelli ocorreu dez anos antes do caso do livro de Peres. Um completa 20 anos, o outro completa 30. Pelo visto, os massacres no Brasil são tantos que os nomes já começam a se esgotar.

Em 1985, uma aldeia inteira de índios de etnia desconhecida foi varrida do mapa por fazendeiros locais, que ali preferiam ver bois a pessoas. Vinte anos depois, os indigenistas conseguem voltar à área e encontram vestígios do crime. Jagunços e policiais tentam bloquear o trabalho – defendendo criminosos, mais uma vez. A população tem medo de falar.

Com a passagem do tempo, é impossível saber quantas pessoas foram assassinadas em nome do latifúndio.

E cito este caso apenas porque ele é pontual: seria exaustivo e não acrescentaria nada ao argumento listar os abusos cometidos quotidianamente Brasil afora contra populações autóctones.

VII

A semana passada também conteve uma, digamos assim, efeméride. Completaram-se dois anos desde que policiais da UPP da Rocinha, no Rio de Janeiro (mais de 20 policiais) seqüestraram, torturaram e assassinaram o auxiliar de pedreiro Amarildo Dias de Souza. O cadáver desapareceu e provavelmente nunca será encontrado.

Acho que quem leu até aqui se lembra bem da fórmula “Cadê o Amarildo”, que marcou a esperança de que esse tipo de crueldade, sadismo e barbaridade oficial, em nome da “boa sociedade”, fosse erradicado e superado no Brasil. Esperança frustrada, mais uma vez.

Mas esse é apenas o caso mais emblemático. No começo deste ano, policiais militares da Bahia mataram 12 jovens, a grande maioria sem passagem na polícia. Foi a chamada “chacina do Cabula”. A primeira reação do governador, o petista Rui Costa, foi comparar a ação da polícia a um gol.

Só a mobilização da população local levou à mudança da narrativa.

Os casos semelhantes são muitos e não vou me alongar.

* * *

PS: Na verdade, vou me alongar, sim. Na primeira versão deste texto, onde deveria estar “chacina do Cabula”, escrevi por descuido “chacina da Chatuba”. Mas não seja por isso: em 2012, houve uma chacina na Chatuba, em Mesquita, Baixada Fluminense. Seis jovens mortos por traficantes.

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Violência: questão da questão

À primeira vista, parece que duas questões emergiram e seguem sem resposta deste turbulento ano de 2013: a mídia e a violência. A questão da mídia reaparece de vez em quando, a cada vez que algo incita comentários sobre o conflito entre “a nova” e “a velha” mídia, ou imprensa. Desde que toda a agitação começou, tenho tomado notas sobre o tema, mas até agora não consegui juntá-las em algo coeso, seja por falta de tempo para ordenar as idéias, seja por falta de ideais a ordenar.

Já a questão da violência, que tratei segundo uma determinada perspectiva ainda em julho, explodiu mais recentemente numa miríade de versões que indicam menos a necessidade de desenvolvê-la e bem mais a de deslocá-la. Infelizmente, e isso é mesmo muito ruim, como na má dramaturgia, consolidaram-se nos últimos meses dois personagens antagônicos. Com eles, é possível, é até quase inevitável, formar uma relação de identificação ou repulsa praticamente imediata. Dessa relação imediata, fazemos uma barreira de julgamentos que nos desobriga de qualquer tentativa de esclarecimento. E esse é o pior estado em que podemos estar.

É claro que estou falando dos personagens Polícia Militar e Black Bloc. Talvez pudéssemos acrescentar aí um terceiro personagem, que seria “o manifestante bem intencionado”, mas para ficar na analogia da dramaturgia de quinta, esse aí faz mais a função da escada que conduz ao conflito maior entre o mocinho e o vilão – e a sua tarefa, individualmente, é escolher qual dos personagens vai ser mocinho e qual vai ser vilão: é uma trama interativa. Uma forma como o desenvolvimento dessa dramaturgia se expressa pode ser a seguinte: “manifestações são belas e justas, principalmente belas, mas não concordo quando descamba para a depredação”. Outra forma: “que coincidência, não tem polícia, não tem violência”. Na primeira, o vilão é o “vândalo que toma conta das manifestações”; na segunda, é a PM.

