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A regra impossível

O futebol aderiu tarde às tecnologias de verificação. Mas quando aconteceu, as consequências foram metafísicas. Esqueça as intermináveis discussões sobre o toque de mão involuntário ou a violência de uma falta. Todas as polêmicas do “árbitro assistente de vídeo” (ou VAR) empalidecem perante o fato de que uma das regras do esporte dito bretão é tornada inviável, desprovida de sentido, ontologicamente absurda, quando aplicada graças à imagem. Trata-se da lei do impedimento, criada há mais de 150 anos, sempre contestada e nunca abandonada, irritante, mas tenaz. Em casos de impedimento, seja para acertar ou errar, o VAR está sempre mentindo.

Deve ser um caso único. O uso da tecnologia para garantir decisões mais precisas e justas é coisa antiga no esporte. Já nos anos 80, aquele jogo americano da bola oval contava com juízes vendo as partidas pela televisão. Modalidades tradicionais, como atletismo e natação, instalam sensores nas linhas de chegada há tempos. Sem falar do turfe, com seu célebre photo finish. O futebol, esnobe que só, fez fama de refratário à modernidade, recusando-se a ouvir falar em dispositivos tecnológicos quando até mesmo as redes de televisão já se valiam de replay, câmera lenta, linha de impedimento e outras distrações para entreter o espectador.

Até que chegou o VAR, recebido como a salvação para os infindáveis erros de arbitragem. Foi em 2018, já valendo na Copa do Mundo da Rússia. Ironicamente, a IFAB, que estabelece as regras do futebol, escolheu como lema “mínima interferência, máximo benefício”. Como vamos ver, é por definição um mote inviável.

A novidade trouxe alguns pequenos problemas. Uma queixa comum é a frustração de esperar pela confirmação de um gol, desinflando a alegria de torcer. Mas em geral os vitupérios contra o VAR dizem respeito a erros de decisão; justamente o que se esperava que ele resolvesse, quem diria. Mas até aqui não temos nada de surpreendente: a esperança de que o vídeo fosse uma panaceia, que daria fim às brigas com a arbitragem, sempre foi exagerada.

Impactante mesmo é perceber que essa tecnologia, só por existir, inviabiliza a aplicação de uma regra específica, tal como está enunciada. Simplesmente porque o texto tem uma base metafísica com a qual a lógica do dispositivo bate de frente. Pois é isso que acontece no impedimento. Tão logo está disponível o recurso ao vídeo, ele se revela como a ficção que é. Isso, por si só, não seria um problema: regras são mesmo ficções, sem as quais todo jogo é impossível. Mas o VAR impõe tratá-la como uma realidade quase natural.

11a regra

Todo amante do futebol conhece sua 11a regra. Está impedido o jogador que, no momento em que o companheiro lhe passa a bola, tem menos de dois adversários à sua frente, ou seja, mais perto da linha de fundo; o goleiro costuma ser um deles, mas nem sempre. Isto só vale no campo de ataque e passes “para trás” estão excluídos. Mãos e braços não contam e “na mesma linha” não é posição irregular. Diz o livro de regras que deve ser considerado como momento do passe “o primeiro ponto de contato da ‘jogada’ ou ‘toque’ da bola”.

Uma fonte de controvérsias é o adendo de que a infração só é marcada se o jogador “em posição de” impedimento interfere ou participa do lance. São expressões difíceis de definir, deixando ao bom senso do juiz decidir quem participou do quê na jogada. Mas o verdadeiro problema, o que pode mesmo dar briga, é que a regra sempre exigiu da arbitragem uma atenção e um olho clínico a toda prova, sobretudo na velocidade em que o jogo é jogado hoje. É facílimo errar um impedimento. Justamente essa falha humana era o que se esperava resolver com o VAR. Em boa medida, funcionou, ainda que imperfeitamente.

Já se questionou de tudo na 11a regra: o jogador “em posição irregular” participou ou não do lance? O atleta bloqueou o campo de visão do goleiro? Seria o caso de restringir o impedimento para espaçar o jogo, ou quem sabe abrir mão dele, legalizando a “banheira”? E por aí vai. Mas uma coisa nunca foi posta em dúvida: o sentido da interessante expressão “momento do passe”. Jamais foi preciso perguntar o que é esse momento, nem tampouco o que quer dizer um momento, questão ainda mais obscura e, bem, metafísica.

Leve em conta a vigilância da câmera e o cenário muda. Um exemplo concreto ocorreu em 2019 na Inglaterra. Um gol do Manchester City sobre o Tottenham foi anulado, provocando uma breve celeuma. O jogo terminou empatado e a anulação decorreu de um impedimento, como se diz, milimétrico. Acontece que a câmera que capta as imagens da partida gera 50 quadros por segundo, acima do dobro dos 24 tradicionais do cinema, mas bem abaixo da câmera “ultra-lenta”, que produz nada menos que 10 mil imagens nesse piscar de olhos.

A liga inglesa explicou que o encontro entre pé e bola, no “momento do passe”, ocorreu entre dois quadros, ou seja, no intervalo de 0,02 segundo. Porém, ponta-de-lança, atacante e zagueiro corriam a toda velocidade, o que implica um deslocamento de até 38 centímetros nesse vazio da imagem. Para uma decisão milimétrica, essa centimetragem é uma distância quase planetária. Os juízes, na sala do VAR e no campo de jogo, tiveram que escolher entre dois quadros congelados: no primeiro, não havia impedimento. No segundo, sim. Ficaram com o último. Acerto ou erro?

“Ora (direis), se pelo menos fossem mais quadros por segundo!” Ledo engano. Essa resposta erra o alvo completamente. O problema não está em determinar o instante do contato entre pé e bola; longe disso. Mesmo que fosse, ainda assim não tem velocidade da câmera que resolva. Toda a embrulhada está na noção do momento do passe. Quando fizeram a regra, ninguém podia prever que a tecnologia nos obrigaria a perguntar: que momento é esse?

O momento

Se agora, depois de tantas gerações, passa a fazer sentido perguntar o que é o momento do passe, é porque existe um aparelho que diz exibi-lo, explicitá-lo, para além da dúvida razoável. Esse objeto é a imagem congelada em um quadro. Nela se aplicam as linhas que, conforme aceitamos por convenção, marcam a posição do atacante e do defensor. Com isso, acreditamos piamente que está bem definida a condição de impedimento.

A primeira pergunta que vem à cabeça de qualquer um é a mesma que foi feita pela imprensa inglesa em 2019: como se chega a esse quadro? Por que não o quadro imediatamente anterior, ou posterior?

Antes do VAR, o momento não tirava o sono de ninguém. Não havia contradição entre a imprecisão da regra e o caráter arbitrário da decisão. Porque o passe não é um ponto no tempo, mas um movimento, ainda que rápido. Mesmo que se convencione determinar o primeiro toque do pé na bola como momento do passe, ainda falta explicar que primeiro toque é esse, em que escala devemos procurá-lo, se é a tangente geométrica, uma fricção molecular, um contato claramente visível na imagem, a deformação da bola. É o retorno do velho problema da lógica: quantos grãos de areia configuram um monte?

Mas a verdadeira crise não é lógica, é metafísica. Olhando mecanicamente para o momento do passe, supondo que seja um chute, o que vemos? Uma perna que se ergue, avança, impõe sua força à bola; cujo couro se deforma, cujo ar se comprime, enquanto o pé segue avançando impulsionado pela musculatura; até que o material da pelota reage, volta a se expandir, e as trajetórias do pé e da esfera se separam. Tudo isso é o passe, realizado em frações de segundo.

Não é à toa que usamos termos tão imprecisos: “momento”, “instante”, “hora”. Tempo curto, porém espesso. E durante esse intervalo, os demais jogadores também se movimentam. Não se trata de nenhum ponto no tempo, coisa que aliás não existe, exceto como recurso que inventamos para facilitar nossos cálculos.

A definição do “momento do passe” como “primeiro contato” é uma admissão velada de que o enunciado da regra tem uma imprecisão intrínseca. Talvez isso explique por que, no livro das “leis do jogo”, está expresso em uma mísera nota de rodapé. O “primeiro contato” não só não corresponde ao momento do passe, como não é nem sequer o que diz ser, seu “início”. Com a mesma validade, poderíamos considerar que o passe nasce antes: quando o jogador começa a tomar a atitude de chutar, levantando a perna; ou depois: quando a bola já se desgarrou do pé e o gesto já não pode mais ser outra coisa senão um passe, descartando o drible e o arremate. Qualquer uma dessas definições seria convencional e insuficiente.

Não adianta. O passe é um movimento, ainda que rápido. Aliás, é um gesto, movimento humano. No mais das vezes, o atacante que pretende receber a bola e o defensor que quer evitar o perigo também estão se movendo. Assim como o bandeirinha, cujo dever é fiscalizar as posições. Sua percepção, que é humana, deve captar os deslocamentos e coordenar suas temporalidades, para tirar uma conclusão sobre a adequação das trajetórias à 11a regra.

Parece impreciso, prenhe de erros. No entanto, tudo vai bem enquanto todos os envolvidos estão no mesmo plano de realidade: o da capacidade humana de agir, reagir, perceber e relacionar. O momento do passe, então, é uma coisa só, captada em sua duração, junto com a duração dos outros jogadores e a do próprio bandeirinha. O impedimento é imperfeito, mas viável. Faz sentido para todos, porque é da mesma natureza de qualquer experiência que temos do simultâneo. Podemos aceitar, com falha humana e tudo.

O VAR implode essa naturalidade porque lança por terra a coerência do mover-se, questionando a essência do movimento. O vídeo congelado trata como realidade e concretude o que é convenção, ferramenta do pensamento: a decomposição do tempo em pedaços ou, em outras palavras, a divisão do deslocamento em uma série de etapas, todas imóveis. Esquecemos que fatiar o tempo é um recurso intelectual, talvez porque costuma ser eficaz, talvez porque com a câmera em alta velocidade não chegamos a ver a imagem borrada.

Mas continua sendo um recurso mental. Há um século, o filósofo Henri Bergson já insistia que o deslocamento, como tal, é indecomponível: cada parte do movimento é também um movimento. Ainda contém algum passado e já envolve algum futuro. A imagem congelada promete o impossível: ao decompor o gesto do atleta, deveria revelar milagrosamente o momento do passe, o instante fixo, um “T0” que não aceita se limitar a ser uma abstração, exigindo a condição de prova definitiva no julgamento do lance. Quando vemos a imagem congelada, acreditamos nesse instante fixo, esquecendo que o quadro anterior e o seguinte mostrariam algo um pouco diferente, sem deixar de ser também momento do passe.

Mentira

Com as demais regras para as quais a tecnologia tem sua contribuição a dar, nada parecido acontece. A diferença entre o impedimento e infrações como a falta violenta ou o toque de mão é de natureza, não de grau. Por exemplo, a introdução do VAR provocou uma enxurrada de pênaltis por bola na mão. É provável que acabem fazendo algum ajuste na interpretação dessas infrações, antes que o jogo se torne uma sucessão de penalidades “braçogênicas”. Mas casos como esse são um mero problema de adequação, talvez incômodo, mas circunstancial: ajustada a orientação dos árbitros, segue o jogo.

Ou então: pode um sensor nas traves julgar se a bola entrou inteira ou não no gol? Perfeitamente. Não é preciso determinar em escala nanométrica onde terminam a bola e a linha no gramado. A convenção basta: se o dispositivo no poste captou a passagem da pelota, então o tento será validado. Para todos os efeitos, isso é uma regra, talvez a nova definição de gol, levando em conta a existência da tecnologia.

Mas o caso do impedimento não é de convenção. Não está em jogo o limite espacial em que ocorre o primeiro contato do pé com a bola. O problema é, de fato e de direito, metafísico: o que é o momento do passe? Como lidamos com a duração? Que violência podemos fazer ao tempo e seu modo de fluir? E, de fato, decompô-lo dessa maneira, postulando uma noção vaga como o primeiro contato do pé para especificar o momento do passe, é uma violência.

A lei do impedimento foi criada tendo em vista a sensibilidade humana. Não no sentido de que leva em conta as suas limitações, mas no de que corresponde à sua estrutura, ou melhor, ao seu funcionamento. Enquanto não surgisse um aparelho que operasse segundo o princípio específico da decomposição do tempo, o problema metafísico jamais teria emergido.

Mas o dispositivo veio, o problema emergiu. O VAR abala o impedimento na essência. O enunciado faz perfeito sentido quando o passe é um movimento, ocorrendo no meio de uma série de outros: atacantes, defensores, árbitros. Mas é absurdo quando ele é um ponto, um quadro fixo, uma imagem congelada. Não pode haver mínima interferência se a própria natureza da regra é posta em xeque. A interferência é absoluta, para o bem e para o mal. O VAR é enganador quando dá a crer que captou o momento do passe. O que ele fez foi decompor o movimento em quadros estáticos, decretando um deles como matriz de uma determinação que é toda sua, pouco tem a ver com o texto da regra e colide com a matéria do jogo. Isso não quer dizer que ele não funcione, não cumpra seu papel. A máquina, para funcionar, não precisa dizer verdades. Só precisa dar um resultado que nos sirva – ou que aceitemos, ao fim e ao cabo. E isso, em geral, o VAR faz, graças à sua falsidade metafísica.

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Imagens que não fizeram história (5): a caixa térmica e a máscara

[Prelúdio: escrevi o que segue abaixo entre domingo (31/5) e segunda-feira (1/6). De lá para cá, boa parte do assunto que motivou o texto perdeu relevância, soterrado por eventos mais impactantes e relevantes, como a mobilização anti-racista que ecoa a partir de Minneapolis. Eis aí mais uma maneira pela qual uma imagem pode não fazer história: quando é surpreendida por uma avalanche de estímulos – coisa que, de uns anos para cá, não tem faltado…]

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Manifestações em geral sempre rendem um bom número de imagens interessantes, por bem ou por mal – quer dizer, pelas bandeiras agitadas ou pela fumaça das bombas. Desde 2011, tivemos tantos protestos que pareceria impossível surgir algo digno de nota. Tolice: o campo de possibilidades para que emerja algo capaz de ressoar conosco está sempre em expansão. Considerando a infinita redundância de imagens que nos inundam, seria de se esperar que o universo daquelas que são significantes e informativas estivesse em contração; mas é justamente da atmosfera sufocada em redundância que pode saltar o relevante. Parece que isso ocorreu domingo em São Paulo.

O embate entre neofascistas e antifascistas de 31/5 produziu tudo que costuma se produzir em termos de iconografia de protesto. Bandeiras, punhos erguidos, gente segurando microfone, policial apontando arma, escudos, bandanas, fumaça. Tivemos até algumas novidades bem desagradáveis, como a exibição de tacos de beisebol (velho símbolo anglo-saxão de agressividade) e bandeiras ucranianas de inspiração neonazi. Do ponto-de-vista iconográfico, porém, nada seria novo, a princípio; editores de jornais e revistas poderiam escolher qualquer das imagens corriqueiras de seus fotógrafos ou das agências para ilustrar suas capas.

Mas no próprio domingo, quando os envolvidos mal tinham voltado para casa, em plena indignação pela repressão policial (e o tratamento amistoso à fascista com o taco de beisebol), as redes sociais já tinham elegido uma fotografia como favorita: esta com o entregador de aplicativo (bicicleta? moto?), com a caixa térmica nas costas, máscara de hospital no rosto, prestes a lançar uma pedra, provavelmente contra a polícia.

O gesto, o movimento, a postura do corpo, nada disso tem qualquer coisa de novo e é provavelmente por esse exato motivo que o fotógrafo (Nelson Almeida, da AFP) abriu o obturador nesse momento preciso – e depois escolheu esse clique em particular para editar no computador. De relance, a memória de quem estudou semiótica e a história do fotojornalismo captou a possibilidade de produzir uma imagem relevante não pela novidade, mas pela citação, isto é, pela inserção numa trajetória canônica. Mas é claro que o interesse não se encerra aí: a partir dessa inserção, aí sim, e por causa dela, poderão emergir as diferenças, que tornam essa imagem significativa a ponto de ter conquistado a atenção, mesmo que por poucas horas, das redes sociais – tão inundadas, tão sufocadas por imagens.

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Talvez tenha sido com o maio de 1968 francês que a figura de manifestantes atirando pedras se tornou canônica. Por sinal, a sublevação estudantil da rive gauche forneceu uma série de padrões tanto para protestos urbanos quanto para sua representação nas décadas seguintes. Mas frequentemente capas de livros ou cartazes de filmes sobre o episódio trazem a escolha de alguma das fotografias de jovens se fazendo de catapulta humana, apertados em seus paletós “dandy”.

Desde então, a personagem do jovem que arranca o calçamento e o atira contra policiais ou soldados se tornou uma espécie de ícone do conflito social deflagrado. São abundantes as imagens de rapazes palestinos prestes a lançar uma pedra contra armamentos vastamente superiores – inclusive com o uso de fundas, o que traça um vínculo estranho, que começa no estético e o ultrapassa, entre nosso tempo e o Antigo Testamento.

Gênova, Primavera Árabe, Occupy, praça Taksim, junho, sempre fornecem algumas imagens nessa linha, às vezes muitas. Talvez a consagração do gesto do lançador como síntese da manifestação de rua esteja no mural de Banksy em Jerusalém (“Love is in the Air, or: Rage, the Flower Thrower”), em que o manifestante, de rosto coberto por uma bandana e boné virado para trás, se prepara para lançar flores: o corpo em preto-e-branco, as flores coloridas. Graças à agilidade do estêncil, a imagem se espalhou por paredes e cartões postais de todo o planeta, empapada com o mesmo tipo de ironia que acomete aquele retrato do Che feito por Alberto Korda, hoje quase uma logomarca.

É, de toda forma, um gesto como poucos para atiçar o interesse de fotógrafos e todo tipo de artista fascinado pelo corpo. Rodin, se tivesse vivido um século mais tarde, sem dúvida ficaria encantado com os braços esticados, o peito aberto, as pernas dispostas de modo a lembrar vagamente o “Gong Bu” (posição do arqueiro), e teria esculpido de alguma maneira o manifestante com o petardo engatilhado. Não foi à toa que a personagem se consolidou no imaginário da iconografia política. Se quisermos voltar ainda mais longe, dá para dizer que a figura remete também à antiguidade clássica: o atirador de lança da escultura grega, como no célebre “bronze de Artemísio” do período austero. E foi também uma das personagens escolhidas pelo pioneiro Eadweard Muybridge para suas fotografias quase cinematográficas de decomposição do gesto.

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O entregador de aplicativo não é um estudante da Sorbonne ou de Nanterre, nem um soldado das falanges gregas, nem um esportista. Ou, para dizer a mesma coisa de maneira um pouco mais direta: o entregador de aplicativo é uma figura paradigmática da nossa década. Precarizado, sujeito ao controle algorítmico da economia de plataformas (ou, mais amplamente, a “gig economy”), tratado como empreendedor individual pelo patrão e pela Justiça, serpenteia pela cidade da “big data” atomizada, em busca de boas avaliações e uma remuneração fundada sobre baixas porcentagens do preço das entregas.

A bem dizer, o entregador de aplicativo é praticamente o oposto do estudante da Sorbonne. Mas se uma foto sua, congelado em pleno gesto de preparar o lançamento da pedra, se conecta com essas figuras icônicas e canônicas, sejam históricas ou ficcionais, justamente essa dissonância é que chama nossa atenção. Esta é, digamos assim, a diferença que resulta da repetição, como o isótopo que escapa do átomo. É difícil determinar se a estereotipia do lançador irrompe na nossa realidade ou se é a nossa realidade que irrompe na linhagem estereotípica. O resultado no espectador, em todo caso, é algo da ordem do abalo afetivo, na linha do envolvimento subjetivo que Barthes denominou o “punctum” da fotografia, e que se destaca do contexto objetivo (“scriptum”) em que está representado um episódio ocorrido durante um domingo de protestos.

O abalo afetivo serve para trazer à superfície da consciência e do discurso essa personagem social contemporânea do entregador de aplicativo. Ela possui alguns traços que a tornam particularmente significativa neste momento. Ao longo dos últimos dois anos, tempo em que acompanhamos a chegada da extrema direita ao governo, essa categoria foi frequentemente analisada como sendo a porção da classe trabalhadora que não se abalou com a destruição de seus próprios direitos tradicionais, como classe. Motoristas, entregadores e outros braços da economia de plataforma teriam, supostamente, adotado a ideia de que são de fato pequenos empresários, que mandam em si mesmos e não dependem de ninguém.

É claro que o problema é bem mais profundo. Se a própria perspectiva de emprego com alguma segurança e direitos se esfacela, como tem sido a tendência e não só no Brasil, é natural que quem está tendo que se virar no precariado demonstre pouco interesse em lutar pela manutenção de direitos aos quais nem sequer teve acesso. A desconexão entre trabalhadores tradicionais e membros do precariado tem razão de ser e, além disso, caberia às instituições da classe trabalhadora organizada expandir suas pautas para abraçá-los, em vez de lhes apontar o dedo. Se os precarizados frequentemente acabaram adotando discursos incompatíveis com seu próprio interesse, se muitos chegaram a abraçar o bolsonarismo em algum momento, se não poucos ainda o abraçam apesar de tudo, é um efeito da posição que ocupam nas relações de trabalho e sociais em geral; algo que, pensando bem, não deveria surpreender.

Ao mesmo tempo, esses trabalhadores continuam sendo o que sempre foram, no essencial, aqueles trabalhadores que década após década tiveram que circular nas grandes cidades em situação mais ou menos precária, mas sem ter, efetivamente, acesso à cidade. Gente que vai de portaria em portaria, e não mais longe; ou que entrega documentos importantes na avenida Paulista, sem espiar o que dizem, e passa na frente de seus cinemas, livrarias e centro culturais, sem poder tomar um minuto que seja para visitá-los. O precário circula pela cidade como o sangue por um corpo, mas fora dos horários de trabalho é confinado à sua quebrada. No tempo da economia da informação e da comunicação, uma economia detalhada e instantaneamente logística, este personagem é mais decisivo para o metabolismo social e urbano do que os próprios produtores.

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Esta é a figura que conseguimos ver, tacitamente que seja, quando olhamos para um entregador de aplicativo, de máscara, atirando uma pedra. Do fato de estar carregando a caixa térmica nas costas, podemos deduzir que não foi à avenida, originalmente, para protestar, mas para trabalhar. É claro que uma imagem como esta esconde pelo menos tanto quanto mostra, o que significa que mil outras possibilidades existem: que tenha pensado em trabalhar depois de sair da manifestação, que tenha esticado seu tempo de trabalho para protestar, aproveitando que já estava ali, ou que tenha carregado a mochila consigo só para reduzir o risco de ser abordado de modo truculento pela polícia. Ainda assim, a associação entre seu trabalho – precário, algorítmico, urbano etc. – e a manifestação salta aos olhos: o trabalho foi o passaporte para a cidade, a manifestação e a fotografia.

Vale lembrar também que as manifestações políticas da última década foram reiteradamente criticadas, com razoável dose de razão (mas não toda), por atraírem um público sobretudo da classe média e das regiões centrais da cidade. Como se dizia, as classes mais baixas, os moradores das periferias etc., no geral, permaneciam indiferentes; não tinham acesso ao espaço, nem compravam a narrativa.

Nesse contexto, outra explicação para o abalo afetivo, para o “punctum” do entregador de aplicativo, é que ele seria, graças à representação inscrita na história iconográfica, a exceção ou, melhor ainda, o indício de que as circunstâncias mudaram. Uma correção de rumos, talvez. Em outras palavras: agora, sim, é o povo, o trabalhador, o precário, que está nas ruas contra o governo opressor, e com disposição para enfrentar a polícia e as maltas fascistas… Exagero? Talvez, mas estamos falando de uma sensação, não de um raciocínio.

Seja como for, no dia em que esta fotografia foi feita, tratava-se de uma manifestação em nome da democracia, contra apoiadores do presidente de extrema-direita, que vinham ocupando sozinhos aquele espaço, à sua maneira: com bandeiras do Brasil misturadas a emblemas neonazistas ucranianos, padrões da bandeira americana e da israelense, carros de som, tacos de beisebol (não me conformo com esse taco), gritos por cloroquina. Do lado anti-fascista, a liderança estava nas mãos de torcidas organizadas, sobretudo a do Corinthians – mas também se verificou uma dessas ocasionais confraternização de seguidores de clubes que sempre nos emocionam um tiquinho.

Nesse cenário tão insólito, a imagem que tocou, afinal, o coração dos espectadores foi a do entregador de aplicativo, caixa térmica nas costas, atirando uma pedra. Uma imagem, portanto, com implicações que transbordam a confrontação política ela mesma. E essa é a importância da figura do entregador, percebida subliminarmente por quem se encantou com a foto: está em jogo mais do que a relação entre estado democrático e perigo fascista, entre a população livre e as forças repressivas – não que isso não seja crucial, claro; mas importa muito perceber que estamos tratando das tensões das relações de classe do país como um todo; o destino daqueles que trabalham, ocupam as cidades, tiram delas seu sustento, e carecem do reconhecimento jurídico, institucional, de sua função no tecido social. A imagem é lembrete “do” político, além “da” política, e conclama ao reconhecimento de que é preciso ampliar não só a presença de grupos sociais nas manifestações, mas as próprias pautas. Enfim: é preciso tratar do destino que estamos traçando, enquanto população.

