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Do empobrecimento: um esboço

Não é fácil traduzir em palavras o quanto é ruim a situação do Brasil. Ainda mais difícil é admitir algo que talvez saibamos todos, no íntimo: a trajetória de longo prazo é catastrófica em várias frentes. Esse desconforto poderia explicar por que estamos tão presos em análises de conjuntura, formando um ciclo amargo de interpretações dos nossos desastres de curto prazo. Sim, a gravidade do momento e o efetivo encurtamento dos nossos prazos justificam esses esforços. Mas todas essas tentativas vão ficar pelo caminho até que aceitemos a necessidade de tomar um certo recuo; o que determina o nosso naufrágio, infelizmente, é uma tempestade prolongada.

Não é só por colocar na presidência um Bolsonaro que há algo de errado com o Brasil. Todo corpo social tem energias subterrâneas que carregam um forte potencial auto-destrutivo, se não houver dispositivos que as controlem e impeçam de explodir (ironicamente, nas máquinas a vapor o nome desse dispositivo, em inglês, é “governor”). Quando acontece uma explosão dessas, a pergunta não é “como isso foi acontecer?”, nem “vai durar?”, mas: “que forças eram essas que não queríamos ver?”, ou “o que deu errado com os dispositivos?”. E se sonhamos em reconstruir o sistema, mas com um funcionamento melhor e mais seguro, então temos que situar o fracasso segundo o conjunto das circunstâncias que levaram a ele, para poder estabelecer parâmetros novos e melhores.

Trocando em miúdos, o problema não está tanto em entender por que (ou como) o Brasil acabou elegendo alguém como Bolsonaro. É bem provável, infelizmente, que a resposta seja amargamente prosaica: foi porque todas as demais dinâmicas se esgotaram. E alguém poderia perguntar: mas ele vai se consolidar no poder? Em última análise, tanto faz. Isto é, a questão não está em saber se ele vai falhar tanto assim, a ponto de perder por conta própria em 2022. A questão é que nada indica que venha em seu lugar algo muito melhor.

É enganoso crer, por exemplo, que a emergência de uma figura de centro-direita (mais provável) ou centro-esquerda (menos provável), com um certo grau de respeitabilidade – e a esta altura, por contraste, já estamos achando qualquer pangaré, qualquer picareta, suficientemente respeitável – vá estabilizar o sistema político e trazer dinamismo para a sociedade e sua economia. Não vai, porque não há condições objetivas para tal no horizonte, a não ser que as circunstâncias mudem radicalmente (com o mercado de commodities, por exemplo). Na tendência corrente, mesmo que consigamos algo melhor para o próximo ciclo eleitoral, em pouco tempo sofreríamos uma nova derrocada – na eleição seguinte ou até antes.

Diante dessa perspectiva nada animadora, vale mais se concentrar sobre uma outra série de questões: o que significa dizer que todas as demais dinâmicas se esgotaram? Em que consiste esse esgotamento, que dinâmicas são essas, qual foi a causa da perda de dinamismo? Naturalmente, em se tratando de política e, mais especificamente, de política eleitoral, a primeira camada do problema está na incapacidade das demais forças, supostamente mais organizadas e estabelecidas, para responder a uma situação de crise prolongada. Nessa primeira camada, o que aparece, de cara, é que as esquerdas se perderam em disputas internas, cálculos de sobrevivência e pautas esfaceladas. As direitas, por sua vez, ou bem escorregaram para uma situação em que se tornaram linhas auxiliares desse nosso neofascismo de pernas tortas, ou bem reduziram seu discurso a um economicismo pretensamente libertário – ou, no mais das vezes, fizeram ambas as coisas.

Mas também aqui é preciso continuar cavando, porque a capacidade de organização e proposição dos partidos não surge por geração espontânea, mas se constrói a partir dos potenciais que vêm da conjuntura, da sociedade e, claro, das circunstâncias históricas.

1 – Um exercício: quatro tendências

Creio que muitos compartilham comigo a sensação de que o que estamos atravessando, e que Bolsonaro vem acelerar (para muitos, ele é causa, mas discordo), é não só uma decadência (termo que tenho ouvido bastante), mas principalmente um processo de empobrecimento. Sem querer soar cafona, a manifestação mais evidente é o empobrecimento espiritual de um país cujos representantes máximos são aproveitadores vulgares, incultos e grosseiros, sem a menor centelha de carisma, dinamismo ou visão.

Mas o que gostaria de tentar mostrar é que já estávamos empobrecendo quando chegamos a Bolsonaro e é provavelmente por causa do empobrecimento que as portas se abriram para ele e sua turma. Vou tentar defender essa ideia por meio de um exercício compartilhado com você que está lendo. Vamos pensar historicamente; o que o Brasil tem ou já teve como fonte de riqueza? E mais: o que o país tem como fonte de riqueza em potencial? Estou falando de riquezas de qualquer tipo. Pode ser renda nacional, produção cultural, bem-estar, “felicidade bruta”, prestígio, orgulho. Pode até ser uma mistura disso tudo.

Matutando a respeito, cheguei a quatro itens, definidos de modo bastante amplo. São eles:

1) No último século, o Brasil chegou a ter uma economia industrial razoavelmente avançada, competitiva em diversos setores e que integrava quase a totalidade das cadeias produtivas. Vale lembrar que este exercício de pensamento não é uma apologia. É possível ter críticas muito corretas à estratégia da substituição de importações, bem como ao protecionismo, aos subsídios, à relação promíscua que empresários industriais falidos e ineficientes mantiveram com o Estado, sobretudo na fase final da ditadura. É claro que havia insuficiências graves, tanto é que o edifício ruiu ao primeiro vento mais forte.

Mas devemos reconhecer que a manufatura chegou a estar em uma situação em que, com uma abertura mais bem planejada, investimentos em pesquisa e qualificação do pessoal, poderia dar um salto de competitividade global. Com indústria de base, bens de capital, bens de consumo duráveis e não duráveis, alguns com alto teor tecnológico para a época, como carros (a Gurgel chegou a fabricar um veículo elétrico, por sinal) e aviões, não era absurdo imaginar que subíssemos mais algumas etapas na escala da complexidade econômica.

Sem dúvida, perder a revolução tecnológica dos anos 80 foi um golpe e tanto. Os juros de Volcker e a crise da dívida nos pegaram de jeito, como amplamente documentado; a largueza de Delfim e dos PNDs certamente não ajudou. A renúncia a fazer as reformas de base, tampouco, já que a estrutura fundiária se manteve intocada e o impulso para universalizar a educação (e a cultura!) foi frustrado.

Mas deixemos as mazelas para depois. Por enquanto, só quero elencar os tais motivos de orgulho e fontes de riqueza. Dos problemas, podemos tratar depois.

2) Pode não parecer tão importante assim, mas o Itamaraty tem que entrar nessa lista. O Brasil desenvolveu ainda no período do Império uma diplomacia competente e profissional, que certamente trouxe benefícios consideráveis. O tamanho do território, com a ausência quase absoluta de conflitos de fronteira, é um exemplo, e o devemos sobretudo ao Barão de Rio Branco. A participação de Ruy Barbosa na 2a Conferência de Haia (1907) é uma fonte duradoura de prestígio. A atuação na OMC e outros foros globais não seria possível sem um quadro de profissionais qualificados. As políticas de aproximação com os vizinhos foram sempre um trampolim para a participação em tomadas de decisão mais amplas, na condição de liderança regional.

Se o prestígio diplomático não parece ser uma “fonte de riqueza” importante, basta voltar os olhos para a França, que manteve uma relevância no concerto de nações da Europa, após Waterloo, absolutamente desproporcional a seu poderio militar. Parabéns a Talleyrand e ao Quai d’Orsay. Ou mesmo a Alemanha, já que a possibilidade de reunificação do país foi inaugurada pelos esforços de Willy Brandt, contra o desejo de muitos compatriotas, para normalizar as relações com o Leste. O movimento incluiu um gesto, na época, polêmico (acredite se quiser): um pedido de perdão pelo Holocausto que incluiu prostrar-se de joelhos perante o memorial às vítimas, em Varsóvia.

Quanto a nós, com todas as mudanças de regime, o Brasil conseguiu manter razoavelmente intactos seus princípios de política externa, da autonomia das nações à não-intervenção – vale lembrar que um dos principais pontos de ruptura entre Kennedy e Jango foi a recusa do Brasil em participar da intervenção em Cuba. Até pouco atrás (digamos, dezembro de 2018), este gigante sul-americano era considerado confiável no concerto das nações.

Chega a ser engraçado que um porta-voz israelense (Yigal Palmor) tenha se referido ao Brasil como “anão diplomático” em 2014. Na verdade, a atuação diplomática do Brasil sempre foi desproporcional a seu ínfimo peso geopolítico e militar. O Brasil seria melhor descrito como um anão geopolítico, mas com músculo diplomático hipertrofiado.

Assim como no caso da indústria, também é possível apontar falhas e limitações, é claro. Como tanta coisa no país, a diplomacia, com seus altos salários e o prestígio que carregava, foi sempre uma instituição elitista. (Vale registrar que, nas últimas décadas, houve alguns esforços em direção contrária.) Pode-se argumentar que demorou muito a se preocupar em apresentar ao mundo um rosto que correspondesse ao país real. Consequentemente, seguiria o argumento, o Itamaraty serviu não só para perpetuar uma sociedade excludente, como também para favorecer decisões no plano internacional que reproduziam estruturas hierárquicas do mundo tal como era.

Seria um argumento válido, mas, outra vez, minha pequena lista tem outro propósito.

3) Pode ser um pouco esquemática demais a divisão entre “soft power” e “hard power” (Wall Street é soft ou hard?), mas serve para designar um dos principais ativos do país, principalmente porque é muito amplo e ajuda a manter minha lista curtinha. Aliás, “soft” é bem o termo para um país que atraía simpatia mundo afora por ser considerado (com ou sem razão) pacífico e alegre. Por não ter guerras, não ser agressivo na política externa, receber bem os turistas e por aí vai.

Mas é claro que não era só isso. “Soft power” não é só pacifismo. É também cultura, arte, comportamento pessoal. Houve, por exemplo, um tempo em que o mundo todo queria ver Pelé jogar. Seja com o samba, seja com a bossa nova, a cultura brasileira era ao mesmo tempo admirada e estimada. Até mesmo a construção de Brasília, que me parece um grave erro estratégico, serviu pelo menos para colocar o Brasil no mapa.

Jovens de todas as partes, de Johannesburgo a Hebrom, de Bobigny a Guadalajara, vestem a camisa da seleção brasileira até hoje, não só por causa de Rivellino, Romário e Ronaldo (para fazer uma aliteração geracional), mas também porque a magia canarinho representava o triunfo de um país pobre, miscigenado e periférico que vencia, cativava e acolhia. Sim, houve um tempo em que simpatizavam conosco. Talvez o mundo tenha acreditado demais (e nós também) no mito de exaltação da mistura de raças, até mesmo na “democracia racial” de Gilberto Freyre. Ainda assim, era um retrato inspirador que chegava às pessoas e lhes dava algo da ordem da esperança. Será que teriam consumido nossas novelas nos confins da Rússia, Grécia, Turquia, se já não tivessem uma simpatia pelo Brasil? Voltando ao tema da diplomacia, se foi possível em algum momento que o Brasil liderasse um movimento de aproximação estratégica do mundo subdesenvolvido (Sul-Sul), isto se deve em boa medida à imagem de país acolhedor, pacífico e ao mesmo tempo ambicioso.

Procuro resistir à tentação de argumentar um pouco mais por este ponto, que parece menos relevante e talvez menos convincente. Torno a dizer que essa imagem tão gentil do país não era um retrato lá muito fiel, já que esta sempre foi uma terra de exploração, genocídio, mandonismo, jagunçagem, tortura. Ainda assim, consolidou-se essa imagem, que algo de verdadeiro tem (talvez porque o olhar se voltasse ao explorado, não ao explorador); e essa imagem rendeu frutos. Por maior que seja o cinismo daqueles que souberam lucrar com a face mais luminosa do “homem cordial”, foi um ganho do mesmo jeito, e nos beneficiamos disso. Quando nem a imagem duvidosa conseguimos mais sustentar, algo está muito errado!

4) Este é sem dúvida o potencial mais evidente, e também o mais frustrado. Cá entre nós, também é um campo no qual o Brasil não tem mérito nenhum, propriamente falando. É uma circunstância histórica e geográfica: estamos sentados em cima dos mais extraordinários recursos naturais, e não estou falando de ferro, urânio ou, sei lá, nióbio. Hoje, o termo consagrado é “biodiversidade”, então que seja. Some-se a ela a abundância de água, a incidência de vento e sol (e raios, por que não?), a variedade topográfica, a extensão do litoral.

Se o futuro da economia está na sustentabilidade e na circularidade, o Brasil teria todas as condições de ser um dos grandes pólos econômicos do planeta. Se insumos e determinados produtos serão desenvolvidos a partir do código genético de plantas, fungos e animais, um gigantesco laboratório a céu aberto está cravado em plena América do Sul. Já em 1966, Celso Furtado entendeu que desenvolvimento e ecologia teriam de andar de mãos dadas. Hoje, porém, a verba do Plano ABC, por exemplo, é insuficiente.

Em parte por atavismo, em parte por preguiça, a economia que se pratica no Brasil é quase inteiramente oposta àquela que nos colocaria no caminho da riqueza, da influência e do bem-estar nas décadas vindouras. A monocultura de larga escala, a exportação de bois vivos, os minerodutos que emporcalham os pulmões dos capixabas, até mesmo o pré-sal; tudo isso pode até ajudar a equilibrar a balança de pagamentos. Mas praticamente não reverbera na melhora da vida das pessoas e na complexificação da sociedade. Exceções, claro, são a Embrapa e as pesquisas de engenharia de extração do óleo no fundo do mar, mas mesmo esses esforços poderiam estar sendo aplicados de maneira mais proveitosa.

*

Para continuar com o exercício, proponho agora examinar como estamos em cada um desses pontos. Confesso que atua aqui um certo “privilégio do autor”, já que sou eu que estou escrevendo e, por isso, pude escolher os itens que me pareciam ser os mais convenientes para manusear. Além de mais convenientes, são também quatro campos em que o governo atual está provocando uma hecatombe completa, com seu exército de lunáticos em posições-chave.

