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Imagens que não fizeram história (5): a caixa térmica e a máscara

[Prelúdio: escrevi o que segue abaixo entre domingo (31/5) e segunda-feira (1/6). De lá para cá, boa parte do assunto que motivou o texto perdeu relevância, soterrado por eventos mais impactantes e relevantes, como a mobilização anti-racista que ecoa a partir de Minneapolis. Eis aí mais uma maneira pela qual uma imagem pode não fazer história: quando é surpreendida por uma avalanche de estímulos – coisa que, de uns anos para cá, não tem faltado…]

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Manifestações em geral sempre rendem um bom número de imagens interessantes, por bem ou por mal – quer dizer, pelas bandeiras agitadas ou pela fumaça das bombas. Desde 2011, tivemos tantos protestos que pareceria impossível surgir algo digno de nota. Tolice: o campo de possibilidades para que emerja algo capaz de ressoar conosco está sempre em expansão. Considerando a infinita redundância de imagens que nos inundam, seria de se esperar que o universo daquelas que são significantes e informativas estivesse em contração; mas é justamente da atmosfera sufocada em redundância que pode saltar o relevante. Parece que isso ocorreu domingo em São Paulo.

O embate entre neofascistas e antifascistas de 31/5 produziu tudo que costuma se produzir em termos de iconografia de protesto. Bandeiras, punhos erguidos, gente segurando microfone, policial apontando arma, escudos, bandanas, fumaça. Tivemos até algumas novidades bem desagradáveis, como a exibição de tacos de beisebol (velho símbolo anglo-saxão de agressividade) e bandeiras ucranianas de inspiração neonazi. Do ponto-de-vista iconográfico, porém, nada seria novo, a princípio; editores de jornais e revistas poderiam escolher qualquer das imagens corriqueiras de seus fotógrafos ou das agências para ilustrar suas capas.

Mas no próprio domingo, quando os envolvidos mal tinham voltado para casa, em plena indignação pela repressão policial (e o tratamento amistoso à fascista com o taco de beisebol), as redes sociais já tinham elegido uma fotografia como favorita: esta com o entregador de aplicativo (bicicleta? moto?), com a caixa térmica nas costas, máscara de hospital no rosto, prestes a lançar uma pedra, provavelmente contra a polícia.

O gesto, o movimento, a postura do corpo, nada disso tem qualquer coisa de novo e é provavelmente por esse exato motivo que o fotógrafo (Nelson Almeida, da AFP) abriu o obturador nesse momento preciso – e depois escolheu esse clique em particular para editar no computador. De relance, a memória de quem estudou semiótica e a história do fotojornalismo captou a possibilidade de produzir uma imagem relevante não pela novidade, mas pela citação, isto é, pela inserção numa trajetória canônica. Mas é claro que o interesse não se encerra aí: a partir dessa inserção, aí sim, e por causa dela, poderão emergir as diferenças, que tornam essa imagem significativa a ponto de ter conquistado a atenção, mesmo que por poucas horas, das redes sociais – tão inundadas, tão sufocadas por imagens.

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Talvez tenha sido com o maio de 1968 francês que a figura de manifestantes atirando pedras se tornou canônica. Por sinal, a sublevação estudantil da rive gauche forneceu uma série de padrões tanto para protestos urbanos quanto para sua representação nas décadas seguintes. Mas frequentemente capas de livros ou cartazes de filmes sobre o episódio trazem a escolha de alguma das fotografias de jovens se fazendo de catapulta humana, apertados em seus paletós “dandy”.

Desde então, a personagem do jovem que arranca o calçamento e o atira contra policiais ou soldados se tornou uma espécie de ícone do conflito social deflagrado. São abundantes as imagens de rapazes palestinos prestes a lançar uma pedra contra armamentos vastamente superiores – inclusive com o uso de fundas, o que traça um vínculo estranho, que começa no estético e o ultrapassa, entre nosso tempo e o Antigo Testamento.

Gênova, Primavera Árabe, Occupy, praça Taksim, junho, sempre fornecem algumas imagens nessa linha, às vezes muitas. Talvez a consagração do gesto do lançador como síntese da manifestação de rua esteja no mural de Banksy em Jerusalém (“Love is in the Air, or: Rage, the Flower Thrower”), em que o manifestante, de rosto coberto por uma bandana e boné virado para trás, se prepara para lançar flores: o corpo em preto-e-branco, as flores coloridas. Graças à agilidade do estêncil, a imagem se espalhou por paredes e cartões postais de todo o planeta, empapada com o mesmo tipo de ironia que acomete aquele retrato do Che feito por Alberto Korda, hoje quase uma logomarca.

É, de toda forma, um gesto como poucos para atiçar o interesse de fotógrafos e todo tipo de artista fascinado pelo corpo. Rodin, se tivesse vivido um século mais tarde, sem dúvida ficaria encantado com os braços esticados, o peito aberto, as pernas dispostas de modo a lembrar vagamente o “Gong Bu” (posição do arqueiro), e teria esculpido de alguma maneira o manifestante com o petardo engatilhado. Não foi à toa que a personagem se consolidou no imaginário da iconografia política. Se quisermos voltar ainda mais longe, dá para dizer que a figura remete também à antiguidade clássica: o atirador de lança da escultura grega, como no célebre “bronze de Artemísio” do período austero. E foi também uma das personagens escolhidas pelo pioneiro Eadweard Muybridge para suas fotografias quase cinematográficas de decomposição do gesto.

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O entregador de aplicativo não é um estudante da Sorbonne ou de Nanterre, nem um soldado das falanges gregas, nem um esportista. Ou, para dizer a mesma coisa de maneira um pouco mais direta: o entregador de aplicativo é uma figura paradigmática da nossa década. Precarizado, sujeito ao controle algorítmico da economia de plataformas (ou, mais amplamente, a “gig economy”), tratado como empreendedor individual pelo patrão e pela Justiça, serpenteia pela cidade da “big data” atomizada, em busca de boas avaliações e uma remuneração fundada sobre baixas porcentagens do preço das entregas.

A bem dizer, o entregador de aplicativo é praticamente o oposto do estudante da Sorbonne. Mas se uma foto sua, congelado em pleno gesto de preparar o lançamento da pedra, se conecta com essas figuras icônicas e canônicas, sejam históricas ou ficcionais, justamente essa dissonância é que chama nossa atenção. Esta é, digamos assim, a diferença que resulta da repetição, como o isótopo que escapa do átomo. É difícil determinar se a estereotipia do lançador irrompe na nossa realidade ou se é a nossa realidade que irrompe na linhagem estereotípica. O resultado no espectador, em todo caso, é algo da ordem do abalo afetivo, na linha do envolvimento subjetivo que Barthes denominou o “punctum” da fotografia, e que se destaca do contexto objetivo (“scriptum”) em que está representado um episódio ocorrido durante um domingo de protestos.

O abalo afetivo serve para trazer à superfície da consciência e do discurso essa personagem social contemporânea do entregador de aplicativo. Ela possui alguns traços que a tornam particularmente significativa neste momento. Ao longo dos últimos dois anos, tempo em que acompanhamos a chegada da extrema direita ao governo, essa categoria foi frequentemente analisada como sendo a porção da classe trabalhadora que não se abalou com a destruição de seus próprios direitos tradicionais, como classe. Motoristas, entregadores e outros braços da economia de plataforma teriam, supostamente, adotado a ideia de que são de fato pequenos empresários, que mandam em si mesmos e não dependem de ninguém.

É claro que o problema é bem mais profundo. Se a própria perspectiva de emprego com alguma segurança e direitos se esfacela, como tem sido a tendência e não só no Brasil, é natural que quem está tendo que se virar no precariado demonstre pouco interesse em lutar pela manutenção de direitos aos quais nem sequer teve acesso. A desconexão entre trabalhadores tradicionais e membros do precariado tem razão de ser e, além disso, caberia às instituições da classe trabalhadora organizada expandir suas pautas para abraçá-los, em vez de lhes apontar o dedo. Se os precarizados frequentemente acabaram adotando discursos incompatíveis com seu próprio interesse, se muitos chegaram a abraçar o bolsonarismo em algum momento, se não poucos ainda o abraçam apesar de tudo, é um efeito da posição que ocupam nas relações de trabalho e sociais em geral; algo que, pensando bem, não deveria surpreender.

Ao mesmo tempo, esses trabalhadores continuam sendo o que sempre foram, no essencial, aqueles trabalhadores que década após década tiveram que circular nas grandes cidades em situação mais ou menos precária, mas sem ter, efetivamente, acesso à cidade. Gente que vai de portaria em portaria, e não mais longe; ou que entrega documentos importantes na avenida Paulista, sem espiar o que dizem, e passa na frente de seus cinemas, livrarias e centro culturais, sem poder tomar um minuto que seja para visitá-los. O precário circula pela cidade como o sangue por um corpo, mas fora dos horários de trabalho é confinado à sua quebrada. No tempo da economia da informação e da comunicação, uma economia detalhada e instantaneamente logística, este personagem é mais decisivo para o metabolismo social e urbano do que os próprios produtores.

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Esta é a figura que conseguimos ver, tacitamente que seja, quando olhamos para um entregador de aplicativo, de máscara, atirando uma pedra. Do fato de estar carregando a caixa térmica nas costas, podemos deduzir que não foi à avenida, originalmente, para protestar, mas para trabalhar. É claro que uma imagem como esta esconde pelo menos tanto quanto mostra, o que significa que mil outras possibilidades existem: que tenha pensado em trabalhar depois de sair da manifestação, que tenha esticado seu tempo de trabalho para protestar, aproveitando que já estava ali, ou que tenha carregado a mochila consigo só para reduzir o risco de ser abordado de modo truculento pela polícia. Ainda assim, a associação entre seu trabalho – precário, algorítmico, urbano etc. – e a manifestação salta aos olhos: o trabalho foi o passaporte para a cidade, a manifestação e a fotografia.

Vale lembrar também que as manifestações políticas da última década foram reiteradamente criticadas, com razoável dose de razão (mas não toda), por atraírem um público sobretudo da classe média e das regiões centrais da cidade. Como se dizia, as classes mais baixas, os moradores das periferias etc., no geral, permaneciam indiferentes; não tinham acesso ao espaço, nem compravam a narrativa.

Nesse contexto, outra explicação para o abalo afetivo, para o “punctum” do entregador de aplicativo, é que ele seria, graças à representação inscrita na história iconográfica, a exceção ou, melhor ainda, o indício de que as circunstâncias mudaram. Uma correção de rumos, talvez. Em outras palavras: agora, sim, é o povo, o trabalhador, o precário, que está nas ruas contra o governo opressor, e com disposição para enfrentar a polícia e as maltas fascistas… Exagero? Talvez, mas estamos falando de uma sensação, não de um raciocínio.

Seja como for, no dia em que esta fotografia foi feita, tratava-se de uma manifestação em nome da democracia, contra apoiadores do presidente de extrema-direita, que vinham ocupando sozinhos aquele espaço, à sua maneira: com bandeiras do Brasil misturadas a emblemas neonazistas ucranianos, padrões da bandeira americana e da israelense, carros de som, tacos de beisebol (não me conformo com esse taco), gritos por cloroquina. Do lado anti-fascista, a liderança estava nas mãos de torcidas organizadas, sobretudo a do Corinthians – mas também se verificou uma dessas ocasionais confraternização de seguidores de clubes que sempre nos emocionam um tiquinho.

Nesse cenário tão insólito, a imagem que tocou, afinal, o coração dos espectadores foi a do entregador de aplicativo, caixa térmica nas costas, atirando uma pedra. Uma imagem, portanto, com implicações que transbordam a confrontação política ela mesma. E essa é a importância da figura do entregador, percebida subliminarmente por quem se encantou com a foto: está em jogo mais do que a relação entre estado democrático e perigo fascista, entre a população livre e as forças repressivas – não que isso não seja crucial, claro; mas importa muito perceber que estamos tratando das tensões das relações de classe do país como um todo; o destino daqueles que trabalham, ocupam as cidades, tiram delas seu sustento, e carecem do reconhecimento jurídico, institucional, de sua função no tecido social. A imagem é lembrete “do” político, além “da” política, e conclama ao reconhecimento de que é preciso ampliar não só a presença de grupos sociais nas manifestações, mas as próprias pautas. Enfim: é preciso tratar do destino que estamos traçando, enquanto população.

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Há outros pontos, porém. Uma imagem se deixa apreender e analisar por elementos, combinados no seu próprio quadro, ao contrário da cadência linear de um texto. Temos aí a caixa térmica e a pedra (na verdade, dá para ver que ele segura outras pedras, já pronto para iniciar – ou continuar – um bombardeio), que já foram tratadas. Poderíamos também engrenar uma especulação um pouco anódina, mas nem por isso menos interessante, sobre a ausência de um capacete, o que parece sugerir que é um entregador ciclista, não um “motoboy”.

Mas um outro elemento é mais fecundo e instigante, graças à sua ambivalência: a máscara.

Este é um tempo em que a máscara se tornou obrigatória; e pensar que a proibição de cobrir o rosto andava em voga já faz alguns anos (vide a lei anti-véu na França). Mas há pelo menos duas vertentes interessantes para a simbologia política desta máscara específica, nesta fotografia em particular. A primeira é que um objeto de proteção, de cuidado pessoal, de cunho médico, profilático, acabou sendo revestido de um caráter político surpreendente, a partir do momento em que passou a configurar uma expressão de adesão ao isolamento social, à luta contra o coronavírus – por oposição à parcela tresloucada da população, seduzida pelo fascismo, que pretende negar seja a pandemia, seja sua gravidade.

A segunda é que cobrir o rosto se tornou prática recorrente entre manifestantes há algum tempo, tanto para se proteger dos efeitos do gás lacrimogêneo lançado pela polícia, quanto para evitar a identificação pelo Estado. Hoje, por sinal, a vigilância se dá também por algoritmos, constantemente aperfeiçoados, de reconhecimento facial. A máscara, digamos assim, tomou o lugar da bandana. De modo que, nesse objeto simples, feito de pano, dois vetores de proteção se cruzam, dois vetores de sentido político se cruzam, e esses dois cruzamentos também se cruzam entre si.

Mas há mais cruzamentos: como entregador que circula pela cidade cuja população se recolhe – ou deveria se recolher –, o trabalhador se expõe ao vírus. A máscara que o protege da contaminação, tanto quanto possível, também o protegerá, tanto quanto possível, contra o gás que eventualmente será lançado (e foi). A máscara que em outros tempos, em outras situações, poderia levar policiais a tomá-lo por um ladrão, possivelmente com consequências trágicas, hoje são a marca do “cidadão consciente” (não confundir com “pessoa de bem”).

Será que a máscara o protege de ser reconhecido, caso a imagem seja vista por algum representante da empresa-aplicativo em que se inscreveu para ser entregador, e que lhe cedeu (vendeu? alugou?) a caixa térmica? Será que, ao fotografá-lo, o profissional da France Presse o colocou sob risco de dispensa, comprometendo talvez o sustento de seus familiares, o pagamento de uma faculdade ou de um tratamento médico? É tão mais fácil escrever sobre uma imagem, especular sobre seus sentidos, quando não conhecemos a personagem, quando não sabemos nada sobre ela! No mínimo, podemos ver na máscara um punhado de significados possíveis, mas é a própria possibilidade, quando a evocamos, que nos esclarece algo sobre o real.

Também poderíamos nos concentrar no próprio fato de ele estar portando a caixa térmica. Vamos imaginar por um momento que se tratasse de uma mochila comum, contendo roupas e chuteiras usadas, ou livros e cadernos, ou um tripé dobrado e várias lentes. Ele continuaria com ela nas costas, atrapalhando seu movimento, fazendo peso? Será que ele tem medo de deixar a caixa térmica no chão e ser roubado ou ter que sair correndo, arriscando-se a ficar sem ela? Será que, perdendo a caixa térmica, ele é obrigado a ressarcir a empresa?

Cada elemento da imagem informa algo, não porque assevere ou demonstre qualquer coisa, mas porque conduz a lançar perguntas como essa. Lançar como lança o lançador? Provavelmente não, já que do outro lado não está nenhum batalhão de choque. Mas, em todo caso, a motivação de transformar os elementos da fotografia em questões que a ultrapassam vem das inquietações que já temos, com o que já conhecemos ou intuímos de nosso mundo e das condições de vida que nele vigoram. Esta é provavelmente a diferença mais relevante entre a redundância das imagens repetidas, que nos afogam, e a ressonância da imagem viva, vibrante, que nos afeta.

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Comecei com essa série sobre imagens falando em “fazer história”, e agora me vejo preso a uma espécie de obrigação auto-imposta – dessas que, supostamente, poderíamos deixar de lado sempre que quiséssemos – de ficar falando em história, quando tropeço em uma imagem que me chama a atenção e quero escrever algo sobre ela neste espaço. E no entanto, como leitor de Flusser, não posso evitar de concordar com a sentença de que a invenção da fotografia inaugurou uma era progressivamente pós-histórica. O tempo das imagens técnicas, diz ele, não é linear como o tempo histórico do texto escrito; tampouco é circular como o tempo mítico da imagem tradicional, à qual voltamos para recordar aquilo que é fixo.

A imagem técnica, diz o filósofo tcheco, emerge da irrupção a-histórica das equações matemáticas no universo da produção de imagens. Flusser se referia à química e à ótica necessárias para produzir uma chapa, mas essa afirmação é infinitamente mais válida para a imagem digital, que é integralmente algorítmica, da fotometria à compressão – sem falar na pós-produção. Ora, a equação está à parte da história, é uma igualdade matemática que, notação à parte, se supõe eterna e universal.

Isto não significa, porém, que a história desaparece com a imagem técnica. Mas significa que a imagem técnica é capaz de manipular, suspender, desviar a história. Pode ser usada tanto para desaparecer com elementos centrais de seu movimento (que Stalin o diga) como para realçar figuras marginais de seu processo, como nas imagens que celebram vitórias post factum: bandeira americana em Iwo Jima, soviética no Reichstag.

Tudo isso para dizer que cabe a quem opera o aparelho definir a relação com a história, assim como lhe cabe determinar entre a redundância sufocante, entrópica, e o sentido informativo, ressonante. Quem aponta uma lente ou monta uma estrutura gráfica define o retorno, o falseamento, o esquecimento, a perpetuação, naquela chapa a-histórica, de um sentido de história.

Esse poder, essa responsabilidade, transparece na imagem do entregador de aplicativo porque com ela o fotógrafo, em frações de segundo, injeta no ato de um trabalhador precário uma carga de significado que vem do cânone, ou seja, da história. O corpo esticado do manifestante sintetiza as tendências do mercado de trabalho, a trajetória dos movimentos trabalhistas, as aspirações dos protestos do nosso tempo, o contraste com a memória de 1968, o tensionamento da democracia brasileira. Mas isto tudo só ocorre porque sua imagem, por um breve instante, rebateu na lente de um aparelho fotográfico, nas mãos de alguém que tinha a bagagem necessária para saber quando disparar o obturador.

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Outras imagens:

Alguém que não consegui identificar tirou uma foto do lado oposto – quem sabe, da mesma pedra? Ao fundo, vemos uma pessoa tirando foto. Seria o profissional da France Presse?

O bronze de Artemísio (Zeus ou Poseidon, a princípio)

A disposição dos pés na posição do arqueiro (Gong Bu)

Banksy em Jerusalém

O savoir-faire de um sorbonnard

Jovem palestino e sua funda

Muybridge e sua série da “locomoção animal”: 1887

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Imagens que não fizeram história (4): a Brasília estourada

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Faz bastante tempo desde a última vez que me deu ganas de vir aqui para falar de imagens que “não fizeram história“. Quase dois anos. E por um desses acasos que acabam virando significação, quando volto ao tema é para tratar de uma fotografia de Brasília. No terceiro artigo desta série, comentei uma fotografia de Brasília, justamente. Eram índios debaixo de chuva, à frente do monumento conhecido como “aos candangos” (chama-se, na verdade, Os Guerreiros). Agora, é questão de uma fotografia de candangos visitando o Palácio do Planalto; e com o Congresso ao fundo.

A imagem tem essa potência notável de produzir seus próprio relatos, principalmente quando ultrapassa seu enquadramento particular e abraça outras imagens. Elas demarcam todo um território imagético, atravessando continentes ou gerações. Para além do aspecto indicial da imagem fotográfica, o “isto aconteceu” de Barthes, temos de reconhecer um outro caráter, mais assertivo, que diz “isto está acontecendo” ou “isto ainda acontece”. Um efeito de ilusão, direis, e pode ser mesmo. Mas é muito mais uma reverberação afetiva, sem a qual a fotografia provavelmente só valeria pelo seu caráter documental e não circularia pelas coletividades; ou pelas redes, como tem sido com esta.

Por isso, quando as pessoas se deparam com essa família (seus olhares de admiração, o modo apurado como se vestiram, a patente humildade debaixo dos monumentos de concreto), sentem algo suficientemente forte para deter o olhar. É algo sobre o passado, certamente, mas é na mesma medida, ou até mais, algo sobre o presente: isto ainda acontece, isto ainda está acontecendo, esta foto está sendo tirada agora. Está sendo tirada a cada vez que olho para ela. É graças a esse efeito, essa dobra nas décadas que Einstein não menciona, que esta imagem de René Burri pode se conectar com a dos índios, que circulou em 2015, ou com tantas outras tiradas em Brasília. Ou até em outras cidades, dependendo do território espaço-temporal que queremos delimitar.

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E no entanto não foi nada disso que chamou minha atenção de imediato, ao ver pela primeira vez essa imagem, que apareceu um dia desses nas redes, nem sei bem por quê. A primeira coisa que me saltou aos olhos foi o fundo ligeiramente estourado, bem no centro do quadro, apagando os detalhes de alguns andares do prédio do Congresso e o pé da coluna do palácio. Acontece que René Burri, fotógrafo suíço morto em 2014 com um portfólio contendo retratos de Niemeyer, Fidel, Le Corbusier, De Gaulle e muitos outros, tirou centenas de fotos de Brasília. Não só durante a construção, mas também em 1977, em plena ditadura. Um bom número com caráter essencialmente documental; um bom número explorando a geometria modernista; outras tantas, como esta, lembrando a presença daqueles que de fato construíram a Novacap e que nem sempre são mencionados.