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Há outros pontos, porém. Uma imagem se deixa apreender e analisar por elementos, combinados no seu próprio quadro, ao contrário da cadência linear de um texto. Temos aí a caixa térmica e a pedra (na verdade, dá para ver que ele segura outras pedras, já pronto para iniciar – ou continuar – um bombardeio), que já foram tratadas. Poderíamos também engrenar uma especulação um pouco anódina, mas nem por isso menos interessante, sobre a ausência de um capacete, o que parece sugerir que é um entregador ciclista, não um “motoboy”.

Mas um outro elemento é mais fecundo e instigante, graças à sua ambivalência: a máscara.

Este é um tempo em que a máscara se tornou obrigatória; e pensar que a proibição de cobrir o rosto andava em voga já faz alguns anos (vide a lei anti-véu na França). Mas há pelo menos duas vertentes interessantes para a simbologia política desta máscara específica, nesta fotografia em particular. A primeira é que um objeto de proteção, de cuidado pessoal, de cunho médico, profilático, acabou sendo revestido de um caráter político surpreendente, a partir do momento em que passou a configurar uma expressão de adesão ao isolamento social, à luta contra o coronavírus – por oposição à parcela tresloucada da população, seduzida pelo fascismo, que pretende negar seja a pandemia, seja sua gravidade.

A segunda é que cobrir o rosto se tornou prática recorrente entre manifestantes há algum tempo, tanto para se proteger dos efeitos do gás lacrimogêneo lançado pela polícia, quanto para evitar a identificação pelo Estado. Hoje, por sinal, a vigilância se dá também por algoritmos, constantemente aperfeiçoados, de reconhecimento facial. A máscara, digamos assim, tomou o lugar da bandana. De modo que, nesse objeto simples, feito de pano, dois vetores de proteção se cruzam, dois vetores de sentido político se cruzam, e esses dois cruzamentos também se cruzam entre si.

Mas há mais cruzamentos: como entregador que circula pela cidade cuja população se recolhe – ou deveria se recolher –, o trabalhador se expõe ao vírus. A máscara que o protege da contaminação, tanto quanto possível, também o protegerá, tanto quanto possível, contra o gás que eventualmente será lançado (e foi). A máscara que em outros tempos, em outras situações, poderia levar policiais a tomá-lo por um ladrão, possivelmente com consequências trágicas, hoje são a marca do “cidadão consciente” (não confundir com “pessoa de bem”).

Será que a máscara o protege de ser reconhecido, caso a imagem seja vista por algum representante da empresa-aplicativo em que se inscreveu para ser entregador, e que lhe cedeu (vendeu? alugou?) a caixa térmica? Será que, ao fotografá-lo, o profissional da France Presse o colocou sob risco de dispensa, comprometendo talvez o sustento de seus familiares, o pagamento de uma faculdade ou de um tratamento médico? É tão mais fácil escrever sobre uma imagem, especular sobre seus sentidos, quando não conhecemos a personagem, quando não sabemos nada sobre ela! No mínimo, podemos ver na máscara um punhado de significados possíveis, mas é a própria possibilidade, quando a evocamos, que nos esclarece algo sobre o real.

Também poderíamos nos concentrar no próprio fato de ele estar portando a caixa térmica. Vamos imaginar por um momento que se tratasse de uma mochila comum, contendo roupas e chuteiras usadas, ou livros e cadernos, ou um tripé dobrado e várias lentes. Ele continuaria com ela nas costas, atrapalhando seu movimento, fazendo peso? Será que ele tem medo de deixar a caixa térmica no chão e ser roubado ou ter que sair correndo, arriscando-se a ficar sem ela? Será que, perdendo a caixa térmica, ele é obrigado a ressarcir a empresa?

Cada elemento da imagem informa algo, não porque assevere ou demonstre qualquer coisa, mas porque conduz a lançar perguntas como essa. Lançar como lança o lançador? Provavelmente não, já que do outro lado não está nenhum batalhão de choque. Mas, em todo caso, a motivação de transformar os elementos da fotografia em questões que a ultrapassam vem das inquietações que já temos, com o que já conhecemos ou intuímos de nosso mundo e das condições de vida que nele vigoram. Esta é provavelmente a diferença mais relevante entre a redundância das imagens repetidas, que nos afogam, e a ressonância da imagem viva, vibrante, que nos afeta.

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Comecei com essa série sobre imagens falando em “fazer história”, e agora me vejo preso a uma espécie de obrigação auto-imposta – dessas que, supostamente, poderíamos deixar de lado sempre que quiséssemos – de ficar falando em história, quando tropeço em uma imagem que me chama a atenção e quero escrever algo sobre ela neste espaço. E no entanto, como leitor de Flusser, não posso evitar de concordar com a sentença de que a invenção da fotografia inaugurou uma era progressivamente pós-histórica. O tempo das imagens técnicas, diz ele, não é linear como o tempo histórico do texto escrito; tampouco é circular como o tempo mítico da imagem tradicional, à qual voltamos para recordar aquilo que é fixo.

A imagem técnica, diz o filósofo tcheco, emerge da irrupção a-histórica das equações matemáticas no universo da produção de imagens. Flusser se referia à química e à ótica necessárias para produzir uma chapa, mas essa afirmação é infinitamente mais válida para a imagem digital, que é integralmente algorítmica, da fotometria à compressão – sem falar na pós-produção. Ora, a equação está à parte da história, é uma igualdade matemática que, notação à parte, se supõe eterna e universal.

Isto não significa, porém, que a história desaparece com a imagem técnica. Mas significa que a imagem técnica é capaz de manipular, suspender, desviar a história. Pode ser usada tanto para desaparecer com elementos centrais de seu movimento (que Stalin o diga) como para realçar figuras marginais de seu processo, como nas imagens que celebram vitórias post factum: bandeira americana em Iwo Jima, soviética no Reichstag.

Tudo isso para dizer que cabe a quem opera o aparelho definir a relação com a história, assim como lhe cabe determinar entre a redundância sufocante, entrópica, e o sentido informativo, ressonante. Quem aponta uma lente ou monta uma estrutura gráfica define o retorno, o falseamento, o esquecimento, a perpetuação, naquela chapa a-histórica, de um sentido de história.

Esse poder, essa responsabilidade, transparece na imagem do entregador de aplicativo porque com ela o fotógrafo, em frações de segundo, injeta no ato de um trabalhador precário uma carga de significado que vem do cânone, ou seja, da história. O corpo esticado do manifestante sintetiza as tendências do mercado de trabalho, a trajetória dos movimentos trabalhistas, as aspirações dos protestos do nosso tempo, o contraste com a memória de 1968, o tensionamento da democracia brasileira. Mas isto tudo só ocorre porque sua imagem, por um breve instante, rebateu na lente de um aparelho fotográfico, nas mãos de alguém que tinha a bagagem necessária para saber quando disparar o obturador.

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Outras imagens:

Alguém que não consegui identificar tirou uma foto do lado oposto – quem sabe, da mesma pedra? Ao fundo, vemos uma pessoa tirando foto. Seria o profissional da France Presse?

O bronze de Artemísio (Zeus ou Poseidon, a princípio)

A disposição dos pés na posição do arqueiro (Gong Bu)

Banksy em Jerusalém

O savoir-faire de um sorbonnard

Jovem palestino e sua funda

Muybridge e sua série da “locomoção animal”: 1887

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De que Lula é o nome?

(Com agradecimentos aos amigos Bernardo Jurema e Moysés Pinto Neto, que comentaram a primeira versão deste texto.)

Talvez eu devesse usar outro título, de estilo memético, seguindo a fórmula que já está virando clássica: “precisamos falar sobre…”. Mas, pensando bem, nosso problema passa longe da falta de falar sobre Lula. Ao contrário, parece que não se fala de outra coisa. E é bem esse o problema: sem perceber, fizemos do ex-presidente algo como um sumidouro para todas as nossas angústias políticas e sociais, a ponto de nos tornarmos incapazes, em todo o espectro político, de pensar o futuro do país e da sociedade sem que o ponto nodal seja o “sapo barbudo”. A fixação em Lula nos agita, mas nos paralisa: ficamos tremendo e rodando em círculos quando mais precisávamos estar em movimento, inventando caminhos e modos de enfrentar as demandas de um mundo que não vai esperar pela nossa decisão.

Se não basta, portanto, “falar sobre” Lula, o que falta é entender do que estamos falando ao falar tanto sobre Lula. De que Lula é o nome? O que há nesse nome, com o rosto que vem com ele, todo o seu caráter espectral, que favorece esse papel de sumidouro, ou melhor, de eixo obrigatório para as projeções do futuro de todo um país? À primeira vista, parece uma pergunta simples: Lula representa toda a trajetória do PT; começou a presidência sob grande desconfiança e terminou celebrado; simboliza em boa medida o ódio de classe no país; manuseia muito bem a retórica do confronto – e a prática da conciliação. É o candidato (“sem plano B”) para as esquerdas em 2018, lidera as pesquisas e seus inimigos (“a direita”) precisam derrubá-lo de qualquer jeito.

Tudo isso faz dele uma personagem política central, como não poderia deixar de ser. Mas não explica tudo. Explica, sem dúvida, por que muita coisa só vai se definir quando estiver decidido o destino de Lula (leia-se: a eleição). Explica, mas só em parte, que o processo contra Lula seja percebido (corretamente) como “proxy” de uma disputa mais ampla, de muito longo prazo, em que está em jogo o exercício exclusivo do poder por elites tradicionais ou a abertura para uma limitada conciliação (com quem, exatamente?). Mas não explica, para começar, por que é tão claro que todo o futuro do país está pendurado pelo fio de uma figura individual, por mais importante que seja essa figura; nem explica por que décadas de conflito entre dois modelos (grosso modo) de exercício do poder, ambos autoritários e excludentes, parecem se resolver no expurgo ou na consagração de uma única personagem política.

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Nem me lembro mais qual era o grande episódio que concentrava as angústias de todos quando tomei a primeira nota sobre Lula, hoje provavelmente perdida nos parágrafos aí abaixo. Certamente foi meses antes da sentença de Moro, mas meses depois do Powerpoint de Dallagnol. As considerações foram oscilando de lá para cá e acho que isso transparece no que se segue. Se “precisamos” entender de que Lula é o nome, é porque ele ajuda a nomear a paralisia de um país que quer resolver suas tensões internas por meio dele – ou melhor, de sua figura. Um país, portanto, que não quer encarar suas contradições e, por isso, as projeta numa única pessoa e espera que sua destruição ou seu triunfo tragam a resposta – para que pergunta? A da identidade nacional?

Se for assim, que terrível situação é a de um país que só consegue se enxergar por meio dos afetos suscitados por um indivíduo. Que fraqueza, paralisar-se para não ter de enfrentar as próprias distorções e, com o perdão da escolha do termo: contradições. Que estado lastimável o de um país cujas próximas eleições só serão divisáveis a partir do destino penal de um candidato… Que triste país, esse em que alguém de extrema mediocridade tenta se cacifar para vôos mais altos apresentando-se como “anti-Lula”. Que tragédia, não poder ainda cogitar das alternativas para um futuro em comum, porque o país nem sequer digeriu o passado recente.

Para clarear um pouco “de que Lula é o nome”, proponho dividir a pergunta em três. 1) O que há em Lula, individualmente, para fazer dele essa imagem que concentra não só nosso ódio e nosso amor, mas também nosso entendimento do passado e do futuro? 2) Como o estado atual do país como um todo se expressa na disputa de interpretações em torno do processo contra Lula e, paralelamente, de sua pré-candidatura para mais um mandato? 3) Como a paralisia atual e a derrocada de Lula se encaixam em escolhas políticas feitas nas últimas décadas?

Antes de prosseguir, uma precisão: tudo que está dito aí abaixo sobre ações concretas de Lula ou seu entorno tem a finalidade de esclarecer um pouco como essa sua imagem opera em nós. Por isso, você não vai encontrar no que segue nem condenações, nem endossos; não estou “batendo” em nenhuma personagem, nem “livrando a cara” de ninguém. Ambas as opções estão fartamente disponíveis internet afora.

1) A figura individual

Em algum dos momentos, nos últimos tantos meses, quando andei matutando sobre essa bruma em torno de Lula, me veio uma lembrança de 2014. Durante o processo eleitoral naquele ano (eu ia dizer: antediluviano), algo curioso aconteceu. A figura de Marina Silva, “terceira via” que chegara à vice-liderança da corrida e ameaçava não só o lugar de Aécio Neves no segundo turno, mas também a reeleição de Dilma Rousseff, passou a recolher como um ímã a atenção de todos. Com essa atenção, vinha uma gigantesca carga afetiva, tornada disponível desde a bagunçada seqüência de eventos do ano anterior. Grande parte dessa carga se polarizou em torno do nome de Marina, que, de repente, adquiriu um significado insólito. Era um significado tributário dessa carga recolhida e, por isso, o nome “Marina” passou a reverberar os fantasmas e aspirações de cada grupo que voltava o olhar para ela. O rosto, o nome, a voz, a figura, aquilo que denominei “efígies de Marina“, operava ao modo de um ícone no Império Bizantino.

Tentei descrever os traços principais desse fenômeno na época, antes da campanha terrivelmente agressiva contra a candidata, na corrida para o primeiro turno, encetada principalmente pelo marketing da campanha de Dilma – e, em menor grau, também pela de Aécio, vale dizer, para não cometer injustiças necessárias. Se fosse voltar ao tema, a pergunta que eu deveria me colocar seria: será que toda aquela campanha destrutiva (ou, como disseram na época, “desconstrutiva”) não foi violentamente informada por esse caráter icônico que se agregou à efígie de Marina? Será que não foi justamente o nível das forças que se concentravam aí que foi libertado pela agressividade do marketing negativo? Não teriam sido essas forças que se tornaram mais uma vez disponíveis, só que em grau mais intenso de morbidez?

Deixo em suspenso essas questões porque o texto não é sobre a efígie de Marina, mas a de Lula. E, quando chegamos nessa efígie em particular, tudo se torna bem mais delicado. O que quero recolher daquele episódio é essa faculdade que algumas personagens têm de converter-se em ícones que carregam significados divergentes, muitas vezes paradoxais, e levam consigo as incompatibilidades, os espaços silenciados e obscuros, de toda uma sociedade. São nomes e rostos que se intrometem em toda conversa, em toda estratégia de ação, em todo posicionamento, mesmo sem que o percebam aqueles que se posicionam.

É claro que o caso de Lula hoje é muito diferente do de Marina em 2014. As energias em torno do nome dela tinham o poder de definir o segundo turno de uma eleição presidencial, mas as linhas de cisão que atravessam os traços do rosto de Lula dizem respeito a profundas divisões sociais e políticas, nossa interpretação do passado recente (os governos petistas) e não tão recente (desde as greves do ABC), o papel do Judiciário, a energia disponível para os movimentos sociais e muitas outras coisas. É claro que há algo de “ícone bizantino” na efígie de Lula, mas essa noção não basta para entendermos de que Lula é o nome.

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Vale a pena explorar o fato de que Lula é uma figura pública com biografia bastante conhecida, que suscita opiniões fortes sobre praticamente todas as etapas dela até agora. Em outras palavras, temos de Lula uma “noção individual” muito precisa (ele não é nenhum desconhecido, já fizeram até filme sobre ele etc.). É uma figura tão presente, tão constante no noticiário e no imaginário que parece vir toda pronta, como um bloco, como se cada etapa da sua biografia emergisse em todas as menções a seu nome, e como se tudo já estivesse decidido a seu respeito. Ou seja, lidamos com Lula como se soubéssemos de cara tudo que lhe aconteceu e tudo que lhe acontecerá. Como se tivéssemos sua “noção completa”, para usar de modo distorcido a terminologia de Leibniz.

É claro que ninguém pode ter a “noção completa” de alguém (exceto Deus, que é imortal), já que não conhecemos o futuro. (Digressão: é como Sólon falando a Creso, o rei mais rico e bem-sucedido de sua época: só é possível saber se alguém foi feliz quando sabemos como terminou sua vida. Creso, por sinal, foi vencido pelos persas do imperador Ciro, que o condenou à morte. Salvou-se porque gritou o nome de Sólon ao se dar conta de que o ateniense tinha razão. Ciro gostou e o fez seu conselheiro. História edificante, não?)

No caso de Lula é diferente, porque com o “sapo barbudo” o futuro está em jogo e se desenha a cada decisão tomada: se condenado, é Lula-o-presidiário. Se solto, é Lula-o-próximo-presidente (nem candidato, presidente mesmo). Esse é um reflexo do caráter icônico de Lula, já que os ícones, que representavam santos e membros da Sagrada Família, eram sempre “o que eram”, uma totalidade, relacionada com as aspirações de quem os encarava piamente. Em Lula, temos uma paralaxe. Por um lado, falar em Lula carrega tudo aquilo que o nome dele porta. É o retirante, o torneiro mecânico, o líder sindical, o fundador de partido, o constituinte, o candidato derrotado três vezes, a vítima da edição do debate, o signatário da Carta ao Povo Brasileiro, o presidente que pôs José de Alencar no Jaburu e Henrique Meirelles no Bacen, que ampliou as universidades, que investiu em transferência de renda, que talvez tenha feito um “pacto de sangue” com Emílio Odebrecht, jogava futebol na granja do torto, gosta de churrasco e bebida, que não buscou um terceiro mandato, mas impôs uma sucessora, o ex-presidente que teve câncer, enviuvou, está sendo investigado…

Mas, ao mesmo tempo, como indivíduo de carne e osso ou como figura pública, ele não é tudo de uma só vez. Cada passo no processo político, como no processo judicial, diz respeito àquele momento, àquelas possibilidades abertas, àqueles impasses que devem se decidir. Ou seja, existe uma desconexão entre o que se pretende atingir com uma avaliação da figura individual de Lula e aquilo que efetivamente se mobiliza com essa avaliação. Ou melhor, não uma desconexão, mas precisamente o contrário: uma linha traçada, uma conexão casual, ad hoc. Entre a parte e o todo, o instantâneo e o duradouro, o conjuntural e o estrutural.

Por exemplo, alguns ataques a Lula miram no líder sindical, ou seja, Lula como instigador (ou administrador) do antagonismo entre patrões e trabalhadores; algumas defesas, obviamente, miram no mesmo Lula. Alguns ataques miram no Lula retirante (que fala errado, não fez faculdade, gosta de beber etc.); algumas defesas, idem: é a chegada de um “homem do povo” à presidência (seria isso uma prova de maturidade da democracia? Seria uma prova da abertura de espírito do eleitor brasileiro?); alguns ataques miram o presidente da conciliação de classes, que logrou resultados vistosos de inclusão social sem incomodar os poderes tradicionais – mas pisando no calo de toda uma camada razoavelmente confortável com a situação intermediária. Também tem defesas que se concentram nesse período, fazendo de Lula uma espécie de novo Getúlio, o conciliador que trouxe desenvolvimento, mas acabou sacrificado.

O Lula que é atingido ou resguardado por esses ataques e defesas é sempre a somatória de todos esses elementos: a destruição do Lula retirante é a destruição do novo Getúlio; a salvação do líder sindical é a salvação do autor da Carta ao Povo Brasileiro. Ao mesmo tempo, aquilo que se projeta para seu futuro tem um efeito semelhante. Sua condenação e eventual prisão significará para seus inimigos a concretização do “pixuleco”, atestado de que fora dos círculos tradicionais só tem bandidagem, um momento catártico de gozo; para seus defensores, será a demonstração da tese do combatente injustiçado, a exclusão do povo das grandes decisões. Para alguns, é a prisão do retirante; para outros, a prisão do líder sindical; para uns, a condenação do projeto que usurpou o poder que cabia de direito a determinados grupos; para outros, a condenação do projeto que tirou milhões de pessoas da pobreza.

Daí alguns aparentes absurdos, como a revelação da última pesquisa Datafolha de que mais de metade da população concorda com a perspectiva da prisão de Lula, mas também mais da metade da população votaria nele no segundo turno em outubro se ele fosse candidato. É revelador o fato de que haja gente disposta a votar em alguém que, em sua própria opinião, deveria estar preso. É como se dentro da cabeça das pessoas também fosse possível dividir os “muitos Lulas” que nos são apresentados e escolher um para cada ocasião, sem que isso seja particularmente um problema. A contradição, se há, não está na pessoa, mas no cenário que lhe é apresentado.

Dito assim, parece óbvio. A problemática se esclarece quando removemos o próprio Lula do cenário, deixando apenas as linhas de força que se confrontam no espaço aberto entre o indivíduo e sua efígie, a “noção completa” mobilizada a cada vez que uma imaginação carregada de desejo confabula sobre as origens e o destino do ex-presidente. O que encontramos aí é a forma específica que tomou o conflito político e social – ou, em uma palavra, histórico – do poder no Brasil; tanto o direito ao poder quanto o exercício do poder. Neste primeiro plano, é disso que Lula é o nome; e, se a guerra em torno do destino de Lula conduz o país à paralisia, é porque se trata de uma posição estratégica a conquistar. Uma cabeça-de-ponte, digamos. As batalhas do futuro serão definidas pela maneira como essa posição estará ocupada.

2) Processo e candidatura

Retomando a segunda pergunta feita ao fim da introdução: como o estado atual do país como um todo se expressa na trajetória do processo contra Lula e na sua pré-candidatura? A primeira coisa a fazer é deixar bem sublinhado o caminhar paralelo do processo e da candidatura. Um se alimenta do outro: quanto mais avança o processo, mais a candidatura é um cavalo de batalha e, quanto mais a (pré-)candidatura ganha corpo nas pesquisas de opinião, mais decisivo se torna o processo.

Quanto ao processo ele mesmo, não sou jurista para debater sobre a justeza da condenação, se as delações foram colhidas de modo aceitável ou não, se as demais provas são conclusivas. Há todo tipo de análise a esse respeito, apontando majoritariamente para a fragilidade do caso e da sentença, principalmente quanto à vinculação do benefício a atos de corrupção. Mas uma coisa é clara, mesmo para quem não tem conhecimento jurídico: o caso como um todo é de uma pobreza atroz. Desde aquele famoso Powerpoint de Deltan Dallagnol até o julgamento a toque de caixa da segunda instância (e mesmo antes, com a condução coercitiva), o que acompanhamos foi uma seqüência interminável de depoimentos inconclusivos, indícios tomados como provas, afirmações vazias para justificar conclusões sem premissas, abusos de poder. E torcidas animadas, claro.

O importante, na verdade, é que essa pobreza é necessária, do ponto de vista simbólico, que é o que interessa neste texto. Condenar Lula com clareza por um crime claramente cometido e com base em provas “acima de qualquer dúvida razoável” seria pouco impactante, não mexeria tanto com a sensibilidade das pessoas e não expressaria o mesmo nível de poder. Na esfera da disputa das posições, é preferível condená-lo em condições duvidosas, onde o contraste é mais evidente com outros políticos em situação parecida, que foram absolvidos, receberam penas irrisórias ou foram beneficiados pela prescrição. Talvez seja precisamente esse o motivo pelo qual o caso do triplex foi o que mais andou até aqui: é decididamente o mais fraco de todos contra Lula.

Ao mesmo tempo, condenar Lula por causa de um triplex no Guarujá ou um sítio em Atibaia é muito diferente, por exemplo, de condená-lo por esconder centenas de milhões de dólares na Suíça. (E, convenhamos, ficarei mais surpreso se ficar demonstrado que Lula não tem milhões na Suíça do que se eventualmente encontrarem dinheiro escondido.) Mas se condenassem Lula por ter milhões escondidos na Suíça, duas seriam as conseqüências: primeiro, ele seria condenado por um crime que muita gente “incondenável” comete neste país. E isso seria um problema, porque abriria o flanco para outras condenações semelhantes. Mais do que isso, a PF teria que encontrar esse dinheiro, ou seja, teria que procurá-lo, o que poderia causar problemas para outras pessoas que estão acima da lei. A segunda conseqüência é que o processo contra Lula seria um processo “normal”, praticamente incontroverso, não demandaria estrambóticas apresentações de Powerpoint, nem confusões semânticas sobre a propriedade de um bem e a corrupção passiva, nem uma estranha mistura de datas para a transferência de posse, nem nada disso.