Mas não é disso que quero tratar, por enquanto. E, seja como for, se quiser estender o exercício para outros itens, fique à vontade. O que temos com esta minha seleção é o seguinte:

1) Não é segredo para ninguém que o Brasil atravessa um processo acelerado e avassalador de desindustrialização; para ser mais claro, cabe dizer que não se trata, como na Inglaterra, regiões da Europa e partes dos Estados Unidos, de uma perda de fábricas para a China, acompanhada de uma transição para uma posição ainda de vanguarda tecnológica na divisão internacional do trabalho. A economia brasileira está, como se diz, se “reprimarizando”; com isso, em geral se quer dizer que voltamos a nos especializar na exportação de soja, carne, laranja, açúcar, café, minério de ferro e petróleo. Talvez dê para acrescentar o nióbio nessa lista, não sei. Dizem que temos programadores e artistas gráficos muito criativos; é uma pena que tantos tenham que ir trabalhar no exterior, assim como tantos pesquisadores, engenheiros, artistas e demais representantes da economia que gera valor agregado. A perspectiva do jovem de classe baixa, ao entrar no mercado de trabalho, está hoje em trabalhos precários e com pouco horizonte de evolução pessoal. É sintomático como hoje, o personagem-símbolo do jovem trabalhador brasileiro é o entregador de aplicativo.

2) É preciso dizer algo sobre o que se passou com a diplomacia brasileira nos últimos dois anos? A transformação desse ativo construído com tanto esforço em uma máquina de cuspir abobrinhas e perder alianças figura entre aqueles crimes tão graves que mal nos damos conta. Que tenhamos sujeitado os interesses do país aos caprichos de um único líder estrangeiro é algo que pode deixar nossa imagem arranhada por bastante tempo. Ter um mandatário que balbucia mentiras delirantes na Assembleia Geral da ONU apequena o Brasil muito mais do que uma goleada sofrida em casa para a Alemanha (pelo menos eles terminaram como campeões!). Unir-se a ditaduras teocratas contra alguns direitos humanos básicos pode nos tornar párias por toda a eternidade.

No campo econômico, aliás, até agora não sei dizer se nossos governantes são a favor ou contra o acordo da União Europeia com o Mercosul. Chegaram, é verdade, a um texto definitivo (costurado antes, como se sabe); mas não só o ministro da Economia já vinha bombardeando o Mercosul antes mesmo de tomar posse, como depois da assinatura do acordo a diplomacia brasileira e o governo têm feito de tudo para garantir que ele não será ratificado pela contraparte europeia.

3) Também não é difícil perceber que nosso “soft power” está, para dizer o mínimo, bastante abatido. As imagens de animais carbonizados no Pantanal estão correndo o mundo. Em escala, alcance e importância bem menores, as declarações de Bolsonaro e sua entourage sobre Brigitte Macron fizeram o mesmo no ano passado. A negligência com o petróleo nas praias do Nordeste não passou despercebida.

Mas a perda de prestígio e portanto “soft power” não data das votações obscurantistas na ONU ano passado, nem do “golden shower”, nem do jogo de acusações cínicas sobre as queimadas. Tudo isso são bombas, é claro, que revelam ao mundo algo do que está por trás daquela máscara de país simpático. Mas o mundo já tivera, a essa altura, alguns aperitivos do que realmente constitui o modo de atuação do brasileiro.

Provavelmente a primeira ocasião tenha sido a Minustah, embora aquele ainda fosse um momento de otimismo e admiração com o Brasil, que tinha candidatura para sediar Copa e Olimpíada, presidente operário e ministro da Cultura tocando guitarra com Kofi Annan. Pois bem, ao mesmo tempo, os militares deste país deixavam de ser “médicos sem paciente” para encabeçar a desastrosa operação de paz no Haiti, onde não faltaram massacres, estupros, disseminação de doenças contagiosas e, ao final, claro, uma situação de violência e abandono praticamente sem alterações.

Há algo particularmente grave nesse caso, por sinal. Sabemos que as ditaduras latino-americanas tinham um gosto pronunciado por sumiço de cadáveres. No Haiti, porém, não só os soldados brasileiros foram instruídos a alvejar até mesmo quem se aproximasse dos corpos abatidos pelas tropas, para lhes dar sepultura digna. Para piorar, lideranças brasileiras da Minustah falam abertamente e com aprovação dessa ordem, tripudiando dos mortos.

Como dar a dimensão da imagem de horror que um país transmite quando age assim? O respeito aos mortos, mesmo inimigos, mesmo criminosos, é um elemento cultural quase universal. É tema de uma das principais tragédias gregas (Antígona). Pois bem, o Brasil fez papel de Creonte, o rei delirante que ofende os deuses e termina isolado em meio às ruínas de sua dinastia. Ao se decidir por esse papel, reencenando em escala reduzida o pecado original da Guerra do Paraguai, o país deu um primeiro passo para se tornar o que hoje já se consolida: alguém que não se importa de ser apresentado perante o mundo como abjeto, indigno de qualquer estima. Um país capaz de deixar terra arrasada e uma trilha de animais mortos pelo chão, só para vender gado e soja; capaz de premiar com a impunidade quem assassina rios com minério tóxico ou deixa adolescentes morrerem para economizar em alojamento. Uma terra que, por trás da aparente jovialidade, empilha atrocidades sem remorso e celebra os algozes de seus filhos.

Por quanto tempo aqueles tais jovens de Bobigny e Soweto ainda vão se dispor a simpatizar com um país desses? E que chefes de Estado vão aceitar a diplomacia brasileira como mediadora de seus conflitos? Que grande corporação vai ter interesse em colocar aqui a sede de suas operações regionais? Tudo isso são empobrecimentos, perdas que custarão décadas a reparar.

4) Por fim, parece bastante evidente que o país está renunciando a tratar seus recursos naturais com a devida seriedade. Além de tudo que já foi dito sobre o horror dos habitats destruídos, a aceleração de extinções, o risco de alteração perene, irreversível, do regime de chuvas, a intensificação da erosão, a perda de nutrientes, a destruição de modos de vida, o genocídio dos povos indígenas, devemos ter em mente que também é consumida pelas chamas a principal perspectiva de garantir a prosperidade, ou pelo menos o bem-estar da população nas próximas décadas. Tudo em nome do curto-prazismo de quem espera milagres da soja e do gado para manter um certo equilíbrio na balança de pagamentos. Sem falar, claro, no papel da especulação de terras na ocupação da Amazônia e do crime organizado na derrubada de madeira.

Vale dizer que a catástrofe da gestão ambiental no Brasil também precede Bolsonaro; quanto a isto, duas palavras bastam: Belo Monte. Vá lá, uma terceira: Samarco. A usina no Xingu, por sinal, se justificava com o pressuposto de que transmitir eletricidade da floresta amazônica para o sul serviria para garantir a segurança energética necessária àquela indústria que há muito já se decompunha. Por cínica e sinistra que seja a assim-chamada política ambiental deste governo, ela se estrutura a partir de uma matéria-prima amplamente disponível no país: o gozo da devastação.

*

Ficam de fora dos quatro itens muitos retrocessos que estamos vivendo, e que são pelo menos tão graves quanto os citados. A destruição dos mecanismos de transparência do Estado e de combate à corrupção, por exemplo, tem potencial para ser o legado mais duradouro do período bolsonarista – isto, é claro, se a destruição de biomas ora em curso não se tornar irreversível. A sabotagem à LAI, a sujeição do MPF, o aparelhamento do Judiciário e da PF, as tentativas de controlar o pensamento nas universidades e a informação na imprensa podem pôr a perder tudo que se conquistou desde 1988. Mas o objetivo do exercício não é mapear todos os nossos retrocessos, e sim apontar uma dinâmica de empobrecimento; e a esta altura ela me parece clara.

Podemos ver que, dos quatro itens destacados, o período com Bolsonaro só é plenamente responsável por causar a reversão ou a derrocada no caso da diplomacia. Nos demais, sem dúvida, esse caótico mandato provocou uma aceleração da piora, em quadros que já eram ruins, ou desequilibrou para o lado destrutivo situações até então ainda em aberto. Podemos colocar assim: estamos em queda-livre dentro de um abismo, mas antes já estávamos rolando em direção a ele. Assim sendo, Bolsonaro, longe de constituir um “choque externo”, é antes um sintoma de processos patológicos em curso no (digamos) organismo do país, ou uma perturbação que precipitou reações em cadeia já potencialmente dadas.

Sem dúvida, a aceleração de um processo destrutivo ou sua precipitação, por si mesmas, são desastres terríveis, já que achatam a possibilidade de reagrupamento, resposta, busca por alternativas. Mais perniciosa ainda é a capacidade que figuras como Bolsonaro têm de manter as atenções sobre si, ou seja, sobre o sintoma, e não sobre o processo e seus determinantes, e menos ainda sobre o que pode ser imaginado para além dele. Esta é, claramente, uma grande força; figuras assim triunfam porque compõem sumidouros afetivos e intelectuais que engolfam as atenções do país, reduzindo o debate político e o raciocínio estratégico a uma tática de confronto voltada, no máximo, para a próxima eleição. No caso dos políticos da era digital, é até pior, porque a munição é sempre esgotada escaramuça a escaramuça. A ansiedade com que acompanhamos as oscilações da popularidade do ocupante do Planalto é neurótica, mas principalmente no sentido de ser o signo de uma grande neurose coletiva.

Falando em neurose, o Brasil de hoje faz pensar em alguns esquemas psicanalíticos; é como se, de súbito, todos os seus monstros viessem à tona, de uma vez só. Mas ainda que coloquemos as coisas nesses termos, continuam sendo os nossos monstros, nossos velhos monstros. Por isso, é tentador atribuir o pesadelo que atravessamos a atavismos, ou seja, a formas recorrentes, talvez permanentes, da vida política do país, que residiriam numa espécie de inconsciente coletivo. Eu mesmo já adotei várias vezes essa estratégia e não considero que seja um erro, contanto que não se confunda o percurso mental com alguma descrição factual. Efetivamente, lógicas de exploração colonial, escravista e patrimonialista permanecem, se reproduzem e se adaptam ao longo da nossa trajetória, o que está visível, hoje, mais que nunca.

Um perigo dessa abordagem é recair no conformismo ou no fatalismo, como se houvesse um – me desculpe – destino manifesto. Acontece que algumas das monstruosidades são, de fato, atavismos. E sua característica de “reemergência de um passado” é tanto mais forte na medida em que o processo de empobrecimento é a perda de algo que chegou a ser ganho. Que o salário inicial de juízes, diplomatas e procuradores seja mais alto do que o rendimento no ápice da carreira dos professores titulares de universidades federais é, claro, um escárnio; muito mais, porém, é a expressão de um país bacharelesco e cartorial que nunca foi embora. Que magistrados tenham praticamente licença para cometer crimes (já que punições dignas do nome são impensáveis), idem: não deixamos de ser um país onde o acesso às esferas mais altas do poder público é um salvo-conduto para a infâmia. Os efeitos práticos dessas nossas distorções são diluídos em épocas de prosperidade, já que o bolo é maior; mas em tempos de retrocesso, são um veneno.

Por isso, as leituras do momento atual acabam oscilando entre dois pólos. De um lado, a análise de conjuntura – sendo que a conjuntura em questão muda violentamente a cada poucos meses (ainda mais este ano!). Do outro, a repetida denúncia dos vícios eternos a que estamos sujeitos como país, nossos “pecados originais”, por assim dizer. Mas há uma enorme conexão entre esses dois pólos – aliás, é isso que faz com que sejam, justamente, pólos de algo. Isto é que precisamos explorar: como esta conjuntura se produz, no contexto de uma etapa histórica em que a tradição de distribuição de poderes se manifesta de determinada maneira? Como se encadeiam as circunstâncias conjunturais, ou seja, como uma determinada configuração leva à seguinte? Que direções é possível tomar para produzir outro encadeamento, talvez até mesmo uma desconexão e uma ruptura com a referida tradição de distribuição e exercício dos poderes?

Em tempo: alguém poderia objetar que há, ou houve (quem dera!) uma onda internacional de vitórias eleitorais de líderes caricatos e, como se tem dito, populistas, o que não se explica pelo processo de longo prazo do Brasil, com seu empobrecimento. A objeção prosseguiria: a manipulação das massas por meio das redes sociais teve papel determinante na vitória de cada um desses líderes. De fato, essa onda existe; e o aparato técnico, comunicacional, informacional foi um instrumento importante para as tais vitórias. Mas é preciso entender que em cada um desses países, e também naqueles onde houve candidaturas igualmente populistas, mas derrotadas, foi necessário aos candidatos mobilizar afetos e dinâmicas já presentes. Um triunfo extremista não acontece do nada e não se alimenta de nuvens. O mesmo vale para as ferramentas digitais, que precisam de matéria-prima para trabalhar. Elas amplificam agitações latentes do campo social, porque lhe permitem constituir uma linguagem própria, uma estética, uma identificação, um mecanismo de disseminação que permite arregimentar, convencer, alinhar o discurso.

Assim, ao argumentar que o bolsonarismo acelera um empobrecimento já em curso, não estou negando sua participação nessa onda – o que seria impossível, dada sua mania de imitar Trump em tudo –, nem estou desprezando o peso das ferramentas digitais, “fake news”, “tio do zap” ou coisa assim. Ao contrário, o que ocorre é um ciclo vicioso, em que ao mesmo tempo esses dispositivos fazem de Bolsonaro o acelerador da derrocada e, no sentido inverso, o empobrecimento alimenta o estágio de vulnerabilidade que permite sua ascensão. É sua matéria-prima.

2 – Dinâmicas do empobrecimento

Vale a pena se concentrar um pouco no primeiro item do exercício, que contém mais elementos do que pode parecer à primeira vista. A questão da desindustrialização não está tanto na perda de fábricas, mas nas ondas de choque que a acompanham. Ao longo do meio século em que se tornou um país industrial razoavelmente relevante, o Brasil também se urbanizou, ainda que de forma desorganizada. As grandes empresas industriais fomentaram a diversificação do emprego, com maiores salários e exigências de qualificação do que havia na economia agrícola anterior. Não se trata só da emergência de um operariado consumidor, mas também a classe média urbana com suas funções de escritórios, de gerentes a advogados, publicitários a jornalistas. O acréscimo de produtividade financiou a expansão universitária do período, além da expansão da burocracia, para gerir essa sociedade mais complexa, e da emergência da célebre “burguesia nacional”, ou melhor, burguesia industrial, em torno da qual gravitavam os bancos e a trinca comércio/serviços/logística.