Fiquei encantado com esse ligeiro estouro, mas preciso dar uma breve informação: fui ao site da agência Magnum, que exibe em versão pequena todas as fotografias do livro de Burri sobre Brasília. A imagem, tal como a apresentam ali, não está tão estourada, mas também não tem tanto contraste e os rostos estão na penumbra. Não sei se a versão da agência foi “corrigida” ou se alguém resolveu aumentar o brilho ao postar a foto na internet. Cá entre nós, prefiro a versão com estouro, pressupondo que, de todos os seus cliques, o experiente fotógrafo suíço tenha escolhido este para deixar uma nesga de luz excessiva, chapada como é a luz, no meio do dia, em pleno planalto central deste país tropical.

Faço essa pressuposição, confesso, porque me convém, tanto pela narrativa que quero sobrepor à fotografia quanto pelos demais territórios que ela pode traçar. O que acontece é que lidar com a luz inclemente e brilhante demais, com sombras tão escuras que o contraste pode não ser administrável, sempre foi um problema para quem queria retratar esta parte do mundo. Ainda mais se tivesse no fundo da cabeça os padrões de luminosidade da pintura europeia. A maior parte das representações de paisagens brasileiras que conhecemos de séculos anteriores, de Franz Post a Debret, foram executadas pacientemente no começo da manhã ou no fim da tarde, dizem os livros de história da arte, para aproveitar uma luz mais suave e saturada. A grande exceção está na obra de João Batista da Costa, que fazia paisagens em pleno meio-dia justamente para marcar as diferenças das grandes áreas de cor. (Mais detalhes neste link.)

Refletindo sobre tudo isso, acabei pensando em Albert Camus. Nos textos do célebre existencialista pied-noir, as referências ao Mediterrâneo, Argélia em particular, sempre falam da luz ofuscante. Meursault menciona o sol opressivo e o reflexo cegante na praia diversas vezes, durante a narração que leva ao assassinato do árabe, em O Estrangeiro. No texto teatral O Mal-Entendido, a motivação declarada das assassinas é deixar o frio e passar a viver sob o sol. A imaginação européia sobre a luminosidade tropical é extensa e fértil. Posso mesmo imaginar a insolação que os primeiros exploradores tiveram ao desembarcar das caravelas.

Por isso me chamou a atenção esse pedacinho de luz estourada na fotografia de René Burri, que, afinal de contas, era mesmo um fotógrafo europeu, como Rugendas, Eckhout e Taunay foram pintores europeus. Na minha cabeça, Burri tinha se decidido a gravar a luz tal como é, em vez de procurar compensações, esconder o reflexo do sol atrás do corpo de alguém, algo assim. Como se fosse um comentário de fundo, de natureza técnica, para seu retrato da família, de natureza temática; como se quisesse sublinhar o fato de não estar apenas documentando, mas revelando algo sobre o que viera documentar.

É sempre inspirador testemunhar um encontro entre o tema e a técnica como este. Burri, afinal, deu de cara com o quê quando fotografou Brasília? Seu álbum tem inúmeros cliques de Niemeyer trabalhando, tem Juscelino em reunião com seu arquiteto, tem esqueletos de edifícios que sobem, tem vistas dos prédios prontos contra um território ainda dominado pelo barro, tem vistas dos acampamentos de peões. Tem até imagens de trabalhadores estrangeiros na obra, algo que eu nem sabia que tinha acontecido (são espanhóis). O que ele ouviu de cada grupo desses? Como avaliou o que diziam os políticos, os engenheiros, os jornalistas, os militares, os peões, suas famílias?

Talvez esta imagem revele um pouco disso: que postura tinha o fotógrafo diante daquilo que viera documentar. De quando veio acompanhar uma gigantesca obra de engenharia, com motivações políticas, neste país onde a luminosidade é tanta que se pode ter luz estourada e sombras profundas na mesma composição.

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Em quase todas as fotografias, e também nos vídeos, da inauguração de Brasília, vemos gente vestida em sua melhor roupa. A mais famosa dessas fotografias, que tem inclusive uma versão colorida, é aquela em que Juscelino, com lenço na lapela, agita seu chapéu, sorrindo para além das próprias gengivas. Há também registros da esquadrilha da fumaça, de ginasiais fazendo demonstrações (talvez sejam colegiais, pouco importa), de tropas que desfilam, dos deputados tomando seu assento pela primeira vez (ou, pelo menos, oficialmente pela primeira vez, para as câmeras). Ninguém nessas imagens está vestido de qualquer jeito, ou com a roupa com que vai trabalhar no dia-a-dia.

Esta imagem de Burri não é exceção: também a família humilde (e a legenda, no site da Magnum, acrescenta: “worker from Nordeste”) está com sua melhor vestimenta, sua “roupa de domingo”. Vale a pena se deter nesse detalhe. A esposa do candango carrega, inclusive, um guarda-sol, que, além da óbvia utilidade prática (ainda mais para quem tem um bebê no colo), é um tradicional signo de elegância. O marido veste paletó claro, algo que, pelo visto, perdeu o direito de existir nas nossas cidades, apesar de todo o sol. Talvez a única coisa que destoe seja o colarinho do trabalhador, que não usa gravata. Curiosa ausência.

Em nome do contraste, pense nas imagens que temos dos operários que ergueram aquela cidade (enganosamente) austera no meio do nada. Algumas são tomadas à contra-luz, agigantando suas figuras de heróis anônimos de uma pátria pujante (etcétera e tal). Outras são tomadas distantes, mostrando-os como pontinhos frenéticos de um formigueiro, para expressar a grandiosidade de uma obra em que a figura humana chega a desaparecer. Há ainda as imagens mais jornalísticas, poderíamos até dizer de denúncia, mostrando caminhões apinhados que chegam ao Planalto Central, despejando gente no Areal ou em Ceilândia, ou ainda as instalações em que viviam os candangos. O álbum do próprio Burri fornece exemplares de ambos os tipos.

O que temos nesta imagem é outra coisa. O fotógrafo suíço acompanha a família, e não é uma tomada de surpresa; há outra foto em que eles aparecem por trás, caminhando. Eles exploram as construções monumentais e ainda nuas, não só no sentido físico de não estarem sendo usadas, ocupadas por escritórios e repartições, mas também no sentido simbólico: não carregam o peso das atividades que se desenrolarão ali dentro, e que o visitante ou espectador atual não pode se prevenir de ficar imaginando quando contempla cada uma dessas construções. Sabemos que o grupo está de pé no Palácio do Alvorada por uma única das colunas, que se ergue atrás deles com dimensões acachapantes. Aos olhos de quem se acostumou a ver essas colunas nos últimos 50 anos, associadas a todo tipo de evento triste, traumático e cruel, essas dimensões não podem ser tomadas como mero acaso.

Burri toma a foto ligeiramente de baixo, o que normalmente aumentaria as pessoas, daria a elas dimensões mais fortes e agressivas. Não é o caso de quem está debaixo dessas colunas, também alongadas pelo ângulo de tomada. O que temos são figuras um pouco deslocadas, todas olhando para cima, um pouco intimidadas, com exceção do bebê que dorme, indiferente; logo ele, que vai conviver com a imagem desses edifícios por uma parcela maior de sua vida…

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Mesmo assim, é uma família que se vestiu com o melhor de suas roupas e saiu para passear. Estão ao largo das grandes cerimônias, mas nem por isso menos aprumados. Depois de um longo período de dificuldades, de trabalho duro, o descanso, o lazer. E, claro, a admiração, a reverência, diante das edificações monumentais  – erguidas ao longo de um eixo que carrega o mesmo nome.

A reverência diz muito. Pode-se ver que o operário e sua família têm respeito pelo palácio, em grande medida pelas próprias dimensões da obra arquitetônica, mas também pelo contexto em que foi feita, um contexto carregado de promessas e expectativas. É bem possível que também tenham orgulho da energia física e do “dispêndio de músculo e nervo” (uma definição marxiana para o trabalho) necessário para produzir aquele monumento. Certamente há um componente de esperança, que era o que prometia todo o projeto de desenvolvimento de Juscelino.

Seja lá de onde vem esse “worker from Nordeste”, ele não teria saído de casa se não imaginasse um incremento nas condições de vida em outra terra. Mesmo que, na verdade, ele tenha sido expulso, seja por um grileiro, seja pela seca, seja por ambos. O que quer que tenha acontecido, ele provavelmente nutria a esperança de que a Novacap representasse um país melhor. E isso quer dizer, de seu ponto de vista: um país onde se viveria melhor. Conhecemos uma boa parte da história, no entanto: atraídos pela possibilidade de fugir da miséria, retirantes “from Nordeste” como este trabalhador largaram o que restava de suas terras para tentar a inclusão na civilização, na sociedade de massas, ou de consumo, chame como quiser. Foram tratados como sempre são tratados os pobres, os mestiços, os trabalhadores no Brasil.

Por sinal, quando compartilhei esta fotografia nas redes sociais, uma amiga de cliques contou uma história familiar que não vou reproduzir aqui, porque cabe a ela contá-la, e não a mim. Mas é um relato que contém tudo que conhecemos da história do Brasil ao rés-do-chão: grilagem, jagunços, escravidão por dívida, golpes, violência e morte. Não dá para descolar a história da construção de Brasília da história das secas, das oligarquias, do arrasamento do território e de seus habitantes. Tanto quanto ressoa com a fotografia dos índios de 2015, a imagem de René Burri também ressoa com a pintura de Cândido Portinari, cuja Os Retirantes data de 1944.

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Repetindo o que eu disse no início, a fixidez da imagem lhe confere a característica curiosa de adquirir significações em retrospecto. Como captura de um intervalo no mais das vezes ínfimo, de uma fração de segundo, a fotografia pressupõe necessariamente o tempo que a precede e sucede. E se, nesse instante raptado graças à luz que refletiu, o filme (ou o sensor) foi impressionado com formas prenhes de sentido, pode pressupor ainda mais, muito mais. O operador que tem um dedo no disparador e outros dois na abertura do diafragma tem consciência de algumas dessas possibilidades, mas certamente não de todas. O autor é poderoso, mas a obra tem seus poderes também, que ele simplesmente não pode alcançar. E deve se alegrar por isso.

Mesmo que nada do que eu imaginei acima esteja correto e o Burri de 1960 quisesse apenas fotografar uma inauguração, o Burri de 1977, que retornou a Brasília num momento em que a ditadura já rateava, provavelmente tinha outra idéia. E é bem possível que tivesse outra idéia também sobre suas fotos de 1960. No fim da vida (ele morreu em 2014), talvez tivesse ainda mais uma outra idéia sobre o que portavam de significativo essas imagens de Brasília. É como se os personagens se movessem debaixo das colunas, na medida em que elas vão sendo impregnadas do significado histórico do que acontece entre elas e em volta delas. É como se, ainda hoje, quem passa por aí carregado de pastas (se é que por aí passa alguém) esbarrasse nos candangos extasiados.

Assim, para nós, hoje, esta imagem provavelmente evoca ilusões e desilusões, enganos e engodos, decepções, traições. Penso no bebê que dorme no colo da mãe e cujos pais talvez o imaginassem livre da miséria e da opressão, educado, trabalhando em bons empregos (públicos, talvez). Onde terá crescido essa criança? No Núcleo Bandeirante? Na Candangolândia? Teve acesso às benesses da civilização? Recebeu uma educação emancipadora? Teria idade para escapar dos eventos relatados em Branco Sai, Preto Fica, de Adirlei Queiroz? O que você acha? O que te parece mais provável?

O respeito que o operário tem pela construção, ou por quem a encomendou, dificilmente será recíproco. Depois de Getúlio, depois de Juscelino, depois de Lula, uma das coisas que podemos dizer sobre o Brasil, e que transparece nesta imagem e em tudo que ela pode nos dizer em retrospecto, é que todas as vezes que se vendeu a idéia de um grande impulso adiante para o país, caímos, depois de alguns anos, em retrocessos. Ou melhor, caímos na real. E tudo para descobrir que o grande impulso, o grande facho de esperanças e expectativas estava incompleto, porque continha muitas propostas e poucas rupturas; muita acomodação, muito acordo, e pouca revolução.

As imagens desta família, esta em particular, mostram um instante silencioso (porque, afinal, algumas fotografias, como muitas pinturas, têm som). O evento ocorre em um espaço praticamente vazio. O contraste que se impõe não diz respeito apenas às multidões estridentes que freqüentarão a Novacap daí por diante, preenchendo os ministérios com concursados, terceirizados e comissionados, as casas parlamentares com eleitos, assessores e jornalistas, os palácios com lobistas, solícitos líderes políticos e seus funcionários a servir café.

Mais ainda, o ambiente em que a família visita essa Brasília ainda quase mágica contrasta com o alarido da inauguração oficial, a festa de diplomatas e burocratas, o desfile de Nonô e os discursos de senadores e deputados. Terá sido no dia (e na noite) anterior? Pela ordem das fotografias, é o que parece. E vou admiti-lo, mais uma vez, porque convém à minha narrativa.

Lendo os relatos da época, a inauguração de Brasília foi a marcha triunfal de um país que vencia, batia na porta do clube dos civilizados, demonstrava ser capaz de qualquer coisa, mesmo os planos mais ousados e absurdos. Um país com os olhos voltados para o futuro. Quero dizer: o país do futuro, nada mais e nada menos. Mas quem assistia, das bancadas do plenário ou das galerias, ou mesmo pela televisão, um bem de consumo ainda relativamente raro em 1960, eram aqueles que garantiam os pés do país (eu deveria dizer: “da nação”) muito bem fincados na derrota, no passado, no fracasso, no clube dos expropriados.

René Burri mostra com esta família o dia seguinte desse alarido tão confortável, ou melhor, o silêncio em que se esconde aquela esperança quando recomeça o dia-a-dia. E mostra esse espaço dúbio, ambivalente, da maneira como divaguei até aqui. Com a luz ligeiramente estourada de um ambiente subtropical que não se deixa simplesmente apagar assim tão fácil (nem com os aparelhos de ar-condicionado dos ministérios). Com uma perspectiva de baixo para cima, paradoxalmente reduzindo os personagens ao amplificá-los. E com a constatação de uma reverência humilde perante as colunas em que Oscar Niemeyer revelou um naco de seu gênio (e de sua utopia).

* * *

Como sabemos, quatro anos depois de todo o alarido, nessa mesma cidade, Auro de Moura Andrade declarava vaga a presidência da República, que pouco depois seria tomada pelos militares e sua máquina de tortura, censura e retrocesso. Não consta que a família do “worker from Nordeste” tenha visitado o Alvorada nesse período. Pelo menos não tem fotos disso. Consta, por outro lado, que as tentativas fracassadas de estabilizar a economia depois das despesas com a construção do referido palácio e demais novidades da Novacap foram um fator determinante na queda de Jango e da democracia. É difícil imaginar uma fotografia que represente esse vínculo, exceto pelas imagens de arquivo mostrando Celso Furtado com olhar de cansaço, ou melhor, de derrota. A não ser que tentemos fazer da luz estourada no fundo deste clichê de René Burri uma espécie de alegoria dos estouros em geral, inclusive os estouros de orçamento. E por que não?

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Os vencedores de sempre e o resto de nós

 

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Já que a realidade é tão confusa – e a facilidade com que ela se presta a interpretações simplistas é sintoma dessa confusão –, vale a pena tentar tratá-la como se fosse um enredo ficcional. Digamos: como uma tragédia grega, um melodrama burguês ou um poema épico. Ainda não está claro em qual desses gêneros estamos vivendo, e isso vai depender de como agirão os personagens: são heróis trágicos? São bufões? São semideuses?

Houve quem visse qualquer coisa de divino, por exemplo, na postura de Dilma perante os senadores; os deputados, com seus votos disparatados, certamente transmitem uma impressão de ridículo; e aqueles que, de um modo ou de outro, se colocaram contra a conspiração, ainda que se opusessem aos governos petistas, assumiram uma postura – vamos dizer assim – de heróis trágicos.

Já os vilões, esses os temos de sobra.

O enredo ainda está sendo escrito, mas o que pode ser feito desde já é um esboço dos tipos gerais dos personagens, o que está longe de ser pouca coisa, dada a velocidade com que os eventos nos atropelam. Assim, grosso modo, eu diria que os personagens principais são os seguintes: os formalmente derrotados; os informalmente derrotados – e duas vezes; os vencedores que, quando pensarem melhor, vão se descobrir derrotados; os que, nunca precisando lutar, recebem de bandeja todos os espólios.

Fora esses, tem o coro, os extras, os figurantes, os bichos infláveis.

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Essa estranha distribuição de papéis pode pelo menos servir para explicar em parte por que tantos de nós – aqueles que algum dia ousaram ter esperança de alguma coisa – estão se sentindo sem referências, imobilizados, pessimistas. Se não dá para negar, noves fora, que atravessamos uma crise “ao mesmo tempo política, econômica, social e moral”, como tem sido dito por quem quer parecer neutro, o que falta mencionar é que tudo isso são componentes de uma conjuntura crítica com jeito de existencial. Não, é claro, no sentido individual, embora cada indivíduo sinta os reflexos dessa crise; está em jogo não simplesmente uma idéia de país, ou a distribuição dos poderes, mas também o vetor dos próximos ciclos políticos.

A crise é tão existencial que está em jogo até mesmo o passado: qual é, afinal, o tamanho do ciclo que se fecha? 14 anos? 28 anos? 86 anos? A resposta para isso depende de respondermos: o que é que está acabando, de fato? O ciclo do PT, a Nova República ou o ensaio civilizatório do último século?

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Como primeiro esboço – e tudo que segue abaixo são esboços em série –, a síntese mais precisa que consigo encontrar aparece na seguinte pergunta: “onde raios estamos?”, o que, claro, se desdobra em outras questões simples na formulação, mas enigmáticas nas implicações: “como raios viemos parar aqui?”, “como raios saímos desse atoleiro?”, ou então: “onde raios vamos parar?”.

São as perguntas de gente que navega sem bússola, flutuando a esmo. Não é por acaso ou por alguma falha moral que os debates em que temos nos metido são tão estéreis, além de fratricidas. É o debate dos desamparados. Também não é casual que movimentos e reivindicações sociais pareçam ter se tornado estéreis, tendo perdido as principais vias de entrada no sistema político, onde se dá a efetividade, do ponto de vista normativo. O poder, que vinha se fechando aos poucos, agora parece ter batido a porta de vez. Quanto esforço de reconstrução, quantos anos serão necessários, para que se abra novamente?

*

PARTE UM

Nosso drama

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Por enquanto, vejamos os personagens que mencionei acima, antes que sejam esquecidos. O formalmente derrotado é, claro, o petismo, ao menos o da cúpula, que buscou delinear um campo de embate e, nesse campo mesmo, foi fragorosamente batido, justo quando acreditava alcançar o sucesso absoluto. Em que pesem a dimensão da débâcle, o recurso (de parte a parte!) a táticas condenáveis, o transbordamento da ação política além de seu quadro jurídico, a derrota é formalmente clara porque se pode mostrar rigorosamente o que foi desejado, o que foi alcançado, o que foi perdido. No jogo das alianças e embates com as forças conservadoras da sociedade, o PT achou que levaria a melhor, primeiro nas alianças, depois nos embates. Pois bem, levou a pior em umas e outros. Assim, com o risco de soar cínico, sou obrigado a dizer: é do jogo.

Só que a derrota formal do PT é custosa e não só para seus líderes. Depois de chegar ao segundo turno em 1989, convergiu em torno do partido a imagem de uma esquerda capaz de vencer. Tendo vencido, convergiu ainda mais a imagem de um projeto bem-sucedido, grupo que soube compor com seus inimigos para obter transformações efetivas e duradouras no país.

O quanto havia de real nessa imagem – ou seja, o quanto as transformações são mesmo efetivas e duradouras, ou o quanto a tal composição com as forças retrógradas não foi, na verdade, uma simbiose – ainda está em aberto. Mas já se pode afirmar que a consolidação do PT no poder esvaziou a possibilidade de constituir outras mensagens, outros projetos, outras articulações, capazes de corresponder à diversidade enorme dos desafios que a sociedade brasileira enfrenta. No frigir dos ovos, para não entregar os anéis, o PT entregou os dedos de todo o campo progressista.

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À medida que as circunstâncias mudavam, no mundo, no país, na política, na sociedade, a paralisia provocada por um centro de atração tão irresistível foi se tornando cada vez mais perniciosa. Entre tantas outras chaves de leitura, junho de 2013 pode ser interpretado por esse ângulo: como foi possível um partido tão bem inserido nas cidades e nos movimentos sociais não perceber o transporte público (e seus oligopólios) como um dos problemas mais urgentes do país? Como pôde não aproveitar a oportunidade de investir contra um feudo (supostamente inimigo) tão bem defendido, logo quando havia uma rachadura na muralha? Como pôde se aliar à direita e entregar à própria direita, à mais tosca das direitas, a narrativa da indignação? Provavelmente estava olhando para o outro lado…

Caso diferente é o do personagem (informalmente) derrotado duas vezes. Enfio nesse saco arquetípico os segmentos sociais e os movimentos, grupos, indivíduos, que tentaram atuar à margem ou fora do sistema político institucional; que tentaram, muitas vezes, atuar através desse sistema, até mesmo por dentro dos partidos, dos ministérios. Que encabeçaram projetos e iniciativas emancipadores, só para vê-los rifados por exigência de tal ou tal aliança espúria. Sem sombra de dúvida, é preciso reconhecer que entram nessa categoria muitos petistas – alguns dos quais, hoje, ex-petistas. Foram derrotados, primeiro, pela estratégia de ocupação de espaços do PT, que depois se tornou uma estratégia de cessão de espaços; mais tarde, por se verem sujeitados a um governo de Michel Temer, Alexandre de Moraes e José Serra. Esses têm bem motivo para estar desanimados, porque o pouco que chegaram a efetivamente conquistar está mais ameaçado que nunca.

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O vencedor que vai se perceber derrotado é o eleitor inclinado para os tucanos, aquele que se considera um conservador esclarecido e ainda, até hoje, em pleno 2016, enxerga no PSDB o partido da modernização econômica, das “políticas econômicas sãs” – expressão que tenho ouvido ultimamente e que me soa bem divertida. Passou despecebido a esse personagem, que costuma ser muito trabalhador e, por isso, não tem tempo para examinar o mundo à sua volta com o devido detalhamento, o fato de que ele perdeu a viagem: aquela tal tucanagem… não existe mais. Ele pensa que ainda convive com Franco Montoro e Mario Covas, reencarnados em Marconi Perillo, Aécio Neves e Geraldo Alckmin. Pois sim.