Na sentença contra Lula, Sergio Moro citou um historiador inglês do tempo da Guerra Civil para dizer que “não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você“. Duas coisas nessa frase chamam atenção: a primeira é que, neste país, esta frase é reconhecidamente uma mentira deslavada. Em outros países ela é apenas uma impostura, já que há mil maneiras de manusear a lei a seu favor quando se está suficientemente alto, Goldman Sachs que o diga. E é de um cinismo atroz no caso do Brasil, terra de grileiros, de supersalários, da jagunçagem, de juízes que atropelam, matam e saem impunes, de juízes que vazam gravações ilegalmente e saem impunes, de juízes que acordam de madrugada para dar habeas corpus para empresário amigo… duas vezes. Terra de policiais que plantam droga na mochila de morador de rua e saem impunes. Terra de juízes que são, sim, punidos… com aposentadoria integral. E por aí vai. (A profusão de referências ao Judiciário é proposital…)

A segunda coisa é que o termo operativo da frase, no contexto da sentença em que está escrita, é o pronome você. A mensagem parece ser dirigida a alguém em particular, alguém que foi abatido na decolagem. Melhor dizendo, parece expressar a existência de um clube exclusivo para aqueles que estão acima da lei, um clube muito difícil de entrar. Escrever que a lei está e estará sempre acima de você é bem diferente de escrever que ela está acima de todos; no Brasil, isso só se diz no cinema – e com uma dose cavalar de cinismo. Mas então essa frase, posta assim, significa que há uma “caça às bruxas” contra Lula, como ele mesmo chegou a mencionar durante um de seus depoimentos? Significa que existe uma “indignação seletiva” contra a corrupção?

Em boa medida, sim, mas o problema é mais sutil do que isso. O que aparece como caça às bruxas ou indignação seletiva é, na verdade, um processo de expurgo; uma limpeza do espaço do poder para que volte a funcionar com os mesmos atores – tanto quanto possível. Algo parecido ocorreu, mal comparando, quando da restauração da monarquia inglesa depois de Cromwell, na instalação da Santa Aliança depois da revolução francesa (e Napoleão – importante frisar, porque a motivação para o expurgo passa longe do caráter efetivamente revolucionário; o que incomoda é o deslocamento dos espaços de poder), e principalmente na repressão prussiana e austríaca depois de 1848. Nobody knows you when you’re down and out.

Os grandes esforços de Lula para se escudar das acusações que certamente viriam parecem ser um reconhecimento da dificuldade em entrar no clube e na ofensiva digna de Wehrmacht que ele sofreria se fracassasse. Em todo caso, ele certamente tentou, ou pelo menos achou que já tinha entrado, nem que fosse pela força que seu nome carrega – ou carregava. Mas um “parvenu” só permanece aceitável para a aristocracia enquanto está na ascendente. Quando tem algo a oferecer. Quando a maré vira, não se torna apenas descartável (como Gatsby no romance de F. Scott Fitzgerald): torna-se também odioso, reflui todo aquele ódio que foi contido durante o período de conciliação. Incrível como a história do PT, e de Lula em particular, é parecida com a de Barry Lyndon.

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Chegamos, com isso, ao outro lado do movimento: a construção da candidatura petista. É provavelmente este o aspecto que mais expressa a transformação da figura de Lula numa fonte de paralisia, principalmente para o potencial criativo que deveria haver na sensibilidade de esquerda e, por extensão, nos movimentos e partidos que se apresentam como de esquerda. Ao contrário, estão todos em compasso de espera para decidir se se alinham à força hegemônica, construída no processo de redemocratização há quase quarenta anos e que já deu todas as mostras possíveis de incapacidade para se renovar e fazer frente aos desafios do século XXI. Isso, claro, sem explorar o que há de mais obviamente inglório para as esquerdas: uma candidatura presidencial que supostamente é a proposta da esquerda para o país está sendo construída como desagravo individual e estratégia de sobrevivência partidária.

À parte isto, o que permanece aberto à discussão é a noção de que uma eleição sem Lula é uma manobra, uma fraude, um golpe. Essa frase pode ser discutida em três planos. No estritamente jurídico, aquele em que se apoiarão sem dúvida os defensores da sentença, sobretudo os mais bacharelescos, certamente não há fraude nem golpe, uma vez que a lei da ficha limpa está aí desde 2010 e, certa ou errada em bloquear candidatos condenados em segunda instância, deve ser obedecida. Ainda neste plano, porém, certamente há um bom tempero de manobra, já que o cronograma do julgamento, como antes tinha sido com o das investigações, foi evidentemente calculado para coincidir com o calendário político (sem falar nos acontecimentos diários da política, como foi o caso do vazamento da conversa entre Lula e Dilma).

Note-se que, na maior parte das vezes, essa manobra foi feita dentro dos limites das normas de procedimento, ainda que fora, aliás longe, do habitual (como a marcação da apreciação do recurso para 24 de janeiro, um prazo curto e uma data pessoalmente cruel para Lula). Digo isso porque é sempre bom lembrar: regras de procedimento e outras pequenas formalidades meio ridículas servem justamente para garantir o espaço de manobra, o exercício de um pequeno poder e, por fim, o arbítrio pessoal, desde que dentro dos parâmetros aceitáveis para escalas superiores de poder.

No plano do processo político (no sentido estrito), é evidente que o manuseio das regras de procedimento e todo o aparato do Judiciário está servindo a uma finalidade que lhe é alheia. Ou seja, o aparato está instrumentalizado pela disputa política – naturalmente, já que sua cúpula e os cargos mais importantes de sua hierarquia são ocupados por herdeiros de elites tradicionais e de estratos que aspiram a se juntar ao clube. Assim sendo, não creio que haja controvérsias a respeito do fato de que a ofensiva contra Lula visa eliminá-lo da corrida presidencial de outubro. Por sinal, esse é o ponto de vista do mercado financeiro, que precificou o processo, apostando sem muita base empírica na idéia de que Lula seria um mau presidente para seus interesses. Assim sendo, existe mesmo algo de fraudulento, algo que pelo menos flerta com um certo golpismo, nos esforços para remover Lula da disputa. Esses esforços escancaram o recurso das oligarquias a meios que estão fora da normalidade institucional, pelo menos na forma.

Mas é justamente isso que nos traz ao terceiro plano: os esforços “escancaram” a naturalidade com que oligarquias se dispõem a recorrer a meios questionáveis. Mas não introduzem nada. O terceiro plano, portanto, é o dos mecanismos políticos mais profundos, aquilo que não se deixa traduzir inteiramente em códigos, processos institucionais, imagens precisas. É aquele plano em que a caracterização do Brasil como “uma democracia” é mera contingência; é um plano em que a sociedade civil não figura como “fonte da soberania” e suas opiniões não passam de banalidades dignas de migalhas. Nesse plano, não há nem sequer espaço para que uma proposição dessas seja verdadeira ou falsa. Nele, a exclusão de Lula ou sua inclusão na lista dos candidatos expressa o triunfo de uns e o fracasso de outros.

Evoquei este terceiro plano porque sem ele a arquitetura do sistema fica incompleta. Os três planos não são camadas isoladas, nem simples recursos de análise, como se bastasse escolher um só para definir o que se pensa sobre o assunto. Eles se coimplicam e, principalmente, os mais “baixos”, imediatos, quotidianos, servem para manifestar e realizar os mais abstratos e decisivos. Neste último plano a lógica binária (“é” ou “não é”) já não vale, porque é ele que estabelece as bases em que uma proposição como “é golpe” pode receber valor de verdade. É o plano em que se define o peso da institucionalidade formal na vida política do país, assim como é (por exemplo) o plano em que a gramática geral da sociedade vai considerar como normal ou como aberração um juiz se referir ao acúmulo de auxílios-moradia como “um direito”.

Referindo-se a outro assunto (o mecanismo da instituição monetária), gente como Aglietta e Orléan designam esse plano como o da “confiança ética” (os outros sendo o da “confiança metódica” e o da “confiança hierárquica”). Ou seja, acima dos procedimentos formais e regrados (metódicos), acima da instituição operando, legiferando, administrando (hierárquica), podemos ver em ação, no caso de Lula, um movimento mais sutil, decisivo e abstrato: um espaço de determinação, ou seja, tomada de forma, para a gramática do nosso sistema ético. E um sistema ético significa: como nos comportaremos, que tipo de juízo emitiremos, que espaços abriremos para tais, tais e tais pessoas e grupos. Não é pouca coisa.

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É por isso que a comparação entre a condenação, digamos assim, duvidosa de Lula e o verdadeiro estado de exceção em que vive boa parte da população brasileira é pertinente, mas insuficiente. É uma comparação com que me deparo freqüentemente nas redes sociais e na internet (que não são a mesma coisa), e sua formulação é mais ou menos a seguinte: “como podem os defensores de Lula acusarem um desvio da democracia (ou até seu fim) por causa das manobras feitas para eliminá-lo da disputa de outubro, se esse tipo de manobra é fichinha em comparação com o que se passa diariamente com réus negros, pobres, moradores de favelas etc.? Para essas pessoas, nunca houve uma democracia que pudesse estar sendo destruída agora.”

Não há nada nesse argumento que seja estritamente falso: se o conceito de soberania envolve a legalidade como universal, mas uma boa parte da população é deixada à margem da lei (e outra parte, pequena, acima dela – como vimos), então a democracia não existe para ser destruída, ou pelo menos existe de um modo suficientemente imperfeito para que mais um caso em que ela é ignorada não signifique uma ruptura em particular. O argumento costuma prosseguir lembrando do papel que os governos do PT tiveram na manutenção e até aprofundamento da exceção, sobretudo no quadro da preparação para a Copa e os Jogos Olímpicos. Isso também é verdade e serve para refrescar a memória, mas não modifica em nada o argumento.

Acontece que, como já pudemos ver, o que há de significativo na condenação de Lula está em outro plano. Ou melhor: o julgamento de Lula se desenrola em outro plano, mas o que está em jogo é a modalidade da comunicação entre planos. Tudo isso, é bom frisar, se desenrola na cabeça dos atores relevantes: os juízes, os militantes, os analistas, colunistas, aliados e adversários políticos. O julgamento de Lula faz parte de um processo de “purificação” do controle político sobre o país, de modo que a decisão é uma mensagem lançada para todos os cantos, para todos os estratos sociais. Assim, a questão não está em afirmar ou questionar a sobrevivência do Estado de direito, da democracia, da universalidade da lei. O que está em jogo é o conjunto de linhas demarcatórias para a validade da lei, que não é universal – certamente não aqui, provavelmente em lugar nenhum.

Linha demarcatória, ou seja, espaço de indefinição; ou seja, fronteiras dos modos de atuação da lei e sobre a lei. Que o Judiciário e a polícia podem deitar e rolar em cima da população pobre no Brasil é inegável. Se é inegável, é porque este é um espaço plenamente definido, um espaço de arbitrariedade e subjugação claro, quase inteiramente fora da lei – mas não totalmente, porque existe um minúsculo respiro, ali onde qualquer migalha de vitória por parte de um defensor público, por exemplo, é um triunfo heróico e surpreendente, mas real, e que libera um pouco de pressão quando ela se torna excessiva. Que, do outro lado, esse mesmo judiciário e essa mesma polícia farão tudo para evitar problemas a oligarcas, grileiros, especuladores, togados e políticos, também sabemos. Esse é um espaço bem demarcado, acima do alcance da lei, e que pode causar problemas graves a advogados, investigadores ou jornalistas, se tentarem estender a validade da lei até ali.

O que nos ensina todo esse fuzuê (me deu vontade de usar essa palavra) em torno de Lula é que ainda havia, no mínimo, um espaço cuja determinação não conhecíamos. O que não sabemos é: a que grupo pertence alguém com a trajetória de Lula? Vale a pena parar um instante para contemplar o absurdo da situação: o que estamos presenciando, como nação, é a decisão entre incluir um ex-presidente, ex-líder sindical e ex-pobre no rol daqueles que o poder, na figura do Legislativo (OK: a lei) favorece em qualquer circunstância, ou relegá-lo à mesma categoria em que estão os inúmeros despossuídos do país. Ou, melhor dizendo: retorná-lo a essa categoria, já que ele nasceu nela. Parece estar fora de cogitação que ele não esteja em nenhuma das duas categorias: ou seja, nem abaixo, nem acima de uma lei universalmente válida. Dado o peso de seu nome, de sua imagem, de tudo que ele mobiliza, para isso seria necessário que a lei fosse realmente de aplicação universal, ou seja, que essas duas categorias nem existissem. Mas isso é impossível para nós. Lula também é o nome disso, no fim das contas.

Por um lado, é evidente que existe um oceano entre o que está acontecendo com Lula e o que acontece diariamente nas favelas, periferias e zonas rurais do Brasil, de modo que fazer de Lula o símbolo da nossa deficiência de democracia é (quase?) um insulto a tanta gente presa sem julgamento, assassinada, torturada, condenada por furtos minúsculos etc. Por outro, no plano dos espaços de poder, o que estamos experimentando é o anúncio público de que a linha demarcatória da casta à qual tudo é permitido passa aquém, e não além, de uma pessoa com a trajetória, a biografia e, digamos assim, o aspecto de Lula. Se há uma conexão entre as manobras em torno da condenação de um ex-presidente e a exceção concreta e ilimitada a que está sujeita grande parte da população, ela está no próprio fato de que a questão exista, ou seja, de que haja castas capazes de determinar sem grandes questionamentos os espaços de exclusão. Por sinal, Lula também é o nome disso: a descoberta de um certo critério para fazer parte dos inacessíveis.

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É preciso fazer uma pausa e atentar para o seguinte: tudo, absolutamente tudo nesta situação é inglório. A trajetória política de Lula costumava ser comparada à de Lincoln (lembra?); agora está em boa medida reduzida ao esforço pessoal (meritocrático?) de adentrar o clube dos privilegiados brasileiros, um clube restrito, mas recompensador. Onde à primeira vista estamos combatendo abusos de poder e desvios de verba, na verdade estamos apenas fazendo um ajuste de contas político e afastando uma parte dos já restritos grupos de poder.

Aliás, se já é ruim perder a imagem de um Lincoln (não temos muitas personagens dessa envergadura), ainda pior é perdê-la para uma imagem de alpinista político. Principalmente no caso de alguém cuja imagem atual contamina todas as categorias sociais que se acumulam em décadas de trajetória e de história do país: retirante, sindicalista, fundador de partido, candidato, presidente…

Melhor dizendo, não é só inglório: também é trágico. Do ponto de vista do equilíbrio político, o PT, com Lula à frente, pôs tudo a perder depois da derrubada de Dilma. O que houve como força de oposição a Temer foi desinflado pela estratégia petista de canalizar todas as energias (na sociedade) para sua própria salvação – e a de Lula, claro. As primeiras manifestações contra Temer tinham um tamanho bastante respeitável, mas em vez de crescerem proporcionalmente aos escândalos e aos projetos impopulares (aliás, também à impopularidade estatística do próprio Temer), foram deliberadamente congeladas e mortas pela instrumentalização partidária. Quem paga por isso é o país, particularmente o trabalhador que perde seus direitos, não só por causa do projeto hoje no poder, mas também porque foi rifado pelo partido que leva seu nome.

É claro que nada disso aconteceria se o PT não tivesse conseguido manter sua posição dominante na esfera dos partidos e movimentos de esquerda – do ponto de vista das sensibilidades, sem dúvida, e da capacidade de mobilização, também. A tibieza das alternativas à mão, a covardia das lideranças do PSOL, a mediocridade dos nomes disponíveis para a disputa eleitoral, tudo isso é inglório; provavelmente boa parte disso se explica pela transição de modelo econômico no Brasil e no capitalismo global, mas isso é assunto para outro texto.

3) Paralisia e propostas

Essas últimas considerações nos trazem à terceira das perguntas elencadas na introdução, ou seja: como a paralisia atual e a derrocada de Lula se encaixam em escolhas políticas feitas nas últimas décadas. É uma questão difícil e, revendo as notas que resultaram nos parágrafos e itens acima, percebo que todas as considerações passam ao largo do ponto mais inglório de todos, no que diz respeito à candidatura de Lula. Como podemos achar normal, aceitável, que o candidato a presidente das esquerdas em 2018 seja o mesmo que foi em 1989? De que serve o progressismo que não é capaz de progredir nas lideranças – lembrando que a liderança é supostamente aquele indivíduo que “porta” a mensagem do partido, suas idéias, seus projetos, suas propostas?

Provavelmente existe aí um elemento da falha mais grave nas esquerdas latino-americanas: um personalismo pronunciado, que repete o culto tipicamente conservador a “grandes fundadores da pátria” (como é o caso do bolivarianismo, sem dúvida), mas que sobretudo denota uma contaminação pelo espírito místico presente em certos movimentos contestatórios da história do continente, com pouca carga de invenção política propriamente dita. Isso me parece contrário a tudo que funda a própria noção do progressismo (um nome mais elegante e aparentemente carregado de mais sentido que às vezes se dá à esquerda), que envolve princípios como decisões coletivas, rejeição à autoridade, negação à transcendência encarnada numa insígnia e numa pessoa.

Vale lembrar que o PT foi fundado para ser precisamente o oposto de um partido personalista, rígido e mistificador (assim como o novo sindicalismo tinha sido fundado para ser o oposto de um sindicalismo pelego…). A reunião de grupos vindos da religião, do movimento operário, da intelectualidade, projetava um partido colegiado, múltiplo, pluralista. Vê-se como o crescimento do partido cobrou seu preço. A notável expansão sob a batuta do CNB (leia-se Dirceu) trouxe o poder e a glória, mas esclerosou as estruturas. Não se pode atribuir a insistência em Lula como candidato apenas ao processo judicial contra ele. Desde o início, não se falava em outra candidatura, nem sequer como “alternativa” (sic!). Eis a maior derrota do PT, muito maior do que essa que o Judiciário está impondo.

É a maior derrota porque mesmo os reveses dos últimos anos não teriam acontecido, pelo menos não de maneira tão destrutiva, se o PT não se convertesse numa máquina de reverberação e reforço para uma personalidade carismática. Não haveria motivo para perseguir com tanta veemência uma figura simbólica como Lula se seu partido tivesse um leque renovado de quadros portadores de idéias adaptadas aos desafios do mundo atual (que é o mundo da ascensão da China, da automatização, da mudança climática e conseqüente transição energética, da “gig economy”, do esgotamento neoliberal no mundo rico etc.). Se um ataque como esse foi tão eficiente e deixou o partido em frangalhos, como indicaram as eleições municipais de 2016, é porque estava ali um elo fraco. Era um ponto de apoio para todo o peso do edifício; uma vez removido, toda a estrutura veio abaixo.

Em outras palavras, o PT já estava derrotado como alternativa de futuro para o país em 2010, quando consagrou uma candidatura indicada por Lula. A candidata em questão se revelou uma presidenta ineficaz, mas isso é irrelevante para o ponto em questão: nunca um partido com a história do PT poderia ter um candidato imposto pelo “dedaço iluminado” de uma grande mente, de um líder inquestionável. Ainda menos considerando que o verdadeiro desejo, no partido e na tal da grande mente, era que Lula voltasse a se candidatar em 2014. Tudo isso expressa uma estrutura esclerosada.

Em tempo: é pouco crível o argumento de que tudo seria diferente se não tivesse havido o escândalo do mensalão em 2005. Basta lembrar que o candidato que vinha sendo preparado para 2010 era José Dirceu, artífice do enrijecimento do PT (e da aproximação com as empreiteiras) e personagem da mesma geração de Lula. Além disso, o desejo de ter Lula de volta em 2014 (e agora em 2018 de novo) revela que o partido se afastou completamente daquilo que teria sido sua missão histórica, não produziu renovação, não trouxe novas idéias, não está pensando os desafios do futuro.

Resumindo: se o PT e a esquerda como um todo (com exceções) não tivesse caído na armadilha personalista e, a exemplo do chamado “voto crítico” de 2014, no canto da sereia de um mal disfarçado messianismo do PT, não haveria espaço para uma concentração tão grande de ataques a Lula. Ele seria uma personagem importante, mas jamais seria esse totem em que se transformou. O PT e, em boa medida, toda a esquerda com peso social e eleitoral no Brasil se enrijeceram tanto por apego à figura de Lula que sua derrocada será a derrocada da esquerda em geral.

*

Entretanto, está bastante claro que esse não é o fim da história. Veja-se o lado oposto: editoriais na imprensa, colunas de opinião, documentos de trabalho emitidos por bancos e fundos, manifestações partidárias e, sobretudo, as patéticas candidaturas aventadas demonstram de maneira cabal que não existe nenhum projeto de futuro na direita. Tudo que os partidos fisiológicos, a centro-direita e a voz das elites têm a oferecer é uma restauração oligárquica – com o beneplácito do sistema financeiro, para o qual pouco importa a estrutura produtiva de tal ou tal país, contanto que o retorno sobre as aplicações seja satisfatório e mais ou menos seguro.

Não há idéia de adaptação para a economia altamente tecnológica das próximas décadas; nada disso é necessário se o país vai ser um exportador de commodities. Isso que tem sido chamado de reforma da previdência, como a trabalhista do ano passado, não passa de um desarranjo do sistema que, em suas bases, continua sendo rigorosamente o mesmo – só não vai funcionar. É o suficiente para liberar recursos que seriam destinados ao trabalho e às pensões, e que agora poderão ser capturados normalmente pelas oligarquias. Não é por acaso que esse tipo de reforma só se faz por meio da ilegitimidade política, como está sendo agora.

No início dos anos 90, a centro-direita (com personagens oriundos da centro-esquerda, por sinal) oferecia ao Brasil a entrada no mundo promissor da globalização financeirizada, ou seja, no neoliberalismo, que então se expandia a passo acelerado pelo mundo, levando capitais em profusão às bocas sedentas de governos do Terceiro Mundo. Era um tempo em que o que havia de mais avançado… e progressista… era a candidatura de Fernando Henrique – vamos, admita, leitor socialista saudoso de Geisel.

E o que tem a oferecer a centro-direita hoje (admitindo que seu candidato seja Alckmin, e não uma piada grosseira como Dória ou Huck)? Mais ou menos a mesma coisa. Aprofundar o mergulho do Brasil nesse mundo encantado da globalização financeirizada… mas agora, nesse momento em que está claramente fazendo água. “Flexibilização” do mercado de trabalho sem um instante de pausa para pensar o que são as condições de trabalho na era da “gig economy” e da automatização. “Desarmar a bomba da previdência” sem responder como viverá o aposentado que passou décadas precarizado. “Atrair investimentos” sem investir previamente na capacitação da força de trabalho, para que os investimentos efetivamente atraídos tenham um teor produtivo. Basta ver o histórico de Alckmin como governador no setor de educação; aliás, também o do falecido Paulo Renato, que foi ministro de FHC. Ou seja: palavras vazias. E para se somar ao cenário já tão inglório, surge um partido supostamente “novo” para defender rigorosamente as mesmas propostas, com um quarto de século de atraso.

(Em tempo: na esquerda, esclerosada, também não tem muitas propostas para lidar com relações de trabalho e aposentadoria nas próximas décadas. Na verdade, o que temos recebido da esquerda são projetos mais ou menos como os do governo Dilma.)

Assim, é fácil perceber que, tanto como a esquerda enrijeceu sob Lula e o PT, a direita também parou no tempo. Sente-se confortável em ser o que sempre foi. Quando se fala em “direita” no Brasil, personagens histriônicos são uma mera ponta-de-lança; “raios privatizadores” e outras defesas extremas da preeminência do mercado financeiro são meras vertentes. A direita no Brasil é um poder oligárquico, patrimonialista, bacharelesco e estamental. Nenhuma novidade nesse front. Acredite: nada de bom no Brasil sairá das direitas. Da direita brasileira, só o que podemos esperar é parasitismo. O fato de que as esquerdas tampouco contribuam com grande coisa não muda nada nessa constatação. Só acrescenta um pouco de tempero na agitação da nossa paralisia.

É por isso que o quadro político parece uma repetição histórica. Afinal, não são só seus defensores que vêem Lula como um “novo Getúlio”: também seus inimigos fazem esse paralelo, inclusive quando lhe atribuem um populismo semelhante, como sendo um novo “pai dos pobres”. As comparações ponto a ponto entre os dois não são determinantes: o importante é que Lula exerce um papel que remete ao de Getúlio, do ponto de vista dos “donos do poder”. Por mais que ambas as lideranças sejam antes de tudo vetores de conciliação, aquilo que eles vêm conciliar são focos de tensão bastante concretos na sociedade, de modo que as demandas que eles encarnam, com ou sem razão, são demandas reais. Mas principalmente: são demandas que eles não atendem completamente, não atendem suficientemente, mas que os representantes dos poderes instalados não atendem em absoluto e não querem ver de jeito nenhum atendidas. Enquanto a repressão pura e simples der conta do recado, um Getúlio ou um Lula são dispensáveis.

Resumindo: há demandas que são reais e não têm por que diminuir, já que o país é urbano, complexo, extenso e injusto. Há uma diminuta casta de poderosos que procura abafar tanto quanto possível essas demandas, recorrendo a arbitrariedades jurídicas constantemente e a diferentes graus de violência sempre que necessário. Obviamente existe um descompasso nesse cenário, uma fonte de tensões disponíveis para a política que serão captadas de um jeito ou de outro. Conclusão: sempre há de surgir alguma personagem mais ou menos na linha de Getúlio e Lula. Mais cedo ou mais tarde, haverá outra liderança carismática para encarnar (e provavelmente desinflar) as demandas de uma sociedade desigual, agitada, oprimida, viva. Houve Getúlio, houve Lula, mas por que ficar só nos dois? Guardando as devidas proporções e o sentido político de cada um, houve também o padre Cícero, houve Antônio Conselheiro. Cada um à sua maneira; e nada garante que o próximo não será uma personagem religiosa tão mística quanto Conselheiro. Ai de nós.