A vida, ou pelo menos a vida moral, seria muito simples se pudéssemos parar por aqui. A bem dizer, nada é mais fácil nesta vida do que emitir julgamentos. Chegar a eles é bem mais difícil, mas nada que não possa ser contornado mantendo-se sempre no imediato. E poderia ficar só por isso mesmo, não fosse o fato de que estamos deixando passar uma excelente oportunidade para assentar uma marca perene, e de fato transformadora, na trajetória de uma terra em que a questão da violência é, e sempre foi, muito mais profunda do que qualquer julgamento jamais poderá atingir.

Proposta

É por isso que proponho considerarmos que o que está em jogo não é a questão da violência, nem da polícia, nem de manifestantes, nem (já antecipando outra questão) da mídia, do poder econômico, do sistema político. Se me permite brincar um pouco com as palavras, e sei que tem gente que detesta isso, quero sustentar que está em jogo a questão da questão da violência.

Não estou só dobrando uma palavra. Se estamos acompanhando o desvelar de uma trama ruim, o problema está provavelmente tanto nos personagens quanto na própria trama. Afinal, desenvolver a trama é também, desde o ponto de partida, desenvolver os personagens, e se a trama é ruim, dificilmente os personagens não o serão também, ruins desde que foram primeiro formulados e descritos. Por isso, nossa questão não deveria ser avaliar, ou até mesmo entender, e muito menos justificar, a violência de um ou ambos dos nossos personagens. Deveríamos nos perguntar o que faz com que, mais uma vez, a questão que se coloca no centro das nossas atenções é a questão da violência, com esses personagens são estereotipados.

Além de se colocar no centro das atenções, a questão da violência também suga, como um buraco negro, a energia das demais questões que deveríamos debater, as questões de fundo, das quais a própria violência deriva sua dinâmica. Essa questão serve de instrumento para quem tenta desviar os focos ou esvaziar as pautas, não propriamente das manifestações em particular, mas da sociedade civil inteira. Ela dá um drible em inúmeros esforços, reais ou apenas imaginários, para contornar a pancadaria e, por exemplo, obter “a paz”. Ela muda de mão, de lado e de intensidade a cada momento, mas nunca vai embora. Às vezes é a polícia, às vezes o trânsito, às vezes o vizinho armado no prédio, às vezes os traficantes, os milicianos, os grupos de extermínio, os adolescentes playboys que ateiam fogo em mendigo, os motoristas irresponsáveis, os motociclistas pressionados por prazos desumanos. E agora, mais recentemente, manifestantes.

Fizeram campanha para o trânsito ser mais gentil. Para que as pessoas respirassem fundo antes de atacar alguém. Chamaram a polícia de pacificadora, o que, no ideal, seria um pleonasmo e, na realidade, um oximoro. Vestiram branco na praia e no Minhocão, com pombas e tudo, rostos consternados, cruzes enfiadas na areia. Mas seguimos violentos ou confrontados à violência, constantemente, doméstica, policial, estatal, do crime organizado, de desconhecidos, de latifundiários, de todo mundo. A questão passa a ser, então: por que a violência é sempre uma questão? É a questão da questão da violência. Ou seja, como lidamos quando, cientes da violência, temos de tirar conclusões, tomar lados, fazer julgamentos ou pronunciamentos? Que modos de pensar, de agir, de ser, ativamos a cada vez que colocamos a violência em questão?

Tudo que está no início do texto já é um sintoma disso: ao lidar com a violência, simplesmente, como questão, tomamos um lado e nos satisfazemos com isso, na esperança de que esse lado triunfe. Isso é uma resposta à questão da questão da violência: criar uma cisão violenta, assentar-se em uma das superfícies produzidas algo magicamente por essa divisão, e assistir ao espetáculo até o primeiro esguicho de sangue. No momento desse esguicho, exclamar, com indignação, mas também, vá, confesse, satisfação: “está vendo?” E emitir seu julgamento imediato. Preguiça, sim, mas sobretudo o assentimento à violência sistêmica, velado como condenação à expressão de uma violência singular.