Na verdade, era natural que um partido cuja imagem se associa às elites políticas e econômicas do país, em particular as do maior Estado da federação, se tornasse paulatinamente mais parecido com o grupo social que veio representar. Esse grupo, vale lembrar, não é composto por “empresários schumpeterianos” dotados de admiráveis “instintos animais”, mas por oligarcas, rentistas, patrimonialistas e tudo que tão bem conhecemos da história do país. Esse eleitor, achando que recuperou o governo para a vanguarda do capitalismo mundial, que é como até hoje ele enxerga o período FHC, não vai demorar a se descobrir em uma versão repaginada da República do Café – isto é, quando tiver tempo de prestar atenção ao que ocorre em volta de seu nariz.

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Gostamos de pensar no PMDB como o partido que está sempre no poder e se adapta às circunstâncias, numa representação que coloca o PT como esquerda institucional, o PFL como direita tradicional e o PSDB como direita mais moderninha. Essa representação esquece da tradicional imagem do tucano: aquele que está em cima do muro, esperando para ver qual lado vai se dar melhor e então pender naquela direção. Lembra disso? Recomendo lembrar. A bem da verdade, lamento, mas não existe, hoje, um partido que efetivamente represente alguma “vanguarda econômica” no Brasil, e nem poderia existir: no país do agronegócio latifundiário, do spread bancário e da especulação imobiliária, tal vanguarda não passa de fachada. Aliás, aí está uma especialidade brasileira: a fachada!

A charge foi publicada em inícios de 1907, cujo título é "Uma idéia do Zé para o carnaval: O Convênio de Taubaté". A legenda referente ao desenho é a que segue: " TIBIRIÇÁ: - Força, rapazes! Dos seis mil contos para comprar cafés baixos, quero 2.000 para São Paulo! JOÃO PINHEIRO: - E Minas não há de ficar no - 'ora, veja'! Puxa! ALFREDO BACKER: - Quem… teve Mateus que o embale! A União é mau de todos, e o Estado do Rio é um bom filho… Aguenta! Oh! Upa! ZÉ POVO: - Xi!!! Com que gana eles dão à bomba! Que valem economias, impostos, sela à barriga, se o 'melado' corre assim para os Estados?! E nunca mais volta!… Uma idéia: vou lembrar este quadro para um carro carnavalesco; mas faço questão de ser representado… por uma besta! "

Resta falar dos verdadeiros vencedores, aqueles que sempre saem por cima, os autênticos “donos do poder”, para usar a expressão de Raymundo Faoro. Esses não tiveram do que reclamar sob FHC, Lula ou Dilma; dominam o Judiciário sem grande oposição (com seus juízes que se ofendem quando lembrados de que não são Deus); disseminam tranqüilamente sua mensagem de ódio social e desprezo à sociedade. Prosseguem com a exploração predatória das terras e, por extensão, dos corpos. Controlam as polícias, mal pagas e formatadas para a brutalidade; ocupam o Legislativo em praticamente todos os níveis da federação (haverá talvez algum Estado ou município que conte como aldeia gaulesa?). Também dominam amplamente os meios de comunicação – a propósito, por esses dias o STF esteve para votar a posse de veículos de mídia por parlamentares; como andará a obrigatoriedade de publicação dos balanços, hein?

E agora podem também contar com a cúpula do Executivo Federal. Não custou muito: bastou uma conspiração contra gente incapaz de contê-la, sob os aplausos dos nossos “esclarecidos”.

Parabéns aos envolvidos!

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Quase todo mundo sabe de cor e salteado que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, mas não parece estar claro o que isso implica em termos sociais e, principalmente, políticos. Fala-se em desigualdade como se fosse meramente uma questão de renda, poder de compra, acesso a bens. Por sinal, é sintomático que os avanços sociais da última década tenham estado tão concentrados justamente na questão do consumo – o que não significa que sejam ilusórios, como já mencionei em outros textos.

A manifestação pecuniária da desigualdade é um mero sintoma; não é nem causa, nem efeito, sobretudo em se tratando de um sistema social, em que a causalidade é circular. Miséria, doenças parasitárias, saneamento deficiente, analfabetismo, raquitismo, periferias supersaturadas, subemprego, violência, nada disso são “efeitos” da desigualdade; são seus componentes, suas faces, como as faces de um poliedro. O mesmo vale para a ostentação, a humilhação de subordinados, a corrupção, o desprezo à lei, a sonegação. Todos esses aspectos se alimentam e justificam mutuamente, compondo o quadro da desigualdade e da lógica política e social do Brasil. Esse quadro remete ao que há de mais decisivo para o que vem por aí: é o momento crítico desse retrato, com a oportunidade de recompor suas poucas rachaduras, que está em jogo para o grande vencedor.

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Então poderíamos perguntar: como se relaciona essa distribuição de papéis na nossa dramatização nacional com aquilo que chamei, acima, de crise existencial? Em grande parte, a crise decorre do fato de que todos os segmentos sociais que efetivamente quiseram alguma coisa, que tiveram algum projeto de mudança, alguma idéia para o país, se não acabaram de mãos abanando, acabaram dando de cara com um paredão. Para usar uma imagem meio poética, meio cafona, podemos dizer que a parede em questão é o muro da fortaleza dentro da qual os verdadeiros “donos do poder” (“classe dominante”, “oligarquia” etc.) tomam seu champagne, guardados por Deus, contando o vil metal.

Parece que sempre foi possível contornar esse muro de alguma maneira, ocupar algum espaço do lado de cá, satisfazer um punhado de demandas com migalhas, fazer alguma composição, acomodar interesses, empurrar mais para adiante uma crise mais séria, possivelmente violenta: um verdadeiro confronto social. Agora, parece que isso não é mais possível. Ninguém vê mais uma saída como essa, porque não estamos nem nos anos 20, do tenentismo, nem nos 50, do juscelinismo, nem nos 60, das reformas de base, nem dos 80, quando se fundou o partido de massas que ora implode.

Ninguém parece enxergar nada que corresponda a essas nossas figuras históricas, exceto por pequenas fagulhas, como eventualmente o movimento secundarista do ano passado. Mas esse movimento, como qualquer outro, para ter mesmo efetividade, precisaria poder desaguar em estruturas mais firmes, concretizar-se de alguma forma. Essa concretização, que dependeria de articulações hoje indisponíveis, dada a implosão dos grupos mais progressistas oriundos da era da redemocratização (incluo aí os personagens tucanos), é o que as pessoas não têm conseguido enxergar. Isso justifica, ou ao menos explica, a pasmaceira, a angústia, o pessimismo, a crise existencial.

Explica, inclusive, a derrota próxima dos grupos que se crêem vencedores.

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Passando os olhos pelos diagnósticos do presente disponíveis na imprensa, na academia e na internet, posso dizer com razoável margem de segurança que qualquer análise que se pretenda séria – isto é, que seja mais do que torcida – enxerga nosso momento como algo que vai muito além do “empessegamento” de Dilma Rousseff. Assim, alguns dos nossos melhores observadores têm notado no derretimento político do país a marca dos estertores da Nova República, ou seja, aquela que se fundou com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Há vários artigos sobre o tema, mas o mais completo (e afinal, também o mais extenso) é provavelmente o de Marcos Nobre na revista Novos Estudos.

Em resumo, o argumento ressalta o fato de que o arranjo político do período, pelo qual uma bipolaridade PSDB/PT comandaria e controlaria um grande pântano de fisiologismo (essa é a descrição de Nobre), se desmilingüiu, na medida em que o petismo foi implodido por ataques externos e inapetência interna, enquanto o tucanato se tornou um apêndice um tanto caricato do pântano que acreditava ser destinado a controlar. Esse arranjo vai além das relações entre o Legislativo e o Executivo, está aí Gilmar Mendes que não me deixa mentir.

Por esse prisma, Sergio Machado tinha razão, parcialmente ao menos, ao dizer que “o mais fácil é botar o Michel”, em conversa com Romero Jucá sobre as tramóias que dariam cabo da operação Lava-Jato. Jucá, por sinal, deixa claro que era preciso trocar de governo, e isso foi feito. Assim, o esperado de um governo Temer é alinhar todos os poderes e todas as forças do patrimonialismo estamental, deixando de fora, primeiro, o PT (jogado aos leões?) e, em seguida, a sociedade (que, vamos convir, sempre esteve de fora e, em geral, não se incomodou). A tese da crise da Nova República, porém, afirma que essa tentativa implica mais do que um simples acordão para livrar nossos fisiologistas da Polícia Federal: implica o fim do arranjo político instaurado nas últimas três décadas. Resta saber: cria um vácuo? O que ocupa esse vácuo?

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Um detalhe interessante: se olharmos em retrospectiva, podemos dizer que cada governo eleito depois da Carta de 1988 teve como mote algum tipo de transformação profunda no país (traço também sugerido no artigo de Nobre). A começar pela própria CF, que recebeu o apelido de “constituição cidadã”, em certa medida porque estava expresso nela um desejo de consolidar, na letra fria das normas, a cidadania à qual os próprios cidadãos nunca puderam ter acesso efetivamente – e isso não é pouca coisa, como temos visto nos últimos anos.

Pensemos no governo Collor, que, conservador como era e oriundo das piores oligarquias, escancarou a economia como estratégia de transformação de um empresariado industrial dependente das reservas de mercado. O governo Fernando Henrique, mesmo se esquecermos o que ele escreveu, foi dedicado à modernização econômica e financeira do país, concorde-se ou não com o que significava essa modernização. Havia ali a idéia de transformar a gestão das finanças públicas em todos os níveis da federação, mesmo que à custa da asfixia dos governos estaduais – e essa asfixia também pode ser lida como estratégia para esvaziar coronelatos.

O governo Lula, por sua vez, ressaltava uma transformação social que ia muito além da transferência de renda e da valorização do salário mínimo; a criação de universidades, a instituição de cotas, os pontos de cultura, têm um papel importante aí. Já o governo Dilma tinha em seu início, não nos esqueçamos, uma promessa infelizmente frustrada de recuperação da taxa de investimentos, o que, se bem executado e somando-se às transformações anteriores, poderia mudar profundamente a dinâmica da economia brasileira. Poderia, a rigor, realizar a parte estritamente econômica do projeto de 1988. A péssima leitura das dinâmicas do capitalismo global condenaram o projeto, é claro, além da inabilidade política e do erro em crer que era possível uma verdadeira transformação sem quebrar a espinha dos “donos do poder”. Mas o que interessa a este texto é o discurso da transformação e do otimismo.

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O período que conhecemos como “Nova República”, precisamos ter isso em mente, carrega consigo algo como uma “missão histórica”, se é que existe tal coisa. Podemos chamar também de “ambição implícita” ou “possibilidade única”, se for o caso. Imaginou-se ali um Brasil para além da dominação oligárquica que nos persegue como república desde o 15 de novembro, apesar de todas as falhas.

Creio que uma leitura cuidadosa do texto constitucional, dos debates durante a constituinte e dos movimentos sociais ativos ao longo dos anos 1980 poderia chegar a uma demonstração de que a verborragia e as incongruências da Carta Magna cristalizam uma síntese do país, com todas as suas complexidades: o varguismo, as oligarquias, as demandas sociais de um povo desamparado – aqueles aos quais Collor iria se referir como “os descamisados”.

Foi com esse pano de fundo que se sedimentaram as referências do período, essas que agora racharam e fazem água. Tanto as tentativas de tornar realidade os dispositivos constitucionais como os ataques a eles (por exemplo, o parasitismo dos planos de saúde sobre o SUS) se organizaram dentro desse eixo.

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Pois é a partir desse quadro que emerge um novo governo – até outro dia interino. Não tendo sido eleito (ou seja, seu projeto não tendo sido chancelado pelas urnas), esse governo não poderia ser simplesmente associado a uma etapa a mais na seqüência dos parágrafos anteriores (o governo de Itamar Franco, por exemplo, está ausente da listagem). Que sua chegada ao poder tenha se dado por vias tortas, claramente ilegítimas, golpe parlamentar ou não, só reforça seu caráter de tentativa de restauração, na linha do Congresso de Viena. Só o que faltou, no nosso caso, foi uma autêntica revolução anterior…

Colocada dessa forma, a imagem que emerge do governo Temer é a de um Executivo que, depois de quase 30 anos, não quer transformar nada, antes muito pelo contrário. Notemos uma coisa interessante: do “Avança Brasil” ao “País de Todos”, das “cinco metas” de 1994 à “aceleração do crescimento” e daí para a pouco sincera “pátria educadora”, nossos slogans das últimas décadas foram todos muito otimistas, refletindo o “momento singular” da Nova República. Pouco importa que também sejam artificiais e enganadores, pelo menos quando os comparamos ao tenebroso e pouco imaginativo “Ordem e Progresso” em que fomos parar – uma divisa positivista e superada, uma expressão do século XIX, para um governo afinado, precisamente, com o século XIX (resta ver sua relação com o próprio positivismo).

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É claro, há quem se iluda com a mensagem de “abertura aos mercados” que eventualmente o novo governo envia como sinalização para os segmentos encarapitados na Berrini. Essa mensagem é flagrantemente falsa, como se vê pelo déficit previsto para este ano, a simpatia pelo aumento do Judiciário e o estranhamento entre o PMDB e o PSDB, mantido, por enquanto, em níveis controláveis: não vai ser assim por muito tempo.

Se há pontos de convergência entre o interesse dos mercados (como os entendem os profissionais que neles atuam, não os que os controlam) e o das nossas elites oligárquicas, esses são pontos casuais, que geralmente dizem respeito ao controle direto sobre a distribuição dos benefícios da atividade econômica: previdência, negociações coletivas, saúde pública, infraestrutura. E acaba por aí: coisas que de fato tornariam o mercado mais eficiente, como aumento da concorrência, um sistema tributário mais equânime, uma lei de licitações mais competitiva, uma reforma do Judiciário, investimento em pesquisa e formação, vão ficar para as calendas gregas.

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Não foram poucos os acusadores que, reconhecendo a insuficiência das pedaladas fiscais como causa para a remoção de Dilma, trataram do “conjunto da obra”, referindo-se ao descalabro econômico, ou seja, alta da inflação, recessão, volta do desemprego (creio que a própria Dilma foi a primeira a usar a expressão). Está cheio de gente inteligente por aí achando que vem adiante um ajuste fiscal que reequilibre as contas públicas e nos leve ao nirvana econômico.

Lamento ser o portador de uma mensagem apocalíptica, mas um conhecimento mesmo parco dos mecanismos de retroalimentação inflacionária do Brasil anterior ao Plano Real deveria nos deixar com as barbas de molho. Ou alguém acredita que as promessas de Temer aos senadores e deputados, incluindo diretorias de bancos estatais, investimentos de ministérios e sabe Deus mais o quê, como pagamento pelo voto anti-Dilma, vão sair baratinho? Não se surpreenda se a inflação voltar à casa dos dois dígitos – e os juros reais também. Talvez aí os vencedores ilusórios se dêem conta de quem levou mesmo a melhor…

* * *

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De modo geral, se a crise existencial é o ponto em que estamos – não que isso responda a muitas das angústias existenciais que temos que enfrentar –, resta perguntar se é esse mesmo o ciclo que se fecha. Ou seja, se o que está em jogo é a imagem constituída na luta da redemocratização e, mal e mal, cristalizada na Constituição Cidadã. A Nova República.

Essa perspectiva já é mais ampla e mais tenebrosa do que a do mero fim do ciclo petista, é claro. São três décadas, não só uma década e meia. Mas se quem hoje se apropria da quase totalidade do poder é a oligarquia em estado puro, ou seja, os representantes de um modo de poder fechado para qualquer concessão econômica, social ou política, o que está em risco, o ciclo que pode estar se fechando, será ainda mais amplo. Será aquele que se inaugura quando o regime legal passou a tentar incorporar os conflitos distributivos, quando se abriu (um pouco) para uma sociedade mais ampla e mais complexa. O ciclo da década de 30, iniciado sob Vargas.

Isto não significa dizer, é claro, que o varguismo seja algum grande exemplo de progressismo – aliás, um erro das esquerdas no Brasil é continuar a mirar-se em idéias adequadas a quase um século atrás. Está mais do que documentado que o projeto encabeçado de Vargas diz respeito a uma acomodação das demandas das classes industriais e urbanas em expansão no Brasil do século XX. Acomodação a um sistema que jamais deixou de ser oligárquico no seu cerne; algo expresso na célebre frase do mineiro Antônio Carlos: “façamos a revolução antes que o povo a faça” – às vezes o Brasil consegue ser assustadoramente sincero, em especial quando é questão de desfaçatez…

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Ainda assim, o que a história do último século nos ensina sobre o varguismo é que ele foi, ao mesmo tempo, insuportável e insuperável para seus oponentes (para seus defensores, me parece que virou um fetiche, mas isso é tema para outra hora). Esse duplo caráter deve significar alguma coisa e precisaria ser estudado com mais afinco. Senão, vejamos: o modelo de Vargas, ou mais especificamente seu modo de regular as relações de trabalho, era o alvo central nas crises políticas de 1954-55, 1960, 1961 e 1964.

Quando enfim tomaram o poder com o golpe civil-militar, as forças mais conservadoras do país miraram na figura de Vargas e em seus herdeiros políticos. Depois de poucos anos no poder, viram que teriam de deixar para lá o projeto de implodir o legado varguista, sobretudo a CLT. A tal ponto que, quando se despediu do Senado em dezembro de 1994, quase uma década depois do fim da ditadura, Fernando Henrique se comprometeu, mais uma vez, a encerrar definitivamente a era Vargas. Privatizações à parte, não o fez – para falar a verdade, também não se esforçou tanto assim.

Insuportável: precisa ser eliminado. Insuperável: não se pode escapar dele. Não ousaria tentar uma resposta a esse problema aqui. Mas acho que o esclarecimento dessa questão-chave na crise existencial que atravessamos passa por entender que, com efeito, as leis trabalhistas são imperfeitas e, em alguns pontos, cruéis. O trabalho no Brasil é regido por dispositivos com intenções que passam longe do benefício ao trabalhador, como o FGTS, que foi desenhado para criar uma poupança forçada que financiasse a industrialização. Sem falar em questões previdenciárias; em favorecimento, por exemplo, ao setor militar, em benefícios extra-salariais que provocam ainda mais transferência para grupos de renda mais alta – magistrados em particular – e outras distorções, que vão muito além da CLT e das “relações entre patrão e empregado”.

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Nesse contexto, não é difícil ver como a reforma trabalhista que deseja o conservadorismo brasileiro nada tem de “modernização” ou “atualização”. Observe-se, por exemplo, que os principais projetos no Congresso em torno do trabalho dizem respeito à terceirização de atividades-fim, negociação individual e prevalência do negociado sobre o legislado, que são, grosso modo, as mesmas reformas que a troika tenta empurrar goela abaixo dos países da zona do euro, para deprimir os salários e “ganhar competitividade” na competição global com países onde o trabalho é quase escravo. Detalhe: nesses países europeus, os salários são muito mais altos que no Brasil; lá, o risco é a perda de poder de compra. Aqui, é a recaída na miséria.

Projetos de lei que de fato combatessem distorções das leis brasileiras do trabalho, ninguém sabe, ninguém viu. Essas leis afetariam uma camada da população, em boa parte composta por funcionários públicos e militares, que ironicamente é muito conservadora e se considera liberal (quando interessa). Com essa gente, um governo conservador brasileiro nunca vai mexer, já que são um de seus principais esteios urbanos. São as pessoas que tanto espernearam, por exemplo, quando trabalhadores domésticos passaram a ter direitos iguais aos seus…

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A questão não está na superação do modelo varguista, bem se vê. Está na manutenção das distorções, que são redistributivas, mas na direção regressiva, de exploração da base. Sempre que se dá conta de que terá de mexer onde não pode, ou seja, nos privilégios de seus apoiadores, o governo conservador recua e as leis do trabalho distorcidas seguem impávidas. Insuportável… e insuperável. Um governo fisiologista como esse que começa agora não vai ser diferente, exceto se as circunstâncias forem diferentes: será que são?

*

PARTE DOIS

Até aqui… e daqui por diante.

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Das muitas circunstâncias envolvidas na determinação dos nossos destinos (como raios chegamos aqui; onde raios vamos parar), creio que duas mereçam maior realce. Primeiramente (sim, sim, fora Temer etc.): precisamos entender melhor como, desde o instante em que se anunciou o resultado das urnas em 2014 (tanto para o Legislativo no primeiro turno quanto para o Executivo no segundo), no horizonte do segundo governo Dilma havia um governo Temer, literal ou figurativamente. Note-se: “um” governo Temer, e não “o” governo Temer.

Isso significa que, mesmo enquanto Dilma esteve no poder, o fisiologismo e o retrocesso foram tomando conta de cada vez mais espaços, naquela sucessão insana de ministros tétricos. Não podemos, hoje, estar surpresos quando simplesmente terminam o serviço tomando conta do que faltava, ou seja, a cadeira presidencial. Ao longo desse processo paulatino de corrosão, as forças que poderiam se opor a ele estavam ocupadas demais seja na defesa, seja no ataque a um governo que não tinha mais chances.

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Segundo, apesar dos pesares e do controle quase inconteste que o patrimonialismo estamental sempre exerceu no país, essa concepção de Brasil que o entourage de Temer pretende cristalizar, nem que seja a ferro e fogo, pode já ter se tornado inviável. Seja em razão de mudanças demográficas ocorridas ao longo de muitas décadas, seja graças a avanços obtidos desde a promulgação da constituição (e particularmente nos governos tucanos e petistas), as expectativas e as condições de funcionamento da sociedade brasileira talvez não permitam mais o tipo de dominação e exploração pressuposto por esse regime, e essa pode ser uma janela de esperança. Talvez os grandes vencedores acabem perdendo, afinal.

É por isso que, ao analisar a ascensão da dupla Temer/Cunha, é preciso pensar para além da Nova República. O que está em jogo ultrapassa o estancamento dos avanços civilizatórios introduzidos em 1988. E ultrapassa em muito a mera derrubada do PT.
Vejamos mais calmamente cada um desses dois pontos.