Nesse meio-tempo, quando uma confluência de forças tomou forma e deu origem ao PT, ao fim da ditadura, esse foi o mais longe que a sociedade civil já chegou no Brasil em termos de projeto político plural, horizontal e inventivo. Juntou os resquícios da pujança criativa e intelectual que chegou a haver no Brasil antes do AI-5 com as forças que foram surgindo na luta contra a ditadura, principalmente depois do fracasso da luta armada. Mas esse projeto se enrijeceu, fez água, implodiu e agora recebe o tiro de misericórdia de seus adversários. Em certa medida, Lula também é o nome disso.

*

Dizem os defensores de Lula que “a direita” (às vezes se diz “os tucanos”) não quer enfrentá-lo nas urnas porque sabe que vai perder. É duvidoso – o que não quer dizer que seja falso. É verdade que as pesquisas de opinião colocam Lula em primeiro lugar, seguido por Bolsonaro, e que sua exclusão dobra o índice de votos brancos e nulos. É verdade também que as reformas acochambradas dos atuais controladores do poder são impopulares e exageradamente cruéis, o que poderá favorecer uma candidatura “de esquerda”, ou pelo menos que se aproveite de uma retórica à esquerda, como a de Ciro Gomes. Também é verdade que Lula leva vantagem no corpo-a-corpo, sobretudo contra um adversário como Alckmin, pelo menos enquanto tiver saúde.

Mas essa vitória está longe de ser tão evidente. Lula nunca esteve tão vulnerável a ataques, o PT diminuiu muito em termos de penetração e ocupação de cargos, as alianças forjadas para 2010 e 2014 parecem fora o alcance – para dizer o mínimo. Sem o acesso às alianças fisiológicas, dificilmente uma candidatura tem penetração no eleitorado.

Além disso, a direita anda bastante confiante depois de 2016, que foi um desastre para o PT – mesmo que temporário, como parece ser o caso em São Paulo, cujos habitantes estão aprendendo “the hard way” que o ódio partidário não é um bom jeito de escolher um prefeito. O anti-petismo, o desgaste do próprio Lula, a irritação com o desempenho de Dilma e o discurso desenvolvimentista, a fraqueza programática e retórica da esquerda, tudo isso joga muito a favor da direita, nem que seja somente a direita mais hidrófoba. E a direita conta com isso, tanto a centro-direita tucana quanto a extrema-direita ensandecida que botou as asinhas de fora ultimamente.

Provavelmente o motivo pelo qual a direita não quer bater Lula eleitoralmente é outro. Uma vitória “normal” em eleições restabelece o jogo, ali onde ele sempre esteve, ou melhor: desde a redemocratização. A vitória eleitoral atesta a legitimidade do vencedor – mas também a do vencido. Depois de 2018 haverá 2022 e, mesmo antes, as municipais de 2020. É tempo suficiente para a articulação de novos discursos de oposição e inclusive para uma renovação da esquerda – se é que a esquerda brasileira tem capacidade de se renovar. A história do Brasil desde o começo do século passado mostra que sempre há espaço, e um espaço bastante grande, para forças políticas que representem alguma oposição às oligarquias. Falei em representar a oposição, não em opor-se efetivamente, ou frontalmente, porque essas forças sempre foram mais bem-sucedidas quando fizeram um jogo dúbio, de Getúlio a Lula. Em todo caso, uma vitória eleitoral seria legítima demais… e seria efêmera demais.

Uma vitória judicial, sobretudo se for polêmica, duvidosa, cheia de espaços cinzentos, é um gesto de poder. É, como eu disse acima, um ato decisório sobre os espaços do poder efetivo e sobre aqueles que podem ocupá-lo. É um gesto muito mais propriamente político do que tudo que o processo político pode proporcionar. É fundador de direito, em suma. Por isso, tem um efeito muito mais poderoso, porque lança seu recado para o conjunto da sociedade, reverberando ainda por um bom tempo: o clube é restrito, muito restrito para aceitar uma figura incômoda como essa.

Por isso, expelir Lula do sistema numa vitória judicial, e não política, é um duplo triunfo: ao mesmo tempo é uma vitória do ponto de vista da ocupação do Executivo em 2019 e uma vitória sobre a “noção completa” do personagem político mais importante dos últimos 40 anos. É também uma demonstração de força contra a idéia de que a esquerda consegue colocar em movimento a sociedade civil, já que o PT usou e abusou da retórica da “força das ruas” para defender Lula (e, por um momento, também Dilma). As ruas, no entanto, preferiram não.

Mas há ainda um terceiro importante grupo em ação, nomeadamente a casta política, com seus fabulosos caciques, seu baixo clero, seus assessores obscuros e tanta gente que orbita esse universo de eleitos com suas verbas de gabinete e, com sorte, mais uns caraminguás de emendas e repasses. Este grupo é interessante porque, embora seja majoritariamente oriundo das velhas elites, tem seus próprios interesses a zelar, o que envolve reeleger-se, continuar tendo acesso às verbas e aos gabinetes, fazer a ponte entre a dominação efetiva sobre a economia e a sociedade e o exercício formal do poder, principalmente nos ramos Legislativo e Executivo, mas também no Judiciário.

Pois bem, o que deseja esse grupo em relação a Lula? Bem, na medida em que são membros da nossa casta tradicional de poder, querem expelir esse intruso incômodo com que foram obrigados a conviver nas últimas décadas. Porém, como políticos, querem antes de mais nada garantir que vão continuar sendo intocáveis e não correrão o risco de acabar como Delcídio do Amaral, Marcelo Odebrecht ou Paulo Maluf. Nesse sentido, a prisão de Lula representa um perigo, mesmo se é bastante razoável supor que a válvula jurídica vai se fechar novamente tão logo o “sapo barbudo” tenha passado pelo ralo. Sinais disso são a absolvição de Roseana Sarney e a prescrição que já beneficiou Eduardo Azeredo, Aécio Neves e José Serra. Mas continua sendo um perigo: como bem disseram Romero Jucá e Sergio Machado, para a classe política a operação Lava-Jato ainda representa uma sangria.

Portanto, não é absurdo apostar que a preferência das lideranças políticas é pelo impedimento de Lula participar das próximas eleições, mas que ele não vá parar na prisão. A classe política está andando no fio da navalha, neste momento em que o combate à corrupção se tornou um tema e, até certo ponto, uma realidade. Uma eventual absolvição de Lula pela turma de Carmem Lúcia, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, mas só daqui a muito tempo, depois das eleições e possivelmente durante as calendas gregas, viria bem a calhar para essa turma: o petista estaria razoavelmente (suficientemente?) desmoralizado, as eleições deste ano se desenrolariam sem essa presença que desequilibra e, de lambuja, não teria sido criado mais um mártir, grande temor dos herdeiros de Lacerda desde 1954. É uma estratégia delicada, mas terrivelmente conveniente.

* Adendo *

As primeiras notas para este texto são tão velhas que foram tomadas antes da divulgação daquela capa da revista Piauí de agosto, em que Lula aparece, mais do que “tomado para Cristo”, efetivamente no lugar de Cristo, pregado à cruz, com Moro, Gilmar Mendes, Dória, Bolsonaro e Skaf no papel de soldados romanos e um pato de borracha no lugar da esponja embebida em vinagre. Fiquei sabendo de uma breve polêmica nas redes sociais por causa dessa capa, mas ficou por aí (afinal de contas, a revista pertence aos Moreira Salles, que têm muito mais condição de resistir a um ataque de arruaceiros fascistas do que a classe artística inteira).

A capa tem o mérito de expor uma evidência, que pode ser incômoda para a maior parte dos campos em que se divide a polarização política no Brasil de hoje: a figura de Lula atingiu, para todos os efeitos, o nada saudável patamar de emblema sacro. Não estou dizendo que Lula realizou aquilo que John Lennon acreditou ter feito com os Beatles: ser “mais popular que Jesus Cristo”. Mas se existem comparações como essa, e no íntimo as pessoas sentem que faz sentido, a ponto de ficarem horrorizadas (e não indiferentes), é porque as idéias e energias mobilizadas pela noção do sagrado estão sendo mobilizadas também pela efígie, ou o ícone, que se vê comparada ao divino.

Não segui essa linha aí acima porque me parece que a ênfase maior é o significado que cada parte da biografia de Lula representa para o inconsciente coletivo do país: a miséria, a migração interna, a saída da ditadura, os movimentos sociais, a criação de um partido de massas, a eleição de um ex-operário para a presidência, a inclusão social, o prestígio no exterior, a derrocada sob acusações de corrupção.

Mas tem outro porém: nossa tradição monoteísta separa rigorosamente a imagem destinada à adoração da imagem destinada à abominação, mas a mobilização afetiva de uma efígie como a de Lula funciona de modo diferente, concentrando e até mesmo misturando a adoração e a abominação. Nesse tipo de imagem, comum em outras configurações religiosas, o mesmo tipo de reverência trêmula, íntima, é dedicado àquela figura transcendente sendo amada e odiada. (Mesmo no monoteísmo, a ambivalência da personagem sagrada não desaparece por completo. Basta ver como freqüentemente o mal nasce da ação de um anjo caído, como Lúcifer.)

Lula é um caso muito significativo dessa ambivalência no plano político. Seu nome faz convergir tanto a veneração quanto a repulsa. A figura de Lula recolhe esses sentimentos, construídos paulatinamente ao longo dos últimos anos, até décadas (ou seja, no passado), e os dirige, consonantes, embora ainda divergentes e incompatíveis, para o futuro. Por ora, pelo menos, esse futuro tem um ponto definido, ou seja, um nome: outubro de 2018.

Não é por acaso que andem se referindo a um “novo sebastianismo” para aludir ao sentimento de muitos petistas em relação a Lula. É uma boa analogia, com a diferença nada irrelevante de que o rei português em questão estava morto e Lula está vivo: a possibilidade de que D. Sebastião voltasse de fato nunca existiu, o que fazia de sua figura uma excelente efígie religiosa, já que servia de orientação, com cunho religioso, para determinar como os portugueses (e muitos brasileiros, a começar por Antônio Conselheiro) agiriam, eles mesmos, no futuro imediato. Isso era o sebastianismo, ao passo que o sebastianismo lulista é (ou era, até recentemente) a espera por uma volta efetivamente possível, o que, pelo que podemos ver, está mais próximo de determinar a paralisia do que a ação.

Do outro lado, temos aquilo que muito justamente tem sido visto como demonização de Lula, e que se manifesta na expectativa de que fique inscrito na pedra que o “sapo barbudo” foi o maior criminoso da história deste país. Pelas imagens que suscita e as emoções que revela em filigrana, a expectativa pela sua prisão manifesta bem mais um desejo de destruição (ou seja, uma iconoclastia) do que a busca de uma qualquer justiça. Nunca houve um clamor semelhante para qualquer caso de corrupção ou mesmo crimes comuns no Brasil, nem mesmo no caso de Collor. O clamor para que Lula seja preso evidentemente não decorre do pedalinho, nem da Petrobras; nem do triplex, nem dos gastos da Copa. Decorre do fato de que é Lula.

(Este adendo é o que sobrou das notas tomadas em agosto.)

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Imagens que não fizeram história (4): a Brasília estourada

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Faz bastante tempo desde a última vez que me deu ganas de vir aqui para falar de imagens que “não fizeram história“. Quase dois anos. E por um desses acasos que acabam virando significação, quando volto ao tema é para tratar de uma fotografia de Brasília. No terceiro artigo desta série, comentei uma fotografia de Brasília, justamente. Eram índios debaixo de chuva, à frente do monumento conhecido como “aos candangos” (chama-se, na verdade, Os Guerreiros). Agora, é questão de uma fotografia de candangos visitando o Palácio do Planalto; e com o Congresso ao fundo.

A imagem tem essa potência notável de produzir seus próprio relatos, principalmente quando ultrapassa seu enquadramento particular e abraça outras imagens. Elas demarcam todo um território imagético, atravessando continentes ou gerações. Para além do aspecto indicial da imagem fotográfica, o “isto aconteceu” de Barthes, temos de reconhecer um outro caráter, mais assertivo, que diz “isto está acontecendo” ou “isto ainda acontece”. Um efeito de ilusão, direis, e pode ser mesmo. Mas é muito mais uma reverberação afetiva, sem a qual a fotografia provavelmente só valeria pelo seu caráter documental e não circularia pelas coletividades; ou pelas redes, como tem sido com esta.

Por isso, quando as pessoas se deparam com essa família (seus olhares de admiração, o modo apurado como se vestiram, a patente humildade debaixo dos monumentos de concreto), sentem algo suficientemente forte para deter o olhar. É algo sobre o passado, certamente, mas é na mesma medida, ou até mais, algo sobre o presente: isto ainda acontece, isto ainda está acontecendo, esta foto está sendo tirada agora. Está sendo tirada a cada vez que olho para ela. É graças a esse efeito, essa dobra nas décadas que Einstein não menciona, que esta imagem de René Burri pode se conectar com a dos índios, que circulou em 2015, ou com tantas outras tiradas em Brasília. Ou até em outras cidades, dependendo do território espaço-temporal que queremos delimitar.

* * *

E no entanto não foi nada disso que chamou minha atenção de imediato, ao ver pela primeira vez essa imagem, que apareceu um dia desses nas redes, nem sei bem por quê. A primeira coisa que me saltou aos olhos foi o fundo ligeiramente estourado, bem no centro do quadro, apagando os detalhes de alguns andares do prédio do Congresso e o pé da coluna do palácio. Acontece que René Burri, fotógrafo suíço morto em 2014 com um portfólio contendo retratos de Niemeyer, Fidel, Le Corbusier, De Gaulle e muitos outros, tirou centenas de fotos de Brasília. Não só durante a construção, mas também em 1977, em plena ditadura. Um bom número com caráter essencialmente documental; um bom número explorando a geometria modernista; outras tantas, como esta, lembrando a presença daqueles que de fato construíram a Novacap e que nem sempre são mencionados.

Fiquei encantado com esse ligeiro estouro, mas preciso dar uma breve informação: fui ao site da agência Magnum, que exibe em versão pequena todas as fotografias do livro de Burri sobre Brasília. A imagem, tal como a apresentam ali, não está tão estourada, mas também não tem tanto contraste e os rostos estão na penumbra. Não sei se a versão da agência foi “corrigida” ou se alguém resolveu aumentar o brilho ao postar a foto na internet. Cá entre nós, prefiro a versão com estouro, pressupondo que, de todos os seus cliques, o experiente fotógrafo suíço tenha escolhido este para deixar uma nesga de luz excessiva, chapada como é a luz, no meio do dia, em pleno planalto central deste país tropical.

Faço essa pressuposição, confesso, porque me convém, tanto pela narrativa que quero sobrepor à fotografia quanto pelos demais territórios que ela pode traçar. O que acontece é que lidar com a luz inclemente e brilhante demais, com sombras tão escuras que o contraste pode não ser administrável, sempre foi um problema para quem queria retratar esta parte do mundo. Ainda mais se tivesse no fundo da cabeça os padrões de luminosidade da pintura europeia. A maior parte das representações de paisagens brasileiras que conhecemos de séculos anteriores, de Franz Post a Debret, foram executadas pacientemente no começo da manhã ou no fim da tarde, dizem os livros de história da arte, para aproveitar uma luz mais suave e saturada. A grande exceção está na obra de João Batista da Costa, que fazia paisagens em pleno meio-dia justamente para marcar as diferenças das grandes áreas de cor. (Mais detalhes neste link.)

Refletindo sobre tudo isso, acabei pensando em Albert Camus. Nos textos do célebre existencialista pied-noir, as referências ao Mediterrâneo, Argélia em particular, sempre falam da luz ofuscante. Meursault menciona o sol opressivo e o reflexo cegante na praia diversas vezes, durante a narração que leva ao assassinato do árabe, em O Estrangeiro. No texto teatral O Mal-Entendido, a motivação declarada das assassinas é deixar o frio e passar a viver sob o sol. A imaginação européia sobre a luminosidade tropical é extensa e fértil. Posso mesmo imaginar a insolação que os primeiros exploradores tiveram ao desembarcar das caravelas.

Por isso me chamou a atenção esse pedacinho de luz estourada na fotografia de René Burri, que, afinal de contas, era mesmo um fotógrafo europeu, como Rugendas, Eckhout e Taunay foram pintores europeus. Na minha cabeça, Burri tinha se decidido a gravar a luz tal como é, em vez de procurar compensações, esconder o reflexo do sol atrás do corpo de alguém, algo assim. Como se fosse um comentário de fundo, de natureza técnica, para seu retrato da família, de natureza temática; como se quisesse sublinhar o fato de não estar apenas documentando, mas revelando algo sobre o que viera documentar.

É sempre inspirador testemunhar um encontro entre o tema e a técnica como este. Burri, afinal, deu de cara com o quê quando fotografou Brasília? Seu álbum tem inúmeros cliques de Niemeyer trabalhando, tem Juscelino em reunião com seu arquiteto, tem esqueletos de edifícios que sobem, tem vistas dos prédios prontos contra um território ainda dominado pelo barro, tem vistas dos acampamentos de peões. Tem até imagens de trabalhadores estrangeiros na obra, algo que eu nem sabia que tinha acontecido (são espanhóis). O que ele ouviu de cada grupo desses? Como avaliou o que diziam os políticos, os engenheiros, os jornalistas, os militares, os peões, suas famílias?

Talvez esta imagem revele um pouco disso: que postura tinha o fotógrafo diante daquilo que viera documentar. De quando veio acompanhar uma gigantesca obra de engenharia, com motivações políticas, neste país onde a luminosidade é tanta que se pode ter luz estourada e sombras profundas na mesma composição.

* * *

Em quase todas as fotografias, e também nos vídeos, da inauguração de Brasília, vemos gente vestida em sua melhor roupa. A mais famosa dessas fotografias, que tem inclusive uma versão colorida, é aquela em que Juscelino, com lenço na lapela, agita seu chapéu, sorrindo para além das próprias gengivas. Há também registros da esquadrilha da fumaça, de ginasiais fazendo demonstrações (talvez sejam colegiais, pouco importa), de tropas que desfilam, dos deputados tomando seu assento pela primeira vez (ou, pelo menos, oficialmente pela primeira vez, para as câmeras). Ninguém nessas imagens está vestido de qualquer jeito, ou com a roupa com que vai trabalhar no dia-a-dia.

Esta imagem de Burri não é exceção: também a família humilde (e a legenda, no site da Magnum, acrescenta: “worker from Nordeste”) está com sua melhor vestimenta, sua “roupa de domingo”. Vale a pena se deter nesse detalhe. A esposa do candango carrega, inclusive, um guarda-sol, que, além da óbvia utilidade prática (ainda mais para quem tem um bebê no colo), é um tradicional signo de elegância. O marido veste paletó claro, algo que, pelo visto, perdeu o direito de existir nas nossas cidades, apesar de todo o sol. Talvez a única coisa que destoe seja o colarinho do trabalhador, que não usa gravata. Curiosa ausência.

Em nome do contraste, pense nas imagens que temos dos operários que ergueram aquela cidade (enganosamente) austera no meio do nada. Algumas são tomadas à contra-luz, agigantando suas figuras de heróis anônimos de uma pátria pujante (etcétera e tal). Outras são tomadas distantes, mostrando-os como pontinhos frenéticos de um formigueiro, para expressar a grandiosidade de uma obra em que a figura humana chega a desaparecer. Há ainda as imagens mais jornalísticas, poderíamos até dizer de denúncia, mostrando caminhões apinhados que chegam ao Planalto Central, despejando gente no Areal ou em Ceilândia, ou ainda as instalações em que viviam os candangos. O álbum do próprio Burri fornece exemplares de ambos os tipos.

O que temos nesta imagem é outra coisa. O fotógrafo suíço acompanha a família, e não é uma tomada de surpresa; há outra foto em que eles aparecem por trás, caminhando. Eles exploram as construções monumentais e ainda nuas, não só no sentido físico de não estarem sendo usadas, ocupadas por escritórios e repartições, mas também no sentido simbólico: não carregam o peso das atividades que se desenrolarão ali dentro, e que o visitante ou espectador atual não pode se prevenir de ficar imaginando quando contempla cada uma dessas construções. Sabemos que o grupo está de pé no Palácio do Alvorada por uma única das colunas, que se ergue atrás deles com dimensões acachapantes. Aos olhos de quem se acostumou a ver essas colunas nos últimos 50 anos, associadas a todo tipo de evento triste, traumático e cruel, essas dimensões não podem ser tomadas como mero acaso.

Burri toma a foto ligeiramente de baixo, o que normalmente aumentaria as pessoas, daria a elas dimensões mais fortes e agressivas. Não é o caso de quem está debaixo dessas colunas, também alongadas pelo ângulo de tomada. O que temos são figuras um pouco deslocadas, todas olhando para cima, um pouco intimidadas, com exceção do bebê que dorme, indiferente; logo ele, que vai conviver com a imagem desses edifícios por uma parcela maior de sua vida…

* * *

Mesmo assim, é uma família que se vestiu com o melhor de suas roupas e saiu para passear. Estão ao largo das grandes cerimônias, mas nem por isso menos aprumados. Depois de um longo período de dificuldades, de trabalho duro, o descanso, o lazer. E, claro, a admiração, a reverência, diante das edificações monumentais  – erguidas ao longo de um eixo que carrega o mesmo nome.

A reverência diz muito. Pode-se ver que o operário e sua família têm respeito pelo palácio, em grande medida pelas próprias dimensões da obra arquitetônica, mas também pelo contexto em que foi feita, um contexto carregado de promessas e expectativas. É bem possível que também tenham orgulho da energia física e do “dispêndio de músculo e nervo” (uma definição marxiana para o trabalho) necessário para produzir aquele monumento. Certamente há um componente de esperança, que era o que prometia todo o projeto de desenvolvimento de Juscelino.

Seja lá de onde vem esse “worker from Nordeste”, ele não teria saído de casa se não imaginasse um incremento nas condições de vida em outra terra. Mesmo que, na verdade, ele tenha sido expulso, seja por um grileiro, seja pela seca, seja por ambos. O que quer que tenha acontecido, ele provavelmente nutria a esperança de que a Novacap representasse um país melhor. E isso quer dizer, de seu ponto de vista: um país onde se viveria melhor. Conhecemos uma boa parte da história, no entanto: atraídos pela possibilidade de fugir da miséria, retirantes “from Nordeste” como este trabalhador largaram o que restava de suas terras para tentar a inclusão na civilização, na sociedade de massas, ou de consumo, chame como quiser. Foram tratados como sempre são tratados os pobres, os mestiços, os trabalhadores no Brasil.

Por sinal, quando compartilhei esta fotografia nas redes sociais, uma amiga de cliques contou uma história familiar que não vou reproduzir aqui, porque cabe a ela contá-la, e não a mim. Mas é um relato que contém tudo que conhecemos da história do Brasil ao rés-do-chão: grilagem, jagunços, escravidão por dívida, golpes, violência e morte. Não dá para descolar a história da construção de Brasília da história das secas, das oligarquias, do arrasamento do território e de seus habitantes. Tanto quanto ressoa com a fotografia dos índios de 2015, a imagem de René Burri também ressoa com a pintura de Cândido Portinari, cuja Os Retirantes data de 1944.

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Repetindo o que eu disse no início, a fixidez da imagem lhe confere a característica curiosa de adquirir significações em retrospecto. Como captura de um intervalo no mais das vezes ínfimo, de uma fração de segundo, a fotografia pressupõe necessariamente o tempo que a precede e sucede. E se, nesse instante raptado graças à luz que refletiu, o filme (ou o sensor) foi impressionado com formas prenhes de sentido, pode pressupor ainda mais, muito mais. O operador que tem um dedo no disparador e outros dois na abertura do diafragma tem consciência de algumas dessas possibilidades, mas certamente não de todas. O autor é poderoso, mas a obra tem seus poderes também, que ele simplesmente não pode alcançar. E deve se alegrar por isso.

Mesmo que nada do que eu imaginei acima esteja correto e o Burri de 1960 quisesse apenas fotografar uma inauguração, o Burri de 1977, que retornou a Brasília num momento em que a ditadura já rateava, provavelmente tinha outra idéia. E é bem possível que tivesse outra idéia também sobre suas fotos de 1960. No fim da vida (ele morreu em 2014), talvez tivesse ainda mais uma outra idéia sobre o que portavam de significativo essas imagens de Brasília. É como se os personagens se movessem debaixo das colunas, na medida em que elas vão sendo impregnadas do significado histórico do que acontece entre elas e em volta delas. É como se, ainda hoje, quem passa por aí carregado de pastas (se é que por aí passa alguém) esbarrasse nos candangos extasiados.

Assim, para nós, hoje, esta imagem provavelmente evoca ilusões e desilusões, enganos e engodos, decepções, traições. Penso no bebê que dorme no colo da mãe e cujos pais talvez o imaginassem livre da miséria e da opressão, educado, trabalhando em bons empregos (públicos, talvez). Onde terá crescido essa criança? No Núcleo Bandeirante? Na Candangolândia? Teve acesso às benesses da civilização? Recebeu uma educação emancipadora? Teria idade para escapar dos eventos relatados em Branco Sai, Preto Fica, de Adirlei Queiroz? O que você acha? O que te parece mais provável?