Roteiro repetido

A questão, como de hábito, vai muito além. Para voltar ao que ocorre no Brasil desde junho, o roteiro parece estar se repetindo surrealmente no que tange à violência. Não faz ainda cinco meses que aqueles pequenos protestos do Movimento Passe Livre explodiram em mobilização nacional. Mais uma vez, bloqueios do trânsito geram ameaças em redes sociais. A imprensa toma o lado do personagem “polícia” na dramaturgia de quinta, sem o cuidado de evitar formas de linguagem que estimulem a escalada repressiva. Figuras políticas de envergadura, tanto na situação quanto na oposição, também reaparecem para tomar posição, aproveitando o caso do oficial da PM paulista que levou pauladas nas costas antes de ser salvo por um policial infiltrado entre os manifestantes. Desta vez, foi até mais grave, a própria presidenta ofereceu-se para ajudar o Estado de Geraldo Alckmin, aquele cuja polícia… já sabemos, falei disso ainda em julho.

Mas também há os que, nessa trama de novela, tentam resgatar a imagem do outro personagem, os Black Blocs. Porque, afinal de contas, a questão é de imagem. Por isso, é preciso mostrar que os ditos cujos não são os violentos da história, e sim a polícia. Em outras palavras: “foram eles que começaram”. Antes de mais nada, é uma estratégia derrotada, porque presume que o importante é disputar a opinião pública, construir uma imagem, desconstruir a imagem da polícia e assim por diante. Mas o problema de base é que o jogo das imagens, em si, já é por princípio um jogo violento, já que envolve rigorosamente as mesmas forças sociais que reproduzem a violência quotidiana e fazem da questão da violência, ela mesma, uma questão.

Acontece que o exercício da violência física não chega a se diferenciar muito de outras formas de violência: moral, material, verbal, no sentido de que se trata da descarga de afetos muito primários. Diferencia-se, sim, pelo fato de exigir um engajamento maior do corpo. Violência verbal exige a emissão da voz, o que já é muito mais do que o exigido por violências moral ou material, para as quais bastam um desejo de autosatisfação a canalizar e o poder de externalizá-lo. A violência física está em outro nível: exige a presença e o esforço do corpo como um todo, o que não é pouca coisa. No ato da violência, é difícil distinguir quando está em ação uma raiva incontível, um tesão despercebido, um reflexo de conservação ou destruição. A simples explosão de violência é algo fugidio, difícil de avaliar ou estimar.

Por outro lado, como tudo que é afetivo neste ser eminentemente técnico e mediado que somos nós, humanos, a violência pode ser organizada, colocada num regime de funcionamento, receber de empréstimo um significado. Ela pode ser instrumentalizada. A própria e a alheia, é claro. Aí sim é possível emitir juízos, avaliações, perspectivas, projeções, sobre a violência, porque ela está inscrita numa superfície estável, palpável, objetiva. A mais famosa dessas perspectivas é a de Max Weber: ao monopolizar o exercício (considerado) legítimo da violência, ele diz, o Estado pode existir como tal. Outra menos conhecida, mas igualmente brilhante, está em Michel Aglietta e André Orléan, dois economistas: a moeda, ao canalizar a violência e a confiança no que têm de afetivos, transforma conflitos sangrentos em transações de mercado. Mais recentemente, Agamben mostra que, na prática, essa legitimidade toda do exercício da violência pelo Estado é sempre uma fronteira bamba e fluida. E por aí vai.

É nesse diferencial entre a explosão pura de violência e a exposição das intermináveis formas possíveis de organizá-la que aparece a própria questão da violência como questão. Afinal, pôr ordem na violência é uma questão em si: que ordem queremos para a violência? Que significados queremos que ela carregue? Como deverá funcionar? E não adianta dizer “violência nenhuma”, que isso não existe, sob pena de ressecar todo o edifício da economia libidinal, algo que não se pode fazer… sem um nível de violência poucas (e desastrosas) vezes tentado na história. Esse é um modo da questão da violência que determina o rosto de uma configuração social e deveria, portanto, engajar toda uma sociedade. Algo inteiramente diferente de escolher um lado e se regozijar (olha aí a economia libidinal de novo) quando o outro lado apanha. O nome disso é sadismo.

O ponto central é que a confrontação entre essa determinação social e a manifestação pura da violência é que expõe aquilo que é a verdadeira questão para nós agora, como me parece: a questão da questão da violência. Se há um abismo entre a lei e sua execução; entre o treinamento da polícia e sua atuação na rua; entre o direito de manifestação e a recaída na violência; entre a linguagem que a mídia usa para referir-se a “manifestantes” estrangeiros e a “vândalos” brasileiros; entre a indiferença da presidenta (que foi torturada) à atuação arbitrária do braço armado do Estado (que, sendo oficialmente o mantenedor da ordem, não deveria jamais agir arbitrariamente) e sua enorme preocupação com a sorte de um único oficial da polícia (certamente um praça não mereceria tanta consideração); se há todos esses abismos, é porque o que está em questão não é a violência, mas a questão da violência.