Não estou querendo promover aqui o elogio das sociedades industriais do século XX, que tiveram seu tempo e legaram muitos dos problemas gravíssimos, existenciais, que enfrentamos hoje. Nem quero obliterar todos os conflitos distributivos que se manifestaram nesse período, com efeitos muitas vezes trágicos e sujeitos ao “tunnel effect” de que falava Albert Hirschman: com conjunturas mais favoráveis, a transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos (na qual somos pós-graduados) aparecia como aceitável; nos momentos desfavoráveis, revelava-se um tanto menos aceitável, mas era mantida à força – isto, por sinal, não parece ter mudado.
O que estou tentando esboçar aqui, como contraste com o cenário atual, é a questão do que se costumava chamar de “excedente”. Grosso modo, trata-se da ideia de que as sociedades vão criando formas de agir, gostos e confortos, a partir do que são capazes de gerar além do estrito necessário para viver. Também é uma representação um pouco esquemática, já que faz parecer tudo que denominamos “cultura” como algo que emerge após a resolução do problema da subsistência, um pouco como na famosa pirâmide de Maslow. Mesmo assim, continua valendo a pena pensar o termo “desenvolvimento” desta maneira, aliás fiel à etimologia; não se trata de explorar mais e mais territórios, mais e mais recursos para continuar fazendo mais do mesmo, com os mesmos resultados. Trata-se de construir em cima do consolidado, encontrando modos de aproveitar as capacidades que vão se configurando para incrementar a vida. Caso contrário, o termo nem sequer faz sentido.

A questão é que aquela sociedade industrial não precisava só da tal “burguesia nacional” (não confundir com donos de lojas de departamento ou redes de hamburgueria), mas de uma classe de executivos, analistas, pesquisadores, engenheiros, juristas, comunicadores e gestores públicos, e assim por diante, todos capazes de antever os movimentos do sistema global de produção, circulação e financiamento. Caberia a esse vasto grupo de pessoas garantir que o sistema produtivo local se mantenha competitivo e em condições de se revolucionar internamente, na medida em que o próprio capitalismo vai se revolucionando. Tendo falhado em responder às demandas por maior investimento no célebre “capital humano”, além de uma série de outras falhas bem conhecidas, o Brasil perde justamente o impulso de produtividade que levaria adiante esse processo. Mais ainda, perde a capacidade de produzir o excedente que permitiria pagar por ainda mais complexificação, reforma urbana, investimento em educação e ciência etc. Ou seja, mais do que o problema da participação do setor secundário nas exportações e no PIB, a desindustrialização diz respeito, primeiro, à renúncia a continuar participando das transformações tecnológicas; já não participamos da dita “terceira revolução industrial” e nem sequer sonhamos em participar da quarta.

Resumindo, não tivemos nem uma Samsung, nem uma Huawei. Por sinal, nem mesmo uma Embraer temos mais condições de manter. E justamente essa renúncia vai reverberar nos demais itens da minha pequena lista: a perda de ambições diplomáticas reflete a degradação da materialidade dessas ambições. O ataque aos biomas e a ofensiva violenta do extrativismo se sustentam no ganho de poder relativo desse setor. Quanto ao “soft power”, que inspiração pode vir de um país que se entrega de corpo e alma, prostrado, à regressão?

*

Um aspecto trágico desse processo de empobrecimento é que, na verdade, uma reversão ao estágio anterior não é possível. Tudo seria menos traumático, embora igualmente lamentável, se desse para simplesmente regressar ao estágio de pequeno país despovoado e agrário. Mas as ruínas de uma construção interrompida não são um terreno baldio. O cenário de um país que empobrece não é o mesmo do velho país pobre. As cidades estão todas aí, inchadas e deficientes em infraestrutura. Categorias sociais que se acostumaram a ter expectativas razoáveis não vão simplesmente recair na aceitação da miséria. Por mais incompetentes que sejam os gestores públicos (e nem sempre são); por mais mal desenhada que seja a lei de licitações (uma unanimidade!), nada disso basta para dar conta da degradação urbana, da logística defeituosa, da dominação territorial de facções criminosas, da desmontagem de equipamentos culturais. Estamos vivendo um processo ao mesmo tempo político e econômico (duas dimensões que se retroalimentam e, na prática, se confundem) que, ao promover empobrecimento e enfraquecer o cotidiano democrático, conduz a todos esses efeitos.

Daí decorre uma série de outros problemas, o primeiro dos quais está diretamente relacionado ao tema da biodiversidade e dos recursos naturais. Estarão na vanguarda das próximas décadas os países que forem capazes de fazer a transição para uma economia menos destrutiva e mais regenerativa. A capacidade de investir em materiais biodegradáveis e em energias não poluentes será crucial. Mas não é só porque biomas inestimáveis como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal estão sendo destruídos que o Brasil fica em péssima posição para essa corrida. É também porque as universidades e demais centros de pesquisa que poderiam ser os motores dessa dinâmica da transição, com invenções, patentes, práticas, estão sendo sufocados e vilipendiados. E porque os cérebros que se investe para formar acabam precisando se instalar em outros países, ou se ocupam aquém de sua capacidade – o famoso “brain drain”.

Este resumo também ajuda a entender um pouco melhor o fracasso da versão dilmo-manteguista do nacional-desenvolvimentismo, que foi artificial (projetando um apoio empresarial que há muito já não estava lá), anacrônico (favorecendo setores caducos e redundantes) e distorcido (reforçando, ao contrário do que pretendia, a posição degradada do país na divisão internacional do trabalho). O primeiro ponto a ressaltar é que, a esta altura, um esforço de reindustrialização não pode ser literal. A tarefa não é restabelecer as indústrias que o país já teve – que, afinal, eram adequadas à década de 70, ou melhor, ao salto que era preciso e possível dar naquele momento. Uma vez que se decidisse tomar a rota de um novo impulso para o desenvolvimento (a expressão que se usava era “superação do subdesenvolvimento”, que talvez devamos voltar a adotar), seria preciso encontrar as brechas pelas quais os setores produtivos instalados no país poderiam penetrar as cadeias de valor, progressivamente ampliando (o mais rápido possível, na verdade) o nível tecnológico da presença nessas cadeias. Nesse sentido, as fábricas de alumínio alimentadas por Belo Monte seriam praticamente irrelevantes.

3 – Esgotamento político

Ainda um tanto esquematicamente, poderíamos aproveitar essa noção do excedente para tentar explicar a crescente instabilidade social e política. Vale começar observando que, apesar de todos os avanços institucionais e da enorme melhora de muitos indicadores, todo o período da Nova República foi pontuado por crises econômicas pequenas e grandes, transições nem sempre harmoniosas de poder, escândalos de corrupção e improbidade, abafados ou não. Não me refiro só aos dois impeachments, ao aventureirismo que nos trouxe Collor e Bolsonaro, aos inúmeros programas de estabilização que precederam o real, às avalanches financeiras dos anos 90, à série de escândalos de corrupção, à recessão em 2015 e 2016, a junho de 2013 e a subsequente dominação das ruas por uma direita cada vez mais extremista.

Mesmo os momentos aparentemente mais tranquilos foram abalados por tensões graves. Em 1998, foi necessário o famoso “estelionato eleitoral” do câmbio para garantir a reeleição de Fernando Henrique; em 2002, a eleição de Lula não se deve apenas à articulação do PT, mas também à decepção da sociedade, em geral, com o desempenho econômico dos anos anteriores (lembrando que 2001 teve a crise energética); em 2006, o que parece hoje uma vitória de lavada de Lula sucedeu à crise do mensalão, em que a oposição fez a aposta (que se revelou equivocada) de “deixar sangrar” o presidente, em vez de tentar derrubá-lo (se é que teriam os votos necessários); comparada com 2014 e 2018, hoje nos parece que a eleição de 2010 foi um mar de sossego absoluto, mas foi até então o que de mais agressivo eu tinha visto, com um uso desavergonhado da (falsa) religiosidade que só faria se ampliar dali por diante.

É possível atribuir boa parte desses problemas ao recrudescimento do conflito distributivo (já mencionei isso antes) em tempos de produtividade estagnada e excedente idem. A relativa tranquilidade da era Lula, em que se dizia que, dessa vez, o Brasil ia “chegar lá” e “decolar” (lembra da Economist?), pode se explicar pela razoável folga, essencialmente financeira, ofertada por um mercado externo favorável. Não estou dizendo que a equipe de Lula é desprovida de méritos por seus sucessos, sobretudo na inclusão social – que, por sua vez, também alimenta o bom desempenho econômico –, e em uma série de avanços institucionais que, de fato, ajudam a justificar o otimismo. O que posso dizer, aí sim, é que nada disso teria sido possível durante um período de tormentas no plano externo e apertos no balanço de pagamentos. Com tudo isso, foi um período de câmbio sobrevalorizado, o que não favorece investimentos na produção local e serve, no mínimo, como indício de que, no fundamento, algo ia mal. Sem chegar a explicar predominantemente pela sobrevalorização do câmbio as agruras do setor produtivo e da economia como um todo, vale a pena se concentrar na ideia do câmbio valorizado como signo e sintoma. Não se trata de apontar que, para segurar a inflação, o dólar barato corrói a economia local; e que garante o consumo no curto prazo à custa de juros altos e produtos importados. A questão é que esse equilíbrio de curto prazo era mais instável do que parecia, reforçando a tendência a apoiar a estabilidade política numa certa engenharia econômica que, na verdade, não está garantida, e cujos alicerces vão se corroendo com a passagem do tempo.

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O problema é que muito da estrutura política com que estamos acostumados é tributária do período histórico em que ocorria a industrialização e a sociedade que se constituía a partir de suas dinâmicas. Se o Brasil chegou a produzir um partido de massas do porte do PT, é porque havia massas suficientemente fortes, coesas e organizáveis, com ambições políticas e influência social, ainda que desigualmente distribuída no país e, portanto, não tão forte assim. O PT começou com as greves do ABC, mas também com as demandas de uma classe média letrada e progressista, sobretudo nas grandes cidades. Ao mesmo tempo, se havia uma direita liberal capaz de compor com essas massas, ou meramente se opor a elas com possibilidade de mediação, é porque no dia-a-dia os grupos de classe média e alta que nela votavam tinham de incorrer em constantes negociações com as demais classes, ao mesmo tempo em que viviam em constante ligação com a vertente mais progressista de sua própria classe.

É claro que este retrato é parcial. As configurações que as mensagens políticas vão assumindo ao longo do tempo são complexas e não se encaixam perfeitamente em divisões como esta, porque são moldadas de acordo com as particularidades do país. Por exemplo, à esquerda o trabalhismo chegou a ser comandado por latifundiários e se confundiu muitas vezes (aliás, continua se confundindo) com um certo corporativismo do médio funcionalismo público. À direita, as tentações gêmeas do udenismo e do malufismo (aqui, estou tomando Maluf como representante mais longevo do que um dia foi o “ademarismo”), muitas vezes vitoriosas, mais de uma vez deixaram entrever, por baixo do moralismo e do discurso de ordem por meio de violência estatal, raízes mais profundas na exclusão e opressão de classes inferiores.

Ainda assim, as recorrentes recaídas do país em governos autoritários, tradicionalistas, opacos, quando analisadas à luz do que se acreditava ser o processo histórico que o país atravessava, entravam na conta do “atraso”. Ou seja, pareciam representar o triunfo (temporário) de um bloco que se movimentava “mais lentamente” em direção “à modernidade”, um resquício de algo que ficaria inevitavelmente para trás. Hoje, podemos desconfiar de que havia dinâmicas mais vivas nesses episódios, e que a modernidade assim concebida tinha algo de quimérico, mal e mal calcada no modelo euro-americano. Em todo caso, vale observar que, além dos fenômenos mais recentes da política brasileira, o bolsonarismo também conjugou ambas as tendências regressivas das direitas (udenismo e malufismo); estamos longe do tempo em que, por exemplo, Covas e Maluf eram antagonistas virulentos.

Ao mesmo tempo, dizer que o surgimento de um partido como o PT foi possível graças à estrutura social do período não significa, é claro, que foi nessas condições que ele chegou ao poder, nem que se sustentou assim quando era governo, muito menos que seja assim hoje. A trajetória do partido é bem contada no livro de Lincoln Secco e as transformações de sua base de apoio geraram a expressão “lulismo”, destrinchada por André Singer. A burocratização é um fenômeno razoavelmente esperável; no mais, as transformações do PT são perfeitamente explicáveis pelo que se passou no mundo, no Brasil e no cenário político. O que resta a trazer à luz é como essas dinâmicas de transformação, tendo tomado impulso por conta própria e com a inércia de um transatlântico, tornaram o PT incapaz de responder às agitações dos últimos anos. Mais ainda, desconectado de sua base popular – ou seja, privado da base que chegou a ter –, tornou-se uma casca vazia, que se alimenta do mecanismo eleitoral que chegou a montar (como nenhum outro) e do prestígio que mantém graças à memória de tempos melhores e um certo número de quadros ainda bastante respeitáveis.

“Casca vazia”, aliás, descreve bem o destino dos principais partidos da nova democracia brasileira. Além do que já foi dito sobre o PT, o que foi que transformou o partido de Montoro e Covas nesse arremedo representado por João Dória? Cuja maior esperança de voltar ao proscênio é uma figura tão limitada como Luciano Huck? Por muito tempo, quando pensamos em centro-direita no Brasil, a imagem que vinha era a do PSDB. Hoje, é um grande vazio. Parte disso é porque, quando pensávamos nos votos “da Faria Lima” (leia-se “mercado financeiro”), também pensávamos no PSDB, mas hoje temos o Novo, um partido que se diferencia do bolsonarismo sobretudo porque preferia Paulo Guedes na cabeça da chapa. À parte isso, não tem lá muitas ideias, quando justamente estamos precisando de ideias.

Todo esse movimento tem bases mais profundas, me parece, do que a mera “desilusão” com os tucanos na esteira da Lava-Jato.

Afinal, como sabemos, o sistema político como um todo caiu em desgraça perante a opinião pública depois da Lava-Jato, que centrou fogo no PT, é verdade, mas respingou nas oposições e justificou o discurso do “ninguém presta”. Mas não devemos atribuir peso demais a Moro, Dallagnol e associados. O sistema já vinha murchando, como um balão escanteado, muito antes dos escândalos. A direita tradicional se colocou na areia movediça antes mesmo da esquerda petista, provavelmente por estar na oposição, a tal ponto que Dilma se reelegeu quando já estava mal avaliada, já que o candidato da oposição era profundamente insatisfatório.

Assim, é preciso ter claro que um dos motivos pelos quais os tucanos e demais representantes da direita tradicional embarcaram na arriscada estratégia do impeachment (quando se começa, nunca se sabe onde vai terminar), paralela ao projeto de cassação da chapa Dilma-Temer, é a constatação de que já vinha falhando em se apresentar como alternativa desde muito antes. Em 2014, com o governo Dilma já em frangalhos, ainda assim o PT pôde apostar na destruição da campanha de Marina Silva, porque se sentia seguro de que venceria contra Aécio Neves.