* * *

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Primeiro: o que significa dizer que no horizonte do segundo governo Dilma havia um governo Temer? O atual ministério que nos governa (e assusta) estava implícito de que maneira no ministério do governo petista que o precede? Hoje, finalmente está claro que a eleição de 2014 foi uma derrota completa para o PT, uma derrota para a qual a conquista do Executivo foi nada menos do que um agravante. A energia despendida para garantir um segundo turno contra Aécio Neves, em vez de Marina Silva, escorreu por caminhos inesperados (o que não significa que fossem imprevisíveis), indo concretizar-se na eleição dos piores tipos possíveis para o Congresso, seja qual for o critério.

O Executivo teria de se ver desde o início com uma base frouxa e uma oposição empolgada, além de vingativa, já que, desde 2011, a tentativa de enfraquecer o PMDB dividindo o fisiologismo com a ajuda de Kassab deu o resultado que não poderia deixar de dar: fracasso completo. À incapacidade articulativa de Mercadante e sua turma ainda viria se somar (Opa! Em tempos de Temer devemos dizer: somar-se-ia) o fortalecimento de Eduardo Cunha, ainda mais depois da tentativa amadora de evitar sua eleição à presidência da Câmara. Este último, como já advertia o perfil do então candidato a vice-presidente na Piauí em 2010, é “cunha e arne” com o atual presidente-usurpador-que-não-admite-ser-chamado-de-golpista.

Só uma esperteza política muito acentuada poderia evitar a metástase fisiológica sobre o governo daquela que havia começado com a “faxina” dos ministérios.

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A rigor, a única coisa que poderia acontecer de ainda pior do que os eventos deste ano seria a perpetuação do processo de dissolução do governo Dilma. Nesse caso, em 2018 elegeríamos com certeza um Congresso ainda mais retrógrado do que o atual; e o presidente poderia sem sombra de dúvida ser alguém cujo nome não merece ser pronunciado. Nesse caso, o processo seria perfeitamente legítimo e não teríamos nem mesmo o consolo de acusar um golpe. Este era, a rigor, o “horizonte” propriamente dito. O impeachment precipitou a queda desse céu sobre nossas cabeças, com um ar burlesco, uma perspectiva de muita repressão e a nesga de esperança de que seja possível resistir.

Voltando o olhar um pouco mais para o passado, poderíamos dizer que as primeiras nuvens, ainda indivisáveis, desse horizonte temerário começaram a se acumular quando emergiu a figura do próprio Temer. O “mordomo de filme de terror” de ACM ascendeu após “bons serviços prestados” na presidência da Câmara; e apesar da falta de brilho eleitoral próprio, sabe manter a coesão da alcatéia e mereceu por isso a indicação como vice-presidente na chapa montada para 2010.

* * *

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Foi o momento em que se consolidou uma escolha no planejamento estratégico petista, atraindo as oligarquias que, pela história de sua fundação, esperávamos que combatesse. O período coincide com a preferência acentuada pelos mamutes (perdão, os campeões nacionais) na economia – na esteira da crise de 2008 – e com o papel inchado de um BNDES incapaz de questionar o sentido da letra “D” no próprio nome. Foi o período em que se apostaram todas as fichas no motor chinês e na condição de fornecedor para os asiáticos do material bruto que alimentava a máquina. Foi o período em que se tentou seduzir a bancada ruralista – em parte, funcionou, como vemos pela tenacidade com que a senadora Kátia Abreu defendeu o mandato de Dilma. Não funcionou o bastante.

Seria coincidência que o país escolheu assumir na divisão internacional do trabalho um papel semelhante ao da Primeira República ao mesmo tempo em que o governo se decidia pela aliança com figuras políticas que remetem a esse mesmo período? Seja como for, ali se substituiu a aliança com o empresariado “pé-de-chinelo” (no bom sentido: gente que rala…) encarnado na figura de José Alencar por uma rendição às oligarquias patrimonialistas do PMDB e quetais, para constituir a “supercoalizão”, aquela contradição em termos cujo único propósito era eleger Dilma e cujo destino inescapável era a implosão.

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Por esse prisma, as ambições formais do governo Dilma eram inviáveis desde o princípio. Com a o fracasso da redução da Selic e da política (improvisada) de desonerações, foi relegada ao milagre do pré-sal e a delírios de empreiteiras – na verdade, “para” empreiteiras, como a Copa, a Olimpíada e, sobretudo, Belo Monte ¬ a ambição que em 2011 tanto se repetia, de elevar a taxa de investimento acima de 20% do PIB. (Ironicamente, o outro presidente que assumiu falando especificamente em elevar a taxa de investimento acima de 20% também falhou: trata-se de Fernando Henrique, que mencionou esse objetivo no mesmo discurso de dezembro de 1994 em que se comprometeu a encerrar a era Vargas.) Mas a variação do preço do petróleo e as investigações contra empreiteiras lançaram a pá de cal nesse último projeto.

É evidente que alinhar-se com a direita em 2013 foi a cereja do bolo, um erro crasso. Desde então, as pessoas mais próximas ao governo se esmeram em marcar aquele momento como a ascensão da extrema direita no país. Um esforço tão bem-sucedido que não podia ter outro desfecho senão confirmar-se. Ou melhor, concretizar-se: a “idéia” realizada no concreto… Será que faz tanto tempo assim que a cúpula petista passou das ruas para os gabinetes, a ponto de esquecer como funcionam as polícias no Brasil? Era tão difícil enxergar o perigo de repetir o discurso de Alckmin, televisões et caterva, taxando toda aquela gente de baderneiro, vândalo, black bloc, fascista e por aí vai? Era mesmo impossível se dar conta de que uma lei anti-terrorismo cairia como uma luva de ferro para a mão pesada de nossa pior direita? Não era evidente que, uma vez aberta a via das ruas e bloqueado o acesso para movimentos populares, a rua não poderia ser tomada por ninguém outro senão a direita? Certamente tudo isso era perceptível já em 2013. Afinal, muita gente percebeu. Mas os nossos personagens, hoje “formalmente derrotados”, preferiram não ver.

* * *

 

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Cito isso tudo para ressaltar duas coisas: primeiro, que a excepcionalidade do momento que estamos vivendo é menor do que pode parecer. Que eventualmente as oposições e o fisiologismo tenham se aliado, decidindo passar além do quadro institucional para retomar o poder, continua sendo terrível e ainda aponta para uma ruptura muito mais grave do que apenas o golpe contra uma presidenta. Mas esse evento era algo inscrito nos caminhos possíveis desde 2014 e mesmo antes, por dentro do governo até mais do que por fora, já que não teria havido manifestações tão massivas contra Dilma sem que atores políticos importantes as tivessem fomentado. (Aliás, por onde anda Paulo Skaf?)

É forçoso admitir, e isso não é nem de longe uma justificação, que o poder transborda a política e a política transborda a lei. Se assim não fosse, um gigantesco algoritmo político-legal daria conta de todos os recados. Temos de ter isso em mente ao fazer a leitura das incongruências dos políticos, de seus acordos, suas alianças e suas interpretações não raro absurdas do texto legal. Um político profissional geralmente reconhece esse dado; aos primeiros sinais de transbordamento, recua, se ajusta, se acomoda. Perante a iminência de ser derrubada, como tem sido dito e com razão, Dilma foi tenaz, foi heróica, foi realmente admirável. É incrível como ela só fala bem sob intensa pressão. E foi tudo isso porque agiu de um jeito como nenhum político agiria. Dilma, que cresceu no aparelho do Estado como burocrata (no bom sentido), não como política eleita, não tem os mesmos compromissos que teria alguém com a ambição de ser mandatária para o resto da vida. A grandeza de Dilma perante os senadores foi, precisamente, a grandeza que o político jamais pode ter. Graças a ela, vimos “em tempo real” o que ocorre quando a política e o poder transbordam a lei. Não é bonito.

A segunda coisa que eu queria ressaltar é que a derrocada do governo Dilma expõe o quanto a arquitetura política da Nova República é – ou era – frágil. Como se diz, o chamado presidencialismo de coalizão induz à contaminação dos governos pelo fisiologismo, mais cedo ou mais tarde levará à compra de votos, garante que os projetos mais urgentes de reformas para o país nunca sejam de fato julgados. A seguir a descrição de Nobre sobre o condomínio fisiológico administrado por um ou outro dois rivais mais – supostamente – programáticos, arraigados realmente em algum extrato social, é preciso que pelo menos um desses “partidos administradores” esteja forte e articulado. Também é preciso que tenha convicção de sua conformação programática.

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Quando esses partidos não conseguem exercer esse papel, o que temos é uma espécie de barreira da Samarco. Se o PSDB se torna um apêndice arrogante das oligarquias e o PT vira as costas para os movimentos sociais para tornar-se um edifício de burocratas, não há nada mais que segure a lama. Inundados, soterrados, sufocados, podemos até manifestar surpresa, mas teria bastado um sobrevôo para perceber que, enquanto tocávamos a vida nas últimas décadas, a sujeira se acumulava. A lama sempre esteve lá, a lama é a normalidade. A vida limpa e tranqüila dos vales é que era a ilusão. O arranjo quase progressista da Nova República se rompeu, ao que parece, mas foi por pressão acumulada, não por alguma intervenção externa.

Os estragos dessa inundação de rejeitos políticos podem ser bem vistos com um enquadramento mais aberto. O grande vencedor, como sabemos, é esse ministério velho, branco, masculino e investigado por corrupção, de que tanta gente já falou. Um retorno à República Velha, eu diria, mas acrescentando: se é que a República Velha chegou a ser superada, realmente. É bem possível que ela tenha simplesmente sofrido mutações, acomodações, rearranjos, para manter-se como paradigma da política brasileira.

Afinal, esse vencedor não precisou de grandes sacrifícios, porque, no fundo, o país sempre foi seu. Bastou uma pequena conspiração e o beneplácito de quem controla nossos oligopólios, no campo, na indústria, nas finanças, na mídia, na pirâmide socioeconômica. A seu lado, o pobre coitado do pretenso vencedor, o iludido, que espera recolher as migalhas que lhe atirarem os oligarcas, contente por trabalhar feito um camelo tendo como único benefício a possibilidade de humilhar alguém que trabalha ainda mais, ganhando muito menos. Alguém que espera do governo fisiologista que faça um ajuste fiscal duradouro…

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Cabe citar, também, que esse arranjo tem seus próprios mecanismos de escape, suas válvulas, por assim dizer, que permitem ao poder das lideranças políticas sobrepujarem o próprio desenho do sistema político e sua fundamentação legal. Em outras palavras, algo intrigante no sistema político da Nova República, e que – importante – coincide com sistemas adotados em países vizinhos, é que ele comporta a possibilidade de que haja golpes que não derrubem o sistema como um todo e sejam traumáticos apenas para quem o próprio sistema quer expelir.

Os cientistas políticos Mariana Llanos e Leiv Marsteintredet cunharam a expressão “presidential breakdown” para se referir ao fato de que, antes de Dilma, eram 17 os presidentes latino-americanos derrubados, de modo mais legítimo ou menos legítimo, desde a onda de redemocratização dos anos 1980. A nossa ex-presidenta é a décima oitava. Criou-se um sistema pelo qual as elites, ou seja, as oligarquias, neste subcontinente tão oligárquico, conseguem golpear e expelir quem não lhes interessa, mas garantir a perenidade do arranjo, ou seja, fechando a válvula. Daí a dificuldade em identificar a presença de um golpe de Estado: a lógica que leva a esse golpe já é enxertada no próprio sistema.

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O informalmente derrotado duas vezes continua gritando, quando tem forças, e agora precisa decidir como reagir à volta do formalmente derrotado ao campo da oposição. Essa é uma decisão difícil: passar os próximos meses exigindo retratações? Abraçá-lo em nome de algo maior, a luta contra o regime fisiológico? Segui-lo no projeto pouco sagaz de reconduzir Lula ao poder em 2018? Não é à toa que, hoje, esse seja o grupo que mais está batendo cabeça.

Por fim: o formalmente derrotado é aquele que fracassou porque, acreditando-se progressista, acabou sendo meramente governista. No frigir dos ovos, nenhum governismo é progressista, exceto em contraste com algo muito mais tenebroso… como um golpe.

* * *

Resta ainda o segundo ponto, que é o mais importante, referente à questão de “para onde raios estamos indo”. É preciso se perguntar se o Brasil que os oligarcas, os fisiologistas (que não são rigorosamente o mesmo grupo, atenção) e o governo Temer têm na cabeça é viável. Como já adiantei, creio que não. Acredito que nem a estrutura produtiva, nem a distribuição demográfica permitem mais o nível de dominação, repressão e arbitrariedade ao estilo da Primeira República que os personagens que emergem com Temer representam. Também não é mais possível o nível de instabilidade social que se verificou nas décadas centrais do último século, porque não há mais dezenas de milhares de migrantes internos fugindo da seca, o índice de analfabetismo é muito menor, embora ainda alarmante, o crescimento urbano não é mais tão acelerado, as massas da periferia não são mais tão desamparadas, desesperadas e desconectadas.

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O Brasil do século passado, mesmo durante a industrialização e o dito milagre, era um país praticamente em equilíbrio malthusiano, caracterizado por subnutrição, analfabetismo e doenças endêmicas típicas de ambientes miseráveis. Além das taxas de natalidade e mortalidade muito altas. Era um país rural e pouco conectado – literalmente: estou falando de estradas e ferrovias, telefones e agências dos Correios. Um quadro perfeito para as formas mais brutais e toscas de dominação.

Embora os avanços tenham sido bem aquém do que precisávamos que fossem, estamos longe desse equilíbrio malthusiano. A mortalidade infantil e a incidência das “doenças da pobreza” caíram rapidamente, sobretudo graças ao SUS. O país é urbano, camadas cada vez mais amplas da população têm acesso a serviços públicos e, com todas as suas limitações, à educação.

Quando alguns Estados perdem 20% ou 30% de sua população (como exclamou Maria Bethania), quando as rodoviárias das metrópoles recebem centenas de milhares de migrantes internos todos os anos, é possível, é até fácil, explorar esse enorme contingente humano até o esgotamento. Os retirantes que, entre os anos 50 e 80, chegavam nas cidades em busca de qualquer trabalho que os mantivesse alimentados eram corpos plenamente disponíveis, sem aspirações, sem ambições.

Quando surgiam bairros e favelas novos nas periferias, eram áreas sem identidade próxima, sem conexão comunitária, sem meios para exigir infraestrutura. Quando milhões de pais e mães achavam um luxo seus filhos saberem ler e escrever, não ambicionavam o ensino universitário, um trabalho melhor do que o pior qualificado, uma casa melhor do que um barraco. Quando as pessoas não tinham nenhum poder reivindicatório, eram obrigadas a suportar se a polícia matasse a esmo nos subúrbios. Esse é o Brasil de “O Homem que virou Suco” e “Bye-bye Brazil”, em que se sentiam tão confortáveis os Temer deste mundo, e no qual até hoje se espelham.

Outra coisa é o Brasil de “Que Horas Ela Volta” e “O Som ao Redor”. Uma parte importante da crise, do ponto de vista social, mais do que político, é que existe um descompasso entre as condições objetivas do país e o modo como ele ainda é administrado, seja na cúpula, seja no dia-a-dia. Aqueles ajuntamentos periféricos surgidos às pressas no século XX são hoje bairros constituídos, embora deficientes, onde vivem pessoas nascidas e crescidas ali, a segunda e até terceira geração. As reivindicações são outras: saneamento, asfaltamento, segurança, equipamentos urbanos (de lazer, saúde, educação, transporte…). Nas quebradas, essas mesmas onde a polícia continua soltando chumbo, pululam as associações de bairro, os coletivos artísticos, os saraus poéticos, os bancos comunitários.

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A mera demografia tem um papel. Não nascem, nem morrem, tantos novos corpos disponíveis para a exploração: pelo mero fato de estar vivo, o brasileiro de hoje vale mais, aos olhos do capital, que seus pais ou avós. A exigência, agora, é pelo direito a ambicionar: qualificar-se, educar-se, galgar degraus na escala social. O jovem urbano brasileiro, o pobre, não entende por que deveria ser um mero corpo disponível para a exploração: doméstica, porteiro, frentista etc. O jovem rural, por sua vez, tem o direito de se imaginar cultivando aquelas terras com dignidade pelo resto da vida, fazer benfeitorias, negociar sua produção no mercado, obter financiamento agrícola; tudo isso, apesar do avanço do latifúndio e apesar das secas.

É claro que não se trata de meros efeitos secundários de uma evolução “natural” das populações. A economia mais estável, os programas de instalação de cisternas, a redistribuição de renda, a ampliação do ensino fundamental, a valorização do salário mínimo, a implantação de universidades em áreas até então isoladas, tudo isso também fez muita diferença e vai continuar fazendo. Por sinal, uma das causas da nossa crise existencial é que teria sido necessário continuar nessa direção, principalmente quando começaram a vir os sinais de que a sociedade estava madura para quebrar algumas barreiras. Não faltaram reportagens sobre as ambições da “classe C”, artigos sobre como os avanços eram só no consumo, só dentro de casa; que lá fora as cidades continuavam atrasadas, que as condições sociais eram um terror. Seria necessário dar o que chamei de “segundo passo”, mas a cúpula burocrática do PT não percebeu e foi formalmente derrotada.

Os sinais se tornaram cada vez mais claros e é perfeitamente evidente que aí está uma das raízes de junho de 2013, que a burocracia petista preferiu ler como geração espontânea de black blocs (avaliação idêntica à de Alckmin e da mídia conservadora, por sinal) e fascistas. No entanto, a maior lição de 2013 deveria ter sido constatarmos o abismo entre esse país em paulatina mutação e as modalidades de exercício do poder. Afinal, mesmo antes daquela explosão afetiva, já se liam cá e lá expressões do problema do acesso à cidade, da qualidade dos serviços públicos e da caducidade dessa nossa extrema desigualdade (que é de renda, de patrimônio, social, racial, de gênero, tudo misturado – não são muitas desigualdades, são muitas dimensões da mesma desigualdade, como eu disse no começo deste texto).

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Infelizmente, tem um outro lado que precisa ser mencionado. Não está claro, pelo menos para mim, como essa tendência social se comporta perante uma outra tendência muito forte, em sentido contrário, que é a da desindustrialização. A parcela dos manufaturados na economia brasileira, e particularmente nas exportações, está diminuindo aos poucos desde os anos 80. Foi agravada pela abertura de Collor e, depois, pelo uso irresponsável do câmbio para segurar a inflação sob FHC, Lula e Dilma.

A desindustrialização teve efeitos graves sobre a capacidade de mobilização dos sindicatos no Reino Unido e dos partidos trabalhistas de toda a Europa. Não é um acaso que hoje eles sejam uma caricatura, com figuras como Tony Blair na Inglaterra, François Hollande na França e Sigmar Gabriel na Alemanha. No Brasil, o sindicalismo que sobrou é basicamente pelego, inclusive com o curioso fenômeno dos pelegos de oposição – ou melhor, que eram de oposição, como a turma do sr. Paulinho.

Fala-se de vez em quando em greve geral, mas a probabilidade de que ocorra algo assim é ínfima. Não existe mais aquela concentração de trabalhadores como a do ABC de fins dos anos 70. As forças que tradicionalmente se mobilizaram neste país e em outros estão desoxigenadas porque seu poder de barganha, o trabalho industrial, está desvalorizado. O trabalho, hoje, é mais atomizado e disperso, com menor acesso ao controle do maquinário. Ao que parece, o que vamos ter é só mais uma greve de bancários…

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O que parece estar despontando à distância é uma outra forma de mobilização, extra-sindical, que ainda é embrionária, mero rascunho. No que vai dar, ainda vamos ter que ver. Quanto tempo vai demorar para ter alguma efetividade, quem pode dizer? Infelizmente, essa é a situação que está posta e o que resta é torcer para que as circunstâncias precipitem a busca por novas articulações. Sem falar no risco de que não dê em nada…

Resumindo: o ministério, o Congresso e a mentalidade que ora se instalam na direção do país (e que já vinham tomando conta, pouco a pouco, com o beneplácito involuntário de quem fetichizava o controle do Executivo) representam a tentativa de não apenas esquecer, mas negar esse abismo e a caducidade da nossa renitente República Velha. Um Brasil do “Jeca Tatu” ou dos filmes do Mazzaropi. Não vai dar certo.

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Talvez passemos alguns meses muito estranhos, até mesmo calmos, enquanto a sociedade absorve o golpe, quero dizer, sua nova realidade. Uma vez que as lideranças oligárquicas e fisiológicas vão dar um sumiço das denúncias da operação Lava-Jato (tendo fazer o mais fácil, que era “colocar o Michel”, e tendo esvaziado a legislação anticorrupção), o assunto pode vir a sumir dos jornais, dos táxis, dos almoços de fim-de-semana.

Um possível lado bom é que essa falsa calma talvez tenha o poder de desinflar a paranóia de extrema-direita que tem se disseminado país afora nos últimos anos. Afinal, o único traço de união entre a alta burguesia dos Jardins, o fundamentalista no púlpito de Bangu, o taxista do Tucuruvi e os filhotes da ditadura país afora é o ódio ensandecido ao PT. Mais precisamente, a algo que, sei lá por qual razão, lhes parecia ser um diabólico governo proto-comunista que queria estatizar toda a economia, botar todo mundo para fumar maconha nas praças, promover abortos ao som de Molejo e preparar a criançada das escolas públicas para apresentar shows de drag na Paulista ao crescer. É possível que o período de interinato do usurpador corresponda a uma boa parte dessa fase.

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Seja como for, não vai durar muito. Gosto de comparar os fenômenos multitudinários de 2011 (no mundo) e 2013 (no Brasil) com as revoluções frustradas de 1848. Aquelas agitações, tão ambiciosas, foram derrotadas, pelo menos no curto prazo, como ocorreu com a Primavera Árabe e com as reivindicações de direito à cidade no Brasil. Michel Temer talvez seja nosso Luís Bonaparte, a versão cafeeira do sobrinho de Napoleão, que tomou o poder cercado de picaretas e defendido por brutamontes conhecidos como “dezembristas” – a propósito, aquela frase de Marx que andam citando por aí, da história que se repete como farsa, é sobre ele.