O respeito que o operário tem pela construção, ou por quem a encomendou, dificilmente será recíproco. Depois de Getúlio, depois de Juscelino, depois de Lula, uma das coisas que podemos dizer sobre o Brasil, e que transparece nesta imagem e em tudo que ela pode nos dizer em retrospecto, é que todas as vezes que se vendeu a idéia de um grande impulso adiante para o país, caímos, depois de alguns anos, em retrocessos. Ou melhor, caímos na real. E tudo para descobrir que o grande impulso, o grande facho de esperanças e expectativas estava incompleto, porque continha muitas propostas e poucas rupturas; muita acomodação, muito acordo, e pouca revolução.

As imagens desta família, esta em particular, mostram um instante silencioso (porque, afinal, algumas fotografias, como muitas pinturas, têm som). O evento ocorre em um espaço praticamente vazio. O contraste que se impõe não diz respeito apenas às multidões estridentes que freqüentarão a Novacap daí por diante, preenchendo os ministérios com concursados, terceirizados e comissionados, as casas parlamentares com eleitos, assessores e jornalistas, os palácios com lobistas, solícitos líderes políticos e seus funcionários a servir café.

Mais ainda, o ambiente em que a família visita essa Brasília ainda quase mágica contrasta com o alarido da inauguração oficial, a festa de diplomatas e burocratas, o desfile de Nonô e os discursos de senadores e deputados. Terá sido no dia (e na noite) anterior? Pela ordem das fotografias, é o que parece. E vou admiti-lo, mais uma vez, porque convém à minha narrativa.

Lendo os relatos da época, a inauguração de Brasília foi a marcha triunfal de um país que vencia, batia na porta do clube dos civilizados, demonstrava ser capaz de qualquer coisa, mesmo os planos mais ousados e absurdos. Um país com os olhos voltados para o futuro. Quero dizer: o país do futuro, nada mais e nada menos. Mas quem assistia, das bancadas do plenário ou das galerias, ou mesmo pela televisão, um bem de consumo ainda relativamente raro em 1960, eram aqueles que garantiam os pés do país (eu deveria dizer: “da nação”) muito bem fincados na derrota, no passado, no fracasso, no clube dos expropriados.

René Burri mostra com esta família o dia seguinte desse alarido tão confortável, ou melhor, o silêncio em que se esconde aquela esperança quando recomeça o dia-a-dia. E mostra esse espaço dúbio, ambivalente, da maneira como divaguei até aqui. Com a luz ligeiramente estourada de um ambiente subtropical que não se deixa simplesmente apagar assim tão fácil (nem com os aparelhos de ar-condicionado dos ministérios). Com uma perspectiva de baixo para cima, paradoxalmente reduzindo os personagens ao amplificá-los. E com a constatação de uma reverência humilde perante as colunas em que Oscar Niemeyer revelou um naco de seu gênio (e de sua utopia).

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Como sabemos, quatro anos depois de todo o alarido, nessa mesma cidade, Auro de Moura Andrade declarava vaga a presidência da República, que pouco depois seria tomada pelos militares e sua máquina de tortura, censura e retrocesso. Não consta que a família do “worker from Nordeste” tenha visitado o Alvorada nesse período. Pelo menos não tem fotos disso. Consta, por outro lado, que as tentativas fracassadas de estabilizar a economia depois das despesas com a construção do referido palácio e demais novidades da Novacap foram um fator determinante na queda de Jango e da democracia. É difícil imaginar uma fotografia que represente esse vínculo, exceto pelas imagens de arquivo mostrando Celso Furtado com olhar de cansaço, ou melhor, de derrota. A não ser que tentemos fazer da luz estourada no fundo deste clichê de René Burri uma espécie de alegoria dos estouros em geral, inclusive os estouros de orçamento. E por que não?

Padrão
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Os vencedores de sempre e o resto de nós

 

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Já que a realidade é tão confusa – e a facilidade com que ela se presta a interpretações simplistas é sintoma dessa confusão –, vale a pena tentar tratá-la como se fosse um enredo ficcional. Digamos: como uma tragédia grega, um melodrama burguês ou um poema épico. Ainda não está claro em qual desses gêneros estamos vivendo, e isso vai depender de como agirão os personagens: são heróis trágicos? São bufões? São semideuses?

Houve quem visse qualquer coisa de divino, por exemplo, na postura de Dilma perante os senadores; os deputados, com seus votos disparatados, certamente transmitem uma impressão de ridículo; e aqueles que, de um modo ou de outro, se colocaram contra a conspiração, ainda que se opusessem aos governos petistas, assumiram uma postura – vamos dizer assim – de heróis trágicos.

Já os vilões, esses os temos de sobra.

O enredo ainda está sendo escrito, mas o que pode ser feito desde já é um esboço dos tipos gerais dos personagens, o que está longe de ser pouca coisa, dada a velocidade com que os eventos nos atropelam. Assim, grosso modo, eu diria que os personagens principais são os seguintes: os formalmente derrotados; os informalmente derrotados – e duas vezes; os vencedores que, quando pensarem melhor, vão se descobrir derrotados; os que, nunca precisando lutar, recebem de bandeja todos os espólios.

Fora esses, tem o coro, os extras, os figurantes, os bichos infláveis.

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Essa estranha distribuição de papéis pode pelo menos servir para explicar em parte por que tantos de nós – aqueles que algum dia ousaram ter esperança de alguma coisa – estão se sentindo sem referências, imobilizados, pessimistas. Se não dá para negar, noves fora, que atravessamos uma crise “ao mesmo tempo política, econômica, social e moral”, como tem sido dito por quem quer parecer neutro, o que falta mencionar é que tudo isso são componentes de uma conjuntura crítica com jeito de existencial. Não, é claro, no sentido individual, embora cada indivíduo sinta os reflexos dessa crise; está em jogo não simplesmente uma idéia de país, ou a distribuição dos poderes, mas também o vetor dos próximos ciclos políticos.

A crise é tão existencial que está em jogo até mesmo o passado: qual é, afinal, o tamanho do ciclo que se fecha? 14 anos? 28 anos? 86 anos? A resposta para isso depende de respondermos: o que é que está acabando, de fato? O ciclo do PT, a Nova República ou o ensaio civilizatório do último século?

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Como primeiro esboço – e tudo que segue abaixo são esboços em série –, a síntese mais precisa que consigo encontrar aparece na seguinte pergunta: “onde raios estamos?”, o que, claro, se desdobra em outras questões simples na formulação, mas enigmáticas nas implicações: “como raios viemos parar aqui?”, “como raios saímos desse atoleiro?”, ou então: “onde raios vamos parar?”.

São as perguntas de gente que navega sem bússola, flutuando a esmo. Não é por acaso ou por alguma falha moral que os debates em que temos nos metido são tão estéreis, além de fratricidas. É o debate dos desamparados. Também não é casual que movimentos e reivindicações sociais pareçam ter se tornado estéreis, tendo perdido as principais vias de entrada no sistema político, onde se dá a efetividade, do ponto de vista normativo. O poder, que vinha se fechando aos poucos, agora parece ter batido a porta de vez. Quanto esforço de reconstrução, quantos anos serão necessários, para que se abra novamente?

*

PARTE UM

Nosso drama

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Por enquanto, vejamos os personagens que mencionei acima, antes que sejam esquecidos. O formalmente derrotado é, claro, o petismo, ao menos o da cúpula, que buscou delinear um campo de embate e, nesse campo mesmo, foi fragorosamente batido, justo quando acreditava alcançar o sucesso absoluto. Em que pesem a dimensão da débâcle, o recurso (de parte a parte!) a táticas condenáveis, o transbordamento da ação política além de seu quadro jurídico, a derrota é formalmente clara porque se pode mostrar rigorosamente o que foi desejado, o que foi alcançado, o que foi perdido. No jogo das alianças e embates com as forças conservadoras da sociedade, o PT achou que levaria a melhor, primeiro nas alianças, depois nos embates. Pois bem, levou a pior em umas e outros. Assim, com o risco de soar cínico, sou obrigado a dizer: é do jogo.

Só que a derrota formal do PT é custosa e não só para seus líderes. Depois de chegar ao segundo turno em 1989, convergiu em torno do partido a imagem de uma esquerda capaz de vencer. Tendo vencido, convergiu ainda mais a imagem de um projeto bem-sucedido, grupo que soube compor com seus inimigos para obter transformações efetivas e duradouras no país.

O quanto havia de real nessa imagem – ou seja, o quanto as transformações são mesmo efetivas e duradouras, ou o quanto a tal composição com as forças retrógradas não foi, na verdade, uma simbiose – ainda está em aberto. Mas já se pode afirmar que a consolidação do PT no poder esvaziou a possibilidade de constituir outras mensagens, outros projetos, outras articulações, capazes de corresponder à diversidade enorme dos desafios que a sociedade brasileira enfrenta. No frigir dos ovos, para não entregar os anéis, o PT entregou os dedos de todo o campo progressista.

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À medida que as circunstâncias mudavam, no mundo, no país, na política, na sociedade, a paralisia provocada por um centro de atração tão irresistível foi se tornando cada vez mais perniciosa. Entre tantas outras chaves de leitura, junho de 2013 pode ser interpretado por esse ângulo: como foi possível um partido tão bem inserido nas cidades e nos movimentos sociais não perceber o transporte público (e seus oligopólios) como um dos problemas mais urgentes do país? Como pôde não aproveitar a oportunidade de investir contra um feudo (supostamente inimigo) tão bem defendido, logo quando havia uma rachadura na muralha? Como pôde se aliar à direita e entregar à própria direita, à mais tosca das direitas, a narrativa da indignação? Provavelmente estava olhando para o outro lado…

Caso diferente é o do personagem (informalmente) derrotado duas vezes. Enfio nesse saco arquetípico os segmentos sociais e os movimentos, grupos, indivíduos, que tentaram atuar à margem ou fora do sistema político institucional; que tentaram, muitas vezes, atuar através desse sistema, até mesmo por dentro dos partidos, dos ministérios. Que encabeçaram projetos e iniciativas emancipadores, só para vê-los rifados por exigência de tal ou tal aliança espúria. Sem sombra de dúvida, é preciso reconhecer que entram nessa categoria muitos petistas – alguns dos quais, hoje, ex-petistas. Foram derrotados, primeiro, pela estratégia de ocupação de espaços do PT, que depois se tornou uma estratégia de cessão de espaços; mais tarde, por se verem sujeitados a um governo de Michel Temer, Alexandre de Moraes e José Serra. Esses têm bem motivo para estar desanimados, porque o pouco que chegaram a efetivamente conquistar está mais ameaçado que nunca.

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O vencedor que vai se perceber derrotado é o eleitor inclinado para os tucanos, aquele que se considera um conservador esclarecido e ainda, até hoje, em pleno 2016, enxerga no PSDB o partido da modernização econômica, das “políticas econômicas sãs” – expressão que tenho ouvido ultimamente e que me soa bem divertida. Passou despecebido a esse personagem, que costuma ser muito trabalhador e, por isso, não tem tempo para examinar o mundo à sua volta com o devido detalhamento, o fato de que ele perdeu a viagem: aquela tal tucanagem… não existe mais. Ele pensa que ainda convive com Franco Montoro e Mario Covas, reencarnados em Marconi Perillo, Aécio Neves e Geraldo Alckmin. Pois sim.

Na verdade, era natural que um partido cuja imagem se associa às elites políticas e econômicas do país, em particular as do maior Estado da federação, se tornasse paulatinamente mais parecido com o grupo social que veio representar. Esse grupo, vale lembrar, não é composto por “empresários schumpeterianos” dotados de admiráveis “instintos animais”, mas por oligarcas, rentistas, patrimonialistas e tudo que tão bem conhecemos da história do país. Esse eleitor, achando que recuperou o governo para a vanguarda do capitalismo mundial, que é como até hoje ele enxerga o período FHC, não vai demorar a se descobrir em uma versão repaginada da República do Café – isto é, quando tiver tempo de prestar atenção ao que ocorre em volta de seu nariz.

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Gostamos de pensar no PMDB como o partido que está sempre no poder e se adapta às circunstâncias, numa representação que coloca o PT como esquerda institucional, o PFL como direita tradicional e o PSDB como direita mais moderninha. Essa representação esquece da tradicional imagem do tucano: aquele que está em cima do muro, esperando para ver qual lado vai se dar melhor e então pender naquela direção. Lembra disso? Recomendo lembrar. A bem da verdade, lamento, mas não existe, hoje, um partido que efetivamente represente alguma “vanguarda econômica” no Brasil, e nem poderia existir: no país do agronegócio latifundiário, do spread bancário e da especulação imobiliária, tal vanguarda não passa de fachada. Aliás, aí está uma especialidade brasileira: a fachada!

A charge foi publicada em inícios de 1907, cujo título é "Uma idéia do Zé para o carnaval: O Convênio de Taubaté". A legenda referente ao desenho é a que segue: " TIBIRIÇÁ: - Força, rapazes! Dos seis mil contos para comprar cafés baixos, quero 2.000 para São Paulo! JOÃO PINHEIRO: - E Minas não há de ficar no - 'ora, veja'! Puxa! ALFREDO BACKER: - Quem… teve Mateus que o embale! A União é mau de todos, e o Estado do Rio é um bom filho… Aguenta! Oh! Upa! ZÉ POVO: - Xi!!! Com que gana eles dão à bomba! Que valem economias, impostos, sela à barriga, se o 'melado' corre assim para os Estados?! E nunca mais volta!… Uma idéia: vou lembrar este quadro para um carro carnavalesco; mas faço questão de ser representado… por uma besta! "

Resta falar dos verdadeiros vencedores, aqueles que sempre saem por cima, os autênticos “donos do poder”, para usar a expressão de Raymundo Faoro. Esses não tiveram do que reclamar sob FHC, Lula ou Dilma; dominam o Judiciário sem grande oposição (com seus juízes que se ofendem quando lembrados de que não são Deus); disseminam tranqüilamente sua mensagem de ódio social e desprezo à sociedade. Prosseguem com a exploração predatória das terras e, por extensão, dos corpos. Controlam as polícias, mal pagas e formatadas para a brutalidade; ocupam o Legislativo em praticamente todos os níveis da federação (haverá talvez algum Estado ou município que conte como aldeia gaulesa?). Também dominam amplamente os meios de comunicação – a propósito, por esses dias o STF esteve para votar a posse de veículos de mídia por parlamentares; como andará a obrigatoriedade de publicação dos balanços, hein?

E agora podem também contar com a cúpula do Executivo Federal. Não custou muito: bastou uma conspiração contra gente incapaz de contê-la, sob os aplausos dos nossos “esclarecidos”.

Parabéns aos envolvidos!

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Quase todo mundo sabe de cor e salteado que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, mas não parece estar claro o que isso implica em termos sociais e, principalmente, políticos. Fala-se em desigualdade como se fosse meramente uma questão de renda, poder de compra, acesso a bens. Por sinal, é sintomático que os avanços sociais da última década tenham estado tão concentrados justamente na questão do consumo – o que não significa que sejam ilusórios, como já mencionei em outros textos.

A manifestação pecuniária da desigualdade é um mero sintoma; não é nem causa, nem efeito, sobretudo em se tratando de um sistema social, em que a causalidade é circular. Miséria, doenças parasitárias, saneamento deficiente, analfabetismo, raquitismo, periferias supersaturadas, subemprego, violência, nada disso são “efeitos” da desigualdade; são seus componentes, suas faces, como as faces de um poliedro. O mesmo vale para a ostentação, a humilhação de subordinados, a corrupção, o desprezo à lei, a sonegação. Todos esses aspectos se alimentam e justificam mutuamente, compondo o quadro da desigualdade e da lógica política e social do Brasil. Esse quadro remete ao que há de mais decisivo para o que vem por aí: é o momento crítico desse retrato, com a oportunidade de recompor suas poucas rachaduras, que está em jogo para o grande vencedor.

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Então poderíamos perguntar: como se relaciona essa distribuição de papéis na nossa dramatização nacional com aquilo que chamei, acima, de crise existencial? Em grande parte, a crise decorre do fato de que todos os segmentos sociais que efetivamente quiseram alguma coisa, que tiveram algum projeto de mudança, alguma idéia para o país, se não acabaram de mãos abanando, acabaram dando de cara com um paredão. Para usar uma imagem meio poética, meio cafona, podemos dizer que a parede em questão é o muro da fortaleza dentro da qual os verdadeiros “donos do poder” (“classe dominante”, “oligarquia” etc.) tomam seu champagne, guardados por Deus, contando o vil metal.

Parece que sempre foi possível contornar esse muro de alguma maneira, ocupar algum espaço do lado de cá, satisfazer um punhado de demandas com migalhas, fazer alguma composição, acomodar interesses, empurrar mais para adiante uma crise mais séria, possivelmente violenta: um verdadeiro confronto social. Agora, parece que isso não é mais possível. Ninguém vê mais uma saída como essa, porque não estamos nem nos anos 20, do tenentismo, nem nos 50, do juscelinismo, nem nos 60, das reformas de base, nem dos 80, quando se fundou o partido de massas que ora implode.

Ninguém parece enxergar nada que corresponda a essas nossas figuras históricas, exceto por pequenas fagulhas, como eventualmente o movimento secundarista do ano passado. Mas esse movimento, como qualquer outro, para ter mesmo efetividade, precisaria poder desaguar em estruturas mais firmes, concretizar-se de alguma forma. Essa concretização, que dependeria de articulações hoje indisponíveis, dada a implosão dos grupos mais progressistas oriundos da era da redemocratização (incluo aí os personagens tucanos), é o que as pessoas não têm conseguido enxergar. Isso justifica, ou ao menos explica, a pasmaceira, a angústia, o pessimismo, a crise existencial.

Explica, inclusive, a derrota próxima dos grupos que se crêem vencedores.

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Passando os olhos pelos diagnósticos do presente disponíveis na imprensa, na academia e na internet, posso dizer com razoável margem de segurança que qualquer análise que se pretenda séria – isto é, que seja mais do que torcida – enxerga nosso momento como algo que vai muito além do “empessegamento” de Dilma Rousseff. Assim, alguns dos nossos melhores observadores têm notado no derretimento político do país a marca dos estertores da Nova República, ou seja, aquela que se fundou com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Há vários artigos sobre o tema, mas o mais completo (e afinal, também o mais extenso) é provavelmente o de Marcos Nobre na revista Novos Estudos.

Em resumo, o argumento ressalta o fato de que o arranjo político do período, pelo qual uma bipolaridade PSDB/PT comandaria e controlaria um grande pântano de fisiologismo (essa é a descrição de Nobre), se desmilingüiu, na medida em que o petismo foi implodido por ataques externos e inapetência interna, enquanto o tucanato se tornou um apêndice um tanto caricato do pântano que acreditava ser destinado a controlar. Esse arranjo vai além das relações entre o Legislativo e o Executivo, está aí Gilmar Mendes que não me deixa mentir.

Por esse prisma, Sergio Machado tinha razão, parcialmente ao menos, ao dizer que “o mais fácil é botar o Michel”, em conversa com Romero Jucá sobre as tramóias que dariam cabo da operação Lava-Jato. Jucá, por sinal, deixa claro que era preciso trocar de governo, e isso foi feito. Assim, o esperado de um governo Temer é alinhar todos os poderes e todas as forças do patrimonialismo estamental, deixando de fora, primeiro, o PT (jogado aos leões?) e, em seguida, a sociedade (que, vamos convir, sempre esteve de fora e, em geral, não se incomodou). A tese da crise da Nova República, porém, afirma que essa tentativa implica mais do que um simples acordão para livrar nossos fisiologistas da Polícia Federal: implica o fim do arranjo político instaurado nas últimas três décadas. Resta saber: cria um vácuo? O que ocupa esse vácuo?

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Um detalhe interessante: se olharmos em retrospectiva, podemos dizer que cada governo eleito depois da Carta de 1988 teve como mote algum tipo de transformação profunda no país (traço também sugerido no artigo de Nobre). A começar pela própria CF, que recebeu o apelido de “constituição cidadã”, em certa medida porque estava expresso nela um desejo de consolidar, na letra fria das normas, a cidadania à qual os próprios cidadãos nunca puderam ter acesso efetivamente – e isso não é pouca coisa, como temos visto nos últimos anos.

Pensemos no governo Collor, que, conservador como era e oriundo das piores oligarquias, escancarou a economia como estratégia de transformação de um empresariado industrial dependente das reservas de mercado. O governo Fernando Henrique, mesmo se esquecermos o que ele escreveu, foi dedicado à modernização econômica e financeira do país, concorde-se ou não com o que significava essa modernização. Havia ali a idéia de transformar a gestão das finanças públicas em todos os níveis da federação, mesmo que à custa da asfixia dos governos estaduais – e essa asfixia também pode ser lida como estratégia para esvaziar coronelatos.

O governo Lula, por sua vez, ressaltava uma transformação social que ia muito além da transferência de renda e da valorização do salário mínimo; a criação de universidades, a instituição de cotas, os pontos de cultura, têm um papel importante aí. Já o governo Dilma tinha em seu início, não nos esqueçamos, uma promessa infelizmente frustrada de recuperação da taxa de investimentos, o que, se bem executado e somando-se às transformações anteriores, poderia mudar profundamente a dinâmica da economia brasileira. Poderia, a rigor, realizar a parte estritamente econômica do projeto de 1988. A péssima leitura das dinâmicas do capitalismo global condenaram o projeto, é claro, além da inabilidade política e do erro em crer que era possível uma verdadeira transformação sem quebrar a espinha dos “donos do poder”. Mas o que interessa a este texto é o discurso da transformação e do otimismo.

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O período que conhecemos como “Nova República”, precisamos ter isso em mente, carrega consigo algo como uma “missão histórica”, se é que existe tal coisa. Podemos chamar também de “ambição implícita” ou “possibilidade única”, se for o caso. Imaginou-se ali um Brasil para além da dominação oligárquica que nos persegue como república desde o 15 de novembro, apesar de todas as falhas.

Creio que uma leitura cuidadosa do texto constitucional, dos debates durante a constituinte e dos movimentos sociais ativos ao longo dos anos 1980 poderia chegar a uma demonstração de que a verborragia e as incongruências da Carta Magna cristalizam uma síntese do país, com todas as suas complexidades: o varguismo, as oligarquias, as demandas sociais de um povo desamparado – aqueles aos quais Collor iria se referir como “os descamisados”.

Foi com esse pano de fundo que se sedimentaram as referências do período, essas que agora racharam e fazem água. Tanto as tentativas de tornar realidade os dispositivos constitucionais como os ataques a eles (por exemplo, o parasitismo dos planos de saúde sobre o SUS) se organizaram dentro desse eixo.

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Pois é a partir desse quadro que emerge um novo governo – até outro dia interino. Não tendo sido eleito (ou seja, seu projeto não tendo sido chancelado pelas urnas), esse governo não poderia ser simplesmente associado a uma etapa a mais na seqüência dos parágrafos anteriores (o governo de Itamar Franco, por exemplo, está ausente da listagem). Que sua chegada ao poder tenha se dado por vias tortas, claramente ilegítimas, golpe parlamentar ou não, só reforça seu caráter de tentativa de restauração, na linha do Congresso de Viena. Só o que faltou, no nosso caso, foi uma autêntica revolução anterior…

Colocada dessa forma, a imagem que emerge do governo Temer é a de um Executivo que, depois de quase 30 anos, não quer transformar nada, antes muito pelo contrário. Notemos uma coisa interessante: do “Avança Brasil” ao “País de Todos”, das “cinco metas” de 1994 à “aceleração do crescimento” e daí para a pouco sincera “pátria educadora”, nossos slogans das últimas décadas foram todos muito otimistas, refletindo o “momento singular” da Nova República. Pouco importa que também sejam artificiais e enganadores, pelo menos quando os comparamos ao tenebroso e pouco imaginativo “Ordem e Progresso” em que fomos parar – uma divisa positivista e superada, uma expressão do século XIX, para um governo afinado, precisamente, com o século XIX (resta ver sua relação com o próprio positivismo).

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É claro, há quem se iluda com a mensagem de “abertura aos mercados” que eventualmente o novo governo envia como sinalização para os segmentos encarapitados na Berrini. Essa mensagem é flagrantemente falsa, como se vê pelo déficit previsto para este ano, a simpatia pelo aumento do Judiciário e o estranhamento entre o PMDB e o PSDB, mantido, por enquanto, em níveis controláveis: não vai ser assim por muito tempo.

Se há pontos de convergência entre o interesse dos mercados (como os entendem os profissionais que neles atuam, não os que os controlam) e o das nossas elites oligárquicas, esses são pontos casuais, que geralmente dizem respeito ao controle direto sobre a distribuição dos benefícios da atividade econômica: previdência, negociações coletivas, saúde pública, infraestrutura. E acaba por aí: coisas que de fato tornariam o mercado mais eficiente, como aumento da concorrência, um sistema tributário mais equânime, uma lei de licitações mais competitiva, uma reforma do Judiciário, investimento em pesquisa e formação, vão ficar para as calendas gregas.