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Já deve ter ficado claro que estou tentando transmitir a ideia de que a perda de potência das forças políticas – principalmente os partidos, mas não só – reflete, ou pelo menos acompanha o empobrecimento generalizado do país. Em traços gerais, era disso que eu estava falando quando me referi ao esgotamento de todas as forças políticas relevantes, abrindo espaço para combinações teratológicas como a que estamos testemunhando. Ou seja, elas são sobretudo consequência, embora sejam capazes de intensificar o problema e criar problemas novos. Mas ao mesmo tempo é preciso enxergar que mesmo as formas teratológicas, em última análise, se mantêm a partir de uma estrutura de poder que de novidade não tem nada. A implosão das legendas de maior renome desnuda os mecanismos desse poder, por meio da proliferação de partidos novos ou com nomes mudados, e que na verdade são meros vetores para as categorias que sempre foram as mais poderosas no Brasil: latifúndios, cartórios, estamentos, sacerdotes. Com a derrocada de PT, PSDB, PMDB, PFL, o que cai é a cortina. O palco segue agitado como um formigueiro.

Sendo assim, podemos estimar que a incapacidade das esquerdas em propor alternativas viáveis não se deve nem a um emburrecimento generalizado, nem à calcificação burocrática do petismo, nem ao desaparecimento das pautas históricas. Se as correntes da oposição se perdem em brigas paroquiais e patrulhamentos estéreis, é porque não conseguem compor um projeto coerente de avanço social e econômico que contemple o conjunto dos setores que, a princípio, se sentiriam representados por plataformas de esquerda. Seria preciso recompor com esses setores, se isso for possível, ou desenvolver modos novos de compor com o que há. Voltar à prancheta, aprender outras linguagens. Ocasionalmente aparecem algumas sugestões de como isso poderia se dar, mas ainda há muito chão a percorrer.

Também podemos atribuir ao estreitamento do excedente o que parece ser uma limitação da efetividade dos movimentos sociais, em diversas frentes. Populações indígenas, por exemplo, estão basicamente na defensiva, embora tenham obtido vitórias importantes ao garantir demarcações e evitar retrocessos. Mas a perspectiva continua sendo de que os retrocessos precisem ser evitados, e nem todos serão – aí estão as queimadas como um sinal de alerta. Também a ocupação de espaços de decisão por pessoas negras ainda não reflete a expansão de sua presença em universidades, embora um certo número de empresas já tenham reconhecido a urgência de um esforço concentrado pela diversificação e o combate ao racismo. Houve ganhos nas pautas das mulheres, da violência policial, do direito à expressão (notadamente nas artes), na moradia. Podemos colocar nessa conta, também, o auxílio emergencial da pandemia, surgido da mobilização da sociedade civil organizada.

Mesmo assim, a sensação generalizada é a de que esses ganhos não conseguem criar raízes. Sentimos que as próximas ameaças serão sempre maiores. Todo dia, lemos notícias dizendo que policiais expulsos por sua relação com milícias serão readmitidos; que mesmo depois que se garantiu a uma criança estuprada o direito de interromper a gravidez, forças obscurantistas instaladas dentro do aparelho de Estado trabalham para intensificar as perseguições; que há dezenas de milhares de pessoas ameaçadas de despejo e nenhum interesse do poder público em evitá-lo; que vozes críticas ao governo têm sofrido assédio de instituições como o Ministério Público.

4 – Balanço

Nada disso deve ser entendido como negando que houve muitos avanços nas últimas décadas. Pelo contrário, o que realmente vale a pena apontar, e sempre, é o caráter crítico da tensão entre avanços sociais e institucionais, de um lado, e suas condições concretas, de outro; uma tensão que vai se intensificando e pode levar a sabe-se lá quais peripécias no futuro próximo. Como já mencionei em outro texto, muito do que ganhamos nos últimos tempos, devemos ao que se costuma chamar de “espírito da Constituição Federal de 1988”, o que pode soar um pouco místico, talvez idealista, mas faz sentido se pensamos que a Carta é fruto de um momento histórico particular e da atuação daquelas gerações que tinham grandes esperanças e expectativas. Resumindo bem, de gente que via a redemocratização como um retorno aos trilhos da modernização – que, como se tinha percebido sob a ditadura, não podia se limitar a ser a quimera da “modernização conservadora”.

Gostamos muito de lembrar dos defeitos da Constituição, seja por dar garantias pouco realistas do ponto de vista fiscal, seja por conter uma infinidade de penduricalhos (resultado da estrutura de votações da Constituinte), mas é bastante evidente que, de lá para cá, houve melhora substancial em diversos indicadores. O serviço público ganhou muito em organização, profissionalizou-se claramente. Os mecanismos de participação social foram muito fortalecidos. Este ano deixou claro como o SUS é indispensável; além disso, instrumentos como o Fundeb, por exemplo, são fundamentais para fortalecer a sociedade civil e elevar o grau de exigência com o poder público. Para dar só um exemplo, quando observamos quantas vezes o latifúndio teve de investir contra leis ambientais e terras indígenas, muitas vezes saindo derrotado, podemos constatar que temos um ordenamento jurídico que serve de anteparo contra as investidas das forças empobrecedoras (e cretinizadoras) do país. Resta ver, é verdade, até quando as normas constitucionais serão capazes de resistir. Não é tanto com eventuais reformas do texto constitucional que estou preocupado. Me causa muito mais frio na espinha a perspectiva de que efetivos poderes de uma conjunção de forças reacionárias e obscurantistas lhes permita simplesmente passar por cima do que está escrito aí ou em qualquer outro canto, lançando mão da pura brutalidade.

É fabuloso como as ferramentas desenvolvidas no período pós-redemocratização deram um bom fôlego à vida civil nas últimas décadas. De fato, a sociedade civil foi e continua sendo muito atuante, de maneira cada vez mais profissionalizada e conseguindo comunicar com o público. Já mencionei, de passagem, as articulações cada vez mais fecundas do movimento negro, feminismo, secundaristas, moradia urbana, quilombolas, indígenas, agricultura familiar. Vejo com aquela ponta sempre agradável de esperança a emergência de novas lideranças políticas, com muita energia e tocando no âmago de algumas das nossas maiores contradições, isto é, nos mais arraigados e funestos dos nossos elementos constitutivos.

A grande preocupação é que, em todo esse período, as condições concretas da transformação social a que essas mobilizações podem almejar, e que não são poucas, foram sendo minadas por debaixo de seus pés. Apesar de todas as vitórias, os avanços não chegaram a tomar uma dinâmica própria a partir de sua recente base institucional, porque ocorria simultaneamente uma degradação estrutural invisível; só agora podemos ver com clareza como bastava um baque para pôr muito (não tudo!) a perder. No cabo-de-guerra entre os movimentos emancipatórios e as forças do retrocesso, estas últimas parecem estar com um jogo mais forte, apesar de toda a persistência, de toda a luta. Por quê? Porque as transformações sociais precisam se apoiar em condições efetivas pelas quais elas possam ser incorporadas e vividas. Assim, por exemplo, quando forças políticas se valem de um certo tipo de religiosidade em benefício próprio, é verdade que estão remexendo alguns recônditos culturais bastante profundos, que remetem tanto ao papel das religiões na ocupação do território quanto ao uso de mão-de-obra sequestrada e forçada. Mas há algo a mais: para que esses elementos estejam tão disponíveis e em tanta abundância, é preciso que as populações tenham perdido outros fios de esperança. É preciso que essas mensagens, que são exigentes e muitas vezes inverossímeis, encontrem o terreno fértil de uma população à procura de respostas. Estamos perante o mesmo fenômeno de esgotamento de dinâmicas com que este texto se abriu.

Apesar de todos os desentendimentos que se seguiram, é preciso tratar a aliança de ocasião entre militarismo jagunço e religiosidade distorcida, que foi instrumental no triunfo do bolsonarismo, não só pelo aspecto (verdadeiro) da manipulação dos afetos políticos, mas também como sintoma do estreitamento de horizontes na vida quotidiana do país. O desejo da carnificina floresce quando a perspectiva de uma vida social satisfatória se torna inconcebível: a adoração cega às tropas como Rota e Bope é simplista e recorre ao que há de obscuro em todos nós, mas seu combustível é uma realidade encurralada e degradada, familiar a boa parte da população.

Ao mesmo tempo, lembro que, quando a maré começou a virar na economia brasileira, há coisa de seis anos, eu me perguntava, um tanto angustiado, o que aconteceria com a dita “teologia da prosperidade” depois que a tal prosperidade se esvanecesse. Sem surpresas, estamos vendo agora que o que aconteceu foi um recrudescimento de outra abordagem afetiva frequentemente encontrada, mas em geral secundária, em fenômenos religiosos: passou-se a investir em uma versão crescentemente paranóica do moralismo, onde a culpa pela situação econômica cada vez mais difícil recai sobre o comportamento acusado de extremamente pecaminoso dos outros. Um pouco como se o castigo para Sodoma e Gomorra não fosse fogo e enxofre, mas recessão e desemprego.

Não quero dizer com tudo isso que a expansão de formas agressivas, obscurantistas e excludentes de religiosidade seja um fenômeno restrito à população mais vulnerável, ainda mais empobrecida pela perda de renda dos últimos anos (vale lembrar que mesmo o parco crescimento depois da recessão esteve sempre abaixo da taxa de reposição populacional). Inúmeras camadas de classe baixa e média compartilham do mesmo sentimento de risco social e financeiro, já que uma proporção considerável da população precisa se desdobrar para pagar as contas (só o endividamento das famílias está em 67%, consumindo 30% da renda, o que não é pouco). Não ajuda nada que este seja um país onde o acesso a escola, saúde e mesmo transporte privado é um ponto de distinção (ou seja, que mesmo as famílias mais sufocadas financeiramente estejam dispostas a fazer de tudo para não ter de andar de ônibus e para que seus filhos não estudem em escola pública).

Ninguém se surpreenderia, portanto, ao constatar que são esses mesmos sentimentos que fomentam o fascínio pelos uniformes e os gatilhos leves – afinal, é a imagem de um pouco de ordem irrompendo na bagunça – e, por fim, a figura de Bolsonaro. Este último, embora objetivamente não esteja à altura de qualquer uma dessas vertentes (foi um militar fracassado, é moralmente repreensível em todos os níveis), conseguiu reunir todas elas e aproveitar sua dinâmica em benefício próprio. Paradoxalmente, embora fosse uma dinâmica de morte, era a única dinâmica realmente viva disponível no país. No momento em que escrevo, parece que há uma certa dissonância (além da cognitiva) entre os diferentes grupos que apoiaram Bolsonaro e seguem apoiando o, digamos, “espírito do bolsonarismo”. Assim como já havia acontecido quando da saída de Moro do ministério e em outras ocasiões, com a indicação de Kássio Nunes para o STF voltam os gritos de “traição” e coisa pior. Na revista Piauí, por sinal, podemos ler sobre como batem cabeça aqueles que não sabem bem definir se “são liberais” ou “são conservadores”, com essa tocante ingenuidade da identificação individual, tão característica do nosso tempo. Mas prestando atenção ao problema das dinâmicas vivas e mortas, recomendo não se animar com a barulheira: na primeira ocasião, ainda que com outro nome, malufistas, udenistas, militaristas, extremistas religiosos, fascistas “de facto” e aproveitadores de todos os matizes vão caminhar de braços dados novamente.

*

Como caracterizar uma situação dessas? A resposta habitual tem sido discutir se o bolsonarismo é um tipo de fascismo; isso me parece quase uma obviedade, mas não vejo como avançar muito a partir daí. Talvez valesse mais a pena subir um degrau e perguntar que tipo de momento faz com que os fascismos, de qualquer tipo, emerjam de suas sombras habituais. Melhor ainda, poderíamos perguntar: mas o fascismo é um tipo de quê? Tudo isto nos traz mais para perto do problema, com sua dinâmica própria, do que a mera tipificação; classificar não é o nosso problema, superar a tendência catastrófica ao empobrecimento é.

Agora, se o tipo de vinculação afetiva que conduz aos fascismos e ao bolsonarismo é algo que, como afirmei no início, permeia o campo social em toda parte, emergindo nos momentos de dinamismo esgotado e conflitos incontroláveis, então cabe a todo não-fascista, a todo democrata, buscar modos de constituir dinâmicas mais fecundas e construtivas, devolvendo as pulsões de morte aos cantos obscuros onde costumam viver, de onde causam menos danos.

Nosso desafio imediato é esse mesmo em que temos nos concentrado, ou seja: vislumbrar como se pode sair do buraco. É enorme a vontade de acreditar que só é preciso melhorar a organização das forças políticas, com ou sem frente ampla; ou ainda, que basta a população tomar consciência de que está no buraco, para que pelo menos o país viva suas crises intermináveis sem a dose diária de vulgaridade oficial. Mas acho que, no fundo, sabemos todos que não vai ser assim.

Se os antecedentes servem para algo, neste caso vai ser para nos deixar com as barbas de molho. Nas outras ocasiões em que dinâmicas destrutivas e opressivas chegaram a constituir governos, foram bem mais estáveis do que se poderia apostar, ainda que graças a fortes doses de violência e corrupção. Dinâmicas mórbidas geram insatisfação mesmo em quem as apoiou (e passa a se dizer traído). Mas tomam corpo, conseguem disseminar sua própria lógica, se tornam o ritmo hegemônico da vida. Sim, os fascismos podem ocupar o centro de nossas vidas, a ponto de não encontrarmos nenhum ponto comum de ancoragem melhor do que se declarar “anti-fascista”. Ora, mas ser anti-fascista é o mínimo! O que temos a oferecer à população além de “sair do buraco”, se nem somos capazes de descrever o que existe para além do buraco?

Desconfio que só sairemos desta enrascada quando enfrentarmos a questão do processo de empobrecimento – que é, repito, multidimensional, envolve a perda de prestígio, de sofisticação, de diversidade, de perspectiva, até mesmo de esperança. E em que consiste enfrentá-lo? Antes de mais nada, o enfrentamento teria que passar longe do saudosismo (espero não ter soado saudosista neste texto!); teria que se alimentar das aspirações de fato presentes no campo social, e que são muitas. Teria que ressoar com os desafios e possibilidades abertas hoje, em nosso tempo.

Neste ponto, os quatro itens do exercício da primeira parte podem servir de guia (sem querer ser presunçoso); mas se buscamos interromper a reprimarização, se não queremos que o território seja definitivamente uma enorme monocultura pontuada de minas, então o que aspiramos a produzir? E se não desejamos ser párias, que rosto esperamos mostrar ao mundo? O quarto item talvez seja o mais fecundo, considerando o peso da crise ambiental para o futuro da humanidade. Temos condições técnicas, intelectuais e financeiras para refundar nossa economia em bases completamente diferentes: descolonizada, sustentável, regenerativa, equitativa. Existem, portanto, bandeiras disponíveis e caminhos a seguir. O que nos cabe, então, é redirecionar nossos afetos, sufocar as tendências mórbidas dos fascismos, amplificar as dinâmicas férteis.