Sinais do que vem pela frente já eram visíveis desde o interinato, com a posse de um ministro da Justiça (ó, ironia) que representa o que há de pior no governo Alckmin em São Paulo e o uso de armamentos violentos, já no dia da posse (interina). Cabe lembrar, também, da intimidação pela Polícia Federal a estrangeiros que participaram de manifestações. No pouco tempo desde a consolidação do impeachment, já tivemos olhos furados, gente atropelada, presos sem explicação, câmeras destruídas. Particularmente chocante é o vídeo de um policial dizendo, com desdém: “pode filmar”. Agora a violência tem carta branca e será atribuída pela mídia aos bons e velhos “vândalos, baderneiros, infiltrados, black blocs”, como bem sabemos.

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Esses sinais apontam para um esforço de rapidamente afirmar-se no poder, à base da dispersão e do silenciamento da dissidência. Some-se a isso o fato de que, para muitos agentes da repressão, mesmo quando agiam em nome e sob as ordens de governos petistas, sempre viam em toda mobilização social uma iniciativa de “petistas”. Tendo triunfado sobre os petistas na cúpula, e com a provável presença de efetivos petistas nos protestos, nas ruas quem vai apanhar é todo mundo mais – aqueles que, acima, chamei de “derrotados informalmente duas vezes”.

* * *

Resta saber o que vai acontecer com a resistência, ou seja, que cara ela vai ter, como vai ser sua dinâmica, quanta força terá. Sou cético quanto aos primeiros momentos. Ainda há muita associação entre a rejeição a Temer a o apoio a Dilma e ao governo petista em geral, o que deixa muita gente tímida e provoca verdadeira rejeição em quem foi “derrotado informalmente duas vezes”, e que muitas vezes apanhou, foi chamado de vândalo e assim por diante. A estratégia anunciada de recorrer a Lula para 2018 não ajuda em nada, já que o problema é preparar o futuro, em vez de tentar recuperar um passado já estilhaçado.

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Mas muita água vai passar debaixo dessa ponte. Os conflitos sociais e distributivos, as disputas de poder e as aporias do regime não têm outro caminho a tomar que não seja se intensificar e se tornar muito claros, uma vez que batam de frente com as condições demográficas e socioeconômicas que descrevi acima. Há um limite para o quanto a população pode aceitar de retrocesso uma vez que tenha aspirações.

Mesmo todo o proselitismo religioso que testemunhamos ao longo do processo do impeachment não pode atropelar os sonhos dos fiéis, sobretudo nas igrejas ligadas à “teologia da prosperidade”. Como essa teologia lidará com retrocessos sociais? É isso que vamos descobrir agora, e não posso me impedir de ter um medo enorme da resposta que vamos receber… Porém, fora isso, o uso de uma retórica pseudo-religiosa para estigmatizar o governo perde boa parte da eficácia uma vez que o governo em questão deixa de existir.

Um ponto importante sobre o governo Temer é que sua única chance é agir como recomendava Maquiavel: fazendo todo o mal de uma só vez. O primeiro motivo é evidente: é preciso passar o pacotão de retrocessos enquanto não há uma oposição articulada – e ela vai acabar surgindo, mais cedo ou mais tarde. O segundo motivo é um pouco menos evidente, mas nem por isso indivisável: vencida a batalha contra o inimigo comum, o fisiologismo começa sua autofagia, ou seja, as disputas em torno dos espólios e da ocupação dos espaços do poder.

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Não sei quanto tempo isso leva, mas já ouvimos de Ronaldo Caiado que ele vai ser “independente” do governo usurpador, o que significa, obviamente, que sua ação vai ser pautada por fazer o governo, tanto quanto possível, dependente dele. O PSDB, coitado, acha-se ainda muito importante. Faz ameaças, enche o peito, exige um ajuste fiscal mais rigoroso. Só que tem uma bancada insuficiente para influir de fato, com meros 55 deputados. Daí o ministério temerário ter só três tucanos, um deles posto para cuidar de um assunto que não entende e no qual não pode atrapalhar o mordomo de filme de terror; sim, estou falando do Serra. O tal ajuste, já se vê, não virá. ou melhor: virá na superfície, e em seguida vai se desmanchar no ar como o pó de pirlimpimpim.

É interessante como, de vez em quando, opositores do usurpador se referem a ele como “neoliberal”. Ora, Temer não é um neoliberal. Ele não é nem sequer liberal. É pemedebista, um porta-voz das oligarquias, um ponta-de-lança do fisiologismo e nada mais. Sem dúvida, haverá neste início de seu lamentável governo uma série de medidas do mais puro liberalismo-Malan. E não faltarão analistas, a grande maioria economistas (essa gente com visão tão estreita) para dizer que é um governo com “boas intenções”.

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* * *

Essa gente parece não saber que a tal da “Ponte para o Futuro” divulgada em outubro, nome oficial do ajuntamento de idéias que passa por projeto de governo, destinado a acariciar as consciências das nossas lideranças empresariais, é só para inglês ver. O arquivo, como pode perceber quem o procure no Google, tem o singelo nome de “Release Temer” (confira no quadro vermelho abaixo). Em outras palavras: o grande projeto do PMDB para o país não passa de um “release”, ou seja, uma mensagem de divulgação para a imprensa, um documento de propaganda. E não do partido, mas do próprio Temer. Foi um mero passo da conspiração, desprovido de qualquer preocupação em concretizar-se como programa de governo. (Já não lembro quem foi a pessoa que me apontou esse detalhe, mas fica aqui o agradecimento.)

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Não é difícil perceber que as prioridades de Temer passam longe da estabilização da economia, da “união do país” ou qualquer coisa assim. Não é à sociedade como um todo que ele deve a faixa presidencial que indevidamente porta, mas a quem barganhou os votos necessários para colocá-lo na cadeira presidencial. Temer, em seu governo de conciliação e “salvação nacional”, seja lá o que isso for, terá oligarcas, oligopolistas e demais sanguessugas econômicos a agradar. A primeira vítima vai ser a boa vontade dos iluminados conselheiros do livre-mercado, que, uma vez mais, vão ficar a ver navios, escorados em suas convicções de livro-texto. É bem provável que, em poucos meses, o poeta paulista tenha se transformado numa cópia do romancista maranhense José Sarney. Inclusive na economia.

Pobres “vencedores que vão se descobrir derrotados”… Fazem pensar em Carlos Lacerda, o iludido paradigmático da República, que vendeu a alma ao demônio marcial pensando que seria eleito presidente em 1965. Não houve nem eleição em 1965 e o pobre do Lacerda acabou cassado, tendo que se aliar com aqueles que passara os anos anteriores vilipendiando: Juscelino e Jango. Cuidado, amigo tucano, há um Lacerda no seu horizonte.

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Também não vai demorar até que as lideranças de Piratininga queiram preparar a cama para seu próprio candidato, seja Alckmin (cruz credo), seja Serra (alho, por favor!). Afastado o grande inimigo comum, o “polvo petista”, as baterias da Paulista e do Jardim Botânico tendem a se virar contra nosso latinista do Jaburu (agora do Alvorada). Em outras palavras, o capital e a mídia vão romper com o governo do usurpador quando puderem começar a pôr em prática seus próprios projetos para 2018. Como eu disse: autofagia.

Mas talvez seja tarde demais. Quem tem a caneta, hoje, são os fisiologistas; suas armas são pelo menos tão fortes quanto as dos bravos bandeirantes de paletó riscado.

As disputas intra-oligárquicas parecem sempre farsescas, vistas daqui de fora. Como foi a crise que culminou na revolução de outubro de 1930, aquela que foi feita antes que o povo a fizesse. Mas elas existem e deixam brechas por onde podem passar mudanças substanciais, ainda que sempre mantidas aquém do que seria necessário para um salto civilizatório no país – aquele muro de que falei acima. Enquanto nossos barões e nossos coronéis disputam o controle da máquina estatal, ou seja, dos métodos de extração de renda fundados na exploração dos nossos corpos, caberá ao resto de nós reconstruir articulações, produzir uma nova leitura da situação, coordenar movimentos, estabelecer uma resistência.

Republica+do+Cafe+com+Leite.+Caricatura+de+Oswaldo+Storni,+sobre+as+eleições+presidenciais+de+1910.

À medida que essa resistência de fato se articule, é fácil de prever o recrudescimento da repressão. E hoje, quando termino o texto, a última frase já deixou de ser previsão. Enquanto a cúpula fisiológica e oligárquica em Brasília avança nos retrocessos (que hora para brincar com oximoros!), dá para esperar uma disseminação da indignação, das lutas e do desencanto daquela camada despolitizada que hoje está embevecida pelo discurso ultra-reacionário.

Nessas duas tendências, ouso dizer que a tática de terra arrasada não tem mais espaço. Com a complexidade que o país atingiu, não é mais possível suprimir por completo os desejos e as aspirações. Não é mais um país de massas frágeis e corpos disponíveis para a exaustão. Os gargalos e nós que já se acumulavam há anos e vieram à tona em 2013 não foram sanados – do direito à cidade expresso na tarifa de transporte até a precariedade da educação – e mal foram considerados. Os secundaristas de São Paulo, Goiás, Rio e outros Estados dão testemunho disso.

Passada a catarse do ódio a Dilma, a Lula e ao PT, a brutalidade policial contra protestos deixa de ser encantadora para a opinião pública. Por mais que o brasileiro tenha um enorme fascínio pela violência e tenda a apoiar a repressão, existe um ponto de inflexão a partir do qual ele se vira contra a barbárie institucional. Aconteceu em 2013, aconteceu no ano passado. Resta ver o que acontece a partir daí.

*

(IN)CONCLUSÃO

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Levei muitos dias para escrever este texto e comecei dizendo que a realidade é confusa. De lá para cá, bem… a realidade se tornou um pouco menos confusa. Estamos entrando em um período em que as máscaras começam a cair. Editoriais e capas de jornal deixaram de lado a sutileza, mostrando que o mea culpa que tiveram de fazer em 2013 passou longe de ser uma “lição aprendida”: foi, sim, uma concessão forçada, que até hoje os barões não engoliram nada bem. O verniz de espírito democrático perdeu completamente o lustre. E, pelo que tenho ouvido nos círculos que se consideram mais iluminados da elite paulistana, só tende a piorar.

Ao mesmo tempo, claro está que o afã investigativo na República passou. Alguns dos bem-intencionados indivíduos que passearam com patos infláveis pela Paulista no ano passado ainda acham que o juiz Sergio Moro vai fazer milagres contra os poderes intocáveis da República. Mas mesmo esse desejo ingênuo vai ser suplantado pelo esquecimento, já que o noticiário vai ter mais do que falar e a urgência de espancar gente na rua porque “é vermelho” será muito maior.

Com isso, tristemente, parece que o jogo volta à estaca zero; e a estaca zero é a República Velha. Mas é claro que não é rigorosamente uma estaca zero, pelos motivos que elenquei acima: as expectativas, no país, são outras. Além disso, a República Velha propriamente dita dizia respeito a um tempo em que o país se compunha de núcleos esparsos, vagamente conectados, de atividade econômica: eram oligarquias estaduais, até então mal e porcamente vinculadas entre si sob o Império. Hoje, o sistema econômico é de fato nacional, a população é conectada, os movimentos podem articular-se entre si. É outra história: o sistema político, sim, é que continua sendo um arcaísmo. As oligarquias são um arcaísmo.

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Se comecei comparando nossa realidade a algum enredo, com gênero ainda indefinido, acho que devo terminar no mesmo tom. O que vão fazer nossos personagens? Como vão se relacionar os derrotados, formais e informais? Como vai reagir o falso vencedor, quando descobrir que as batatas estão na mão de outro grupo? E nossos figurantes amarelinhos, nossos raivosos adoradores da brutalidade, como vai ser a vida deles quando a coisa começar a degringolar na economia?

São cenas dos próximos capítulos…

Enquanto acompanhamos a história, com grande apreensão, as cenas vão se sucedendo, cheias de peripécias e falsas pistas. Com a derrocada dos principais partidos da Nova República, vemos algumas novas agremiações surgindo, em vários segmentos do espectro político. Será que a próxima inflexão política brasileira surgirá no âmbito deles? Difícil dizer, mas mesmo isso deve demorar um bom tempo para tomar forma.

Nem imagino, também, quanto tempo vai levar para que vejamos emergir uma nova etapa de transformações no plano da própria sociedade. Pode até não ser tanto tempo assim, haja vista a pluralidade de formas de reivindicação, físicas e virtuais, que aparecem cá e lá. Seja como for, não tenho a menor dúvida de que, nesse meio-tempo, os subterrâneos ferverão. Mesmo enquanto, de nossos apartamentos, lamentamos mais uma oportunidade perdida.

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Padrão
barbárie, Brasil, direita, economia, eleições, Ensaio, escândalo, esquerda, guerra, história, manifestação, março, morte, obituário, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, Sociedade, tristeza, vida

Golpes e desejos

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Com agradecimentos aos amigos Camila Pavanelli de Lorenzi, Bruno Alvaro, Marcio Miotto e Bernardo Jurema pelo tempo que dedicaram a ler e comentar este texto. Muitas das ideias contidas aqui vieram desses comentários. Nem preciso dizer, mas os erros, imprecisões, chutes e outras tolices são culpa toda minha.

Seria tentador demais começar este texto cometendo a milionésima paráfrase daquela famosa abertura do Manifesto Comunista, com o espectro rondando a Europa. Mas isso passaria a impressão errada: no texto de Marx (e daquele outro alemão), tratava-se de uma força virtual que se atualizava, apontando como potência para um futuro. Ao contrário, se também tem um fantasma que passeia sorrateiro Brasil afora, é o fantasma de um cadáver insepulto, uma morte que não se consumou, um trauma que ficou por superar. É claro que estou falando da ditadura e do golpe que a iniciou.

Até aí, nenhuma novidade. Acontece que quem diz fantasma, de um jeito ou de outro diz fantasiar. E quem fala em fantasiar, inevitavelmente, fala de desejo. Eu poderia agora escolher uma fórmula chocante e afirmar que, sabendo ou não, existe no Brasil um desejo difuso de golpes e ditaduras. Seria verdade, até. Mas não é bem assim que o fantasma age; em vez disso, ele opera sobre o desejo porque se imiscui nele, se introduz onde não foi chamado e sem ser percebido. Assim, quando um desejo vai tomar forma, constituir um objeto, traduzir-se como expressão, enfim, quando vai agenciar-se, a presença sorrateira do fantasma o modula um pouco, lhe confere um outro alcance, uma outra coloração.

Sem levar em conta esse modo de agir do nosso fantasma, corremos o risco de ficar andando em círculos ao tentar dar sentido ao que acontece hoje no país. Passamos completamente ao largo do problema se nos contentamos em perguntar se o que se prepara nas sombras do poder é um golpe ou não. Essa pergunta pressupõe uma consciência muito clara dos atores sobre o que estão fazendo e aonde querem chegar. Hoje, não é esse o caso, porque o que cada ator quer (derrubar o governo, manter o governo, chegar ao governo, aniquilar um partido…) e como ele age (protestos, conluios, publicidade, textão) são duas coisas que estão descoladas, porque entre elas age o fantasma.

Abstraído esse detalhe, toda a questão da derrubada ou não do governo Dilma poderia ser resumida ao problema das zonas cinzentas entre o político e o jurídico: a fraqueza e falta de apoio parlamentar do governo por um lado, a necessidade de encontrar uma justificativa para um gesto violento e as negociações para o período posterior, por outro. Tentei tratar disso no fim do ano passado e acho que esse ponto está muito bem destrinchado neste texto de Moysés Pinto Neto. Mas não é assim, infelizmente, porque nosso momento de soberania em disputa e indecisão institucional inclui um elemento a mais: o fantasma e o desejo do golpe.

1: Desejo de Golpear

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Obviamente, esse nosso fantasma do golpe (que, na maior parte do tempo, como todo fantasma, permanece invisível e só sugestionado) se deixa perceber com mais facilidade no grito de “não vai ter golpe” que soltam os defensores do governo – ou, vá lá, da continuação do atual governo, por falta de lei que o substitua apropriadamente. Aí está explícito: é o discurso de uma esquerda que, na sua própria visão, se recusa a aceitar que venha um novo 64. Mas é uma recusa modulada, como veremos (e deixo para o final porque é a parte mais importante e complexa).

Antes disso, porém, é preciso ter claro que o mesmo fantasma age também nas demais vozes. Desde as mais evidentes manifestações de saudosismo pela ditadura, que são muito maiores do que deveriam, mas não tão grandes quanto pensamos (como demonstram pesquisas conduzidas por Pablo Ortellado), até estranhos editoriais que repetem, quase ipsis litteris, conclamações golpistas – essas sim, inequivocamente – de outras eras.

É interessante, por exemplo, observar como, no caso de um fantasma do golpe, é difícil distinguir o desejo do medo. Assim, mesmo de pessoas que, com toda honestidade, participaram da última manifestação contra Dilma Rousseff com o espírito mais democrático e legalista possível, tenho ouvido a crença numa iminente ditadura de esquerda. “Querem implantar o comunismo”, ou algo assim.

Certamente, essa crença, para além da repetição do tema da “república sindical” que se temia em meios abastados nos anos 60, é fantasiosa, porque ignora o pouco que a cúpula do Executivo ainda detém do poder. (Cáspite, o vice-presidente está abertamente preparando seu próprio governo!) Não importa: em se tratando de desejo, o frisson de enfrentar um inimigo tenebroso e forte é incentivo mais que suficiente para deixar de lado a lucidez.

Só assim entendemos o vínculo entre a pessoa perfeitamente democrática que vai à manifestação dominical e seu colega menos respeitável de protesto, o fascistão que ataca gente na rua por vestir vermelho. As continuidades entre protestar na Paulista, usar camisa da CBF contra a corrupção, tirar selfies com PMs e dar bordoadas em transeuntes são tão relevantes quanto as descontinuidades. Afinal, qual foi o líder das oposições que, mais do que simplesmente lamentar, deu declarações desautorizando essa violência? Quando o intolerável é tolerado, já se vê que, na verdade, é desejado.

O problema é que, uma vez que o fantasma do golpe se instala, na forma mais ampla de um gosto pela ruptura institucional, a violência de rua aparece como efeito colateral ou traço incontrolável de uma situação que, “por si só”, é anárquica (não confundir com “anarquista”). No plano do desejo, o estado de conflagração é fato consumado. Afinal, a crença inquestionável não é a de que estamos em crise, mas de que “rumamos para o desastre”. E se rumamos para o desastre, é salve-se quem puder. O que, paremos para pensar: já é o desastre.

Por isso, também, é difícil não enxergar esse fantasma do golpe involuntariamente desejado no episódio das fotografias que algumas pessoas, na maior inocência (leia-se: ignorância) tiram com policiais militares durante manifestações. Afinal, com o perdão do trocadilho infame, trata-se da instituição que mais desfere golpes no Brasil. E, para além do trocadilho: é a instituição que está sempre flertando com o paralegal, e com muita facilidade sai do flerte para cair na paixão fogosa com o ilegal. Quando? Quando é necessário, em nome de uma ordem muito mais sólida que as leis…

Cá entre nós, mesmo os maiores defensores da ação das nossas PMs sabem disso, mas tentam obliterar essa consciência, porque reconhecem no íntimo que, sem a PM, nossa corrupção entranhada não tem como se sustentar. Nesse sentido, a expressão “quero meu país de volta” faz absolutamente todo sentido, em se tratando de um país onde qualquer dissidência se resolve na bala ou no cassetete. O fantasma está presente porque o inocente, alegre e despretensioso gesto de sorrir para fotos com brutamontes armados no meio da rua traz consigo o desejo de que as dissonâncias se resolvam de uma vez só, com um… golpe… seco e eficaz.

Por isso, foi com grande clarividência que o jornalista Bruno Torturra levantou um ponto fundamental: hoje, muito mais do que os militares, quem tem as condições e a mentalidade para realizar algo parecido com um golpe, no Brasil, são as polícias. (Mas golpe, aqui, não deve ser entendido cartesianamente, como o gesto súbito de bloquear as entradas da capital, tomar as rádios, declarar vaga a presidência etc. Assumir o controle de quem pode manifestar-se ou não, e até, como em alguns Estados, de como se vai estudar, já é golpe suficiente.)

É nas polícias militares que se concentra a imagem dessa solução violenta para o diferente, o desviante, o desconfortável. O policial é aquele que parece ter o poder e o direito (velado) de produzir a solução rápida e dolorosa para problemas vistos como terríveis. Vestindo um uniforme da ordem legal, engendra todo tipo de ilegalidade e desordem, para um lado, enquanto para o outro preserva a continuidade de um modo de existência. É o instrumento de um caos ordenado, esse oximoro com o qual os brasileiros temos muita familiaridade.

Nessa troca de afagos com uma instituição indispensável da nossa corrupção é que se deixa perceber que, na direita brasileira, existe mesmo o desejo de (desferir um) golpe. A incapacidade de se descolar da brutalidade é o gesto que mais desvenda o caráter autoritário e anti-democrático das “elites brasileiras”, e não sua vontade de derrubar a presidente. Isso é mera política.

1A: o desejo de estar por perto quando houver um golpe

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Antes de aprofundar o tema, ainda é preciso mencionar um terceiro ator que anda possuído por esse fantasma, e que responde pelo nome de Paulo Skaf. O presidente da Fiesp, até outro dia, podia ser considerado só mais um aproveitador – com sua candidatura ao governo estadual – ou um oportunista, com seu lance marqueteiro do pato de banheira. Mas o uso da fachada da federação industrial para exigir renúncia demonstra que o desejo recalcado por um meia-oitozinho do Escafe é poderoso, irresistível.

Afinal, as câmeras já devem estar até apontadas, esperando a hora de disseminar pelo país a imagem de mais um herói da redenção nacional. (Falei em redenção? Ops…) Aquele que teria vocação para ser um mero oportunista acaba se tornando muito mais que isso… por quê? Porque o fantasma está ali, rondando, pronto para moldar as manifestações do desejo, na figura de um desejo de repetir-se como golpe…

Escrevi esses parágrafos antes da publicação dos caríssimos anúncios de Skaf nos jornais brasileiros, usando dinheiro público, ou seja, extraído via impostos dos trabalhadores e empresários para ser entregue à Fiesp, que com ele deveria fazer serviços sociais, e não conspirações. Assim, o homem que não quer pagar o pato quer fazer os demais de patos. Mas, em nome de um objetivo maior, por que não deixar passar, não é mesmo?