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Não foram poucos os acusadores que, reconhecendo a insuficiência das pedaladas fiscais como causa para a remoção de Dilma, trataram do “conjunto da obra”, referindo-se ao descalabro econômico, ou seja, alta da inflação, recessão, volta do desemprego (creio que a própria Dilma foi a primeira a usar a expressão). Está cheio de gente inteligente por aí achando que vem adiante um ajuste fiscal que reequilibre as contas públicas e nos leve ao nirvana econômico.

Lamento ser o portador de uma mensagem apocalíptica, mas um conhecimento mesmo parco dos mecanismos de retroalimentação inflacionária do Brasil anterior ao Plano Real deveria nos deixar com as barbas de molho. Ou alguém acredita que as promessas de Temer aos senadores e deputados, incluindo diretorias de bancos estatais, investimentos de ministérios e sabe Deus mais o quê, como pagamento pelo voto anti-Dilma, vão sair baratinho? Não se surpreenda se a inflação voltar à casa dos dois dígitos – e os juros reais também. Talvez aí os vencedores ilusórios se dêem conta de quem levou mesmo a melhor…

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De modo geral, se a crise existencial é o ponto em que estamos – não que isso responda a muitas das angústias existenciais que temos que enfrentar –, resta perguntar se é esse mesmo o ciclo que se fecha. Ou seja, se o que está em jogo é a imagem constituída na luta da redemocratização e, mal e mal, cristalizada na Constituição Cidadã. A Nova República.

Essa perspectiva já é mais ampla e mais tenebrosa do que a do mero fim do ciclo petista, é claro. São três décadas, não só uma década e meia. Mas se quem hoje se apropria da quase totalidade do poder é a oligarquia em estado puro, ou seja, os representantes de um modo de poder fechado para qualquer concessão econômica, social ou política, o que está em risco, o ciclo que pode estar se fechando, será ainda mais amplo. Será aquele que se inaugura quando o regime legal passou a tentar incorporar os conflitos distributivos, quando se abriu (um pouco) para uma sociedade mais ampla e mais complexa. O ciclo da década de 30, iniciado sob Vargas.

Isto não significa dizer, é claro, que o varguismo seja algum grande exemplo de progressismo – aliás, um erro das esquerdas no Brasil é continuar a mirar-se em idéias adequadas a quase um século atrás. Está mais do que documentado que o projeto encabeçado de Vargas diz respeito a uma acomodação das demandas das classes industriais e urbanas em expansão no Brasil do século XX. Acomodação a um sistema que jamais deixou de ser oligárquico no seu cerne; algo expresso na célebre frase do mineiro Antônio Carlos: “façamos a revolução antes que o povo a faça” – às vezes o Brasil consegue ser assustadoramente sincero, em especial quando é questão de desfaçatez…

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Ainda assim, o que a história do último século nos ensina sobre o varguismo é que ele foi, ao mesmo tempo, insuportável e insuperável para seus oponentes (para seus defensores, me parece que virou um fetiche, mas isso é tema para outra hora). Esse duplo caráter deve significar alguma coisa e precisaria ser estudado com mais afinco. Senão, vejamos: o modelo de Vargas, ou mais especificamente seu modo de regular as relações de trabalho, era o alvo central nas crises políticas de 1954-55, 1960, 1961 e 1964.

Quando enfim tomaram o poder com o golpe civil-militar, as forças mais conservadoras do país miraram na figura de Vargas e em seus herdeiros políticos. Depois de poucos anos no poder, viram que teriam de deixar para lá o projeto de implodir o legado varguista, sobretudo a CLT. A tal ponto que, quando se despediu do Senado em dezembro de 1994, quase uma década depois do fim da ditadura, Fernando Henrique se comprometeu, mais uma vez, a encerrar definitivamente a era Vargas. Privatizações à parte, não o fez – para falar a verdade, também não se esforçou tanto assim.

Insuportável: precisa ser eliminado. Insuperável: não se pode escapar dele. Não ousaria tentar uma resposta a esse problema aqui. Mas acho que o esclarecimento dessa questão-chave na crise existencial que atravessamos passa por entender que, com efeito, as leis trabalhistas são imperfeitas e, em alguns pontos, cruéis. O trabalho no Brasil é regido por dispositivos com intenções que passam longe do benefício ao trabalhador, como o FGTS, que foi desenhado para criar uma poupança forçada que financiasse a industrialização. Sem falar em questões previdenciárias; em favorecimento, por exemplo, ao setor militar, em benefícios extra-salariais que provocam ainda mais transferência para grupos de renda mais alta – magistrados em particular – e outras distorções, que vão muito além da CLT e das “relações entre patrão e empregado”.

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Nesse contexto, não é difícil ver como a reforma trabalhista que deseja o conservadorismo brasileiro nada tem de “modernização” ou “atualização”. Observe-se, por exemplo, que os principais projetos no Congresso em torno do trabalho dizem respeito à terceirização de atividades-fim, negociação individual e prevalência do negociado sobre o legislado, que são, grosso modo, as mesmas reformas que a troika tenta empurrar goela abaixo dos países da zona do euro, para deprimir os salários e “ganhar competitividade” na competição global com países onde o trabalho é quase escravo. Detalhe: nesses países europeus, os salários são muito mais altos que no Brasil; lá, o risco é a perda de poder de compra. Aqui, é a recaída na miséria.

Projetos de lei que de fato combatessem distorções das leis brasileiras do trabalho, ninguém sabe, ninguém viu. Essas leis afetariam uma camada da população, em boa parte composta por funcionários públicos e militares, que ironicamente é muito conservadora e se considera liberal (quando interessa). Com essa gente, um governo conservador brasileiro nunca vai mexer, já que são um de seus principais esteios urbanos. São as pessoas que tanto espernearam, por exemplo, quando trabalhadores domésticos passaram a ter direitos iguais aos seus…

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A questão não está na superação do modelo varguista, bem se vê. Está na manutenção das distorções, que são redistributivas, mas na direção regressiva, de exploração da base. Sempre que se dá conta de que terá de mexer onde não pode, ou seja, nos privilégios de seus apoiadores, o governo conservador recua e as leis do trabalho distorcidas seguem impávidas. Insuportável… e insuperável. Um governo fisiologista como esse que começa agora não vai ser diferente, exceto se as circunstâncias forem diferentes: será que são?

*

PARTE DOIS

Até aqui… e daqui por diante.

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Das muitas circunstâncias envolvidas na determinação dos nossos destinos (como raios chegamos aqui; onde raios vamos parar), creio que duas mereçam maior realce. Primeiramente (sim, sim, fora Temer etc.): precisamos entender melhor como, desde o instante em que se anunciou o resultado das urnas em 2014 (tanto para o Legislativo no primeiro turno quanto para o Executivo no segundo), no horizonte do segundo governo Dilma havia um governo Temer, literal ou figurativamente. Note-se: “um” governo Temer, e não “o” governo Temer.

Isso significa que, mesmo enquanto Dilma esteve no poder, o fisiologismo e o retrocesso foram tomando conta de cada vez mais espaços, naquela sucessão insana de ministros tétricos. Não podemos, hoje, estar surpresos quando simplesmente terminam o serviço tomando conta do que faltava, ou seja, a cadeira presidencial. Ao longo desse processo paulatino de corrosão, as forças que poderiam se opor a ele estavam ocupadas demais seja na defesa, seja no ataque a um governo que não tinha mais chances.

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Segundo, apesar dos pesares e do controle quase inconteste que o patrimonialismo estamental sempre exerceu no país, essa concepção de Brasil que o entourage de Temer pretende cristalizar, nem que seja a ferro e fogo, pode já ter se tornado inviável. Seja em razão de mudanças demográficas ocorridas ao longo de muitas décadas, seja graças a avanços obtidos desde a promulgação da constituição (e particularmente nos governos tucanos e petistas), as expectativas e as condições de funcionamento da sociedade brasileira talvez não permitam mais o tipo de dominação e exploração pressuposto por esse regime, e essa pode ser uma janela de esperança. Talvez os grandes vencedores acabem perdendo, afinal.

É por isso que, ao analisar a ascensão da dupla Temer/Cunha, é preciso pensar para além da Nova República. O que está em jogo ultrapassa o estancamento dos avanços civilizatórios introduzidos em 1988. E ultrapassa em muito a mera derrubada do PT.
Vejamos mais calmamente cada um desses dois pontos.

* * *

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Primeiro: o que significa dizer que no horizonte do segundo governo Dilma havia um governo Temer? O atual ministério que nos governa (e assusta) estava implícito de que maneira no ministério do governo petista que o precede? Hoje, finalmente está claro que a eleição de 2014 foi uma derrota completa para o PT, uma derrota para a qual a conquista do Executivo foi nada menos do que um agravante. A energia despendida para garantir um segundo turno contra Aécio Neves, em vez de Marina Silva, escorreu por caminhos inesperados (o que não significa que fossem imprevisíveis), indo concretizar-se na eleição dos piores tipos possíveis para o Congresso, seja qual for o critério.

O Executivo teria de se ver desde o início com uma base frouxa e uma oposição empolgada, além de vingativa, já que, desde 2011, a tentativa de enfraquecer o PMDB dividindo o fisiologismo com a ajuda de Kassab deu o resultado que não poderia deixar de dar: fracasso completo. À incapacidade articulativa de Mercadante e sua turma ainda viria se somar (Opa! Em tempos de Temer devemos dizer: somar-se-ia) o fortalecimento de Eduardo Cunha, ainda mais depois da tentativa amadora de evitar sua eleição à presidência da Câmara. Este último, como já advertia o perfil do então candidato a vice-presidente na Piauí em 2010, é “cunha e arne” com o atual presidente-usurpador-que-não-admite-ser-chamado-de-golpista.

Só uma esperteza política muito acentuada poderia evitar a metástase fisiológica sobre o governo daquela que havia começado com a “faxina” dos ministérios.

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A rigor, a única coisa que poderia acontecer de ainda pior do que os eventos deste ano seria a perpetuação do processo de dissolução do governo Dilma. Nesse caso, em 2018 elegeríamos com certeza um Congresso ainda mais retrógrado do que o atual; e o presidente poderia sem sombra de dúvida ser alguém cujo nome não merece ser pronunciado. Nesse caso, o processo seria perfeitamente legítimo e não teríamos nem mesmo o consolo de acusar um golpe. Este era, a rigor, o “horizonte” propriamente dito. O impeachment precipitou a queda desse céu sobre nossas cabeças, com um ar burlesco, uma perspectiva de muita repressão e a nesga de esperança de que seja possível resistir.

Voltando o olhar um pouco mais para o passado, poderíamos dizer que as primeiras nuvens, ainda indivisáveis, desse horizonte temerário começaram a se acumular quando emergiu a figura do próprio Temer. O “mordomo de filme de terror” de ACM ascendeu após “bons serviços prestados” na presidência da Câmara; e apesar da falta de brilho eleitoral próprio, sabe manter a coesão da alcatéia e mereceu por isso a indicação como vice-presidente na chapa montada para 2010.

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Foi o momento em que se consolidou uma escolha no planejamento estratégico petista, atraindo as oligarquias que, pela história de sua fundação, esperávamos que combatesse. O período coincide com a preferência acentuada pelos mamutes (perdão, os campeões nacionais) na economia – na esteira da crise de 2008 – e com o papel inchado de um BNDES incapaz de questionar o sentido da letra “D” no próprio nome. Foi o período em que se apostaram todas as fichas no motor chinês e na condição de fornecedor para os asiáticos do material bruto que alimentava a máquina. Foi o período em que se tentou seduzir a bancada ruralista – em parte, funcionou, como vemos pela tenacidade com que a senadora Kátia Abreu defendeu o mandato de Dilma. Não funcionou o bastante.

Seria coincidência que o país escolheu assumir na divisão internacional do trabalho um papel semelhante ao da Primeira República ao mesmo tempo em que o governo se decidia pela aliança com figuras políticas que remetem a esse mesmo período? Seja como for, ali se substituiu a aliança com o empresariado “pé-de-chinelo” (no bom sentido: gente que rala…) encarnado na figura de José Alencar por uma rendição às oligarquias patrimonialistas do PMDB e quetais, para constituir a “supercoalizão”, aquela contradição em termos cujo único propósito era eleger Dilma e cujo destino inescapável era a implosão.

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Por esse prisma, as ambições formais do governo Dilma eram inviáveis desde o princípio. Com a o fracasso da redução da Selic e da política (improvisada) de desonerações, foi relegada ao milagre do pré-sal e a delírios de empreiteiras – na verdade, “para” empreiteiras, como a Copa, a Olimpíada e, sobretudo, Belo Monte ¬ a ambição que em 2011 tanto se repetia, de elevar a taxa de investimento acima de 20% do PIB. (Ironicamente, o outro presidente que assumiu falando especificamente em elevar a taxa de investimento acima de 20% também falhou: trata-se de Fernando Henrique, que mencionou esse objetivo no mesmo discurso de dezembro de 1994 em que se comprometeu a encerrar a era Vargas.) Mas a variação do preço do petróleo e as investigações contra empreiteiras lançaram a pá de cal nesse último projeto.

É evidente que alinhar-se com a direita em 2013 foi a cereja do bolo, um erro crasso. Desde então, as pessoas mais próximas ao governo se esmeram em marcar aquele momento como a ascensão da extrema direita no país. Um esforço tão bem-sucedido que não podia ter outro desfecho senão confirmar-se. Ou melhor, concretizar-se: a “idéia” realizada no concreto… Será que faz tanto tempo assim que a cúpula petista passou das ruas para os gabinetes, a ponto de esquecer como funcionam as polícias no Brasil? Era tão difícil enxergar o perigo de repetir o discurso de Alckmin, televisões et caterva, taxando toda aquela gente de baderneiro, vândalo, black bloc, fascista e por aí vai? Era mesmo impossível se dar conta de que uma lei anti-terrorismo cairia como uma luva de ferro para a mão pesada de nossa pior direita? Não era evidente que, uma vez aberta a via das ruas e bloqueado o acesso para movimentos populares, a rua não poderia ser tomada por ninguém outro senão a direita? Certamente tudo isso era perceptível já em 2013. Afinal, muita gente percebeu. Mas os nossos personagens, hoje “formalmente derrotados”, preferiram não ver.

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Cito isso tudo para ressaltar duas coisas: primeiro, que a excepcionalidade do momento que estamos vivendo é menor do que pode parecer. Que eventualmente as oposições e o fisiologismo tenham se aliado, decidindo passar além do quadro institucional para retomar o poder, continua sendo terrível e ainda aponta para uma ruptura muito mais grave do que apenas o golpe contra uma presidenta. Mas esse evento era algo inscrito nos caminhos possíveis desde 2014 e mesmo antes, por dentro do governo até mais do que por fora, já que não teria havido manifestações tão massivas contra Dilma sem que atores políticos importantes as tivessem fomentado. (Aliás, por onde anda Paulo Skaf?)

É forçoso admitir, e isso não é nem de longe uma justificação, que o poder transborda a política e a política transborda a lei. Se assim não fosse, um gigantesco algoritmo político-legal daria conta de todos os recados. Temos de ter isso em mente ao fazer a leitura das incongruências dos políticos, de seus acordos, suas alianças e suas interpretações não raro absurdas do texto legal. Um político profissional geralmente reconhece esse dado; aos primeiros sinais de transbordamento, recua, se ajusta, se acomoda. Perante a iminência de ser derrubada, como tem sido dito e com razão, Dilma foi tenaz, foi heróica, foi realmente admirável. É incrível como ela só fala bem sob intensa pressão. E foi tudo isso porque agiu de um jeito como nenhum político agiria. Dilma, que cresceu no aparelho do Estado como burocrata (no bom sentido), não como política eleita, não tem os mesmos compromissos que teria alguém com a ambição de ser mandatária para o resto da vida. A grandeza de Dilma perante os senadores foi, precisamente, a grandeza que o político jamais pode ter. Graças a ela, vimos “em tempo real” o que ocorre quando a política e o poder transbordam a lei. Não é bonito.

A segunda coisa que eu queria ressaltar é que a derrocada do governo Dilma expõe o quanto a arquitetura política da Nova República é – ou era – frágil. Como se diz, o chamado presidencialismo de coalizão induz à contaminação dos governos pelo fisiologismo, mais cedo ou mais tarde levará à compra de votos, garante que os projetos mais urgentes de reformas para o país nunca sejam de fato julgados. A seguir a descrição de Nobre sobre o condomínio fisiológico administrado por um ou outro dois rivais mais – supostamente – programáticos, arraigados realmente em algum extrato social, é preciso que pelo menos um desses “partidos administradores” esteja forte e articulado. Também é preciso que tenha convicção de sua conformação programática.

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Quando esses partidos não conseguem exercer esse papel, o que temos é uma espécie de barreira da Samarco. Se o PSDB se torna um apêndice arrogante das oligarquias e o PT vira as costas para os movimentos sociais para tornar-se um edifício de burocratas, não há nada mais que segure a lama. Inundados, soterrados, sufocados, podemos até manifestar surpresa, mas teria bastado um sobrevôo para perceber que, enquanto tocávamos a vida nas últimas décadas, a sujeira se acumulava. A lama sempre esteve lá, a lama é a normalidade. A vida limpa e tranqüila dos vales é que era a ilusão. O arranjo quase progressista da Nova República se rompeu, ao que parece, mas foi por pressão acumulada, não por alguma intervenção externa.

Os estragos dessa inundação de rejeitos políticos podem ser bem vistos com um enquadramento mais aberto. O grande vencedor, como sabemos, é esse ministério velho, branco, masculino e investigado por corrupção, de que tanta gente já falou. Um retorno à República Velha, eu diria, mas acrescentando: se é que a República Velha chegou a ser superada, realmente. É bem possível que ela tenha simplesmente sofrido mutações, acomodações, rearranjos, para manter-se como paradigma da política brasileira.

Afinal, esse vencedor não precisou de grandes sacrifícios, porque, no fundo, o país sempre foi seu. Bastou uma pequena conspiração e o beneplácito de quem controla nossos oligopólios, no campo, na indústria, nas finanças, na mídia, na pirâmide socioeconômica. A seu lado, o pobre coitado do pretenso vencedor, o iludido, que espera recolher as migalhas que lhe atirarem os oligarcas, contente por trabalhar feito um camelo tendo como único benefício a possibilidade de humilhar alguém que trabalha ainda mais, ganhando muito menos. Alguém que espera do governo fisiologista que faça um ajuste fiscal duradouro…

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Cabe citar, também, que esse arranjo tem seus próprios mecanismos de escape, suas válvulas, por assim dizer, que permitem ao poder das lideranças políticas sobrepujarem o próprio desenho do sistema político e sua fundamentação legal. Em outras palavras, algo intrigante no sistema político da Nova República, e que – importante – coincide com sistemas adotados em países vizinhos, é que ele comporta a possibilidade de que haja golpes que não derrubem o sistema como um todo e sejam traumáticos apenas para quem o próprio sistema quer expelir.

Os cientistas políticos Mariana Llanos e Leiv Marsteintredet cunharam a expressão “presidential breakdown” para se referir ao fato de que, antes de Dilma, eram 17 os presidentes latino-americanos derrubados, de modo mais legítimo ou menos legítimo, desde a onda de redemocratização dos anos 1980. A nossa ex-presidenta é a décima oitava. Criou-se um sistema pelo qual as elites, ou seja, as oligarquias, neste subcontinente tão oligárquico, conseguem golpear e expelir quem não lhes interessa, mas garantir a perenidade do arranjo, ou seja, fechando a válvula. Daí a dificuldade em identificar a presença de um golpe de Estado: a lógica que leva a esse golpe já é enxertada no próprio sistema.

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O informalmente derrotado duas vezes continua gritando, quando tem forças, e agora precisa decidir como reagir à volta do formalmente derrotado ao campo da oposição. Essa é uma decisão difícil: passar os próximos meses exigindo retratações? Abraçá-lo em nome de algo maior, a luta contra o regime fisiológico? Segui-lo no projeto pouco sagaz de reconduzir Lula ao poder em 2018? Não é à toa que, hoje, esse seja o grupo que mais está batendo cabeça.

Por fim: o formalmente derrotado é aquele que fracassou porque, acreditando-se progressista, acabou sendo meramente governista. No frigir dos ovos, nenhum governismo é progressista, exceto em contraste com algo muito mais tenebroso… como um golpe.

* * *

Resta ainda o segundo ponto, que é o mais importante, referente à questão de “para onde raios estamos indo”. É preciso se perguntar se o Brasil que os oligarcas, os fisiologistas (que não são rigorosamente o mesmo grupo, atenção) e o governo Temer têm na cabeça é viável. Como já adiantei, creio que não. Acredito que nem a estrutura produtiva, nem a distribuição demográfica permitem mais o nível de dominação, repressão e arbitrariedade ao estilo da Primeira República que os personagens que emergem com Temer representam. Também não é mais possível o nível de instabilidade social que se verificou nas décadas centrais do último século, porque não há mais dezenas de milhares de migrantes internos fugindo da seca, o índice de analfabetismo é muito menor, embora ainda alarmante, o crescimento urbano não é mais tão acelerado, as massas da periferia não são mais tão desamparadas, desesperadas e desconectadas.

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O Brasil do século passado, mesmo durante a industrialização e o dito milagre, era um país praticamente em equilíbrio malthusiano, caracterizado por subnutrição, analfabetismo e doenças endêmicas típicas de ambientes miseráveis. Além das taxas de natalidade e mortalidade muito altas. Era um país rural e pouco conectado – literalmente: estou falando de estradas e ferrovias, telefones e agências dos Correios. Um quadro perfeito para as formas mais brutais e toscas de dominação.

Embora os avanços tenham sido bem aquém do que precisávamos que fossem, estamos longe desse equilíbrio malthusiano. A mortalidade infantil e a incidência das “doenças da pobreza” caíram rapidamente, sobretudo graças ao SUS. O país é urbano, camadas cada vez mais amplas da população têm acesso a serviços públicos e, com todas as suas limitações, à educação.

Quando alguns Estados perdem 20% ou 30% de sua população (como exclamou Maria Bethania), quando as rodoviárias das metrópoles recebem centenas de milhares de migrantes internos todos os anos, é possível, é até fácil, explorar esse enorme contingente humano até o esgotamento. Os retirantes que, entre os anos 50 e 80, chegavam nas cidades em busca de qualquer trabalho que os mantivesse alimentados eram corpos plenamente disponíveis, sem aspirações, sem ambições.

Quando surgiam bairros e favelas novos nas periferias, eram áreas sem identidade próxima, sem conexão comunitária, sem meios para exigir infraestrutura. Quando milhões de pais e mães achavam um luxo seus filhos saberem ler e escrever, não ambicionavam o ensino universitário, um trabalho melhor do que o pior qualificado, uma casa melhor do que um barraco. Quando as pessoas não tinham nenhum poder reivindicatório, eram obrigadas a suportar se a polícia matasse a esmo nos subúrbios. Esse é o Brasil de “O Homem que virou Suco” e “Bye-bye Brazil”, em que se sentiam tão confortáveis os Temer deste mundo, e no qual até hoje se espelham.

Outra coisa é o Brasil de “Que Horas Ela Volta” e “O Som ao Redor”. Uma parte importante da crise, do ponto de vista social, mais do que político, é que existe um descompasso entre as condições objetivas do país e o modo como ele ainda é administrado, seja na cúpula, seja no dia-a-dia. Aqueles ajuntamentos periféricos surgidos às pressas no século XX são hoje bairros constituídos, embora deficientes, onde vivem pessoas nascidas e crescidas ali, a segunda e até terceira geração. As reivindicações são outras: saneamento, asfaltamento, segurança, equipamentos urbanos (de lazer, saúde, educação, transporte…). Nas quebradas, essas mesmas onde a polícia continua soltando chumbo, pululam as associações de bairro, os coletivos artísticos, os saraus poéticos, os bancos comunitários.

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A mera demografia tem um papel. Não nascem, nem morrem, tantos novos corpos disponíveis para a exploração: pelo mero fato de estar vivo, o brasileiro de hoje vale mais, aos olhos do capital, que seus pais ou avós. A exigência, agora, é pelo direito a ambicionar: qualificar-se, educar-se, galgar degraus na escala social. O jovem urbano brasileiro, o pobre, não entende por que deveria ser um mero corpo disponível para a exploração: doméstica, porteiro, frentista etc. O jovem rural, por sua vez, tem o direito de se imaginar cultivando aquelas terras com dignidade pelo resto da vida, fazer benfeitorias, negociar sua produção no mercado, obter financiamento agrícola; tudo isso, apesar do avanço do latifúndio e apesar das secas.