Padrão
barbárie, Brasil, capitalismo, cidade, crime, desespero, direita, economia, eleições, Ensaio, escândalo, esquerda, greve, história, imprensa, junho, lula, manifestação, opinião, passado, Politica, Sociedade, tempo, transcendência

Os vencedores de sempre e o resto de nós

 

Edipo re

Já que a realidade é tão confusa – e a facilidade com que ela se presta a interpretações simplistas é sintoma dessa confusão –, vale a pena tentar tratá-la como se fosse um enredo ficcional. Digamos: como uma tragédia grega, um melodrama burguês ou um poema épico. Ainda não está claro em qual desses gêneros estamos vivendo, e isso vai depender de como agirão os personagens: são heróis trágicos? São bufões? São semideuses?

Houve quem visse qualquer coisa de divino, por exemplo, na postura de Dilma perante os senadores; os deputados, com seus votos disparatados, certamente transmitem uma impressão de ridículo; e aqueles que, de um modo ou de outro, se colocaram contra a conspiração, ainda que se opusessem aos governos petistas, assumiram uma postura – vamos dizer assim – de heróis trágicos.

Já os vilões, esses os temos de sobra.

O enredo ainda está sendo escrito, mas o que pode ser feito desde já é um esboço dos tipos gerais dos personagens, o que está longe de ser pouca coisa, dada a velocidade com que os eventos nos atropelam. Assim, grosso modo, eu diria que os personagens principais são os seguintes: os formalmente derrotados; os informalmente derrotados – e duas vezes; os vencedores que, quando pensarem melhor, vão se descobrir derrotados; os que, nunca precisando lutar, recebem de bandeja todos os espólios.

Fora esses, tem o coro, os extras, os figurantes, os bichos infláveis.

Odysseus

Essa estranha distribuição de papéis pode pelo menos servir para explicar em parte por que tantos de nós – aqueles que algum dia ousaram ter esperança de alguma coisa – estão se sentindo sem referências, imobilizados, pessimistas. Se não dá para negar, noves fora, que atravessamos uma crise “ao mesmo tempo política, econômica, social e moral”, como tem sido dito por quem quer parecer neutro, o que falta mencionar é que tudo isso são componentes de uma conjuntura crítica com jeito de existencial. Não, é claro, no sentido individual, embora cada indivíduo sinta os reflexos dessa crise; está em jogo não simplesmente uma idéia de país, ou a distribuição dos poderes, mas também o vetor dos próximos ciclos políticos.

A crise é tão existencial que está em jogo até mesmo o passado: qual é, afinal, o tamanho do ciclo que se fecha? 14 anos? 28 anos? 86 anos? A resposta para isso depende de respondermos: o que é que está acabando, de fato? O ciclo do PT, a Nova República ou o ensaio civilizatório do último século?

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Como primeiro esboço – e tudo que segue abaixo são esboços em série –, a síntese mais precisa que consigo encontrar aparece na seguinte pergunta: “onde raios estamos?”, o que, claro, se desdobra em outras questões simples na formulação, mas enigmáticas nas implicações: “como raios viemos parar aqui?”, “como raios saímos desse atoleiro?”, ou então: “onde raios vamos parar?”.

São as perguntas de gente que navega sem bússola, flutuando a esmo. Não é por acaso ou por alguma falha moral que os debates em que temos nos metido são tão estéreis, além de fratricidas. É o debate dos desamparados. Também não é casual que movimentos e reivindicações sociais pareçam ter se tornado estéreis, tendo perdido as principais vias de entrada no sistema político, onde se dá a efetividade, do ponto de vista normativo. O poder, que vinha se fechando aos poucos, agora parece ter batido a porta de vez. Quanto esforço de reconstrução, quantos anos serão necessários, para que se abra novamente?

*

PARTE UM

Nosso drama

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Por enquanto, vejamos os personagens que mencionei acima, antes que sejam esquecidos. O formalmente derrotado é, claro, o petismo, ao menos o da cúpula, que buscou delinear um campo de embate e, nesse campo mesmo, foi fragorosamente batido, justo quando acreditava alcançar o sucesso absoluto. Em que pesem a dimensão da débâcle, o recurso (de parte a parte!) a táticas condenáveis, o transbordamento da ação política além de seu quadro jurídico, a derrota é formalmente clara porque se pode mostrar rigorosamente o que foi desejado, o que foi alcançado, o que foi perdido. No jogo das alianças e embates com as forças conservadoras da sociedade, o PT achou que levaria a melhor, primeiro nas alianças, depois nos embates. Pois bem, levou a pior em umas e outros. Assim, com o risco de soar cínico, sou obrigado a dizer: é do jogo.

Só que a derrota formal do PT é custosa e não só para seus líderes. Depois de chegar ao segundo turno em 1989, convergiu em torno do partido a imagem de uma esquerda capaz de vencer. Tendo vencido, convergiu ainda mais a imagem de um projeto bem-sucedido, grupo que soube compor com seus inimigos para obter transformações efetivas e duradouras no país.

O quanto havia de real nessa imagem – ou seja, o quanto as transformações são mesmo efetivas e duradouras, ou o quanto a tal composição com as forças retrógradas não foi, na verdade, uma simbiose – ainda está em aberto. Mas já se pode afirmar que a consolidação do PT no poder esvaziou a possibilidade de constituir outras mensagens, outros projetos, outras articulações, capazes de corresponder à diversidade enorme dos desafios que a sociedade brasileira enfrenta. No frigir dos ovos, para não entregar os anéis, o PT entregou os dedos de todo o campo progressista.

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À medida que as circunstâncias mudavam, no mundo, no país, na política, na sociedade, a paralisia provocada por um centro de atração tão irresistível foi se tornando cada vez mais perniciosa. Entre tantas outras chaves de leitura, junho de 2013 pode ser interpretado por esse ângulo: como foi possível um partido tão bem inserido nas cidades e nos movimentos sociais não perceber o transporte público (e seus oligopólios) como um dos problemas mais urgentes do país? Como pôde não aproveitar a oportunidade de investir contra um feudo (supostamente inimigo) tão bem defendido, logo quando havia uma rachadura na muralha? Como pôde se aliar à direita e entregar à própria direita, à mais tosca das direitas, a narrativa da indignação? Provavelmente estava olhando para o outro lado…

Caso diferente é o do personagem (informalmente) derrotado duas vezes. Enfio nesse saco arquetípico os segmentos sociais e os movimentos, grupos, indivíduos, que tentaram atuar à margem ou fora do sistema político institucional; que tentaram, muitas vezes, atuar através desse sistema, até mesmo por dentro dos partidos, dos ministérios. Que encabeçaram projetos e iniciativas emancipadores, só para vê-los rifados por exigência de tal ou tal aliança espúria. Sem sombra de dúvida, é preciso reconhecer que entram nessa categoria muitos petistas – alguns dos quais, hoje, ex-petistas. Foram derrotados, primeiro, pela estratégia de ocupação de espaços do PT, que depois se tornou uma estratégia de cessão de espaços; mais tarde, por se verem sujeitados a um governo de Michel Temer, Alexandre de Moraes e José Serra. Esses têm bem motivo para estar desanimados, porque o pouco que chegaram a efetivamente conquistar está mais ameaçado que nunca.

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O vencedor que vai se perceber derrotado é o eleitor inclinado para os tucanos, aquele que se considera um conservador esclarecido e ainda, até hoje, em pleno 2016, enxerga no PSDB o partido da modernização econômica, das “políticas econômicas sãs” – expressão que tenho ouvido ultimamente e que me soa bem divertida. Passou despecebido a esse personagem, que costuma ser muito trabalhador e, por isso, não tem tempo para examinar o mundo à sua volta com o devido detalhamento, o fato de que ele perdeu a viagem: aquela tal tucanagem… não existe mais. Ele pensa que ainda convive com Franco Montoro e Mario Covas, reencarnados em Marconi Perillo, Aécio Neves e Geraldo Alckmin. Pois sim.

Na verdade, era natural que um partido cuja imagem se associa às elites políticas e econômicas do país, em particular as do maior Estado da federação, se tornasse paulatinamente mais parecido com o grupo social que veio representar. Esse grupo, vale lembrar, não é composto por “empresários schumpeterianos” dotados de admiráveis “instintos animais”, mas por oligarcas, rentistas, patrimonialistas e tudo que tão bem conhecemos da história do país. Esse eleitor, achando que recuperou o governo para a vanguarda do capitalismo mundial, que é como até hoje ele enxerga o período FHC, não vai demorar a se descobrir em uma versão repaginada da República do Café – isto é, quando tiver tempo de prestar atenção ao que ocorre em volta de seu nariz.

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Gostamos de pensar no PMDB como o partido que está sempre no poder e se adapta às circunstâncias, numa representação que coloca o PT como esquerda institucional, o PFL como direita tradicional e o PSDB como direita mais moderninha. Essa representação esquece da tradicional imagem do tucano: aquele que está em cima do muro, esperando para ver qual lado vai se dar melhor e então pender naquela direção. Lembra disso? Recomendo lembrar. A bem da verdade, lamento, mas não existe, hoje, um partido que efetivamente represente alguma “vanguarda econômica” no Brasil, e nem poderia existir: no país do agronegócio latifundiário, do spread bancário e da especulação imobiliária, tal vanguarda não passa de fachada. Aliás, aí está uma especialidade brasileira: a fachada!

A charge foi publicada em inícios de 1907, cujo título é "Uma idéia do Zé para o carnaval: O Convênio de Taubaté". A legenda referente ao desenho é a que segue: " TIBIRIÇÁ: - Força, rapazes! Dos seis mil contos para comprar cafés baixos, quero 2.000 para São Paulo! JOÃO PINHEIRO: - E Minas não há de ficar no - 'ora, veja'! Puxa! ALFREDO BACKER: - Quem… teve Mateus que o embale! A União é mau de todos, e o Estado do Rio é um bom filho… Aguenta! Oh! Upa! ZÉ POVO: - Xi!!! Com que gana eles dão à bomba! Que valem economias, impostos, sela à barriga, se o 'melado' corre assim para os Estados?! E nunca mais volta!… Uma idéia: vou lembrar este quadro para um carro carnavalesco; mas faço questão de ser representado… por uma besta! "

Resta falar dos verdadeiros vencedores, aqueles que sempre saem por cima, os autênticos “donos do poder”, para usar a expressão de Raymundo Faoro. Esses não tiveram do que reclamar sob FHC, Lula ou Dilma; dominam o Judiciário sem grande oposição (com seus juízes que se ofendem quando lembrados de que não são Deus); disseminam tranqüilamente sua mensagem de ódio social e desprezo à sociedade. Prosseguem com a exploração predatória das terras e, por extensão, dos corpos. Controlam as polícias, mal pagas e formatadas para a brutalidade; ocupam o Legislativo em praticamente todos os níveis da federação (haverá talvez algum Estado ou município que conte como aldeia gaulesa?). Também dominam amplamente os meios de comunicação – a propósito, por esses dias o STF esteve para votar a posse de veículos de mídia por parlamentares; como andará a obrigatoriedade de publicação dos balanços, hein?

E agora podem também contar com a cúpula do Executivo Federal. Não custou muito: bastou uma conspiração contra gente incapaz de contê-la, sob os aplausos dos nossos “esclarecidos”.

Parabéns aos envolvidos!

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Quase todo mundo sabe de cor e salteado que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, mas não parece estar claro o que isso implica em termos sociais e, principalmente, políticos. Fala-se em desigualdade como se fosse meramente uma questão de renda, poder de compra, acesso a bens. Por sinal, é sintomático que os avanços sociais da última década tenham estado tão concentrados justamente na questão do consumo – o que não significa que sejam ilusórios, como já mencionei em outros textos.

A manifestação pecuniária da desigualdade é um mero sintoma; não é nem causa, nem efeito, sobretudo em se tratando de um sistema social, em que a causalidade é circular. Miséria, doenças parasitárias, saneamento deficiente, analfabetismo, raquitismo, periferias supersaturadas, subemprego, violência, nada disso são “efeitos” da desigualdade; são seus componentes, suas faces, como as faces de um poliedro. O mesmo vale para a ostentação, a humilhação de subordinados, a corrupção, o desprezo à lei, a sonegação. Todos esses aspectos se alimentam e justificam mutuamente, compondo o quadro da desigualdade e da lógica política e social do Brasil. Esse quadro remete ao que há de mais decisivo para o que vem por aí: é o momento crítico desse retrato, com a oportunidade de recompor suas poucas rachaduras, que está em jogo para o grande vencedor.

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Então poderíamos perguntar: como se relaciona essa distribuição de papéis na nossa dramatização nacional com aquilo que chamei, acima, de crise existencial? Em grande parte, a crise decorre do fato de que todos os segmentos sociais que efetivamente quiseram alguma coisa, que tiveram algum projeto de mudança, alguma idéia para o país, se não acabaram de mãos abanando, acabaram dando de cara com um paredão. Para usar uma imagem meio poética, meio cafona, podemos dizer que a parede em questão é o muro da fortaleza dentro da qual os verdadeiros “donos do poder” (“classe dominante”, “oligarquia” etc.) tomam seu champagne, guardados por Deus, contando o vil metal.

Parece que sempre foi possível contornar esse muro de alguma maneira, ocupar algum espaço do lado de cá, satisfazer um punhado de demandas com migalhas, fazer alguma composição, acomodar interesses, empurrar mais para adiante uma crise mais séria, possivelmente violenta: um verdadeiro confronto social. Agora, parece que isso não é mais possível. Ninguém vê mais uma saída como essa, porque não estamos nem nos anos 20, do tenentismo, nem nos 50, do juscelinismo, nem nos 60, das reformas de base, nem dos 80, quando se fundou o partido de massas que ora implode.

Ninguém parece enxergar nada que corresponda a essas nossas figuras históricas, exceto por pequenas fagulhas, como eventualmente o movimento secundarista do ano passado. Mas esse movimento, como qualquer outro, para ter mesmo efetividade, precisaria poder desaguar em estruturas mais firmes, concretizar-se de alguma forma. Essa concretização, que dependeria de articulações hoje indisponíveis, dada a implosão dos grupos mais progressistas oriundos da era da redemocratização (incluo aí os personagens tucanos), é o que as pessoas não têm conseguido enxergar. Isso justifica, ou ao menos explica, a pasmaceira, a angústia, o pessimismo, a crise existencial.

Explica, inclusive, a derrota próxima dos grupos que se crêem vencedores.