2: o Desejo de Ser Golpeado

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De todos esses grupos, é claro que o mais fascinante é aquele com um desejo inconfesso não de dar um golpe, mas de sofrê-lo. Isto é, de constituir o sentido último de seus males como a formação de um golpe, atitude ilegítima contra uma instituição legítima. No caso do PT, a questão não está em responder se um eventual impeachment da presidenta seria essa atitude ilegítima, ou seja, um golpe. Isso será sempre discutível, considerando a lei brasileira de remoção de presidentes: é quase impossível que um processo desses observe estritamente o que está na lei. Torno a esse ponto adiante.

Mais interessante é pensar sobre o lugar do conceito de golpe nessa narrativa. Ao contrário do que pode parecer, ele não surge com a ameaça concreta da remoção de Dilma (por impeachment ou cassação da chapa, tanto faz). Algo dessa natureza está presente há muito tempo, no esforço de construção da imagem que faz da dupla Lula/Dilma uma espécie de novo governo Jango, cercado de uma matilha de direitistas golpistas enraivecidos, prontos para atacar ao primeiro cheiro de sangue.

Basta lembrar, por exemplo, das inúmeras evocações da idéia de lacerdismo durante o período eleitoral de 2010, sobretudo quando a campanha de José Serra buscou uma mensagem próxima ao conservadorismo católico, a gritaria anti-aborto etc. É bem verdade que estava se reproduzindo ali um velho topos da política brasileira, com o uso de pautas tradicionalistas como estratégia contra um alvo considerado progressista (contra tantas evidências!). Também é verdade que Lacerda foi o campeão dessa tática imbecil, que ainda por cima acabou por não lhe trazer nada do que queria. Tampouco é exclusividade brasileira. No entanto, justamente essa brecha permitiu que o governo do PT reforçasse sua imagem como coração da esquerda brasileira, em flagrante contradição com suas políticas e suas alianças.

Para além desse caso específico, já podemos ver que, na arquitetura da visão de mundo petista, a noção do golpe ocupa uma posição basilar. Essa centralidade decorre de um certo poder purgativo, até mesmo redentor, que ela detém. Necessariamente alguém que foi vítima de um golpe, de uma remoção forçada, de um conluio, é alguém gostável.

Por isso, o desejo de golpe, no caso petista, opera bem assim: sem a perspectiva de ser golpeado, o que é o governo Dilma? É um governo de apoio ao latifúndio (com seus corolários, o agrotóxico, o genocídio indígena, a dominação semi-coronelista da política em nível local), e ao extrativismo (está aí o Rio Doce que não me deixa mentir, mas o que dizer dos projetos de exportação de minério de Eike Batista? – aliás, lembra dele?), sem falar no flerte descarado com fundamentalistas religiosos cujo maior interesse não está na salvação da alma de ninguém.

Ou seja, um governo que, em nome de um desenvolvimentismo que não desenvolve coisa nenhuma, se coloca em aliança bastante incestuosa com o capitalismo mais clientelista. Ou seja, torna-se intermediário e fiador de uma brutal acumulação primitiva, fazendo da população e dos trabalhadores que lhe emprestam o nome a matéria-prima para um regime ao mesmo tempo rentista e especulativo.

No entanto, o petista alarmado com a chegada do golpe (alarmado, ou seja, motivado, mobilizado, eletrizado) continua a ver o atual governo como baluarte da esquerda brasileira contra o avanço das tropas fascistas. Como isso é possível? Certamente não é olhando para o próprio governo. Não é pela negociação de cargos no varejo, pela construção de Belo Monte, pela escolha de ministros, pela orientação das empresas estatais. Essa perspectiva só se justifica, só se realiza, na presença de um inimigo a ponto de golpear. O golpe é o único véu entre o governo Dilma e o espelho – ou, para usar uma imagem mais elegante: o retrato do Dorian Gray de Oscar Wilde.

Acontece que o golpe tranquiliza a consciência de quem ainda quer manter aquela alma petista dos bons tempos, ao estabelecer um contraponto assustador. Sem golpe, não há esquerda no governo e isso é insuportável para quem, considerando-se uma pessoa de esquerda, se mantém fiel ao partido. Por isso, a presença constante do golpe é indispensável; e é, assim, desejada, da mesma maneira como desejamos aquilo que tememos, uma vez que baseemos nossa existência nesse temor.

O desejo de quem vê o golpe vindo do outro lado tem, por isso, um componente de individuação. Ou seja, de constituir-se como sujeito dentro de um quadro de relações e graças à projeção desse desejo no mundo exterior. Aquele que está constantemente prestes a sofrer um golpe da direita – e não há dúvidas de que quem age com maior agressividade contra o PT, hoje, é a direita – só pode ser esquerda. Em consequência, pode exigir solidariedade de todos os demais e, com isso, aglutiná-los em sua órbita. “Como assim, não vai cerrar fileiras conosco, isentão?”; “Não percebe que está fazendo o jogo da direita?”; esses e outros bordões têm jorrado com tanta insistência quanto os gritos de “petralha” vindos do outro lado.

Esse pesadelo só não pode se concretizar, é claro. Aí a fantasia explode.

2A: O Desejo de Golpes Idos

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Falei do “não vai ter golpe” como expressão de uma esquerda sobre a qual sempre pende o fantasma de 64, quando a tensão nas ruas chegou a um nível ainda mais profundo do que o atual, mas, na hora do vamos ver, ela simplesmente não lutou. É bem verdade que a capitulação das esquerdas no Brasil em 64 tem muito a ver com a decisão pessoal de Jango, que não quis resistir, ao contrário de seu cunhado, disposto a repetir em escala ampliada a campanha da legalidade de 61. Os motivos para isso são discutíveis, da tal pusilanimidade do rancheiro à informação de que a Quarta Frota estava próxima à nossa costa. Pouco importa. O subtexto do “não vai ter golpe” é o tradicional “desta vez vai ser diferente”.

Assim, à primeira vista, o novo 64 desejado pelo inconsciente governista é aquele em que o grande capital tenta derrubar o governo popular e democrático, mas “desta vez” não consegue, porque o povo se subleva e garante que não haja golpe, ou que ele seja rapidamente abortado, como ocorreu na Venezuela em 2002.

E quem operaria essa resistência? Quem daria o sangue contra a derrubada do governo? Certamente não os movimentos sociais, cujo sangue só é derramado pelo governo à base de cassetete. Os sindicatos? Talvez cobrem caro demais, já que desta vez a exigência envolve correr riscos – fazer discurso em alto-falante com distorção não basta. A Odebrecht, possivelmente, mas na planilha dela não tem distinção de grupos políticos: tanto faz. O povo? Quer mais é ver o circo pegar fogo…

O golpe desejado seria, assim, um modo de expurgar não só a conversão do governo do PT às alianças com a direita coronelista e patrimonialista brasileira – alianças estas que foram muito além da mera Realpolitik, lá está Kátia Abreu que não me deixa mentir –, mas também a memória de uma queda sem resistência. Assim, um governo que, em matéria de reformismo e progressismo, foi em tudo oposto ao de João Goulart passa a ser visto por seus defensores como potencial corretor dos rumos da história, lutando onde o outro não lutou, resistindo onde o outro não resistiu, nem que seja só para cair de pé, bravamente.

Pouco realista? Isso é você que está pensando…

3 – Golpe: Fantasma e Desejo

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Mas afinal, objetivamente: o impeachment é golpe ou não é? Olhando por um lado, está certo o argumento da oposição, segundo o qual não há golpe se o processo seguir o devido trâmite; por outro, está certo o argumento da situação, para quem o uso das “pedaladas fiscais” é uma desculpa esfarrapada, no máximo um deus ex machina, para justificar a derrubada da presidente. Como escrevi em dezembro, é o problema do impeachment de Schrödinger.

O que há naquele texto que mereça ser repetido é que esse tipo de processo existe precisamente para situações como a atual, em que o problema não é jurídico, mas político; é a válvula (uma delas) pela qual a política acontece. (Naquele texto, falei das ambiguidades e dos rigores inalcançáveis da lei como uma das válvulas; outra era a atuação da polícia, sobretudo a militar; mas há muitas outras, e uma das mais importantes é a construção de sentido operada pelos meios de comunicação.)

Com seu componente de instrumento legal e seu componente de golpe político, o processo de impeachment é um sintoma de que as vias de operação do poder estão congestionadas. De um jeito ou de outro, seguindo a velha máxima de que a política tem horror ao vácuo, essas vias serão reabertas.

Não custa lembrar que quem tinha mais poder para reabrir essas vias a seu favor, até muito recentemente, era o governo (leia-se: o Executivo). No sistema político brasileiro, a presidenta da República detém muito, muito poder; ou, como se costuma dizer, “a caneta”. Dilma teve, é preciso estar consciente disso, todas as oportunidades do mundo para manter sua coalizão e abortar a ascensão do, vá lá, golpismo. Se não o fez, grande parte da culpa recai sobre sua própria incompetência política, sem falar no sufocamento atroz das mobilizações de esquerda que efetivamente houve no Brasil desde 2013.

Sem conseguir apoio no Congresso e tendo deixado as ruas completamente escancaradas para a direita, e uma direita bem tacanha, também desejante de golpes, o que Dilma e seus assessores mais próximos conseguiram foi concretizar aquele fantasma tão desejado: o golpe iminente. Repetindo: a situação não chegou a esse ponto simplesmente por causa de uma enorme mobilização anti-governista. Essa mobilização existe, mas só conseguiu ganhar corpo, só conseguiu obter apoios, porque foi alimentada pelo governo. Inclusive como fantasma: lembra da propaganda eleitoral de 2014?

Até mesmo Michel Temer, hoje conspirador, traidor, golpista abjeto, fez das tripas coração para salvar um governo que não queria ser salvo. Não haveria ruptura institucional, nem o menor risco de impeachment, se Dilma fizesse um único gesto acertado para evitá-los. Mas ela fez o oposto, ajudada por seus brilhantes assessores Mercadante, Cardozo e Wagner. De que adianta falar agora em golpe?

No fim, a incompetência foi tamanha que a situação provavelmente irá longe demais, com a concretização que, na estrutura da fantasia petista, não poderia ocorrer. Chegamos a um estado de soberania disputada, um ponto-chave eminentemente político, em que todas as forças são lançadas para dentro do jogo e todas as estruturas se tornam instrumentos. Desde o texto da lei até os textos de jornal, passando pela atuação da polícia, a “negociação no varejo dos cargos”, os púlpitos de igreja, os movimentos sociais.

A pergunta agora é: quais desses estão fortalecidos? Quais estão enfraquecidos? Quem os fortaleceu? Quem os enfraqueceu? Com golpe ou sem golpe, temo que a resposta a essas perguntas pinte uma imagem pouco favorável para o governo.

Quando o desejo de golpear e o desejo de ser golpeado coexistem, é fatal que, eventualmente, venham a convergir. A princípio, pode parecer que eles só se encontrem no infinito. Até o momento em que algo excepcional, uma crise, um governo inepto, uma investigação policial, desvia os fachos e os aproxima. Esse é o momento que estamos vivendo: uma espiral rumo ao abismo em que se entrelaçam tipos diferentes de fascínio pela ruptura, atualizando desejos de golpe e memórias de golpe.

4: O Cadáver Insepulto

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Como eu disse, o desejo inconsciente do golpe, a fantasia em relação a uma iminente intervenção extra-legal, o espectro que nos ronda, é indicativo de que temos entre nós um cadáver insepulto que atende pelo nome de “ditadura militar”. Isso quer dizer que nunca chegamos a encarar esse legado sobre nossas instituições e mesmo sobre nossas relações sociais cotidianas.

Não investigamos o suficiente, apesar da Comissão Nacional da Verdade, que recebeu muito menos holofotes (e fundos) do que merecia. Não punimos, e quando tivemos a chance de rever a lei de anistia, todo mundo com um pouco de poder foi contra. Ao fim, o STF a manteve, com os mais batidos e tristes argumentos.

Não repensamos instituições como a Polícia Militar. Continuamos aplicando leis produzidas pelo período autoritário (e, por extensão, ilegítimo); isso inclui o famigerado e grotesco uso da Lei de Segurança Nacional contra manifestantes em 2013. Damos ouvidos a gente que participou do exercício do regime de exceção. Mal e porcamente tivemos a coragem de retirar os nomes de tiranos das nossas ruas, e as tentativas nesse sentido foram muitas vezes recebidas com má vontade.

Para muita gente, ainda é perfeitamente aceitável a idéia de que a recusa terminante a uma ditadura só pode significar o apoio a alguma outra ditadura, o que parece indicar que a perspectiva de viver sob opressão não parece ser um grande problema para boa parte da população. De fato – e isso está muito claro em textos como o do historiador Bruno Alvaro, que nessas horas é quem “dá a real” do jeito mais poético –, a maior parte dos brasileiros ainda vive tal e qual na época da ditadura, com a mesma repressão, a mesma fluidez entre a legalidade e os crimes cometidos por agentes do Estado, as restrições a direitos básicos (e constitucionais) como a liberdade de ir e vir e a inviolabilidade do lar. Basta ser negro, pobre, índio. E se é para falar de estado de exceção, podemos dar nome e sobrenome: Rafael Braga Vieira, a grande vítima da supressão do levante de 2013.

A ditadura, no Brasil, pode estar desencarnada, se por “encarnar” entendemos o controle sobre o aparato do governo central. Mas morta, não está. A rigor, como fantasma, a ditadura pode até ser mais eficaz, por conseguir se imiscuir na mente de todos e, em grande medida, orientar o funcionamento das instituições e das relações cotidianas mesmo em democracia.

Assim sendo, o cerne do nosso problema não está em identificar o golpe aqui ou acolá, mas em entender que estamos agindo constantemente sob o signo do golpe. Não o que poderá vir, mas o que já aconteceu. Estamos revivendo essa experiência porque não a digerimos até hoje e estamos condenados a novas encenações de instabilidades institucionais, com lacerdismos, golpismos e tudo o mais a que temos direito. Não precisa ter golpe, porque no Brasil o golpe é ubíquo.

5: Um Posicionamento, Enfim

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Com tudo isso, devo dizer que minha posição pessoal é rigorosamente contrária ao impeachment de Dilma Rousseff, nas bases em que está para se dar. À parte o fato de que a base legal parece de fato não existir (mesmo se eu acabei de dizer que, no fundo, a base legal não é determinante); à parte também meu completo ceticismo de que algo de bom ainda poderá sair deste governo, caso ele se salve e permaneça até 2018; à parte, por fim, meu enorme pasmo diante da crença de que haverá alguma “guinada à esquerda” de uma administração apaixonada pelo concreto armado: acredito que o recurso ao impeachment é um erro histórico profundo, do qual o país ainda se arrependerá amargamente.

Como já apontado por muitos, o impeachment é um momento catártico cujo principal efeito (e os atores políticos que o tocam têm plena consciência disso) será o esvaziamento das atuais tensões no país. Por um lado, são tensões quase insuportáveis e queremos mesmo um pouco de calma para voltar a viver. A economia, por exemplo, agradeceria bastante, é forçoso admitir. Por outro, são tensões que mobilizam, obrigam à tomada de posição, favorecem rearticulações e desnudam as insuficiências da nossa sociedade, a começar pelo déficit democrático.

O impeachment seguramente serviria para costurar um acordo que entregaria o PT aos leões e livraria todos os demais implicados na Lava Jato, principalmente os do PMDB, maiores favorecidos com essa lama toda, e em seguida os do PSDB, que têm a vantagem de poder contar com a complacência da classe média e o apoio da classe mídia. A pessoa que defende o impeachment em nome da luta contra a corrupção pode até ser bem intencionada (algumas são, outras não), mas posso garantir que não tem a menor ideia do que está dizendo. (A bem intencionada, claro; a mal intencionada eu suponho que saiba até bem demais.)

Esse momento catártico é típico de um país que não quer assumir suas responsabilidades. O que nos faz falta não é uma solução sumária para o “problema Dilma”, o “problema Lula”, o “problema PT” ou “o problema desses safados todos que estão aí”. Precisamos é de constituir forças políticas bem articuladas, efetivamente ancoradas na nossa diversidade social, capazes de dialogar com a sociedade civil e extrair dela sua força de atuação. Partidos, movimentos e organizações, portanto, programáticos e propositivos. O impeachment nos trará o oposto disso.

É bem verdade que, no começo, a economia deve responder bem ao governo Temer e parecerá que as crises foram “solucionadas”, os erros do governo Dilma, apagados. Vamos possivelmente esquecer a tensão em que vivemos desde 2013, graças aos dois ou três anos de crescimento econômico moderado que poderão resultar daí e do sufocamento dos impulsos contestatórios nas ruas. Pautas agressivamente impopulares serão aprovadas e os porta-vozes do mercado, ingenuamente, vão comemorar.

O problema é que, daqui a poucos, muito poucos anos, quando esse arranjo bater de frente com as efetivas condições demográficas e sociais do Brasil, que mudaram muito nos últimos 20 anos, vamos ter esquecido de fazer o mais urgente: construir essas novas estruturas políticas.

Tendo transformado o Judiciário em ramo heróico do poder, vamos nos deparar com uma sociedade judicializada e policializada, o que não tem como ser bom: afinal, como bem sabemos, muitos juízes pensam que são Deus e os policiais, se não se acham deuses, certamente acreditam ser algum tipo de arcanjo Miguel. Mas isto é um país supostamente democrático, não é algum reino celestial.

Nesse sentido, e apenas nesse, o impeachment é certamente “um golpe”: no sentido clássico em que é sinônimo de bordoada. A vítima desse golpe não é Dilma, nem Lula, nem o PT, mas a paulatina constituição de um novo arranjo político, pós-88, pós-Odebrecht, para o Brasil. Algo muito importante, que ainda está nos estágios iniciais, mas seria ceifado ainda em botão. Algo que se pode divisar vagamente nos novos partidos (Rede, talvez Raiz, até mesmo, se bobear, esses partidos liberais que tentam se registrar) e no vigor de movimentos sociais autônomos como o das escolas. Tudo isso é muito recente e está em grande risco.

São esses que deveriam estar gritando contra um golpe, e não o PT.

Post-scriptum – Tantos Fantasmas

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Comecei o texto falando do golpe como o fantasma de um cadáver insepulto; mas logo me dei conta de que está longe de ser o único dos nossos fantasmas. É, certamente, o que mais atua nas nossas refregas políticas, sobretudo quando chegam ao ponto em que chegaram. Mas existem outros, dos quais, é bom lembrar, a própria ditadura é herdeira.

Por sinal, eu poderia dizer que os fantasmas são uma entidade dinástica, que vai se renovando a cada geração, adaptando-se às condições de cada época e, principalmente, acumulando forças, saberes, poderes; estendendo o alcance de sua atuação; reforçando os nós entre os diferentes pontos de assombração.

Segue uma breve lista de fantasmas, os cadáveres insepultos em que tropeçam todas as nossas iniciativas emancipatórias ou modernizadoras, isto é, nossas boas intenções. O genocídio indígena da colonização, que se traduz em genocídio indígena da república. O rentismo/extrativismo da economia, que vai de Duarte Coelho a Marcelo Odebrecht, passando por Percival Farquhar e os Setúbal. O patrimonialismo estamental, que joga por terra a já normalmente ineficaz distinção entre estado e mercado.

E o principal de todos, claro, evidentemente, sem sombra de dúvida: a escravidão. Está aí Joaquim Nabuco, que não me deixa mentir, e cujo prognóstico de que “a escravidão permanecerá por muito tempo a característica nacional do Brasil” aparece tatuado em baixo-relevo na testa de cada secretário de Educação, Segurança Pública, Transportes ou Habitação deste país.

Sendo assim, o golpe é fractal, ou seja, tem múltiplas dimensões que se dobram umas sobre as outras. Também por esse motivo, mais uma vez, é estéril discutir se há golpe ou não há, porque cada gesto, de cada lado, traz consigo uma fração de desejo de golpe, que também é uma encarnação do conflito inescapável que caracteriza um país como o nosso. Um conflito que é bem mais que luta de classes, porque envolve condições de vida e de ocupação do território transversais em relação à classe: envolvem raça, ascendência, sobrenome.

A ditadura, esse nosso fantasma mais recente, não foi derrubada, como se sabe. Caiu quando quis, vendo que tinha feito besteira na economia e percebendo que o apoio internacional esmaecia. Os militares garantiram o perdão para si próprios e ainda não vi nenhuma declaração oficial das Forças Armadas se retratando por lançar o país nas trevas por tanto tempo. Uma ditadura que, depois de golpear a esquerda, golpeou também a direita democrática (tão pálida no Brasil) e até a direita pouco democrática, como logo percebeu o pobre diabo do Lacerda.

Se hoje temos uma Constituição minimamente humanista, nós a devemos ao momento histórico único da redemocratização, não a algum espírito nacional ou coisa que o valha. Mesmo assim, a Constituinte foi marcada pelos péssimos augúrios do Centrão, germe do nosso pemedebismo, como apontado por Marcos Nobre, e termo que reaparece na nossa política pela via das tentativas do governo de se salvar. Triste sina.

Ataques ao progressismo da Carta esperavam apenas por um governo fraco e um sistema político esfrangalhado para se desvelar em toda sua força. É fácil de prever, como fiz acima, que a grande ofensiva virá com o governo do PMDB: Temer, Cunha, Renan, e nem quero pensar em quais sócios menores… São gente que não tem escrúpulos quando se trata de repartir o território e as forças produtivas.

Infelizmente, porém, a realidade é que a atual paralisia é muito mais favorável aos retrocessos. Com um Executivo em constante xeque e os movimentos sociais com a cabeça fixa no golpe, o Pântano, o Centrão, o exército de Cunha têm curso livre para agir, chantagear, extorquir. Para dar seus golpes constantes, institucionais, legais. Sim, enquanto uns desejam, temem e devaneiam com os golpes, outros os desferem.

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O impasse e os impasses

Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais

Caetano Veloso

Desculpe usar jargão; não vejo outro jeito para expressar meu ponto de vista sobre o cenário político brasileiro, com suas passeatas, seu Congresso tenebroso, seu fisiologismo encastelado, seu presidencialismo em migalhas; é que me parece existir um pano de fundo nebuloso para tudo que está acontecendo, e só consigo resumi-lo com a seguinte frase: o Brasil está se desindividuando. Agora vou ter que me dar ao trabalho de explicar o que quero dizer com isso, mas, numa tentativa provavelmente frustrada de segurar o leitor pelos parágrafos abaixo, já adianto que o argumento só vai ficar claro ao final…

Tudo parte de uma pergunta, que pode ser desdobrada em várias: será que não estamos vivendo um período em que a normalidade se tornou impossível? Será que os procedimentos cristalizados há séculos, que se renovam periodicamente, respondendo à sucessão dos períodos históricos, não estão começando a sofrer para fazer essa renovação? Será que os esforços dos nossos caciques patrimonialistas para dominar de cabo a rabo o plano social e o sistema político não seriam uma reação à caducidade das próprias estruturas patrimonialistas?