Aposta aumentada

O problema posto não é muito diferente do que já foi dito no já mencionado texto de julho. O roteiro parece se repetir, só que de uma maneira pior. As apostas estão sendo aumentadas, mas quem dá as cartas é quem prefere manter a questão apenas no nível da violência, sem chegar à verdadeira questão da questão da violência. Aqui e ali ainda se ouvem algumas vozes lembrando um ou outro ponto dessa verdadeira questão, como o incansável Luiz Eduardo Soares, batendo e rebatendo na nota da desmilitarização da polícia.

Seria um passo excelente, ainda que só um passo. O caso Amarildo, por exemplo, poderia ter sido o estopim de uma reconstrução desde a base dessa que é a grande válvula reguladora da violência brasileira, a PM. Mas parece que quem se beneficia do regime quotidiano da violência no Brasil conseguiu isolar esse caso, indiciando alguns policiais e deixando a questão maior para lá. Como veremos, é o mesmo problema das lideranças políticas que saltam açodadamente para manifestar apoio ao policial atacado.

Enquanto isso, o governo do Rio resolveu pagar para ver. Deixou a quebradeira correr solta quando poderia agir e de fato “restaurar a ordem”, ou pelo menos a calma, para em seguida, sob os aplausos amnésicos do maior jornal da cidade, saltar de corpo inteiro para fora da legalidade, ao meter mais de oitenta pessoas na cadeia, a maioria sem a menor relação com os eventos – e submetê-las à arbitrariedade da exceção. No interior do poder organizado, do Estado, o abismo entre a explosão pura da violência e a violência organizada atinge um nível muito perigoso. Nesse tempo todo, então, até que ponto isso foi posto em questão? Muito pouco. Mereceria infinitamente mais. É a questão da questão da violência, única realmente decisiva sobre a mesa.

Quando Janio de Freitas, talvez o último jornalista em que se possa confiar no Brasil, levanta a questão (que deveria ser óbvia) do motivo pelo qual a polícia fluminense saboreia a quebradeira para depois espalhar o terror, mas nunca consegue pôr as mãos em quem efetuou a violência em primeiro lugar, ninguém pareceu estar tocado pela pergunta, embora essencial. O parágrafo de Janio me deixou lembrando de cenas em volta da prefeitura de São Paulo, meses atrás, quando os policiais assistiam à distância à tentativa de invasão do prédio. Também fiquei lembrando de cenas de policiais infiltrados estimulando violência, plantando morteiros em mochilas, dando choque em gente desmaiada. A infinita distância entre essas imagens e o modo como o assunto se desenvolveu na esfera pública demonstra como poderia ser só uma questão de violência, mas é muito mais. É a questão de como lidamos com ela, como a encaixamos em outras formas de violência, como reagimos perante essas imagens. É a questão da questão da violência.

Em São Paulo, o estranho fenômeno de ataques dirigidos a jornalistas me deixa perplexo. Não foi justamente isso que motivou a imprensa a mudar brevemente de lado em junho e apoiar, na tentativa de em seguida pautar, as manifestações que antes recomendava trucidar (em editoriais, não vamos esquecer; mais ou menos como o editorial da semana retrasada do Estadão, também um tanto amnésico)? Pareceria um tiro no próprio pé. No entanto, está inserido numa escalada de violência em que o mais surpreendente é o fato de que só agora um policial levou bordoadas de gente que está muito, muito irritada com a turma da farda. Afinal, a explosão da violência expressa afetos primários, a começar pela raiva e o prazer de vitimar um símbolo do poder. O confronto mais direto entre um e outro dos personagens da má dramaturgia, pela lógica, deveria ser bem mais freqüente.

Os dois lados da reação a esse evento singular é que são sintomáticos. De um lado, a massiva cobertura da imprensa, que parecia estar só esperando por algo assim, e a solidariedade da esfera federal de poder organizado à esfera estadual. De outro, o argumento de que o outro lado tinha começado, era um revide. Ambos tratam a violência localizada e física como a questão, mas isso tem como único efeito que a repetição de eventos violentos, num contexto de espetáculo crescente e de reação meramente imediata, fica excluída do que se questiona, do que se quer questionar. Perguntar o que faz com que a violência continue acontecendo, tão placidamente, parece anátema. Levantar a questão da questão da violência poderia deslocar algumas realidades, mas há uma configuração social que, pelo visto, não quer fazer nada disso.