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Passando os olhos pelos diagnósticos do presente disponíveis na imprensa, na academia e na internet, posso dizer com razoável margem de segurança que qualquer análise que se pretenda séria – isto é, que seja mais do que torcida – enxerga nosso momento como algo que vai muito além do “empessegamento” de Dilma Rousseff. Assim, alguns dos nossos melhores observadores têm notado no derretimento político do país a marca dos estertores da Nova República, ou seja, aquela que se fundou com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Há vários artigos sobre o tema, mas o mais completo (e afinal, também o mais extenso) é provavelmente o de Marcos Nobre na revista Novos Estudos.

Em resumo, o argumento ressalta o fato de que o arranjo político do período, pelo qual uma bipolaridade PSDB/PT comandaria e controlaria um grande pântano de fisiologismo (essa é a descrição de Nobre), se desmilingüiu, na medida em que o petismo foi implodido por ataques externos e inapetência interna, enquanto o tucanato se tornou um apêndice um tanto caricato do pântano que acreditava ser destinado a controlar. Esse arranjo vai além das relações entre o Legislativo e o Executivo, está aí Gilmar Mendes que não me deixa mentir.

Por esse prisma, Sergio Machado tinha razão, parcialmente ao menos, ao dizer que “o mais fácil é botar o Michel”, em conversa com Romero Jucá sobre as tramóias que dariam cabo da operação Lava-Jato. Jucá, por sinal, deixa claro que era preciso trocar de governo, e isso foi feito. Assim, o esperado de um governo Temer é alinhar todos os poderes e todas as forças do patrimonialismo estamental, deixando de fora, primeiro, o PT (jogado aos leões?) e, em seguida, a sociedade (que, vamos convir, sempre esteve de fora e, em geral, não se incomodou). A tese da crise da Nova República, porém, afirma que essa tentativa implica mais do que um simples acordão para livrar nossos fisiologistas da Polícia Federal: implica o fim do arranjo político instaurado nas últimas três décadas. Resta saber: cria um vácuo? O que ocupa esse vácuo?

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Um detalhe interessante: se olharmos em retrospectiva, podemos dizer que cada governo eleito depois da Carta de 1988 teve como mote algum tipo de transformação profunda no país (traço também sugerido no artigo de Nobre). A começar pela própria CF, que recebeu o apelido de “constituição cidadã”, em certa medida porque estava expresso nela um desejo de consolidar, na letra fria das normas, a cidadania à qual os próprios cidadãos nunca puderam ter acesso efetivamente – e isso não é pouca coisa, como temos visto nos últimos anos.

Pensemos no governo Collor, que, conservador como era e oriundo das piores oligarquias, escancarou a economia como estratégia de transformação de um empresariado industrial dependente das reservas de mercado. O governo Fernando Henrique, mesmo se esquecermos o que ele escreveu, foi dedicado à modernização econômica e financeira do país, concorde-se ou não com o que significava essa modernização. Havia ali a idéia de transformar a gestão das finanças públicas em todos os níveis da federação, mesmo que à custa da asfixia dos governos estaduais – e essa asfixia também pode ser lida como estratégia para esvaziar coronelatos.

O governo Lula, por sua vez, ressaltava uma transformação social que ia muito além da transferência de renda e da valorização do salário mínimo; a criação de universidades, a instituição de cotas, os pontos de cultura, têm um papel importante aí. Já o governo Dilma tinha em seu início, não nos esqueçamos, uma promessa infelizmente frustrada de recuperação da taxa de investimentos, o que, se bem executado e somando-se às transformações anteriores, poderia mudar profundamente a dinâmica da economia brasileira. Poderia, a rigor, realizar a parte estritamente econômica do projeto de 1988. A péssima leitura das dinâmicas do capitalismo global condenaram o projeto, é claro, além da inabilidade política e do erro em crer que era possível uma verdadeira transformação sem quebrar a espinha dos “donos do poder”. Mas o que interessa a este texto é o discurso da transformação e do otimismo.

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O período que conhecemos como “Nova República”, precisamos ter isso em mente, carrega consigo algo como uma “missão histórica”, se é que existe tal coisa. Podemos chamar também de “ambição implícita” ou “possibilidade única”, se for o caso. Imaginou-se ali um Brasil para além da dominação oligárquica que nos persegue como república desde o 15 de novembro, apesar de todas as falhas.

Creio que uma leitura cuidadosa do texto constitucional, dos debates durante a constituinte e dos movimentos sociais ativos ao longo dos anos 1980 poderia chegar a uma demonstração de que a verborragia e as incongruências da Carta Magna cristalizam uma síntese do país, com todas as suas complexidades: o varguismo, as oligarquias, as demandas sociais de um povo desamparado – aqueles aos quais Collor iria se referir como “os descamisados”.

Foi com esse pano de fundo que se sedimentaram as referências do período, essas que agora racharam e fazem água. Tanto as tentativas de tornar realidade os dispositivos constitucionais como os ataques a eles (por exemplo, o parasitismo dos planos de saúde sobre o SUS) se organizaram dentro desse eixo.

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Pois é a partir desse quadro que emerge um novo governo – até outro dia interino. Não tendo sido eleito (ou seja, seu projeto não tendo sido chancelado pelas urnas), esse governo não poderia ser simplesmente associado a uma etapa a mais na seqüência dos parágrafos anteriores (o governo de Itamar Franco, por exemplo, está ausente da listagem). Que sua chegada ao poder tenha se dado por vias tortas, claramente ilegítimas, golpe parlamentar ou não, só reforça seu caráter de tentativa de restauração, na linha do Congresso de Viena. Só o que faltou, no nosso caso, foi uma autêntica revolução anterior…

Colocada dessa forma, a imagem que emerge do governo Temer é a de um Executivo que, depois de quase 30 anos, não quer transformar nada, antes muito pelo contrário. Notemos uma coisa interessante: do “Avança Brasil” ao “País de Todos”, das “cinco metas” de 1994 à “aceleração do crescimento” e daí para a pouco sincera “pátria educadora”, nossos slogans das últimas décadas foram todos muito otimistas, refletindo o “momento singular” da Nova República. Pouco importa que também sejam artificiais e enganadores, pelo menos quando os comparamos ao tenebroso e pouco imaginativo “Ordem e Progresso” em que fomos parar – uma divisa positivista e superada, uma expressão do século XIX, para um governo afinado, precisamente, com o século XIX (resta ver sua relação com o próprio positivismo).

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É claro, há quem se iluda com a mensagem de “abertura aos mercados” que eventualmente o novo governo envia como sinalização para os segmentos encarapitados na Berrini. Essa mensagem é flagrantemente falsa, como se vê pelo déficit previsto para este ano, a simpatia pelo aumento do Judiciário e o estranhamento entre o PMDB e o PSDB, mantido, por enquanto, em níveis controláveis: não vai ser assim por muito tempo.

Se há pontos de convergência entre o interesse dos mercados (como os entendem os profissionais que neles atuam, não os que os controlam) e o das nossas elites oligárquicas, esses são pontos casuais, que geralmente dizem respeito ao controle direto sobre a distribuição dos benefícios da atividade econômica: previdência, negociações coletivas, saúde pública, infraestrutura. E acaba por aí: coisas que de fato tornariam o mercado mais eficiente, como aumento da concorrência, um sistema tributário mais equânime, uma lei de licitações mais competitiva, uma reforma do Judiciário, investimento em pesquisa e formação, vão ficar para as calendas gregas.

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Não foram poucos os acusadores que, reconhecendo a insuficiência das pedaladas fiscais como causa para a remoção de Dilma, trataram do “conjunto da obra”, referindo-se ao descalabro econômico, ou seja, alta da inflação, recessão, volta do desemprego (creio que a própria Dilma foi a primeira a usar a expressão). Está cheio de gente inteligente por aí achando que vem adiante um ajuste fiscal que reequilibre as contas públicas e nos leve ao nirvana econômico.

Lamento ser o portador de uma mensagem apocalíptica, mas um conhecimento mesmo parco dos mecanismos de retroalimentação inflacionária do Brasil anterior ao Plano Real deveria nos deixar com as barbas de molho. Ou alguém acredita que as promessas de Temer aos senadores e deputados, incluindo diretorias de bancos estatais, investimentos de ministérios e sabe Deus mais o quê, como pagamento pelo voto anti-Dilma, vão sair baratinho? Não se surpreenda se a inflação voltar à casa dos dois dígitos – e os juros reais também. Talvez aí os vencedores ilusórios se dêem conta de quem levou mesmo a melhor…

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De modo geral, se a crise existencial é o ponto em que estamos – não que isso responda a muitas das angústias existenciais que temos que enfrentar –, resta perguntar se é esse mesmo o ciclo que se fecha. Ou seja, se o que está em jogo é a imagem constituída na luta da redemocratização e, mal e mal, cristalizada na Constituição Cidadã. A Nova República.

Essa perspectiva já é mais ampla e mais tenebrosa do que a do mero fim do ciclo petista, é claro. São três décadas, não só uma década e meia. Mas se quem hoje se apropria da quase totalidade do poder é a oligarquia em estado puro, ou seja, os representantes de um modo de poder fechado para qualquer concessão econômica, social ou política, o que está em risco, o ciclo que pode estar se fechando, será ainda mais amplo. Será aquele que se inaugura quando o regime legal passou a tentar incorporar os conflitos distributivos, quando se abriu (um pouco) para uma sociedade mais ampla e mais complexa. O ciclo da década de 30, iniciado sob Vargas.

Isto não significa dizer, é claro, que o varguismo seja algum grande exemplo de progressismo – aliás, um erro das esquerdas no Brasil é continuar a mirar-se em idéias adequadas a quase um século atrás. Está mais do que documentado que o projeto encabeçado de Vargas diz respeito a uma acomodação das demandas das classes industriais e urbanas em expansão no Brasil do século XX. Acomodação a um sistema que jamais deixou de ser oligárquico no seu cerne; algo expresso na célebre frase do mineiro Antônio Carlos: “façamos a revolução antes que o povo a faça” – às vezes o Brasil consegue ser assustadoramente sincero, em especial quando é questão de desfaçatez…

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Ainda assim, o que a história do último século nos ensina sobre o varguismo é que ele foi, ao mesmo tempo, insuportável e insuperável para seus oponentes (para seus defensores, me parece que virou um fetiche, mas isso é tema para outra hora). Esse duplo caráter deve significar alguma coisa e precisaria ser estudado com mais afinco. Senão, vejamos: o modelo de Vargas, ou mais especificamente seu modo de regular as relações de trabalho, era o alvo central nas crises políticas de 1954-55, 1960, 1961 e 1964.

Quando enfim tomaram o poder com o golpe civil-militar, as forças mais conservadoras do país miraram na figura de Vargas e em seus herdeiros políticos. Depois de poucos anos no poder, viram que teriam de deixar para lá o projeto de implodir o legado varguista, sobretudo a CLT. A tal ponto que, quando se despediu do Senado em dezembro de 1994, quase uma década depois do fim da ditadura, Fernando Henrique se comprometeu, mais uma vez, a encerrar definitivamente a era Vargas. Privatizações à parte, não o fez – para falar a verdade, também não se esforçou tanto assim.

Insuportável: precisa ser eliminado. Insuperável: não se pode escapar dele. Não ousaria tentar uma resposta a esse problema aqui. Mas acho que o esclarecimento dessa questão-chave na crise existencial que atravessamos passa por entender que, com efeito, as leis trabalhistas são imperfeitas e, em alguns pontos, cruéis. O trabalho no Brasil é regido por dispositivos com intenções que passam longe do benefício ao trabalhador, como o FGTS, que foi desenhado para criar uma poupança forçada que financiasse a industrialização. Sem falar em questões previdenciárias; em favorecimento, por exemplo, ao setor militar, em benefícios extra-salariais que provocam ainda mais transferência para grupos de renda mais alta – magistrados em particular – e outras distorções, que vão muito além da CLT e das “relações entre patrão e empregado”.

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Nesse contexto, não é difícil ver como a reforma trabalhista que deseja o conservadorismo brasileiro nada tem de “modernização” ou “atualização”. Observe-se, por exemplo, que os principais projetos no Congresso em torno do trabalho dizem respeito à terceirização de atividades-fim, negociação individual e prevalência do negociado sobre o legislado, que são, grosso modo, as mesmas reformas que a troika tenta empurrar goela abaixo dos países da zona do euro, para deprimir os salários e “ganhar competitividade” na competição global com países onde o trabalho é quase escravo. Detalhe: nesses países europeus, os salários são muito mais altos que no Brasil; lá, o risco é a perda de poder de compra. Aqui, é a recaída na miséria.

Projetos de lei que de fato combatessem distorções das leis brasileiras do trabalho, ninguém sabe, ninguém viu. Essas leis afetariam uma camada da população, em boa parte composta por funcionários públicos e militares, que ironicamente é muito conservadora e se considera liberal (quando interessa). Com essa gente, um governo conservador brasileiro nunca vai mexer, já que são um de seus principais esteios urbanos. São as pessoas que tanto espernearam, por exemplo, quando trabalhadores domésticos passaram a ter direitos iguais aos seus…

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A questão não está na superação do modelo varguista, bem se vê. Está na manutenção das distorções, que são redistributivas, mas na direção regressiva, de exploração da base. Sempre que se dá conta de que terá de mexer onde não pode, ou seja, nos privilégios de seus apoiadores, o governo conservador recua e as leis do trabalho distorcidas seguem impávidas. Insuportável… e insuperável. Um governo fisiologista como esse que começa agora não vai ser diferente, exceto se as circunstâncias forem diferentes: será que são?

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PARTE DOIS

Até aqui… e daqui por diante.

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Das muitas circunstâncias envolvidas na determinação dos nossos destinos (como raios chegamos aqui; onde raios vamos parar), creio que duas mereçam maior realce. Primeiramente (sim, sim, fora Temer etc.): precisamos entender melhor como, desde o instante em que se anunciou o resultado das urnas em 2014 (tanto para o Legislativo no primeiro turno quanto para o Executivo no segundo), no horizonte do segundo governo Dilma havia um governo Temer, literal ou figurativamente. Note-se: “um” governo Temer, e não “o” governo Temer.

Isso significa que, mesmo enquanto Dilma esteve no poder, o fisiologismo e o retrocesso foram tomando conta de cada vez mais espaços, naquela sucessão insana de ministros tétricos. Não podemos, hoje, estar surpresos quando simplesmente terminam o serviço tomando conta do que faltava, ou seja, a cadeira presidencial. Ao longo desse processo paulatino de corrosão, as forças que poderiam se opor a ele estavam ocupadas demais seja na defesa, seja no ataque a um governo que não tinha mais chances.