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É claro que essas perguntas derivam de uma mera intuição, mas essa intuição vem vibrando cada vez mais intensamente de uns tempos para cá. Já há alguns anos, em conversas e entrevistas que tenho feito – por motivos em geral profissionais, mas nem sempre – com sociólogos, cientistas políticos, historiadores e até economistas, o tema dominante tem sido a crise da representatividade, os impasses políticos, os nós que parecem impossíveis de desatar. Acredito que essa crise não é mais segredo para ninguém.

Mesmo assim, um subtexto perpassa essas conversas, e nele algo como um otimismo se deixa entrever. De diferentes maneiras: seja porque o comportamento dos motoristas é menos grotesco do que costumava ser, seja porque camadas populares estão resistindo mais incisivamente a arbitrariedades, seja porque se espera dos novos consumidores do país uma postura mais pragmática em política, seja por mil outras coisas.

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Da série Citações: Aldous Huxley para George Orwell

Há algum tempo, circulou pela internet uma comparação entre as previsões distópicas desses dois autores, Huxley em Admirável Mundo Novo (de 1932) e Orwell em 1984 (de 1949). A conclusão era de que o universo previsto por Huxley era mais parecido com o mundo como ele é hoje do que o imaginado por Orwell.

No mundo de Huxley, a sedução, a hipnose e o prazer (em suma, a alienação) seriam os elementos nodais da dominação totalitária definitiva. No de Orwell, seriam a vigilância, o controle, o pavor. A diferença de datas de publicação não deixa de carregar uma parte da explicação para tamanha disparidade. Ao escrever, Huxley acompanhava o desmoronamento dos anos loucos anteriores à Grande Depressão, era do Fox Trot e dos americanos em Paris. Já Orwell, ao escrever, acabava de saber da existência de Auschwitz. Atroz seria escrever um livro depois de Auschwitz, a não ser que fosse 1984?

Na comparação que rodou a rede, o consumismo, a indústria cultural e a maior parte da internet eram apresentados como demonstrações do acerto de Huxley. Esse lance de terror, opressão e vigilância tinha ficado para trás, derrotado em Stalingrado e na Normandia.

Aí veio Obama, o homem dos drones e do Prism, o Bush de fala macia. E embaralhou tudo de novo. Minha tentação é dizer: ambos previram bem, mas parcialmente. Fazendo rodopiar incestuosamente a opressão e a sedução, o baile está garantido para o dominador.

E no meio disso tudo, encontro a carta que vai aí abaixo. No lançamento de 1984, Orwell pediu ao editor que mandasse um exemplar do livro para seu outrora professor de francês, Aldous Huxley. E Huxley respondeu. É interessante aprender de onde ele tirou a referência de sua sociedade da sedução, do Soma, do hedonismo Ikea. No mínimo uma curiosidade, enfim.

Wrightwood. Cal. 21 October, 1949

Dear Mr. Orwell,

It was very kind of you to tell your publishers to send me a copy of your book. It arrived as I was in the midst of a piece of work that required much reading and consulting of references; and since poor sight makes it necessary for me to ration my reading, I had to wait a long time before being able to embark on Nineteen Eighty-Four.

Agreeing with all that the critics have written of it, I need not tell you, yet once more, how fine and how profoundly important the book is. May I speak instead of the thing with which the book deals — the ultimate revolution? The first hints of a philosophy of the ultimate revolution — the revolution which lies beyond politics and economics, and which aims at total subversion of the individual’s psychology and physiology — are to be found in the Marquis de Sade, who regarded himself as the continuator, the consummator, of Robespierre and Babeuf. The philosophy of the ruling minority in Nineteen Eighty-Four is a sadism which has been carried to its logical conclusion by going beyond sex and denying it. Whether in actual fact the policy of the boot-on-the-face can go on indefinitely seems doubtful. My own belief is that the ruling oligarchy will find less arduous and wasteful ways of governing and of satisfying its lust for power, and these ways will resemble those which I described in Brave New World. I have had occasion recently to look into the history of animal magnetism and hypnotism, and have been greatly struck by the way in which, for a hundred and fifty years, the world has refused to take serious cognizance of the discoveries of Mesmer, Braid, Esdaile, and the rest.

Partly because of the prevailing materialism and partly because of prevailing respectability, nineteenth-century philosophers and men of science were not willing to investigate the odder facts of psychology for practical men, such as politicians, soldiers and policemen, to apply in the field of government. Thanks to the voluntary ignorance of our fathers, the advent of the ultimate revolution was delayed for five or six generations. Another lucky accident was Freud’s inability to hypnotize successfully and his consequent disparagement of hypnotism. This delayed the general application of hypnotism to psychiatry for at least forty years. But now psycho-analysis is being combined with hypnosis; and hypnosis has been made easy and indefinitely extensible through the use of barbiturates, which induce a hypnoid and suggestible state in even the most recalcitrant subjects.

Within the next generation I believe that the world’s rulers will discover that infant conditioning and narco-hypnosis are more efficient, as instruments of government, than clubs and prisons, and that the lust for power can be just as completely satisfied by suggesting people into loving their servitude as by flogging and kicking them into obedience. In other words, I feel that the nightmare of Nineteen Eighty-Four is destined to modulate into the nightmare of a world having more resemblance to that which I imagined in Brave New World. The change will be brought about as a result of a felt need for increased efficiency. Meanwhile, of course, there may be a large scale biological and atomic war — in which case we shall have nightmares of other and scarcely imaginable kinds.

Thank you once again for the book.

Yours sincerely,
Aldous Huxley

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Pauta difusa e derrota, mais uma vez

Para finalmente dar meu palpite sobre o furacão que passou no Brasil nas duas últimas semanas, adotei dois princípios: pensar em termos conceituais, em vez de impressionistas, e começar do começo. Os motivos, espero, vão ficar claros ao longo do texto.

No começo, isto é, entre a porradaria geral da polícia e a primeira manifestação realmente gigantesca, a interpretação geral era de um “aqui também”. Até então, o país que realmente estava fervendo era a Turquia. Lá como cá, o primeiro vetor invocado para explicar a súbita capacidade de motivação foi o acesso às redes sociais. Ou seja, a Turquia e o Brasil seriam algo como um segundo tempo do animado ano de 2011, que teve Primavera Árabe, Occupy Wall Street, indignados na Espanha, manifestações em Israel, Chile e mais tantos outros países.

Mas eis que veio 2012, o ano da decepção: a Espanha, como o resto da Europa, seguiu com suas políticas de austeridade; na Grécia, o neonazismo ganhou terreno. No mundo árabe, os países sortudos se viram com governos religiosos e conservadores; os azarados, com guerra civil. O Occupy teve de se contentar em descobrir que não só Obama baixou a cabeça para Wall Street, como, no que tange aos direitos civis, estava na mesma linha de Bush. Derrotas, ao que parece.

Agora, 2013. Novos países entram na dança. Além da Turquia e do Brasil, Índia e Indonésia, além de, mais uma vez, os bravos chilenos, se colocam em movimento. Como sempre acontece, comparações pululam com o famoso maio de 1968, quando a greve geral francesa, somadas às manifestações dos estudantes franceses, se espalharam para o Leste Europeu, o México, o Brasil, antes de resultar em derrota e apatia.

Algo nessa comparação, porém, não se encaixa. Em 1968, o que houve de efetivo, como a greve que, sem eufemismos, parou a economia da França, foi comandado pelos fortíssimos sindicatos da época, um tempo de mobilização industrial e partidos de esquerda poderosos. Os caminhos para se chegar aos objetivos, fossem quais fossem as pautas de cada grupo social envolvido, à exceção provável dos estudantes, estavam bem traçados, até onde podiam divisar os envolvidos.

Hoje, não há nada disso. Em 2011, os árabes queriam derrubar seus ditadores. E depois? Os espanhóis queriam mandar embora o neoliberalismo… e mais o quê? Os novaiorquinos eram contra a plutocracia, como quase todo mundo. E assim por diante. No Brasil, as manifestações mais ou menos pequenas contra a cara de pau do transporte público se expandiram da noite para o dia numa maçaroca de gente despolitizada que protesta contra conceitos abstratos como a corrupção, mas não quer saber de questões concretas como… a corrupção do oligopólio do transporte. Com isso, as mesmas críticas endereçadas aos indignados e ao Occupy voltaram: as pautas são difusas, as pessoas não propõem nada de concreto. Continuar lendo

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A batalha perdida do pastor

A polêmica suscitada pela entrevista de Silas Malafaia a Marília Gabriela é uma daquelas oportunidades de ouro para levantarmos hipóteses igualmente polêmicas, com as quais tentamos chamar a atenção. No meu caso, não pretendo fazer uma análise detalhada das opiniões do pastor, como fez, por exemplo, o biólogo Eli Vieira. Meu escopo é mais abstrato e minha hipótese trata das diatribes de Malafaia no contexto de um fenômeno ainda vago, mas já repisado: “a volta da religiosidade”. O que quero sugerir é que a luta de Malafaia é uma luta vã, isto é, uma luta que só pode vir a acontecer porque sua premissa fundamental é uma admissão de derrota. Malafaia conduz uma briga perdida, provavelmente por querer.

Antes de mais nada, é preciso estabelecer um ponto, sem o qual estou só gastando meu tempo ao escrever e o seu ao ler. É preciso conceder ao pastor o benefício da dúvida e considerar, sem embargo de quaisquer evidências (contrárias ou favoráveis), que ele fala com seriedade e honestamente acredita tanto em seus métodos quanto em seus argumentos. Este postulado é indispensável, porque não foram poucos na história aqueles que adotaram posições extremadas, sobretudo perante a mídia, com o intuito exclusivo de criar para si próprios uma imagem socialmente relevante. Hoje, não são poucos a pensar que Malafaia se encontra nesse grupo. Mas, para efeito de argumento, suponho que não seja o caso, ainda que, como os mencionados, ele tenda a tratar argumentos, evidências e teses com uma leviandade espantosa.

À hipótese, então: parece-me que Malafaia luta (com sinceridade e galhardia, ainda que histriônicas) uma batalha perdida de partida. A grande questão é que ele se dirige a um público bastante particular e, diria eu, provavelmente numeroso, com proporção considerável entre seus fiéis. Não me parece que ele esteja se dirigindo a uma malta histérica e sanguinária de fundamentalistas religiosos, como levaria a crer seu tom de voz e a já referida leviandade. Para justificar sua condenação dos homossexuais, ao contrário, Malafaia busca justificativas na ciência: explicações comportamentais, dados genéticos, origens sociais e ambientais… Ele fala em cromossomos, em traumas, um vocabulário, cá entre nós, bem pouco teológico. (Volto à questão da teologia mais tarde.) E se ele faz isso, ora, é porque o público ao qual se dirige tem algum nível de exigência por explicações como essas, ou seja, faz questão de fundamentar suas opiniões e crenças em dados empíricos. De fato, pesquisas e mais pesquisas reiteram que, para a infelicidade de Silas e tantos outros, o público evangélico não é nem tão homogêneo, nem muito menos tão intolerante quanto costumam pintá-lo.

Troca de papéis

Observe que Malafaia não recorre à ciência simplesmente como citação. Contra Jean Wyllys, por exemplo, que é historiador por formação, o pastor tenta a carteirada do argumento de autoridade: “eu sou psicólogo”. Ele se coloca na discussão não como pastor, não como intérprete ou defensor das Escrituras, mas como psicólogo, ou seja, como autoridade científica! Sim, verdade, um psicólogo de formação não é necessariamente um cientista; pode muito bem, por exemplo, ser um profissional de RH ou trabalhar com marketing. Mas não é como Malafaia se apresenta: ele busca usar sua condição de bacharel em psicologia para se passar por cientista, ainda que isso, normalmente, exigisse publicações na área, entre outras coisas.

Mas a discussão, neste texto, não é sobre as qualificações acadêmicas do homem. O crucial, neste momento, é entender a dimensão dessa troca de papéis: Malafaia, por sua própria iniciativa, apresenta como credencial não a espiritualidade, mas a ciência. “A razão”, poderíamos dizer, se estivéssemos com pressa de fazer juízos. Mas não estamos com pressa. Por enquanto, tudo que quero expressar é que, ao se colocar como homem de ciência, ainda que pseudo-ciência, um indivíduo, pastor ou não, se submete de livre e espontânea vontade ao risco de refutação e à exigência de rigor metodológico. Isso é verdade mesmo para alguém que, paralelamente, ainda pode tentar a carteirada inversa, ou seja, reafirmar-se como autoridade religiosa, com uma posição inicial inflexível que coloca, desde o início, fora do alcance o tal rigor metodológico. Isso é extraordinário, porque é uma situação paradoxal, um beco sem saída em que ninguém o obrigou a entrar.

Esse é o elemento central da “batalha perdida” de que falei, mas ainda é preciso desenvolver. Lembremo-nos de que Silas Malafaia é pastor da Assembléia de Deus Vitória em Cristo, uma igreja herdeira dos avivamentos do século XIX, nos EUA e, por isso mesmo, uma religião de culto, ou seja, da experiência direta e individual do divino. Essas religiões, pentecostais e neo-pentecostais, recusam tanto quanto possível as exigências de discussão teológica, do estabelecimento de dogmáticas e da observância estrita de liturgias – elementos vigorosamente criticados nas religiões à época já estabelecidas. Nesse contexto, Malafaia é um líder espiritual, de fato e de direito, numa estrutura em que o direito decorre imediatamente do fato. Em outras palavras, ele tem seguidores, por isso é líder. Não há chancela de autoridade formal e hierarquizada, como no caso do catolicismo, por exemplo. Essa posição de líder espiritual, nem preciso dizer, é muito forte.

Sem embrago de toda essa força, Malafaia não consegue se bastar nessa posição. Ele precisa buscar combustível, munição e mantimentos fora da área espiritual. Eis um fato surpreendente. Se ele precisa fazer isso, é porque a autoridade da religião não basta mais para orientar o comportamento, nem mesmo a convicção, em certas áreas cruciais, como a sexualidade. Sem esquecer, é claro, que Malafaia, pelo histórico de sua religião, não pode recorrer àquelas formulações teológicas que renderam tantos embates, até guerras, entre protestantes e católicos, católicos e católicos, protestantes e protestantes. Como resultado, Malafaia, ao se entregar a incursões clamorosas no debate público, flutua entre inúmeros campos distintos, sem conseguir ancorar-se a nenhum deles: o pentecostal, o teológico-dogmático, o psicológico, o cromossômico… Se ainda fosse líder apenas espiritual, especificamente no estilo de John Newton ou Luigi Francescon, ele poderia deixar de lado o recurso à genética e fazer valer sua visão de mundo pela força da autoridade religiosa. Mas não é o que acontece, provavelmente porque já não são muitos os que estão dispostos a discriminar vizinhos só porque alguém poderoso diz que deve ser assim.

Por outro lado, também poderíamos perguntar que aspecto tem essa batalha perdida de Malafaia, quando a colocamos no contexto da anunciada volta do sentimento religioso. Aqui, para poder apresentar as tonalidades do problema, é preciso fazer um breve excurso. Quando falamos em retorno do sentimento religioso, geralmente não sabemos muito bem que sentimento religioso é esse que está voltando. Mas se colocamos isso em questão, a dúvida passa a ser relativa à idéia de que algo esteja mesmo voltando, isto é, que uma religiosidade do passado saiu de cena, mas agora retorna tal e qual. Afinal, se encararmos as manifestações religiosas de hoje, será que enxergamos um retrato fiel da religiosidade de meio século atrás – ou um século inteiro, ou dois…? E não basta responder que não, porque seria igualmente possível entender o retorno do religioso como o renascimento do espírito místico inerente ao humano, ou seja, sua atração pelo transcendente.

Ora, será que esse espírito esteve mesmo tão adormecido? É claro que não. A sede, o sonho de transcendência, pode manifestar-se de uma infinidade de maneiras. Nas catedrais góticas, nas construções harmônicas de Bach, nos sacrifícios de São Francisco de Assis, na voz dos pastores que entoam spirituals; mas também na conquista do espaço infinito, no desejo de dominar o mundo, no patriotismo cego, na fé inabalável de que são objeto o progresso, a propriedade, o mercado, a revolução. E o misticismo pode tanto ser monacal quanto pentecostal quanto psicodélico quanto druídico quanto futebolístico…

Ciência e fé

De que se trata, então? É aqui que retorna o tema Malafaia… Falei de um homem disposto a subordinar sua autoridade religiosa à chancela da ciência, ou de algo que se pareça com ciência, e reafirmei que isso continua sendo verdade ainda que ele esteja disposto a virar de cabeça para baixo o que dizem os estudos dessa mesma ciência. Não se trata de um homem qualquer, mas um homem que poderia perfeitamente abrir mão dessa chancela e cujo programa televisivo, ainda por cima, é acompanhado por centenas de milhares de telespectadores – de fiéis, por sinal. Estamos, então, diante de um caso de preceitos religiosos que buscam, porque precisam, se justificar na ciência… E pensar que, por séculos e séculos, o mecanismo das relações entre ciência e religião se orientou por uma lógica rigorosamente inversa! Mesmo com todas as suas revoluções, suas acusações de heresia, da Idade Média até fins do século XVIII o que impulsionou a ciência foi a submissão a Deus, declarada e irrenunciável!

O cientista trabalhava para explicitar a glória da Criação, para narrar o poema épico da obra de Deus. Mesmo Galileu, que teve de se retratar para não sofrer a mesma sorte trágica de Giordano Bruno, trabalhava para demonstrar que “Deus escreveu o livro do mundo em linguagem matemática”… Cientistas como ele só estavam dispostos a enfrentar o caos aparente para se aproximar de Deus, cuja perfeição transmitia segurança quanto à eficácia dos cálculos. Leibniz, por exemplo, desenvolveu o cálculo infinitesimal não para romper com religião alguma, mas para colocar à prova suas idéias sobre a Graça divina, como resposta ao inextinguível problema da teodicéia e do mal. Mesmo a física newtoniana se propunha a ser um tributo a Deus.

Tudo isso, todo esse esforço de séculos, foi feito sob o signo da submissão a Deus e ao tal sentimento religioso. Afinal, entender as leis da natureza era uma forma de aproximar-se da Vontade d’Ele. Ou seja, se o sábio, como o vulgar, mas em plena consciência, submete-se aos mecanismos da física, por exemplo, é porque ele se submete aos comandos da Divina Providência. Melhor entendê-la é melhor louvá-la. Mas o ponto é que a autoridade espiritual vinha sempre em primeiro lugar, fosse como dogma, fosse como teologia e metafísica. E a ciência que se orientasse por esse gigantesco farol sobre as consciências. Porque a verdade era uma verdade revelada, era ela que fundamentava todas as verdades particulares. Poucos eram os que se dispunham a questionar essa construção tão sólida.

É claro que houve gente disposta a questionar a submissão do método científico ao dogma religioso. Desde o espinosismo proscrito – que, ainda assim, se colocava como um caminho para a beatitude – até Voltaire, houve também o conflito aberto da religião com a ciência. Darwin está aí que não me deixa mentir: até hoje, para muitos líderes religiosos, rejeitar a teoria da evolução é questão de honra, Malafaia entre eles. Um episódio famoso a esse respeito envolveu o matemático Laplace e o imperador Napoleão. Laplace, inspirado em Newton, mas também de seus rivais teóricos Descartes e Leibniz, escreveu um “Sistema do Mundo” em que tudo, até mesmo a lei da gravitação universal, consistia em forças naturais. (Para Newton, ironicamente, a gravidade era uma prova da existência de Deus, ou, ao menos, do sobrenatural.) Pois Napoleão folheou o texto e perguntou ao sábio: “Qual é o papel de Deus?” E o cientista respondeu: “Majestade, não precisei dessa hipótese”. A essa altura, a autoridade espiritual e a religiosa estavam em campos opostos ou, no máximo, perfeitamente independentes, como era o caso das críticas de Kant à metafísica.

O retorno

Mas uma oposição não é uma submissão. Fala-se em retorno do sentimento religioso como uma reversão no processo de “desencantamento do mundo” de que falava Weber. O mundo foi se tornando mais e mais secular, num processo que teve seu ápice na segunda metade do último século. As igrejas começaram a se esvaziar e pareceu que todas as respostas seriam buscadas na pesquisa empírica, ou melhor, nas soluções de mercado, ou melhor, nas lutas políticas… Mas basta reler a frase anterior para perceber que essas respostas são animadas, ainda, pela mesma busca do transcendente que sempre alimentou o sentimento religioso. Seja o que for que foi embora, não foi um sentimento. Terá sido, antes, uma realidade física e palpável, uma forma de autoridade, portanto uma manifestação política, que dava solidez a esse sentimento. Ainda que se possa dizer que essa solidez, de tão sólida, era sufocante. Era a autoridade espiritual que Malafaia – mas não só ele; também o papa, por exemplo – não pode mais encarnar sem problemas. Uma autoridade que sustenta, entre tantas outras coisas, o impulso científico. Ou então, que se opõe a esse impulso, quando ele resolve escapar do recipiente que lhe é destinado. Mas que jamais se submete a ele.

Ou seja, a posição subalterna em que Malafaia a coloca é estranha à religião em qualquer campo, sobretudo no comportamento, esse de que se tratou na entrevista a Marília Gabriela. A religião, e isso é particularmente verdadeiro em relação aos monoteísmos como o de Malafaia, só se sente verdadeiramente à vontade e só pode funcionar a contento quando tem condições de afirmar, sem desmentidos à altura: eu sou a fonte de todas as verdades fundamentais, seja em cosmogonia, em moral, em escatologia, até em política. Por sinal, essa condição se reflete na frase que João atribui a Jesus: “eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Há, na religião, um componente muito mais amplo do que a fé, entendida meramente como a convicção de um fiel de que sua salvação ou seu consolo passam por aquela doutrina. É difícil imaginar uma religião que não seja normativa. Poderia ir longe, de verdade, uma religião que afirmasse, em vez da sentença acima: “trago conforto aos que sofrem, contanto que não precise desdizer os cientistas, nem as cosmogonias, morais, escatologias, políticas, dogmáticas e liturgias de religiões concorrentes”? Que potência decisória teria essa religião, na hora em que um fiel precisasse aplicar a doutrina em sua vida quotidiana? Algo assim é impensável, pelo menos no quadro dos nossos monoteísmos do “Deus ciumento”, ainda que esse mesmo Deus seja considerado também amoroso e misericordioso. Afinal, a misericórdia é o atributo de quem está em posição superior, jamais subalterna.