Black Bloc

Mais especificamente, o fenômeno dos Black Blocs se encaixa nisso tudo de um jeito bastante particular. Mais de um articulista chamou atenção para o fato de que o ataque a símbolos do capitalismo e o confronto aberto com a polícia são tudo que a repressão quer para garantir que tudo volte a ser exatamente como sempre foi: violento, mas sem conflito, por paradoxal que soe essa expressão. Na verdade, ela nada mais quer dizer senão que a violência como instrumento (ver o texto de julho) é intocável e inquestionável. Ou seja, ela é o método amplamente aceito, não pode ser posta em questão como questão, no máximo como ato isolado (a célebre e anódina fórmula “eventuais abusos que serão investigados” entra nesta categoria). Mas antes de mais nada, o próprio Black Bloc se coloca como um modo de organização da violência pura, vetor de linguagem, significação e, sim senhores, ordem. É nesse sentido que, sem cair numa dramaturgia de quinta categoria, podemos ver uma confrontação entre PM e Black Bloc, mas também bancos e sindicatos, milícias e cartéis de droga, e assim por diante.

Como forma de organização e portadora de significado, podemos lançar diversas questões de avaliação sobre o grupo, ou melhor, a estética Black Bloc (porque não são um grupo, etc., etc., etc., já sei). Mirar em símbolos do capitalismo é uma estratégia válida/aceitável/eficiente de luta contra o capital? Tenho sérias dúvidas. O mesmo vale para a deflagração do confronto direto com a linha de frente do braço armado do Estado. Mas certamente é algo bem mais discutível do que se definir contra ou a favor “da violência”.

O mero fato de que alguém que pretende derrubar ou subverter um sistema esteja disposto a agir fora da lei desse sistema não chega a ser surpreendente. Antes, é mais ou menos óbvio. Menos óbvio, mas longe de surpreendente, é que a força repressiva desse sistema se aproveite disso para tocar o terror em cima de todo mundo mais que o incomode. (vide a lei anti-manifestações promulgada no Rio, francamente inconstitucional, mas que não causou o menor incômodo em Brasília, São Paulo ou diretoria de redação de jornal algum.) Ainda menos óbvio, tampouco surpreendente, mas muito preocupante, é que esse seja considerado o caminho natural das coisas, mesmo depois de tudo que aconteceu em junho com a escalada da repressão em São Paulo. Mais uma vez, não se trata de colocar a violência em questão, mas de ver como essa questão da violência está sendo tratada e o que está suscitando na consciência da sociedade. A questão da questão da violência.

E pelo visto a questão da violência está sendo tratada com a maior naturalidade, como se para reafirmar que a forma natural de interação no Brasil é o conflito armado e, sobretudo, às margens da legalidade e da legitimidade. A escolha sem ambigüidades da presidenta e de sua ministra dos Direitos Humanos (dentre tantos ministros, que são muitíssimos, logo essa!), ao manifestar seu apoio formal a um dos lados do jogo da violência, mais especificamente o estatal, deixou claro que são se pode contar com ninguém do sistema político para avançar a questão da questão da violência e escalar um pequeno degrau que seja na democratização da sociedade. Para usar a expressão de Marcos Nobre, tanto o partido no poder quanto aquele que, por enquanto, ainda é sua principal oposição estão muito satisfeitos de administrar o “condomínio pemedebista”, ou seja, a estrutura conservadora inamovível do sistema político brasileiro.

Comecei o texto dizendo que, à primeira vista, as questões que emergem da seqüência de manifestações e confrontos com a PM no Brasil são a violência e a mídia. Nesse intervalo, propus o deslocamento a questão da violência para uma questão da questão da violência, mas tudo isso só fará algum sentido se colocarmos essa mesma questão no contexto de um processo mais amplo, que é a grande questão do país: queremos ser democráticos? Queremos ser livres, civilizados, justos, decentes? A questão da questão da violência, na verdade, é só a primeira muralha a derrubar, instalada pela lógica arcaica que até hoje rege as relações políticas no Brasil.

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