É claro que não se trata de meros efeitos secundários de uma evolução “natural” das populações. A economia mais estável, os programas de instalação de cisternas, a redistribuição de renda, a ampliação do ensino fundamental, a valorização do salário mínimo, a implantação de universidades em áreas até então isoladas, tudo isso também fez muita diferença e vai continuar fazendo. Por sinal, uma das causas da nossa crise existencial é que teria sido necessário continuar nessa direção, principalmente quando começaram a vir os sinais de que a sociedade estava madura para quebrar algumas barreiras. Não faltaram reportagens sobre as ambições da “classe C”, artigos sobre como os avanços eram só no consumo, só dentro de casa; que lá fora as cidades continuavam atrasadas, que as condições sociais eram um terror. Seria necessário dar o que chamei de “segundo passo”, mas a cúpula burocrática do PT não percebeu e foi formalmente derrotada.

Os sinais se tornaram cada vez mais claros e é perfeitamente evidente que aí está uma das raízes de junho de 2013, que a burocracia petista preferiu ler como geração espontânea de black blocs (avaliação idêntica à de Alckmin e da mídia conservadora, por sinal) e fascistas. No entanto, a maior lição de 2013 deveria ter sido constatarmos o abismo entre esse país em paulatina mutação e as modalidades de exercício do poder. Afinal, mesmo antes daquela explosão afetiva, já se liam cá e lá expressões do problema do acesso à cidade, da qualidade dos serviços públicos e da caducidade dessa nossa extrema desigualdade (que é de renda, de patrimônio, social, racial, de gênero, tudo misturado – não são muitas desigualdades, são muitas dimensões da mesma desigualdade, como eu disse no começo deste texto).

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Infelizmente, tem um outro lado que precisa ser mencionado. Não está claro, pelo menos para mim, como essa tendência social se comporta perante uma outra tendência muito forte, em sentido contrário, que é a da desindustrialização. A parcela dos manufaturados na economia brasileira, e particularmente nas exportações, está diminuindo aos poucos desde os anos 80. Foi agravada pela abertura de Collor e, depois, pelo uso irresponsável do câmbio para segurar a inflação sob FHC, Lula e Dilma.

A desindustrialização teve efeitos graves sobre a capacidade de mobilização dos sindicatos no Reino Unido e dos partidos trabalhistas de toda a Europa. Não é um acaso que hoje eles sejam uma caricatura, com figuras como Tony Blair na Inglaterra, François Hollande na França e Sigmar Gabriel na Alemanha. No Brasil, o sindicalismo que sobrou é basicamente pelego, inclusive com o curioso fenômeno dos pelegos de oposição – ou melhor, que eram de oposição, como a turma do sr. Paulinho.

Fala-se de vez em quando em greve geral, mas a probabilidade de que ocorra algo assim é ínfima. Não existe mais aquela concentração de trabalhadores como a do ABC de fins dos anos 70. As forças que tradicionalmente se mobilizaram neste país e em outros estão desoxigenadas porque seu poder de barganha, o trabalho industrial, está desvalorizado. O trabalho, hoje, é mais atomizado e disperso, com menor acesso ao controle do maquinário. Ao que parece, o que vamos ter é só mais uma greve de bancários…

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O que parece estar despontando à distância é uma outra forma de mobilização, extra-sindical, que ainda é embrionária, mero rascunho. No que vai dar, ainda vamos ter que ver. Quanto tempo vai demorar para ter alguma efetividade, quem pode dizer? Infelizmente, essa é a situação que está posta e o que resta é torcer para que as circunstâncias precipitem a busca por novas articulações. Sem falar no risco de que não dê em nada…

Resumindo: o ministério, o Congresso e a mentalidade que ora se instalam na direção do país (e que já vinham tomando conta, pouco a pouco, com o beneplácito involuntário de quem fetichizava o controle do Executivo) representam a tentativa de não apenas esquecer, mas negar esse abismo e a caducidade da nossa renitente República Velha. Um Brasil do “Jeca Tatu” ou dos filmes do Mazzaropi. Não vai dar certo.

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Talvez passemos alguns meses muito estranhos, até mesmo calmos, enquanto a sociedade absorve o golpe, quero dizer, sua nova realidade. Uma vez que as lideranças oligárquicas e fisiológicas vão dar um sumiço das denúncias da operação Lava-Jato (tendo fazer o mais fácil, que era “colocar o Michel”, e tendo esvaziado a legislação anticorrupção), o assunto pode vir a sumir dos jornais, dos táxis, dos almoços de fim-de-semana.

Um possível lado bom é que essa falsa calma talvez tenha o poder de desinflar a paranóia de extrema-direita que tem se disseminado país afora nos últimos anos. Afinal, o único traço de união entre a alta burguesia dos Jardins, o fundamentalista no púlpito de Bangu, o taxista do Tucuruvi e os filhotes da ditadura país afora é o ódio ensandecido ao PT. Mais precisamente, a algo que, sei lá por qual razão, lhes parecia ser um diabólico governo proto-comunista que queria estatizar toda a economia, botar todo mundo para fumar maconha nas praças, promover abortos ao som de Molejo e preparar a criançada das escolas públicas para apresentar shows de drag na Paulista ao crescer. É possível que o período de interinato do usurpador corresponda a uma boa parte dessa fase.

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Seja como for, não vai durar muito. Gosto de comparar os fenômenos multitudinários de 2011 (no mundo) e 2013 (no Brasil) com as revoluções frustradas de 1848. Aquelas agitações, tão ambiciosas, foram derrotadas, pelo menos no curto prazo, como ocorreu com a Primavera Árabe e com as reivindicações de direito à cidade no Brasil. Michel Temer talvez seja nosso Luís Bonaparte, a versão cafeeira do sobrinho de Napoleão, que tomou o poder cercado de picaretas e defendido por brutamontes conhecidos como “dezembristas” – a propósito, aquela frase de Marx que andam citando por aí, da história que se repete como farsa, é sobre ele.

Sinais do que vem pela frente já eram visíveis desde o interinato, com a posse de um ministro da Justiça (ó, ironia) que representa o que há de pior no governo Alckmin em São Paulo e o uso de armamentos violentos, já no dia da posse (interina). Cabe lembrar, também, da intimidação pela Polícia Federal a estrangeiros que participaram de manifestações. No pouco tempo desde a consolidação do impeachment, já tivemos olhos furados, gente atropelada, presos sem explicação, câmeras destruídas. Particularmente chocante é o vídeo de um policial dizendo, com desdém: “pode filmar”. Agora a violência tem carta branca e será atribuída pela mídia aos bons e velhos “vândalos, baderneiros, infiltrados, black blocs”, como bem sabemos.

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Esses sinais apontam para um esforço de rapidamente afirmar-se no poder, à base da dispersão e do silenciamento da dissidência. Some-se a isso o fato de que, para muitos agentes da repressão, mesmo quando agiam em nome e sob as ordens de governos petistas, sempre viam em toda mobilização social uma iniciativa de “petistas”. Tendo triunfado sobre os petistas na cúpula, e com a provável presença de efetivos petistas nos protestos, nas ruas quem vai apanhar é todo mundo mais – aqueles que, acima, chamei de “derrotados informalmente duas vezes”.

* * *

Resta saber o que vai acontecer com a resistência, ou seja, que cara ela vai ter, como vai ser sua dinâmica, quanta força terá. Sou cético quanto aos primeiros momentos. Ainda há muita associação entre a rejeição a Temer a o apoio a Dilma e ao governo petista em geral, o que deixa muita gente tímida e provoca verdadeira rejeição em quem foi “derrotado informalmente duas vezes”, e que muitas vezes apanhou, foi chamado de vândalo e assim por diante. A estratégia anunciada de recorrer a Lula para 2018 não ajuda em nada, já que o problema é preparar o futuro, em vez de tentar recuperar um passado já estilhaçado.

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Mas muita água vai passar debaixo dessa ponte. Os conflitos sociais e distributivos, as disputas de poder e as aporias do regime não têm outro caminho a tomar que não seja se intensificar e se tornar muito claros, uma vez que batam de frente com as condições demográficas e socioeconômicas que descrevi acima. Há um limite para o quanto a população pode aceitar de retrocesso uma vez que tenha aspirações.

Mesmo todo o proselitismo religioso que testemunhamos ao longo do processo do impeachment não pode atropelar os sonhos dos fiéis, sobretudo nas igrejas ligadas à “teologia da prosperidade”. Como essa teologia lidará com retrocessos sociais? É isso que vamos descobrir agora, e não posso me impedir de ter um medo enorme da resposta que vamos receber… Porém, fora isso, o uso de uma retórica pseudo-religiosa para estigmatizar o governo perde boa parte da eficácia uma vez que o governo em questão deixa de existir.

Um ponto importante sobre o governo Temer é que sua única chance é agir como recomendava Maquiavel: fazendo todo o mal de uma só vez. O primeiro motivo é evidente: é preciso passar o pacotão de retrocessos enquanto não há uma oposição articulada – e ela vai acabar surgindo, mais cedo ou mais tarde. O segundo motivo é um pouco menos evidente, mas nem por isso indivisável: vencida a batalha contra o inimigo comum, o fisiologismo começa sua autofagia, ou seja, as disputas em torno dos espólios e da ocupação dos espaços do poder.

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Não sei quanto tempo isso leva, mas já ouvimos de Ronaldo Caiado que ele vai ser “independente” do governo usurpador, o que significa, obviamente, que sua ação vai ser pautada por fazer o governo, tanto quanto possível, dependente dele. O PSDB, coitado, acha-se ainda muito importante. Faz ameaças, enche o peito, exige um ajuste fiscal mais rigoroso. Só que tem uma bancada insuficiente para influir de fato, com meros 55 deputados. Daí o ministério temerário ter só três tucanos, um deles posto para cuidar de um assunto que não entende e no qual não pode atrapalhar o mordomo de filme de terror; sim, estou falando do Serra. O tal ajuste, já se vê, não virá. ou melhor: virá na superfície, e em seguida vai se desmanchar no ar como o pó de pirlimpimpim.

É interessante como, de vez em quando, opositores do usurpador se referem a ele como “neoliberal”. Ora, Temer não é um neoliberal. Ele não é nem sequer liberal. É pemedebista, um porta-voz das oligarquias, um ponta-de-lança do fisiologismo e nada mais. Sem dúvida, haverá neste início de seu lamentável governo uma série de medidas do mais puro liberalismo-Malan. E não faltarão analistas, a grande maioria economistas (essa gente com visão tão estreita) para dizer que é um governo com “boas intenções”.

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* * *

Essa gente parece não saber que a tal da “Ponte para o Futuro” divulgada em outubro, nome oficial do ajuntamento de idéias que passa por projeto de governo, destinado a acariciar as consciências das nossas lideranças empresariais, é só para inglês ver. O arquivo, como pode perceber quem o procure no Google, tem o singelo nome de “Release Temer” (confira no quadro vermelho abaixo). Em outras palavras: o grande projeto do PMDB para o país não passa de um “release”, ou seja, uma mensagem de divulgação para a imprensa, um documento de propaganda. E não do partido, mas do próprio Temer. Foi um mero passo da conspiração, desprovido de qualquer preocupação em concretizar-se como programa de governo. (Já não lembro quem foi a pessoa que me apontou esse detalhe, mas fica aqui o agradecimento.)

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Não é difícil perceber que as prioridades de Temer passam longe da estabilização da economia, da “união do país” ou qualquer coisa assim. Não é à sociedade como um todo que ele deve a faixa presidencial que indevidamente porta, mas a quem barganhou os votos necessários para colocá-lo na cadeira presidencial. Temer, em seu governo de conciliação e “salvação nacional”, seja lá o que isso for, terá oligarcas, oligopolistas e demais sanguessugas econômicos a agradar. A primeira vítima vai ser a boa vontade dos iluminados conselheiros do livre-mercado, que, uma vez mais, vão ficar a ver navios, escorados em suas convicções de livro-texto. É bem provável que, em poucos meses, o poeta paulista tenha se transformado numa cópia do romancista maranhense José Sarney. Inclusive na economia.

Pobres “vencedores que vão se descobrir derrotados”… Fazem pensar em Carlos Lacerda, o iludido paradigmático da República, que vendeu a alma ao demônio marcial pensando que seria eleito presidente em 1965. Não houve nem eleição em 1965 e o pobre do Lacerda acabou cassado, tendo que se aliar com aqueles que passara os anos anteriores vilipendiando: Juscelino e Jango. Cuidado, amigo tucano, há um Lacerda no seu horizonte.

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Também não vai demorar até que as lideranças de Piratininga queiram preparar a cama para seu próprio candidato, seja Alckmin (cruz credo), seja Serra (alho, por favor!). Afastado o grande inimigo comum, o “polvo petista”, as baterias da Paulista e do Jardim Botânico tendem a se virar contra nosso latinista do Jaburu (agora do Alvorada). Em outras palavras, o capital e a mídia vão romper com o governo do usurpador quando puderem começar a pôr em prática seus próprios projetos para 2018. Como eu disse: autofagia.

Mas talvez seja tarde demais. Quem tem a caneta, hoje, são os fisiologistas; suas armas são pelo menos tão fortes quanto as dos bravos bandeirantes de paletó riscado.

As disputas intra-oligárquicas parecem sempre farsescas, vistas daqui de fora. Como foi a crise que culminou na revolução de outubro de 1930, aquela que foi feita antes que o povo a fizesse. Mas elas existem e deixam brechas por onde podem passar mudanças substanciais, ainda que sempre mantidas aquém do que seria necessário para um salto civilizatório no país – aquele muro de que falei acima. Enquanto nossos barões e nossos coronéis disputam o controle da máquina estatal, ou seja, dos métodos de extração de renda fundados na exploração dos nossos corpos, caberá ao resto de nós reconstruir articulações, produzir uma nova leitura da situação, coordenar movimentos, estabelecer uma resistência.

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À medida que essa resistência de fato se articule, é fácil de prever o recrudescimento da repressão. E hoje, quando termino o texto, a última frase já deixou de ser previsão. Enquanto a cúpula fisiológica e oligárquica em Brasília avança nos retrocessos (que hora para brincar com oximoros!), dá para esperar uma disseminação da indignação, das lutas e do desencanto daquela camada despolitizada que hoje está embevecida pelo discurso ultra-reacionário.

Nessas duas tendências, ouso dizer que a tática de terra arrasada não tem mais espaço. Com a complexidade que o país atingiu, não é mais possível suprimir por completo os desejos e as aspirações. Não é mais um país de massas frágeis e corpos disponíveis para a exaustão. Os gargalos e nós que já se acumulavam há anos e vieram à tona em 2013 não foram sanados – do direito à cidade expresso na tarifa de transporte até a precariedade da educação – e mal foram considerados. Os secundaristas de São Paulo, Goiás, Rio e outros Estados dão testemunho disso.

Passada a catarse do ódio a Dilma, a Lula e ao PT, a brutalidade policial contra protestos deixa de ser encantadora para a opinião pública. Por mais que o brasileiro tenha um enorme fascínio pela violência e tenda a apoiar a repressão, existe um ponto de inflexão a partir do qual ele se vira contra a barbárie institucional. Aconteceu em 2013, aconteceu no ano passado. Resta ver o que acontece a partir daí.

*

(IN)CONCLUSÃO

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Levei muitos dias para escrever este texto e comecei dizendo que a realidade é confusa. De lá para cá, bem… a realidade se tornou um pouco menos confusa. Estamos entrando em um período em que as máscaras começam a cair. Editoriais e capas de jornal deixaram de lado a sutileza, mostrando que o mea culpa que tiveram de fazer em 2013 passou longe de ser uma “lição aprendida”: foi, sim, uma concessão forçada, que até hoje os barões não engoliram nada bem. O verniz de espírito democrático perdeu completamente o lustre. E, pelo que tenho ouvido nos círculos que se consideram mais iluminados da elite paulistana, só tende a piorar.

Ao mesmo tempo, claro está que o afã investigativo na República passou. Alguns dos bem-intencionados indivíduos que passearam com patos infláveis pela Paulista no ano passado ainda acham que o juiz Sergio Moro vai fazer milagres contra os poderes intocáveis da República. Mas mesmo esse desejo ingênuo vai ser suplantado pelo esquecimento, já que o noticiário vai ter mais do que falar e a urgência de espancar gente na rua porque “é vermelho” será muito maior.

Com isso, tristemente, parece que o jogo volta à estaca zero; e a estaca zero é a República Velha. Mas é claro que não é rigorosamente uma estaca zero, pelos motivos que elenquei acima: as expectativas, no país, são outras. Além disso, a República Velha propriamente dita dizia respeito a um tempo em que o país se compunha de núcleos esparsos, vagamente conectados, de atividade econômica: eram oligarquias estaduais, até então mal e porcamente vinculadas entre si sob o Império. Hoje, o sistema econômico é de fato nacional, a população é conectada, os movimentos podem articular-se entre si. É outra história: o sistema político, sim, é que continua sendo um arcaísmo. As oligarquias são um arcaísmo.

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Se comecei comparando nossa realidade a algum enredo, com gênero ainda indefinido, acho que devo terminar no mesmo tom. O que vão fazer nossos personagens? Como vão se relacionar os derrotados, formais e informais? Como vai reagir o falso vencedor, quando descobrir que as batatas estão na mão de outro grupo? E nossos figurantes amarelinhos, nossos raivosos adoradores da brutalidade, como vai ser a vida deles quando a coisa começar a degringolar na economia?

São cenas dos próximos capítulos…

Enquanto acompanhamos a história, com grande apreensão, as cenas vão se sucedendo, cheias de peripécias e falsas pistas. Com a derrocada dos principais partidos da Nova República, vemos algumas novas agremiações surgindo, em vários segmentos do espectro político. Será que a próxima inflexão política brasileira surgirá no âmbito deles? Difícil dizer, mas mesmo isso deve demorar um bom tempo para tomar forma.

Nem imagino, também, quanto tempo vai levar para que vejamos emergir uma nova etapa de transformações no plano da própria sociedade. Pode até não ser tanto tempo assim, haja vista a pluralidade de formas de reivindicação, físicas e virtuais, que aparecem cá e lá. Seja como for, não tenho a menor dúvida de que, nesse meio-tempo, os subterrâneos ferverão. Mesmo enquanto, de nossos apartamentos, lamentamos mais uma oportunidade perdida.

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Imagens que não fizeram história (3): candangos e índios

A terceira fotografia da série de “imagens que não fizeram história” – e eu aqui pensando que iam ser só duas! – talvez cause um certo estranhamento; afinal, é uma fotografia muito recente, que nem “fez história”, nem deixou de fazer. Posso tentar contornar esse estranhamento dizendo que a imagem “ainda” não “fez história”, mas fará, por tais e tais motivos. Então este texto é uma aposta? Não faz mal, que seja. Estou disposto a apostar de vez em quando.

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Por outro lado, tudo gira em torno dos jogos que se possam fazer com essa fórmula: “fazer história”, que é dúbia e ainda mais maleável quando a usamos no negativo: “não fez”! Seja como for, quando dizemos que uma imagem “fez” história, geralmente estamos ressaltando seu caráter icônico, ao sintetizar nosso conceito de um determinado período ou acontecimento, esse sim “essencialmente” histórico. A imagem em questão é, portanto, a imagem visual referente a uma imagem mental de valor coletivo. A imagem que efetivamente “fez” história é aquela que aparece nos manuais escolares, nas retrospectivas dos telejornais, nas páginas não-numeradas, impressas em papel mais caro, de livros editados décadas depois, mas só para reforçar uma outra imagem e uma outra narrativa, da história que “se fez”, retratada ou não.

Então “fazer história”, no fundo, significa nada mais do que reaparecer a cada vez que alguém quer pontuar a memória social e, para isso, recorre ao ícone mais à mão. “Renúncia de Jânio”; “Guerra do Vietnã”; “Exército Soviético em Berlim”: para cada um desses sintagmas, imediatamente aflora na mente do leitor uma determinada imagem. E dificilmente vou perder dinheiro se apostar, para cada caso, que imagem será essa.

Se a fotografia que escolhi, como imagem, não fez história ainda, porque acabou de ser tirada; mas intimamente sentimos que está em sua essência um certo “fazer história”, será que estamos falando do mesmo caráter icônico?


Valter Campanato, da Agência Brasil, é o profissional responsável por esta peça tão linda. Na terça-feira, a manifestação de 1500 lideranças indígenas contra a PEC 215, no eixo monumental, acabara de ser interrompida por um temporal. Temporais, como sabemos, não são exatamente o evento mais corriqueiro em Brasília. Mas este grupo de índios (algo entre 12 e 14) continuou a fazer a dança ritual que estava fazendo como parte do protesto.

O fotógrafo capturou a dança na chuva bem quando ela passava diante do Monumento aos Candangos, que parece reverberar, na vertical, a marcha dos índios. O pé d’água, que borra as figuras, deixa impassível o bronze do monumento, mas aproxima ambas as formas por realçar seus contornos e esconder os detalhes. Passam a ser índios tão abstratos quanto aquelas duas figuras estilizadas, supostamente representando os construtores da “novacap”, tantos deles vítimas fatais do delírio de ocupação do Planalto Central…

Os candangos que empunham cajados; os índios que empunham armas. Alinhados em cruz, como se buscassem sinalizar uma simetria histórica. Com isso, a própria composição se torna o vetor pelo qual a imagem lança seu apelo ao passado e situa-se na história, fazendo-se perante a história e, se não propriamente “fazendo história”, pelo menos fazendo da história alguma outra coisa.

Ou melhor, para ficar menos enigmático, talvez seja o caso de inverter a exposição: enquadrados diante da simbologia presente de figuras do passado (o Monumento aos Candangos), os índios trazem o que “já foi” para junto do que “está sendo”, fazendo-os colidir, transformando-os em uma terceira coisa.

Uma constelação, como diria Benjamin?

Afinal, o que é um candango? O que é um índio? Em mais de um sentido, o candango (não o morador de Brasília, bem entendido, mas seu construtor) é o paradigma do lugar reservado ao índio, e não só a ele, no projeto nacional brasileiro. A mão-de-obra precária, depauperada, aculturada (esse talvez seja o traço mais essencial), disposta a deslocar-se em péssimas condições pelo território, na medida do avanço do extrativismo e demais atividades que reproduzem sua lógica. Disposta a morrer por acidentes de trabalho, por doenças que resultam da insalubridade, por violência.

É o mestiço, mas não segundo a perspectiva brilhosa de um amalgamento das raças ou coisa que o valha, e sim pelo esvaziamento das identidades (étnicas, raciais, lingüísticas) do colonizado e/ou escravizado. Esvaziamento que se opera enquanto é barrado o acesso à identidade do colonizador: o branco, europeizado, herdeiro de Dom Antônio de Mariz. É o “pardo”, aquele de cujo rosto não se desenham nem se esculpem os traços, como no monumento que o homenageia na Praça dos Três Poderes. A imagem nítida da construção de Brasília, que guardamos como ícone no fundo da memória, é a do rosto sorridente de Juscelino Kubitschek, acenando à frente de um Congresso cercado de andaimes.

Já o índio é o oposto disso: o obstinado caiapó, ashaninka, tukano, ianomâmi. É o muro em que esbarra o projeto nacional, naquele momento surpreendente em que alguém insiste na autodeterminação. É o desmentido de Rondon. É o rosto cujos traços a chuva pode borrar numa fotografia, mas o escultor não borrará no monumento. Se lá atrás o bronze dos candangos pesa sobre a Praça dos Três Poderes, com seus oito metros de altura – como uma sentença, podemos dizer –, aqui na frente a dúzia, pouco mais, de índios a atravessa, com a leveza realçada pela chuva.

Talvez seja esse o motivo pelo qual muita gente fica tão horrorizada e perturbada quando vê um índio de bermuda ou com a camisa do São Cristóvão. Ali está, materializada, a assinatura da aculturação. Então por que a recusa em admiti-la? A bermuda não é, nesse raciocínio, objeto de uso, mas mercadoria; não pode ser vista como concessão do mundo civilizado, só como porta de entrada ao sistema produtivo e à cultura que passou a lhe servir de penduricalho. O renitente índio que aceita a bermuda mas não aceita ser “pejotizado”, que continua empunhando seu arco mas não quer ir para a favela empunhar um .38 contra a polícia, está enfiando seu tacape bem no meio da engrenagem dos tempos modernos. Ou seria dos Tempos Modernos?


Mas… se é possível enxergar na fotografia um vetor de conexão cronológica, nada impede de procurar nela também um vínculo topológico, afirmando que a imagem é capaz de operar uma amarração que ressignifica a geografia. E se fizer isso, ela também dá um novo sentido ao território, com seus conflitos internos e seu enraizamento no planeta, do qual aparentemente não é tão fácil escapar. Acho que é possível ler essa imagem assim, mas vai ser necessária uma certa dose de sarcasmo. Não que isso me incomode!

O olho treinado pela televisão – que é o meu e, muito provavelmente, o seu também – quase certamente fará a imediata associação entre índios avançando em grupo debaixo de um toró e a expressão “dança da chuva”. Para o olho treinado pela televisão, o que é um índio? Ora, é alguém que faz uma dança da chuva. Porque quem dança “na” chuva não é o índio, é Gene Kelly, mas só porque tem uma câmara na frente, a chuva é de mangueira e a cantoria vem em playback.