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Segundo, apesar dos pesares e do controle quase inconteste que o patrimonialismo estamental sempre exerceu no país, essa concepção de Brasil que o entourage de Temer pretende cristalizar, nem que seja a ferro e fogo, pode já ter se tornado inviável. Seja em razão de mudanças demográficas ocorridas ao longo de muitas décadas, seja graças a avanços obtidos desde a promulgação da constituição (e particularmente nos governos tucanos e petistas), as expectativas e as condições de funcionamento da sociedade brasileira talvez não permitam mais o tipo de dominação e exploração pressuposto por esse regime, e essa pode ser uma janela de esperança. Talvez os grandes vencedores acabem perdendo, afinal.

É por isso que, ao analisar a ascensão da dupla Temer/Cunha, é preciso pensar para além da Nova República. O que está em jogo ultrapassa o estancamento dos avanços civilizatórios introduzidos em 1988. E ultrapassa em muito a mera derrubada do PT.
Vejamos mais calmamente cada um desses dois pontos.

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Primeiro: o que significa dizer que no horizonte do segundo governo Dilma havia um governo Temer? O atual ministério que nos governa (e assusta) estava implícito de que maneira no ministério do governo petista que o precede? Hoje, finalmente está claro que a eleição de 2014 foi uma derrota completa para o PT, uma derrota para a qual a conquista do Executivo foi nada menos do que um agravante. A energia despendida para garantir um segundo turno contra Aécio Neves, em vez de Marina Silva, escorreu por caminhos inesperados (o que não significa que fossem imprevisíveis), indo concretizar-se na eleição dos piores tipos possíveis para o Congresso, seja qual for o critério.

O Executivo teria de se ver desde o início com uma base frouxa e uma oposição empolgada, além de vingativa, já que, desde 2011, a tentativa de enfraquecer o PMDB dividindo o fisiologismo com a ajuda de Kassab deu o resultado que não poderia deixar de dar: fracasso completo. À incapacidade articulativa de Mercadante e sua turma ainda viria se somar (Opa! Em tempos de Temer devemos dizer: somar-se-ia) o fortalecimento de Eduardo Cunha, ainda mais depois da tentativa amadora de evitar sua eleição à presidência da Câmara. Este último, como já advertia o perfil do então candidato a vice-presidente na Piauí em 2010, é “cunha e arne” com o atual presidente-usurpador-que-não-admite-ser-chamado-de-golpista.

Só uma esperteza política muito acentuada poderia evitar a metástase fisiológica sobre o governo daquela que havia começado com a “faxina” dos ministérios.

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A rigor, a única coisa que poderia acontecer de ainda pior do que os eventos deste ano seria a perpetuação do processo de dissolução do governo Dilma. Nesse caso, em 2018 elegeríamos com certeza um Congresso ainda mais retrógrado do que o atual; e o presidente poderia sem sombra de dúvida ser alguém cujo nome não merece ser pronunciado. Nesse caso, o processo seria perfeitamente legítimo e não teríamos nem mesmo o consolo de acusar um golpe. Este era, a rigor, o “horizonte” propriamente dito. O impeachment precipitou a queda desse céu sobre nossas cabeças, com um ar burlesco, uma perspectiva de muita repressão e a nesga de esperança de que seja possível resistir.

Voltando o olhar um pouco mais para o passado, poderíamos dizer que as primeiras nuvens, ainda indivisáveis, desse horizonte temerário começaram a se acumular quando emergiu a figura do próprio Temer. O “mordomo de filme de terror” de ACM ascendeu após “bons serviços prestados” na presidência da Câmara; e apesar da falta de brilho eleitoral próprio, sabe manter a coesão da alcatéia e mereceu por isso a indicação como vice-presidente na chapa montada para 2010.

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Foi o momento em que se consolidou uma escolha no planejamento estratégico petista, atraindo as oligarquias que, pela história de sua fundação, esperávamos que combatesse. O período coincide com a preferência acentuada pelos mamutes (perdão, os campeões nacionais) na economia – na esteira da crise de 2008 – e com o papel inchado de um BNDES incapaz de questionar o sentido da letra “D” no próprio nome. Foi o período em que se apostaram todas as fichas no motor chinês e na condição de fornecedor para os asiáticos do material bruto que alimentava a máquina. Foi o período em que se tentou seduzir a bancada ruralista – em parte, funcionou, como vemos pela tenacidade com que a senadora Kátia Abreu defendeu o mandato de Dilma. Não funcionou o bastante.

Seria coincidência que o país escolheu assumir na divisão internacional do trabalho um papel semelhante ao da Primeira República ao mesmo tempo em que o governo se decidia pela aliança com figuras políticas que remetem a esse mesmo período? Seja como for, ali se substituiu a aliança com o empresariado “pé-de-chinelo” (no bom sentido: gente que rala…) encarnado na figura de José Alencar por uma rendição às oligarquias patrimonialistas do PMDB e quetais, para constituir a “supercoalizão”, aquela contradição em termos cujo único propósito era eleger Dilma e cujo destino inescapável era a implosão.

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Por esse prisma, as ambições formais do governo Dilma eram inviáveis desde o princípio. Com a o fracasso da redução da Selic e da política (improvisada) de desonerações, foi relegada ao milagre do pré-sal e a delírios de empreiteiras – na verdade, “para” empreiteiras, como a Copa, a Olimpíada e, sobretudo, Belo Monte ¬ a ambição que em 2011 tanto se repetia, de elevar a taxa de investimento acima de 20% do PIB. (Ironicamente, o outro presidente que assumiu falando especificamente em elevar a taxa de investimento acima de 20% também falhou: trata-se de Fernando Henrique, que mencionou esse objetivo no mesmo discurso de dezembro de 1994 em que se comprometeu a encerrar a era Vargas.) Mas a variação do preço do petróleo e as investigações contra empreiteiras lançaram a pá de cal nesse último projeto.

É evidente que alinhar-se com a direita em 2013 foi a cereja do bolo, um erro crasso. Desde então, as pessoas mais próximas ao governo se esmeram em marcar aquele momento como a ascensão da extrema direita no país. Um esforço tão bem-sucedido que não podia ter outro desfecho senão confirmar-se. Ou melhor, concretizar-se: a “idéia” realizada no concreto… Será que faz tanto tempo assim que a cúpula petista passou das ruas para os gabinetes, a ponto de esquecer como funcionam as polícias no Brasil? Era tão difícil enxergar o perigo de repetir o discurso de Alckmin, televisões et caterva, taxando toda aquela gente de baderneiro, vândalo, black bloc, fascista e por aí vai? Era mesmo impossível se dar conta de que uma lei anti-terrorismo cairia como uma luva de ferro para a mão pesada de nossa pior direita? Não era evidente que, uma vez aberta a via das ruas e bloqueado o acesso para movimentos populares, a rua não poderia ser tomada por ninguém outro senão a direita? Certamente tudo isso era perceptível já em 2013. Afinal, muita gente percebeu. Mas os nossos personagens, hoje “formalmente derrotados”, preferiram não ver.

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Cito isso tudo para ressaltar duas coisas: primeiro, que a excepcionalidade do momento que estamos vivendo é menor do que pode parecer. Que eventualmente as oposições e o fisiologismo tenham se aliado, decidindo passar além do quadro institucional para retomar o poder, continua sendo terrível e ainda aponta para uma ruptura muito mais grave do que apenas o golpe contra uma presidenta. Mas esse evento era algo inscrito nos caminhos possíveis desde 2014 e mesmo antes, por dentro do governo até mais do que por fora, já que não teria havido manifestações tão massivas contra Dilma sem que atores políticos importantes as tivessem fomentado. (Aliás, por onde anda Paulo Skaf?)

É forçoso admitir, e isso não é nem de longe uma justificação, que o poder transborda a política e a política transborda a lei. Se assim não fosse, um gigantesco algoritmo político-legal daria conta de todos os recados. Temos de ter isso em mente ao fazer a leitura das incongruências dos políticos, de seus acordos, suas alianças e suas interpretações não raro absurdas do texto legal. Um político profissional geralmente reconhece esse dado; aos primeiros sinais de transbordamento, recua, se ajusta, se acomoda. Perante a iminência de ser derrubada, como tem sido dito e com razão, Dilma foi tenaz, foi heróica, foi realmente admirável. É incrível como ela só fala bem sob intensa pressão. E foi tudo isso porque agiu de um jeito como nenhum político agiria. Dilma, que cresceu no aparelho do Estado como burocrata (no bom sentido), não como política eleita, não tem os mesmos compromissos que teria alguém com a ambição de ser mandatária para o resto da vida. A grandeza de Dilma perante os senadores foi, precisamente, a grandeza que o político jamais pode ter. Graças a ela, vimos “em tempo real” o que ocorre quando a política e o poder transbordam a lei. Não é bonito.

A segunda coisa que eu queria ressaltar é que a derrocada do governo Dilma expõe o quanto a arquitetura política da Nova República é – ou era – frágil. Como se diz, o chamado presidencialismo de coalizão induz à contaminação dos governos pelo fisiologismo, mais cedo ou mais tarde levará à compra de votos, garante que os projetos mais urgentes de reformas para o país nunca sejam de fato julgados. A seguir a descrição de Nobre sobre o condomínio fisiológico administrado por um ou outro dois rivais mais – supostamente – programáticos, arraigados realmente em algum extrato social, é preciso que pelo menos um desses “partidos administradores” esteja forte e articulado. Também é preciso que tenha convicção de sua conformação programática.

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Quando esses partidos não conseguem exercer esse papel, o que temos é uma espécie de barreira da Samarco. Se o PSDB se torna um apêndice arrogante das oligarquias e o PT vira as costas para os movimentos sociais para tornar-se um edifício de burocratas, não há nada mais que segure a lama. Inundados, soterrados, sufocados, podemos até manifestar surpresa, mas teria bastado um sobrevôo para perceber que, enquanto tocávamos a vida nas últimas décadas, a sujeira se acumulava. A lama sempre esteve lá, a lama é a normalidade. A vida limpa e tranqüila dos vales é que era a ilusão. O arranjo quase progressista da Nova República se rompeu, ao que parece, mas foi por pressão acumulada, não por alguma intervenção externa.

Os estragos dessa inundação de rejeitos políticos podem ser bem vistos com um enquadramento mais aberto. O grande vencedor, como sabemos, é esse ministério velho, branco, masculino e investigado por corrupção, de que tanta gente já falou. Um retorno à República Velha, eu diria, mas acrescentando: se é que a República Velha chegou a ser superada, realmente. É bem possível que ela tenha simplesmente sofrido mutações, acomodações, rearranjos, para manter-se como paradigma da política brasileira.

Afinal, esse vencedor não precisou de grandes sacrifícios, porque, no fundo, o país sempre foi seu. Bastou uma pequena conspiração e o beneplácito de quem controla nossos oligopólios, no campo, na indústria, nas finanças, na mídia, na pirâmide socioeconômica. A seu lado, o pobre coitado do pretenso vencedor, o iludido, que espera recolher as migalhas que lhe atirarem os oligarcas, contente por trabalhar feito um camelo tendo como único benefício a possibilidade de humilhar alguém que trabalha ainda mais, ganhando muito menos. Alguém que espera do governo fisiologista que faça um ajuste fiscal duradouro…

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Cabe citar, também, que esse arranjo tem seus próprios mecanismos de escape, suas válvulas, por assim dizer, que permitem ao poder das lideranças políticas sobrepujarem o próprio desenho do sistema político e sua fundamentação legal. Em outras palavras, algo intrigante no sistema político da Nova República, e que – importante – coincide com sistemas adotados em países vizinhos, é que ele comporta a possibilidade de que haja golpes que não derrubem o sistema como um todo e sejam traumáticos apenas para quem o próprio sistema quer expelir.

Os cientistas políticos Mariana Llanos e Leiv Marsteintredet cunharam a expressão “presidential breakdown” para se referir ao fato de que, antes de Dilma, eram 17 os presidentes latino-americanos derrubados, de modo mais legítimo ou menos legítimo, desde a onda de redemocratização dos anos 1980. A nossa ex-presidenta é a décima oitava. Criou-se um sistema pelo qual as elites, ou seja, as oligarquias, neste subcontinente tão oligárquico, conseguem golpear e expelir quem não lhes interessa, mas garantir a perenidade do arranjo, ou seja, fechando a válvula. Daí a dificuldade em identificar a presença de um golpe de Estado: a lógica que leva a esse golpe já é enxertada no próprio sistema.

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O informalmente derrotado duas vezes continua gritando, quando tem forças, e agora precisa decidir como reagir à volta do formalmente derrotado ao campo da oposição. Essa é uma decisão difícil: passar os próximos meses exigindo retratações? Abraçá-lo em nome de algo maior, a luta contra o regime fisiológico? Segui-lo no projeto pouco sagaz de reconduzir Lula ao poder em 2018? Não é à toa que, hoje, esse seja o grupo que mais está batendo cabeça.

Por fim: o formalmente derrotado é aquele que fracassou porque, acreditando-se progressista, acabou sendo meramente governista. No frigir dos ovos, nenhum governismo é progressista, exceto em contraste com algo muito mais tenebroso… como um golpe.

* * *

Resta ainda o segundo ponto, que é o mais importante, referente à questão de “para onde raios estamos indo”. É preciso se perguntar se o Brasil que os oligarcas, os fisiologistas (que não são rigorosamente o mesmo grupo, atenção) e o governo Temer têm na cabeça é viável. Como já adiantei, creio que não. Acredito que nem a estrutura produtiva, nem a distribuição demográfica permitem mais o nível de dominação, repressão e arbitrariedade ao estilo da Primeira República que os personagens que emergem com Temer representam. Também não é mais possível o nível de instabilidade social que se verificou nas décadas centrais do último século, porque não há mais dezenas de milhares de migrantes internos fugindo da seca, o índice de analfabetismo é muito menor, embora ainda alarmante, o crescimento urbano não é mais tão acelerado, as massas da periferia não são mais tão desamparadas, desesperadas e desconectadas.

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O Brasil do século passado, mesmo durante a industrialização e o dito milagre, era um país praticamente em equilíbrio malthusiano, caracterizado por subnutrição, analfabetismo e doenças endêmicas típicas de ambientes miseráveis. Além das taxas de natalidade e mortalidade muito altas. Era um país rural e pouco conectado – literalmente: estou falando de estradas e ferrovias, telefones e agências dos Correios. Um quadro perfeito para as formas mais brutais e toscas de dominação.

Embora os avanços tenham sido bem aquém do que precisávamos que fossem, estamos longe desse equilíbrio malthusiano. A mortalidade infantil e a incidência das “doenças da pobreza” caíram rapidamente, sobretudo graças ao SUS. O país é urbano, camadas cada vez mais amplas da população têm acesso a serviços públicos e, com todas as suas limitações, à educação.