Quando leio sobre a participação de religiosos nos debates em torno de casamento homoafetivo, aborto, eutanásia e assim por diante, sempre me vem à mente o célebre trecho de Mateus com o “a César o que é de César”. Belo preceito do cristianismo, que faz grande falta a outras religiões semelhantes. Mas muito difícil de cumprir. Tudo vai bem quando César e Deus estão, ou parecem estar, lado a lado, seja num Estado teocrático, seja a partir da crença, absolutamente majoritária até o século XVII, de que o poder do soberano emana diretamente de Deus. Em outras situações, o cumprimento é bem mais difícil, porque exige do fiel que tome atitudes que vão frontalmente de encontro a suas convicções. Ou, pelo menos, que ele aceite, e até apóie, legislação que contradiga suas crenças. Haja autonomia de pensamento para agir dessa forma! Mesmo o convívio pacífico entre religiões me parece menos a regra e mais a exceção. Depende de um certo equilíbrio de forças entre grupos de fiéis e a comunidade como um todo, algo que nem sempre se verifica…

Ouço Malafaia argumentar que a homossexualidade não é um fenômeno determinado geneticamente, mas comportamental. O determinismo do pastor é primitivo e terrivelmente perigoso, mas não está no escopo da minha hipótese criticá-lo. O biólogo citado no início já o fez. A questão, aqui, é outra. Estamos diante de um líder religioso que, ao menos implicitamente, afirma: “se ficar demonstrado que a homossexualidade é um fenômeno genético, ainda que parcialmente, então eu aceito que ela não é condenada por Deus, já que o código genético é parte da Criação”. Provavelmente isso não é verdade, quero dizer, provavelmente o pastor encontraria um jeito de manter sua condenação ainda que o determinismo genético, tal e qual, ficasse mesmo provado. Ele encontraria um jeito de dizer que a prova não é válida ou que, na verdade, era outra coisa que ele queria dizer. A rigor, ele provavelmente está mais do que ciente de que nenhum cientista sério jamais vai afirmar categoricamente que “a homossexualidade é um fenômeno determinado geneticamente”, já que um determinismo tão forte não pode existir em sistemas complexos como o psicossocial.

Mas isso não é o mais importante, e sim que tal postura, sincera ou não (e estou assumindo que ela é sincera, não vamos nos esquecer), é um atestado de que a batalha de Malafaia é, como eu disse, uma batalha perdida. Porque uma religião que aceita assumir essa posição subalterna não tem como cumprir seu papel. É inverossímil que uma religião afirme: “cremos que Deus determinou tal e tal, mas talvez não seja assim, pode ser que a ciência ou a experiência demonstrem o oposto”. Malafaia se faz o porta-voz de um grupo que, mesmo mantendo todo o misticismo que as religiões tão belamente trabalham, está disposto a subjugar seus dogmas fundamentais a evidências desencavadas pelo trabalho científico. Isso não é pouca coisa. Em outros casos, pode-se chegar a alguma forma de acomodação. Por exemplo, quanto à origem do universo, com seus quinze bilhões de anos, em vez de seis mil. Pode-se dizer que o tempo, como tal, não existe para o Ser Supremo; pode-se dizer que o texto sagrado é metafórico; pode-se mesmo dizer que o tempo tem outro ritmo no mundo espiritual. Ou então, o conflito: “isso é só uma teoria”, que é o caminho escolhido por muitos religiosos radicais com relação à evolução. O que não funciona é jogar fora a parte cosmogônica da religião e ficar só com a parte moral. Mesmo esta parte, provavelmente a mais útil, precisa de um fundamento ontológico, ou melhor, onto-teológico, a não ser no campo de uma ética puramente imanente, algo difícil de imaginar para uma religião como os nossos monoteísmos.

Contra-exemplos

Agora que já apresentei a hipótese, surgiu uma dúvida pessoal. Como seria uma postura religiosa forte neste caso? É evidente que a mais “forte”, no sentido de inabalável, seria aquela que afirmasse: “Esses estudos todos, frutos da vã razão humana, não valem de nada. Ai de ti, mortal, se te dobrares ao pecado, à tentação de um confronto racional com a Palavra!” No passado, essa postura fortíssima bastaria para satisfazer à grande maioria dos ouvintes. Mas parece não ser mais o caso, não majoritariamente. Cada vez menos os fiéis aceitam esse tipo de resposta. Eles não esperam mais da religião uma resposta inflexível, definitiva e autoritária, ao contrário do que pode parecer para quem se mantém à distância, amargamente, balançando a cabeça diante do que lhe parece ser o retorno dos bárbaros fundamentalistas. Os fatos parecem demonstrar que os bárbaros fundamentalistas, em que pese todo o barulho que são capazes de fazer, são menos comuns na religião do que no futebol, na política e, se bobear, até mesmo na ciência.

Penso em outra postura, também forte, mas não no sentido da potência impositiva, e sim no sentido do pleno gozo do poder normativo que uma religião pode ter e do qual, a bem da verdade, não pode abdicar. Lutero, por exemplo, quando jovem monge, tinha dificuldade em entender por que sua carne era tão propensa ao pecado. Ele cobiçava, invejava monges mais santos que ele, desejava mulheres, tinha uma queda pela boa alimentação que não condizia com o estoicismo monástico. Tudo isso apesar de suas orações e boas obras. Então ele desenvolveu a célebre doutrina do “sola fides, sola gratia…” O pecado estava nele para que a graça divina pudesse se manifestar de maneira mais gloriosa. Alguém que quisesse manter a condenação ao amor homoafetivo sem abdicar de sua espiritualidade monoteísta poderia seguir essa linha. Aceitaria que esse amor possa estar inscrito, ainda que parcialmente, nos genes e reproduzido nas estruturas psíquicas que as neurociências seriam capazes de ler no cérebro. Mas afirmaria, na linha de Lutero, mas também com uma pitada de Leibniz: Deus inscreveu no código mais profundo da vida um comportamento que ele mesmo condena (o mal, portanto), para que sua graça possa se manifestar, através da fé e das orações, naturalmente, naquele corpo. Uma versão católica desse argumento acrescentaria mortificações e a purificação da carne, exercícios espirituais, aconselhamento com sacerdotes e assim por diante. Mas a essência provavelmente não seria muito diversa.

Em qualquer de suas vertentes, esta é mais uma forma de solucionar o problema da teodicéia, desta vez com o recurso à genética. É, também, uma forma de acondicionar as evidências científicas ao dogma. É, ainda, uma maneira de tentar resgatar o “a César o que é de César”. É, em todo caso, uma postura muito diferente da que vemos em Malafaia. Uma espécie de meio-termo é o estranhíssimo fenômeno da “cura da homossexualidade” (ou do homossexualismo, como dizem), proposta por auto-intitulados psicólogos. É mais uma forma de se colocar no meio do caminho entre a força normativa da religião e a potência empírica das evidências científicas. Afinal, não fica claro até que ponto a cura em questão é espiritual ou propriamente psicossomática; o fato é que, se esses psicólogos se dispõem a considerar a homossexualidade como patologia, não estão falando nela como pecado, mesmo que, paralelamente, usem esse termo dentro dos templos. Ou seja, estão também aceitando que considerações racionais, científicas, ainda que integralmente equivocadas, sejam postas acima das escrituras. Mas, ora, como já vimos, pelo próprio conteúdo do conceito de sagrado ou de divino, as Escrituras, do ponto de vista do fiel, deveriam estar acima de qualquer outro argumento, de qualquer evidência. É, também, portanto, uma batalha perdida.

Como fica, então, o retorno do sentimento religioso? Continuo não sabendo. Para mim, o sentimento religioso jamais deixou de existir, enquanto entendemos que as religiões se nutrem de um sentimento que consiste em desejar ardentemente a transcendência, o infinito, o eterno, o imutável, o perfeito, o absoluto. O divino, em suma. Por outro lado, se entendemos que o que está voltando não é exatamente um sentimento, mas um fato de ordem política, um poder normativo atribuído às religiões, então me parece que posturas como a de Malafaia, dos psicólogos curadores de homossexuais e até, muitas vezes, do Vaticano – como quando, por exemplo, padres tentam argumentar que estupros não provocam gravidez, ou quando encíclicas papais insistem na interdependência estreita entre fé e razão – desmentem essa noção. Algo fundamental para o funcionamento de um tal poder parece ter se quebrado, dentro mesmo da mente dos fiéis, no comportamento daqueles que crêem. Eu diria que é a disposição para remover do caminho do dogma tudo que tenha qualquer outra fonte de legitimação. É esse campo minado que tentam atravessar os Malafaia da vida, com suas batalhas inviáveis.

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O povo é uma rainha da Inglaterra

Princípio de 1651. Um respeitado editor, de nome Andrew Crooke, discute com um de seus autores o desenho que vai figurar no frontispício de um ainda inédito livro de filosofia política. O sujeito, fazendo esboços e gesticulando muito, quer representar a sociedade civil (ainda não existia a distinção entre a dita cuja e o Estado, como hoje) na figura de um monstro bíblico: o soberano seria a cabeça; o povo, o corpo.

Eles discutem e discutem. Desenhos são feitos e deitados fora. Finalmente, Thomas Hobbes consegue o frontispício que quer para seu Leviatã (ou “Matéria, forma e poder de uma comunidade eclesiástica e civil”). Lá está o soberano, com uma fisionomia que lembra vagamente Cromwell, o rei Charles II e até, de longe, Jesus. Tem longos cabelos ondulados e bigode, porta uma coroa na cabeça, segura com firmeza a espada na mão direita e o cetro na esquerda.

E eis também o curioso torso, formado de corpos que dão as costas ao leitor: o povo tem os olhos voltados para o rei (porque o soberano, aqui, é indiscutivelmente um rei), como se caminhasse em sua direção. Abaixo, o campo e a cidade, bem governados como no painel de Lorenzetti exposto em Siena. Mais abaixo ainda, os símbolos e os meios do poder: as armas, a religião, a razão, as leis. Hobbes, numa época em que os emblemas imagéticos eram de rigor, insistiu enormemente nesse frontispício, porque lhe parecia a melhor representação possível de sua teoria do contrato social. De fato, a imagem se tornou um ícone nodular da política: quando alguém quer falar em absolutismo, ou mesmo em governo grande demais, logo crava: “Um Leviatã!”.

Princípios de 2012. Penso no publicitário que bolou o projeto reportado neste link (pra quem não tem paciência de clicar: são crianças fazendo autorretratos para formar a imagem da rainha Elisabeth, em celebração de seus 60 anos de reinado). E me pergunto se ele tinha em mente o frontispício de Hobbes. É claro que não. Também me pergunto em que medida ele conhece essa imagem. Provavelmente não se lembra dela, provavelmente não sabe de onde veio, mas sem dúvida, sendo inglês, passou os olhos por ela quando estudante. É um elemento cultural importante naquele país, para o bem e para o mal, queira ou não queira o publicitário.

Ou seja, o Leviatã não é uma referência para ele (espero que não; só se for um louco), nem é uma citação. O mais provável é que ele esteja navegando – bem preguiçosamente, diga-se de passagem – a onda de capas de revista e painéis de artistas plásticos que repetem esse procedimento. Mas, por uma dessas voltas que gosta de dar a história, essa rainha dos redemoinhos e dos destroços, eis que aquela outra rainha, a da Inglaterra, se vê representada quase da mesma maneira como o foi um dia o paradigma dos monarcas absolutos. Senão como um monstro marinho saído da Bíblia, ao menos como um mosaico de súditos.

Posso estar exagerando, mas não estou. Pelo menos no sentido de que os chefes do publicitário em questão deveriam ter percebido que essa associação era possível. Ou então, o mínimo que se poderia esperar era que os funcionários da monarquia britânica alertassem para comparações que eventualmente, ou certamente, viriam. Nem que fosse em algum rincão do mundo infestado de mosquitos, como aquele Brasil de PIB avantajado como nádegas de mulatas. Para ser honesto, não consigo evitar de associar esse silêncio a uma decadência cultural.

Falando em decadência: houve um tempo em que a rainha da Inglaterra era a pessoa mais poderosa do mundo, em particular uma rainha de nome Victoria. Hoje, “rainha da Inglaterra” é uma expressão que conota justamente o oposto: uma figura que não manda em ninguém. “Fulano é uma rainha da Inglaterra”: tem um cargo, ganha um dinheirão, mas é só um nome com um título pomposo, nada mais.

Impossível não prosseguir no paralelo, enxergando na brincadeira do Jubileu da Rainha algum tipo de metáfora com a situação da Europa, particularmente naquele que foi seu pais mais poderoso, a ponto de nem mesmo se considerar parte do continente. Inglaterra, o povo que esnobou o euro, mas nem por isso deixa de estar na merda… Agora tenta recuperar seu amor-próprio representando sua rainha da Inglaterra – a original, não aceite imitações – da mesma maneira como outrora representou o ápice da potência monárquica. Triste ironia, não?

A brincadeira está boa, então que prossiga. Será que dá para fazer alguma metáfora a partir do fato de que são crianças que estão preparando o retrato da rainha com seus próprios rostos? Sim, claro que dá. Certa vez, entrevistaram um sujeito que vive na Côte d’Azur e seria o herdeiro do trono russo se os bolcheviques não tivessem dado cabo do czarismo em 1917. Perguntaram ao tal sujeito com que olhos ele via a população russa, que até hoje não manifesta o menor desejo de restaurar os Romanov, mesmo 20 anos depois da queda do comunismo. Resposta, de bate-pronto: “eles são meus filhos” – assim mesmo, categórica, sem deixar margem a questionamentos.

A imagem paternal (ou maternal, no caso) dos reis é um velho topos monárquico. Aliás, não é significativo que um poder absoluto e orientador, mas não aristocrático, como o imaginado por George Orwell em 1984, seja representado não como um pai, mas como um “grande irmão”? O fato é que as nações, em outras eras, eram representadas como famílias, tendo o monarca como figura paterna. Ora, a imagem de um rei como pai traduz o princípio de que ele deve proteger, orientar, defender e até, em certas circunstâncias, sustentar seus súditos.

É claro que uma parte dessa imagem desbotou com a progressiva instalação de monarquias constitucionais. Mas sobrou alguma coisa, particularmente o aspecto simbólico da paternidade, (ou seria do patriarcalismo?), que de vez em quando reaparece em filigrana no discurso monárquico. “A Bélgica só não se esfacelou porque tem a figura unificadora de um rei”, “Juan Carlos garantiu a democracia na Espanha com a força de sua pessoa”, “Charles não pode ser rei porque não transmite a moralidade britânica”…

E eis que agora a presença de uma crise, mais do que econômica, sócio-histórica, associada à dificuldade em manter as ralés quietinhas, reúne as duas pontas da noção de realeza. Por um lado, as criancinhas, metonímia para o brioso ex-império, unindo forças para buscar alguma resposta – nem que seja uma auto-imagem pixelada – em sua grande-mãe, ícone da resistência, da identidade nacional, do poder inquebrantável e inamovível. Por outro, a constatação difusa, inconsciente, desconfortável da perda de soberania. Ali mesmo na coroa intrépida do Commonwealth, enfraquecida não pelo triunfo das instituições transnacionais, mas pelos imperativos da City, que selam um destino iniciado com as guerras coloniais e imperialistas da belle époque.

Já que enveredei por essas metáforas visuais, vou até o fim. Colocando-se na posição de criancinhas, de filhos, de corpos inocentes, desamparados e – eis a parte crucial – disponíveis, os ingleses tentam reconstruir, sem saber, a figura que melhor conhecem para representar uma soberania sólida, resistente, visível. Como quem molda um Golem, o inconsciente coletivo da velha Albion espera que a imagem sorridente de Elizabeth absorva a energia das criancinhas, assuma seu posto de Leviatã e esmague os inimigos, isto é, a crise, a decadência, os microscópicos esporos de rebelião que ameaçam constantemente se espraiar pelas ruas. Não deixa de ser, modus in rebus, uma mensagem de esperança…

Voltando um pouco a Hobbes: um outro livro seu oferece uma concepção mais nuançada da soberania e dessa assustadora figura do Leviatã. É o Cidadão, ou De Cive. Nesse texto, encontramos o seguinte trecho, ousado como poucos que já li, sublinhando a necessidade de distinguir entre o povo e a multidão para associar o poder civil de decidir e agir à própria existência de um povo:

“O povo é algo uno, com uma vontade una, e a quem se pode atribuir uma ação. Nada disso pode ser dito da multidão. O povo rege em todos os governos. Até em monarquias o povo comanda, porque a vontade do povo é a vontade de um homem; mas a multidão são os cidadãos, ou seja, os súditos. Na democracia e na aristocracia, os cidadãos são a multidão, mas a corte é o povo. E na monarquia, os súditos são a multidão, e, por mais que soe paradoxal, o rei é o povo. (…) Fala-se no ‘grande número de homens’ como sendo o povo, ou seja, a cidade; dizem que a cidade se rebelou contra o rei (o que é impossível) e falam em vontade do povo, em vez de súditos descontentes que, passando-se por povo, agitaram os cidadãos contra a cidade, isto é, a multidão contra o povo.” (Capítulo XII – VIII)

Sem subscrever a Hobbes, o que aparece aqui é que o Leviatã do outro livro, que representa a soberania, não o Estado, pode ter múltiplas configurações, contanto que produza a unidade da legislação civil que salvaguarde a cidade do tão perigoso direito natural. Hobbes vê na monarquia absolutista o caminho mais certo, não necessariamente o único, para chegar a isso.

Hoje, os mecanismos legais são outros e ninguém precisa mais concordar com Hobbes, pelo menos quanto ao único caminho realmente viável que ele enxerga. Mas a imagem de que a sociedade consiste em formar um corpo uno em vontade e ação nunca foi inteiramente abandonada pela imaginação política, ao menos na tradição ocidental. Volta e meia algo assim é evocado: “governo de união nacional”, a “pátria indivisível” e assim por diante. O que varia é a estratégia para lidar com o dissenso, prova incontornável de que o estado de natureza está sempre aí, no coração de qualquer configuração civil (algo que Hobbes, por exemplo, nunca vislumbrou).

Montar um retrato da rainha com milhares de rostos de crianças, desenhados por elas mesmas, não deixa de ser a expressão de um tal desejo de unidade: “somos todos parte dessa nação”, “pertenço a algo que é maior do que eu” e assim por diante. Talvez seja o caso, porém, de destacar a diferença entre o retrato de Elizabeth e o frontispício do Leviatã. Afinal, um corpo não é um rosto e Hobbes deixou isso bem claro ao desenhar o soberano com a fisionomia de um rei e relegar o povo à configuração das entranhas e dos membros.

A idéia de que a multidão indistinta possa formar a própria cabeça, o ápice da soberania (palavra usada por Hobbes em sua própria tradução para o latim, bem como pelos demais autores da época: imperium) e do poder, é bem posterior a Hobbes e data do surgimento da tal “sociedade de massas”: a virada do século XIX para o XX. Essa tal “sociedade de massas” poderia ser um oximoro, ainda mais se levamos em conta a distinção que Hobbes faz aí acima entre o povo e a multidão. De fato, em toda a tradição do pensamento ocidental até fins do século XIX, o povo e a multidão (depois massa) eram conceitos opostos e conflitantes.

Quando surgiu a “sociedade de massas” (leia-se sociedade industrial, com produção e consumo de massa), foi preciso repensar essa distinção. Surgiram duas vias, falando grosseiramente. A primeira, não cronologicamente, eu diria, mas para a ordem desta exposição, é a via democrática, em que sobressaem a noção de opinião pública e os graduais esforços de organização da sociedade civil para ampliar o acesso a direitos – ou seja, à cidadania, a “ser povo” na acepção de Hobbes.

A segunda é a via autoritária, que vale sublinhar aqui. Nela, tenta-se reconquistar a unidade desejada por Hobbes não pela ampliação dos campos contemplados pela vida civil, mas pela fusão das massas no bojo do seu próprio comando. Não é à toa que todos os regimes extremamente autoritários do último século se apresentavam como “do povo” ou “dos trabalhadores”, fossem “de direita” ou “de esquerda”. O mais importante a frisar aqui é que, na grande maioria dos casos, foi a própria população que, a partir de um estado de desespero, buscou essa via autoritária, pediu por ela, entregou-se com um gozo às vezes catártico a sua figura de liderança absoluta.

Longe de mim dizer que o Reino Unido está à beira de um regime como as ditaduras que presenciamos no século XX. Mas o desejo seminal está lá. O “ovo da serpente”, digamos, está expresso na reação violenta aos saques do ano passado e na fusão de milhares de faces de crianças na imagem da rainha: ingleses infantilizados dissolvendo sua própria pele para entregar suas feições a um único e gigantesco rosto real.

A rainha da Inglaterra que continue sendo uma rainha da Inglaterra: seus traços aristocráticos não deixam de ser o arquétipo de qualquer monarquia, qualquer estrutura de comando através de um paradigma de unidade, qualquer Leviatã com cetro, coroa e espada. Mesmo enquanto ela inocentemente caça perdizes em Windsor, exercendo sua rainha-da-Inglaterra-ice, a fisionomia real serve plenamente de vetor para todos os outros elementos: o desespero, o orgulho ferido, o desejo de unidade, a necessidade de traçar fronteiras entre o de dentro e o de fora, a disposição em abrir mão de um pouco mais de individualidade – e de liberdade – em troca de um pouco mais de segurança. Enfim, a disponibilidade para fazer parte de uma grande família.

Exagerei no paralelo? Certamente, mas garanto que o possível, o potencial, éão bem mais real do que seu opaco caso particular: o efetivo. Até porque a efetividade, sendo a concretização de um potencial, às vezes, dependendo das circunstâncias, pode atualizar os mais extremos dos potenciais. Basta, para isso, que as próprias circunstâncias sejam extremadas. Eventualmente acontece.

Atualização: leia este artigo no site do Guardian.

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