Sem essa tecnologia toda, prossegue o raciocínio, o índio convoca a chuva dançando. E assim o reconhecemos como índio, com nosso olhar formado pela televisão. Digna de nota é a poesia embutida na idéia de convocar a chuva com uma dança: o moderno, o branco, o tecnológico, o civilizado, convoca a chuva bombardeando nuvens. Um bombardeio, pois: notória invenção do moderno, branco, tecnológico, civilizado.

Mas às vezes nem o bombardeio funciona, então é preciso recorrer… à dança? Parece ser o que fez o governo de São Paulo – moderno, branco, tecnológico e civilizado – no fim do ano passado, quando, a crer na imprensa local, entrou em contato com a Fundação Cacique Cobra Coral para ver se fazem chover em São Paulo. A fundação em questão não é indígena; é espírita, mas parte da premissa de que sua presidente recebe o espírito do cacique Cobra Coral (do qual temos poucas informações, senão que seu espírito também teria sido [sic] o de Galileu Galilei e Abraham Lincoln, o que me deixa intrigado, porque não vejo a relação desses dois senhores com a chuva). Pois esse cacique “tem poderes para interferir em fenômenos meteorológicos”, ou seja, faz chover.

Trocando em miúdos: enquanto o grupo de índios dava uma de Gene Kelly (que era moderno, branco, tecnológico, civilizado) e dançava “na” chuva, o branco e nem tão moderno, vagamente tecnológico e nada civilizado governador de São Paulo convocava uma dança “da” chuva.

Eu disse que seria preciso sarcasmo, e acho que esse sarcasmo começa a partir de agora. Afinal, São Paulo define-se como o “Estado bandeirante”, como testemunham os nomes de tantas de suas ruas e rodovias, sem falar na estátua de célebre mau gosto na avenida Santo Amaro. Mas o que é um bandeirante, senão um brutamontes descalço que leva a vida a se embrenhar pela mata para escravizar índios – e matar, estuprar…? Senão aquele cuja função histórica era limpar o terreno para a emergência de uma população aculturada e depauperada, ou seja, destinada a se tornar alguma das variantes daquele fenômeno do candango, homenageado no monumento de Brasília?

Que divina ironia! O líder político do “Estado bandeirante” recorre ao espírito de um índio para ter a chuva, enquanto os índios que conseguiram escapar à escravização e à proletarização, na capital do país, interrompem um protesto pela própria sobrevivência por causa… da chuva! E passeiam nela, dançam nela, e parecem mesmo estar se deleitando, esses maledettos nietzscheanos!


Está bom de ironia? Calma que tem mais. Se estou tratando de uma imagem e das conexões que ela é capaz de fazer, não posso deixar de citar um dos maiores marcos do “bandeirantismo” do Estado em questão. É também uma escultura, como o Monumento aos Candangos: o mais que famoso cartão-postal paulistano, o “empurra-empurra”, que pretendia ser conhecido como “Monumento às Bandeiras”.

Lá está ele, no meio do engarrafamento, retratando os maiores heróis do genocídio em traços enrijecidos, angulosos, um descarado flerte de Victor Brecheret com a estética fascista que florescia em seu tempo (há muito disso em São Paulo, a começar pelo Pacaembu). E não é que, debaixo do toró, os índios de 2015 lembram vagamente o formato da escultura-símbolo da ressecada capital paulista? De um lado, os corpos vivos, com membros flexionados; do outro, a postura marcial e os corpos de pedra.

De um lado, o protesto pela sobrevivência; do outro, a conquista do território e das populações. De um lado, o toró; do outro, o volume morto.

Em constelação, como diria Benjamin?

Resta ainda uma última questão, que não consegui identificar, com meus olhos formados pela televisão: de que etnia são esses índios? Vêm de que parte do Brasil? Sei que em Brasília, nesta semana, estiveram índios dos quatro cantos do território. Mas e esses em particular? Por sorte, posso ser preguiçoso e recorrer a meus olhos formados pela televisão, repetindo com meus confrades de televisionismo: “se é índio, deve ser da Amazônia”.

Então, em nome da poesia que pode haver nas imagens, vou simplesmente pressupor que o olhar formado pela televisão está certo, desta vez, e que os índios em questão são de uma etnia amazônica. Simplesmente porque isso convém à minha retórica: se eles vêm da Amazônia, então vivem na região do país de onde saem os rios voadores que irrigam com chuvas abundantes grande parte do resto do país… a começar por São Paulo.

Assim sendo, o que a imagem mostra é uma espécie de dança triunfal que sintetiza as contradições fundamentais do Brasil, tal como elas se manifestam hoje: o índio que protesta para garantir a sua sobrevivência e a de sua terra também é aquele cuja terra fornece o elemento indispensável à sobrevivência de todos os demais. E notadamente dos que querem forçar a aprovação da PEC que põe em risco o território dos índios. Como pano de fundo, temos a informação de que a demarcação de terras indígenas é um poderoso instrumento para frear o desmatamento, cuja consequência mais imediatamente visível para metade da população, que vive longe da floresta, é a paulatina diminuição das chuvas.

A história que se faz quase por conta própria nesta fotografia pode ser descrita como a materialização de uma anti-história do Brasil, em que o primeiro plano apresenta aqueles que são ao mesmo tempo anti-candangos e anti-bandeirantes em plena procissão triunfal, justamente no instante em que mais estão ameaçados. E quem é que vem fornecer as condições para que tudo isso seja sintetizado num único enquadramento, numa composição com basicamente dois elementos, muito pouco contraste de cor e uma simplicidade formal deliciosa? Ora, ninguém menos que a chuva. Terá sido mandada pelo cacique Cobra Coral, em resposta à convocação dos paulistas?

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O Inconcebível

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“Colapso”. Nossas conversas do dia-a-dia, aquelas do bar, da calçada, do elevador, ganharam agora uma nova palavra, um novo clichê. Colapso, como quando as fundações de um prédio se rompem e ele cai, ou quando um sistema complexo se revela mal planejado e ele entra em parafuso. Ou quando a defesa de algum time bate cabeça e toma uma goleada.

Dizemos assim: daqui a pouco a água acaba em São Paulo e a cidade vai entrar em colapso. Às vezes avançamos no raciocínio, citando que a estiagem veio para ficar, por causa da mudança climática e do desmatamento – afinal, já faz anos que tem chovido paulatinamente menos. Então toda a economia do Sudeste vai entrar em colapso: sem chuvas e com tanto calor, as hidrelétricas não agüentam.

Ocasionalmente, tendo mencionado o clima, o pensamento continua avançando e dizemos: se não fizerem algo, o mundo todo é que vai entrar em colapso. E, de fato, é pequena a probabilidade de “fazerem” alguma coisa, uma vez que, vivendo de abstrações, a humanidade, essa que poderia fazer alguma coisa, passou as últimas décadas espoliando o planeta. No máximo, dá para contar com alguns arranjos perfeitamente dribláveis por quem tem imaginação – coisa que não falta aos empreendedores mundo afora.

Às Últimas Conseqüências

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Esse termo, “colapso”, merece um olhar mais atento. Escutando suas três sílabas, percebo que saímos pronunciando a palavra de modo um pouco leviano, como diria o senador Neves. Quantas vezes não afirmei por aí, para puxar papo com um vizinho ou o porteiro, que “o colapso” está ficando cada vez mais provável? Mas será que eu consigo imaginar o que essa expressão implica realmente? Será que sou capaz de representar na minha cabeça o que é o tal colapso? Acho que não. Continuar lendo

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Da série Citações: Aldous Huxley para George Orwell

Há algum tempo, circulou pela internet uma comparação entre as previsões distópicas desses dois autores, Huxley em Admirável Mundo Novo (de 1932) e Orwell em 1984 (de 1949). A conclusão era de que o universo previsto por Huxley era mais parecido com o mundo como ele é hoje do que o imaginado por Orwell.

No mundo de Huxley, a sedução, a hipnose e o prazer (em suma, a alienação) seriam os elementos nodais da dominação totalitária definitiva. No de Orwell, seriam a vigilância, o controle, o pavor. A diferença de datas de publicação não deixa de carregar uma parte da explicação para tamanha disparidade. Ao escrever, Huxley acompanhava o desmoronamento dos anos loucos anteriores à Grande Depressão, era do Fox Trot e dos americanos em Paris. Já Orwell, ao escrever, acabava de saber da existência de Auschwitz. Atroz seria escrever um livro depois de Auschwitz, a não ser que fosse 1984?

Na comparação que rodou a rede, o consumismo, a indústria cultural e a maior parte da internet eram apresentados como demonstrações do acerto de Huxley. Esse lance de terror, opressão e vigilância tinha ficado para trás, derrotado em Stalingrado e na Normandia.

Aí veio Obama, o homem dos drones e do Prism, o Bush de fala macia. E embaralhou tudo de novo. Minha tentação é dizer: ambos previram bem, mas parcialmente. Fazendo rodopiar incestuosamente a opressão e a sedução, o baile está garantido para o dominador.

E no meio disso tudo, encontro a carta que vai aí abaixo. No lançamento de 1984, Orwell pediu ao editor que mandasse um exemplar do livro para seu outrora professor de francês, Aldous Huxley. E Huxley respondeu. É interessante aprender de onde ele tirou a referência de sua sociedade da sedução, do Soma, do hedonismo Ikea. No mínimo uma curiosidade, enfim.

Wrightwood. Cal. 21 October, 1949

Dear Mr. Orwell,

It was very kind of you to tell your publishers to send me a copy of your book. It arrived as I was in the midst of a piece of work that required much reading and consulting of references; and since poor sight makes it necessary for me to ration my reading, I had to wait a long time before being able to embark on Nineteen Eighty-Four.

Agreeing with all that the critics have written of it, I need not tell you, yet once more, how fine and how profoundly important the book is. May I speak instead of the thing with which the book deals — the ultimate revolution? The first hints of a philosophy of the ultimate revolution — the revolution which lies beyond politics and economics, and which aims at total subversion of the individual’s psychology and physiology — are to be found in the Marquis de Sade, who regarded himself as the continuator, the consummator, of Robespierre and Babeuf. The philosophy of the ruling minority in Nineteen Eighty-Four is a sadism which has been carried to its logical conclusion by going beyond sex and denying it. Whether in actual fact the policy of the boot-on-the-face can go on indefinitely seems doubtful. My own belief is that the ruling oligarchy will find less arduous and wasteful ways of governing and of satisfying its lust for power, and these ways will resemble those which I described in Brave New World. I have had occasion recently to look into the history of animal magnetism and hypnotism, and have been greatly struck by the way in which, for a hundred and fifty years, the world has refused to take serious cognizance of the discoveries of Mesmer, Braid, Esdaile, and the rest.

Partly because of the prevailing materialism and partly because of prevailing respectability, nineteenth-century philosophers and men of science were not willing to investigate the odder facts of psychology for practical men, such as politicians, soldiers and policemen, to apply in the field of government. Thanks to the voluntary ignorance of our fathers, the advent of the ultimate revolution was delayed for five or six generations. Another lucky accident was Freud’s inability to hypnotize successfully and his consequent disparagement of hypnotism. This delayed the general application of hypnotism to psychiatry for at least forty years. But now psycho-analysis is being combined with hypnosis; and hypnosis has been made easy and indefinitely extensible through the use of barbiturates, which induce a hypnoid and suggestible state in even the most recalcitrant subjects.

Within the next generation I believe that the world’s rulers will discover that infant conditioning and narco-hypnosis are more efficient, as instruments of government, than clubs and prisons, and that the lust for power can be just as completely satisfied by suggesting people into loving their servitude as by flogging and kicking them into obedience. In other words, I feel that the nightmare of Nineteen Eighty-Four is destined to modulate into the nightmare of a world having more resemblance to that which I imagined in Brave New World. The change will be brought about as a result of a felt need for increased efficiency. Meanwhile, of course, there may be a large scale biological and atomic war — in which case we shall have nightmares of other and scarcely imaginable kinds.

Thank you once again for the book.

Yours sincerely,
Aldous Huxley

Padrão
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O povo é uma rainha da Inglaterra

Princípio de 1651. Um respeitado editor, de nome Andrew Crooke, discute com um de seus autores o desenho que vai figurar no frontispício de um ainda inédito livro de filosofia política. O sujeito, fazendo esboços e gesticulando muito, quer representar a sociedade civil (ainda não existia a distinção entre a dita cuja e o Estado, como hoje) na figura de um monstro bíblico: o soberano seria a cabeça; o povo, o corpo.

Eles discutem e discutem. Desenhos são feitos e deitados fora. Finalmente, Thomas Hobbes consegue o frontispício que quer para seu Leviatã (ou “Matéria, forma e poder de uma comunidade eclesiástica e civil”). Lá está o soberano, com uma fisionomia que lembra vagamente Cromwell, o rei Charles II e até, de longe, Jesus. Tem longos cabelos ondulados e bigode, porta uma coroa na cabeça, segura com firmeza a espada na mão direita e o cetro na esquerda.

E eis também o curioso torso, formado de corpos que dão as costas ao leitor: o povo tem os olhos voltados para o rei (porque o soberano, aqui, é indiscutivelmente um rei), como se caminhasse em sua direção. Abaixo, o campo e a cidade, bem governados como no painel de Lorenzetti exposto em Siena. Mais abaixo ainda, os símbolos e os meios do poder: as armas, a religião, a razão, as leis. Hobbes, numa época em que os emblemas imagéticos eram de rigor, insistiu enormemente nesse frontispício, porque lhe parecia a melhor representação possível de sua teoria do contrato social. De fato, a imagem se tornou um ícone nodular da política: quando alguém quer falar em absolutismo, ou mesmo em governo grande demais, logo crava: “Um Leviatã!”.

Princípios de 2012. Penso no publicitário que bolou o projeto reportado neste link (pra quem não tem paciência de clicar: são crianças fazendo autorretratos para formar a imagem da rainha Elisabeth, em celebração de seus 60 anos de reinado). E me pergunto se ele tinha em mente o frontispício de Hobbes. É claro que não. Também me pergunto em que medida ele conhece essa imagem. Provavelmente não se lembra dela, provavelmente não sabe de onde veio, mas sem dúvida, sendo inglês, passou os olhos por ela quando estudante. É um elemento cultural importante naquele país, para o bem e para o mal, queira ou não queira o publicitário.

Ou seja, o Leviatã não é uma referência para ele (espero que não; só se for um louco), nem é uma citação. O mais provável é que ele esteja navegando – bem preguiçosamente, diga-se de passagem – a onda de capas de revista e painéis de artistas plásticos que repetem esse procedimento. Mas, por uma dessas voltas que gosta de dar a história, essa rainha dos redemoinhos e dos destroços, eis que aquela outra rainha, a da Inglaterra, se vê representada quase da mesma maneira como o foi um dia o paradigma dos monarcas absolutos. Senão como um monstro marinho saído da Bíblia, ao menos como um mosaico de súditos.

Posso estar exagerando, mas não estou. Pelo menos no sentido de que os chefes do publicitário em questão deveriam ter percebido que essa associação era possível. Ou então, o mínimo que se poderia esperar era que os funcionários da monarquia britânica alertassem para comparações que eventualmente, ou certamente, viriam. Nem que fosse em algum rincão do mundo infestado de mosquitos, como aquele Brasil de PIB avantajado como nádegas de mulatas. Para ser honesto, não consigo evitar de associar esse silêncio a uma decadência cultural.

Falando em decadência: houve um tempo em que a rainha da Inglaterra era a pessoa mais poderosa do mundo, em particular uma rainha de nome Victoria. Hoje, “rainha da Inglaterra” é uma expressão que conota justamente o oposto: uma figura que não manda em ninguém. “Fulano é uma rainha da Inglaterra”: tem um cargo, ganha um dinheirão, mas é só um nome com um título pomposo, nada mais.

Impossível não prosseguir no paralelo, enxergando na brincadeira do Jubileu da Rainha algum tipo de metáfora com a situação da Europa, particularmente naquele que foi seu pais mais poderoso, a ponto de nem mesmo se considerar parte do continente. Inglaterra, o povo que esnobou o euro, mas nem por isso deixa de estar na merda… Agora tenta recuperar seu amor-próprio representando sua rainha da Inglaterra – a original, não aceite imitações – da mesma maneira como outrora representou o ápice da potência monárquica. Triste ironia, não?

A brincadeira está boa, então que prossiga. Será que dá para fazer alguma metáfora a partir do fato de que são crianças que estão preparando o retrato da rainha com seus próprios rostos? Sim, claro que dá. Certa vez, entrevistaram um sujeito que vive na Côte d’Azur e seria o herdeiro do trono russo se os bolcheviques não tivessem dado cabo do czarismo em 1917. Perguntaram ao tal sujeito com que olhos ele via a população russa, que até hoje não manifesta o menor desejo de restaurar os Romanov, mesmo 20 anos depois da queda do comunismo. Resposta, de bate-pronto: “eles são meus filhos” – assim mesmo, categórica, sem deixar margem a questionamentos.

A imagem paternal (ou maternal, no caso) dos reis é um velho topos monárquico. Aliás, não é significativo que um poder absoluto e orientador, mas não aristocrático, como o imaginado por George Orwell em 1984, seja representado não como um pai, mas como um “grande irmão”? O fato é que as nações, em outras eras, eram representadas como famílias, tendo o monarca como figura paterna. Ora, a imagem de um rei como pai traduz o princípio de que ele deve proteger, orientar, defender e até, em certas circunstâncias, sustentar seus súditos.

É claro que uma parte dessa imagem desbotou com a progressiva instalação de monarquias constitucionais. Mas sobrou alguma coisa, particularmente o aspecto simbólico da paternidade, (ou seria do patriarcalismo?), que de vez em quando reaparece em filigrana no discurso monárquico. “A Bélgica só não se esfacelou porque tem a figura unificadora de um rei”, “Juan Carlos garantiu a democracia na Espanha com a força de sua pessoa”, “Charles não pode ser rei porque não transmite a moralidade britânica”…

E eis que agora a presença de uma crise, mais do que econômica, sócio-histórica, associada à dificuldade em manter as ralés quietinhas, reúne as duas pontas da noção de realeza. Por um lado, as criancinhas, metonímia para o brioso ex-império, unindo forças para buscar alguma resposta – nem que seja uma auto-imagem pixelada – em sua grande-mãe, ícone da resistência, da identidade nacional, do poder inquebrantável e inamovível. Por outro, a constatação difusa, inconsciente, desconfortável da perda de soberania. Ali mesmo na coroa intrépida do Commonwealth, enfraquecida não pelo triunfo das instituições transnacionais, mas pelos imperativos da City, que selam um destino iniciado com as guerras coloniais e imperialistas da belle époque.

Já que enveredei por essas metáforas visuais, vou até o fim. Colocando-se na posição de criancinhas, de filhos, de corpos inocentes, desamparados e – eis a parte crucial – disponíveis, os ingleses tentam reconstruir, sem saber, a figura que melhor conhecem para representar uma soberania sólida, resistente, visível. Como quem molda um Golem, o inconsciente coletivo da velha Albion espera que a imagem sorridente de Elizabeth absorva a energia das criancinhas, assuma seu posto de Leviatã e esmague os inimigos, isto é, a crise, a decadência, os microscópicos esporos de rebelião que ameaçam constantemente se espraiar pelas ruas. Não deixa de ser, modus in rebus, uma mensagem de esperança…

Voltando um pouco a Hobbes: um outro livro seu oferece uma concepção mais nuançada da soberania e dessa assustadora figura do Leviatã. É o Cidadão, ou De Cive. Nesse texto, encontramos o seguinte trecho, ousado como poucos que já li, sublinhando a necessidade de distinguir entre o povo e a multidão para associar o poder civil de decidir e agir à própria existência de um povo:

“O povo é algo uno, com uma vontade una, e a quem se pode atribuir uma ação. Nada disso pode ser dito da multidão. O povo rege em todos os governos. Até em monarquias o povo comanda, porque a vontade do povo é a vontade de um homem; mas a multidão são os cidadãos, ou seja, os súditos. Na democracia e na aristocracia, os cidadãos são a multidão, mas a corte é o povo. E na monarquia, os súditos são a multidão, e, por mais que soe paradoxal, o rei é o povo. (…) Fala-se no ‘grande número de homens’ como sendo o povo, ou seja, a cidade; dizem que a cidade se rebelou contra o rei (o que é impossível) e falam em vontade do povo, em vez de súditos descontentes que, passando-se por povo, agitaram os cidadãos contra a cidade, isto é, a multidão contra o povo.” (Capítulo XII – VIII)

Sem subscrever a Hobbes, o que aparece aqui é que o Leviatã do outro livro, que representa a soberania, não o Estado, pode ter múltiplas configurações, contanto que produza a unidade da legislação civil que salvaguarde a cidade do tão perigoso direito natural. Hobbes vê na monarquia absolutista o caminho mais certo, não necessariamente o único, para chegar a isso.

Hoje, os mecanismos legais são outros e ninguém precisa mais concordar com Hobbes, pelo menos quanto ao único caminho realmente viável que ele enxerga. Mas a imagem de que a sociedade consiste em formar um corpo uno em vontade e ação nunca foi inteiramente abandonada pela imaginação política, ao menos na tradição ocidental. Volta e meia algo assim é evocado: “governo de união nacional”, a “pátria indivisível” e assim por diante. O que varia é a estratégia para lidar com o dissenso, prova incontornável de que o estado de natureza está sempre aí, no coração de qualquer configuração civil (algo que Hobbes, por exemplo, nunca vislumbrou).

Montar um retrato da rainha com milhares de rostos de crianças, desenhados por elas mesmas, não deixa de ser a expressão de um tal desejo de unidade: “somos todos parte dessa nação”, “pertenço a algo que é maior do que eu” e assim por diante. Talvez seja o caso, porém, de destacar a diferença entre o retrato de Elizabeth e o frontispício do Leviatã. Afinal, um corpo não é um rosto e Hobbes deixou isso bem claro ao desenhar o soberano com a fisionomia de um rei e relegar o povo à configuração das entranhas e dos membros.

A idéia de que a multidão indistinta possa formar a própria cabeça, o ápice da soberania (palavra usada por Hobbes em sua própria tradução para o latim, bem como pelos demais autores da época: imperium) e do poder, é bem posterior a Hobbes e data do surgimento da tal “sociedade de massas”: a virada do século XIX para o XX. Essa tal “sociedade de massas” poderia ser um oximoro, ainda mais se levamos em conta a distinção que Hobbes faz aí acima entre o povo e a multidão. De fato, em toda a tradição do pensamento ocidental até fins do século XIX, o povo e a multidão (depois massa) eram conceitos opostos e conflitantes.

Quando surgiu a “sociedade de massas” (leia-se sociedade industrial, com produção e consumo de massa), foi preciso repensar essa distinção. Surgiram duas vias, falando grosseiramente. A primeira, não cronologicamente, eu diria, mas para a ordem desta exposição, é a via democrática, em que sobressaem a noção de opinião pública e os graduais esforços de organização da sociedade civil para ampliar o acesso a direitos – ou seja, à cidadania, a “ser povo” na acepção de Hobbes.

A segunda é a via autoritária, que vale sublinhar aqui. Nela, tenta-se reconquistar a unidade desejada por Hobbes não pela ampliação dos campos contemplados pela vida civil, mas pela fusão das massas no bojo do seu próprio comando. Não é à toa que todos os regimes extremamente autoritários do último século se apresentavam como “do povo” ou “dos trabalhadores”, fossem “de direita” ou “de esquerda”. O mais importante a frisar aqui é que, na grande maioria dos casos, foi a própria população que, a partir de um estado de desespero, buscou essa via autoritária, pediu por ela, entregou-se com um gozo às vezes catártico a sua figura de liderança absoluta.

Longe de mim dizer que o Reino Unido está à beira de um regime como as ditaduras que presenciamos no século XX. Mas o desejo seminal está lá. O “ovo da serpente”, digamos, está expresso na reação violenta aos saques do ano passado e na fusão de milhares de faces de crianças na imagem da rainha: ingleses infantilizados dissolvendo sua própria pele para entregar suas feições a um único e gigantesco rosto real.

A rainha da Inglaterra que continue sendo uma rainha da Inglaterra: seus traços aristocráticos não deixam de ser o arquétipo de qualquer monarquia, qualquer estrutura de comando através de um paradigma de unidade, qualquer Leviatã com cetro, coroa e espada. Mesmo enquanto ela inocentemente caça perdizes em Windsor, exercendo sua rainha-da-Inglaterra-ice, a fisionomia real serve plenamente de vetor para todos os outros elementos: o desespero, o orgulho ferido, o desejo de unidade, a necessidade de traçar fronteiras entre o de dentro e o de fora, a disposição em abrir mão de um pouco mais de individualidade – e de liberdade – em troca de um pouco mais de segurança. Enfim, a disponibilidade para fazer parte de uma grande família.

Exagerei no paralelo? Certamente, mas garanto que o possível, o potencial, éão bem mais real do que seu opaco caso particular: o efetivo. Até porque a efetividade, sendo a concretização de um potencial, às vezes, dependendo das circunstâncias, pode atualizar os mais extremos dos potenciais. Basta, para isso, que as próprias circunstâncias sejam extremadas. Eventualmente acontece.

Atualização: leia este artigo no site do Guardian.

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