Quando alguns Estados perdem 20% ou 30% de sua população (como exclamou Maria Bethania), quando as rodoviárias das metrópoles recebem centenas de milhares de migrantes internos todos os anos, é possível, é até fácil, explorar esse enorme contingente humano até o esgotamento. Os retirantes que, entre os anos 50 e 80, chegavam nas cidades em busca de qualquer trabalho que os mantivesse alimentados eram corpos plenamente disponíveis, sem aspirações, sem ambições.

Quando surgiam bairros e favelas novos nas periferias, eram áreas sem identidade próxima, sem conexão comunitária, sem meios para exigir infraestrutura. Quando milhões de pais e mães achavam um luxo seus filhos saberem ler e escrever, não ambicionavam o ensino universitário, um trabalho melhor do que o pior qualificado, uma casa melhor do que um barraco. Quando as pessoas não tinham nenhum poder reivindicatório, eram obrigadas a suportar se a polícia matasse a esmo nos subúrbios. Esse é o Brasil de “O Homem que virou Suco” e “Bye-bye Brazil”, em que se sentiam tão confortáveis os Temer deste mundo, e no qual até hoje se espelham.

Outra coisa é o Brasil de “Que Horas Ela Volta” e “O Som ao Redor”. Uma parte importante da crise, do ponto de vista social, mais do que político, é que existe um descompasso entre as condições objetivas do país e o modo como ele ainda é administrado, seja na cúpula, seja no dia-a-dia. Aqueles ajuntamentos periféricos surgidos às pressas no século XX são hoje bairros constituídos, embora deficientes, onde vivem pessoas nascidas e crescidas ali, a segunda e até terceira geração. As reivindicações são outras: saneamento, asfaltamento, segurança, equipamentos urbanos (de lazer, saúde, educação, transporte…). Nas quebradas, essas mesmas onde a polícia continua soltando chumbo, pululam as associações de bairro, os coletivos artísticos, os saraus poéticos, os bancos comunitários.

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A mera demografia tem um papel. Não nascem, nem morrem, tantos novos corpos disponíveis para a exploração: pelo mero fato de estar vivo, o brasileiro de hoje vale mais, aos olhos do capital, que seus pais ou avós. A exigência, agora, é pelo direito a ambicionar: qualificar-se, educar-se, galgar degraus na escala social. O jovem urbano brasileiro, o pobre, não entende por que deveria ser um mero corpo disponível para a exploração: doméstica, porteiro, frentista etc. O jovem rural, por sua vez, tem o direito de se imaginar cultivando aquelas terras com dignidade pelo resto da vida, fazer benfeitorias, negociar sua produção no mercado, obter financiamento agrícola; tudo isso, apesar do avanço do latifúndio e apesar das secas.

É claro que não se trata de meros efeitos secundários de uma evolução “natural” das populações. A economia mais estável, os programas de instalação de cisternas, a redistribuição de renda, a ampliação do ensino fundamental, a valorização do salário mínimo, a implantação de universidades em áreas até então isoladas, tudo isso também fez muita diferença e vai continuar fazendo. Por sinal, uma das causas da nossa crise existencial é que teria sido necessário continuar nessa direção, principalmente quando começaram a vir os sinais de que a sociedade estava madura para quebrar algumas barreiras. Não faltaram reportagens sobre as ambições da “classe C”, artigos sobre como os avanços eram só no consumo, só dentro de casa; que lá fora as cidades continuavam atrasadas, que as condições sociais eram um terror. Seria necessário dar o que chamei de “segundo passo”, mas a cúpula burocrática do PT não percebeu e foi formalmente derrotada.

Os sinais se tornaram cada vez mais claros e é perfeitamente evidente que aí está uma das raízes de junho de 2013, que a burocracia petista preferiu ler como geração espontânea de black blocs (avaliação idêntica à de Alckmin e da mídia conservadora, por sinal) e fascistas. No entanto, a maior lição de 2013 deveria ter sido constatarmos o abismo entre esse país em paulatina mutação e as modalidades de exercício do poder. Afinal, mesmo antes daquela explosão afetiva, já se liam cá e lá expressões do problema do acesso à cidade, da qualidade dos serviços públicos e da caducidade dessa nossa extrema desigualdade (que é de renda, de patrimônio, social, racial, de gênero, tudo misturado – não são muitas desigualdades, são muitas dimensões da mesma desigualdade, como eu disse no começo deste texto).

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Infelizmente, tem um outro lado que precisa ser mencionado. Não está claro, pelo menos para mim, como essa tendência social se comporta perante uma outra tendência muito forte, em sentido contrário, que é a da desindustrialização. A parcela dos manufaturados na economia brasileira, e particularmente nas exportações, está diminuindo aos poucos desde os anos 80. Foi agravada pela abertura de Collor e, depois, pelo uso irresponsável do câmbio para segurar a inflação sob FHC, Lula e Dilma.

A desindustrialização teve efeitos graves sobre a capacidade de mobilização dos sindicatos no Reino Unido e dos partidos trabalhistas de toda a Europa. Não é um acaso que hoje eles sejam uma caricatura, com figuras como Tony Blair na Inglaterra, François Hollande na França e Sigmar Gabriel na Alemanha. No Brasil, o sindicalismo que sobrou é basicamente pelego, inclusive com o curioso fenômeno dos pelegos de oposição – ou melhor, que eram de oposição, como a turma do sr. Paulinho.

Fala-se de vez em quando em greve geral, mas a probabilidade de que ocorra algo assim é ínfima. Não existe mais aquela concentração de trabalhadores como a do ABC de fins dos anos 70. As forças que tradicionalmente se mobilizaram neste país e em outros estão desoxigenadas porque seu poder de barganha, o trabalho industrial, está desvalorizado. O trabalho, hoje, é mais atomizado e disperso, com menor acesso ao controle do maquinário. Ao que parece, o que vamos ter é só mais uma greve de bancários…

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O que parece estar despontando à distância é uma outra forma de mobilização, extra-sindical, que ainda é embrionária, mero rascunho. No que vai dar, ainda vamos ter que ver. Quanto tempo vai demorar para ter alguma efetividade, quem pode dizer? Infelizmente, essa é a situação que está posta e o que resta é torcer para que as circunstâncias precipitem a busca por novas articulações. Sem falar no risco de que não dê em nada…

Resumindo: o ministério, o Congresso e a mentalidade que ora se instalam na direção do país (e que já vinham tomando conta, pouco a pouco, com o beneplácito involuntário de quem fetichizava o controle do Executivo) representam a tentativa de não apenas esquecer, mas negar esse abismo e a caducidade da nossa renitente República Velha. Um Brasil do “Jeca Tatu” ou dos filmes do Mazzaropi. Não vai dar certo.

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Talvez passemos alguns meses muito estranhos, até mesmo calmos, enquanto a sociedade absorve o golpe, quero dizer, sua nova realidade. Uma vez que as lideranças oligárquicas e fisiológicas vão dar um sumiço das denúncias da operação Lava-Jato (tendo fazer o mais fácil, que era “colocar o Michel”, e tendo esvaziado a legislação anticorrupção), o assunto pode vir a sumir dos jornais, dos táxis, dos almoços de fim-de-semana.

Um possível lado bom é que essa falsa calma talvez tenha o poder de desinflar a paranóia de extrema-direita que tem se disseminado país afora nos últimos anos. Afinal, o único traço de união entre a alta burguesia dos Jardins, o fundamentalista no púlpito de Bangu, o taxista do Tucuruvi e os filhotes da ditadura país afora é o ódio ensandecido ao PT. Mais precisamente, a algo que, sei lá por qual razão, lhes parecia ser um diabólico governo proto-comunista que queria estatizar toda a economia, botar todo mundo para fumar maconha nas praças, promover abortos ao som de Molejo e preparar a criançada das escolas públicas para apresentar shows de drag na Paulista ao crescer. É possível que o período de interinato do usurpador corresponda a uma boa parte dessa fase.

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Seja como for, não vai durar muito. Gosto de comparar os fenômenos multitudinários de 2011 (no mundo) e 2013 (no Brasil) com as revoluções frustradas de 1848. Aquelas agitações, tão ambiciosas, foram derrotadas, pelo menos no curto prazo, como ocorreu com a Primavera Árabe e com as reivindicações de direito à cidade no Brasil. Michel Temer talvez seja nosso Luís Bonaparte, a versão cafeeira do sobrinho de Napoleão, que tomou o poder cercado de picaretas e defendido por brutamontes conhecidos como “dezembristas” – a propósito, aquela frase de Marx que andam citando por aí, da história que se repete como farsa, é sobre ele.

Sinais do que vem pela frente já eram visíveis desde o interinato, com a posse de um ministro da Justiça (ó, ironia) que representa o que há de pior no governo Alckmin em São Paulo e o uso de armamentos violentos, já no dia da posse (interina). Cabe lembrar, também, da intimidação pela Polícia Federal a estrangeiros que participaram de manifestações. No pouco tempo desde a consolidação do impeachment, já tivemos olhos furados, gente atropelada, presos sem explicação, câmeras destruídas. Particularmente chocante é o vídeo de um policial dizendo, com desdém: “pode filmar”. Agora a violência tem carta branca e será atribuída pela mídia aos bons e velhos “vândalos, baderneiros, infiltrados, black blocs”, como bem sabemos.

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Esses sinais apontam para um esforço de rapidamente afirmar-se no poder, à base da dispersão e do silenciamento da dissidência. Some-se a isso o fato de que, para muitos agentes da repressão, mesmo quando agiam em nome e sob as ordens de governos petistas, sempre viam em toda mobilização social uma iniciativa de “petistas”. Tendo triunfado sobre os petistas na cúpula, e com a provável presença de efetivos petistas nos protestos, nas ruas quem vai apanhar é todo mundo mais – aqueles que, acima, chamei de “derrotados informalmente duas vezes”.

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Resta saber o que vai acontecer com a resistência, ou seja, que cara ela vai ter, como vai ser sua dinâmica, quanta força terá. Sou cético quanto aos primeiros momentos. Ainda há muita associação entre a rejeição a Temer a o apoio a Dilma e ao governo petista em geral, o que deixa muita gente tímida e provoca verdadeira rejeição em quem foi “derrotado informalmente duas vezes”, e que muitas vezes apanhou, foi chamado de vândalo e assim por diante. A estratégia anunciada de recorrer a Lula para 2018 não ajuda em nada, já que o problema é preparar o futuro, em vez de tentar recuperar um passado já estilhaçado.

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Mas muita água vai passar debaixo dessa ponte. Os conflitos sociais e distributivos, as disputas de poder e as aporias do regime não têm outro caminho a tomar que não seja se intensificar e se tornar muito claros, uma vez que batam de frente com as condições demográficas e socioeconômicas que descrevi acima. Há um limite para o quanto a população pode aceitar de retrocesso uma vez que tenha aspirações.

Mesmo todo o proselitismo religioso que testemunhamos ao longo do processo do impeachment não pode atropelar os sonhos dos fiéis, sobretudo nas igrejas ligadas à “teologia da prosperidade”. Como essa teologia lidará com retrocessos sociais? É isso que vamos descobrir agora, e não posso me impedir de ter um medo enorme da resposta que vamos receber… Porém, fora isso, o uso de uma retórica pseudo-religiosa para estigmatizar o governo perde boa parte da eficácia uma vez que o governo em questão deixa de existir.

Um ponto importante sobre o governo Temer é que sua única chance é agir como recomendava Maquiavel: fazendo todo o mal de uma só vez. O primeiro motivo é evidente: é preciso passar o pacotão de retrocessos enquanto não há uma oposição articulada – e ela vai acabar surgindo, mais cedo ou mais tarde. O segundo motivo é um pouco menos evidente, mas nem por isso indivisável: vencida a batalha contra o inimigo comum, o fisiologismo começa sua autofagia, ou seja, as disputas em torno dos espólios e da ocupação dos espaços do poder.

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Não sei quanto tempo isso leva, mas já ouvimos de Ronaldo Caiado que ele vai ser “independente” do governo usurpador, o que significa, obviamente, que sua ação vai ser pautada por fazer o governo, tanto quanto possível, dependente dele. O PSDB, coitado, acha-se ainda muito importante. Faz ameaças, enche o peito, exige um ajuste fiscal mais rigoroso. Só que tem uma bancada insuficiente para influir de fato, com meros 55 deputados. Daí o ministério temerário ter só três tucanos, um deles posto para cuidar de um assunto que não entende e no qual não pode atrapalhar o mordomo de filme de terror; sim, estou falando do Serra. O tal ajuste, já se vê, não virá. ou melhor: virá na superfície, e em seguida vai se desmanchar no ar como o pó de pirlimpimpim.

É interessante como, de vez em quando, opositores do usurpador se referem a ele como “neoliberal”. Ora, Temer não é um neoliberal. Ele não é nem sequer liberal. É pemedebista, um porta-voz das oligarquias, um ponta-de-lança do fisiologismo e nada mais. Sem dúvida, haverá neste início de seu lamentável governo uma série de medidas do mais puro liberalismo-Malan. E não faltarão analistas, a grande maioria economistas (essa gente com visão tão estreita) para dizer que é um governo com “boas intenções”.

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Essa gente parece não saber que a tal da “Ponte para o Futuro” divulgada em outubro, nome oficial do ajuntamento de idéias que passa por projeto de governo, destinado a acariciar as consciências das nossas lideranças empresariais, é só para inglês ver. O arquivo, como pode perceber quem o procure no Google, tem o singelo nome de “Release Temer” (confira no quadro vermelho abaixo). Em outras palavras: o grande projeto do PMDB para o país não passa de um “release”, ou seja, uma mensagem de divulgação para a imprensa, um documento de propaganda. E não do partido, mas do próprio Temer. Foi um mero passo da conspiração, desprovido de qualquer preocupação em concretizar-se como programa de governo. (Já não lembro quem foi a pessoa que me apontou esse detalhe, mas fica aqui o agradecimento.)

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Não é difícil perceber que as prioridades de Temer passam longe da estabilização da economia, da “união do país” ou qualquer coisa assim. Não é à sociedade como um todo que ele deve a faixa presidencial que indevidamente porta, mas a quem barganhou os votos necessários para colocá-lo na cadeira presidencial. Temer, em seu governo de conciliação e “salvação nacional”, seja lá o que isso for, terá oligarcas, oligopolistas e demais sanguessugas econômicos a agradar. A primeira vítima vai ser a boa vontade dos iluminados conselheiros do livre-mercado, que, uma vez mais, vão ficar a ver navios, escorados em suas convicções de livro-texto. É bem provável que, em poucos meses, o poeta paulista tenha se transformado numa cópia do romancista maranhense José Sarney. Inclusive na economia.

Pobres “vencedores que vão se descobrir derrotados”… Fazem pensar em Carlos Lacerda, o iludido paradigmático da República, que vendeu a alma ao demônio marcial pensando que seria eleito presidente em 1965. Não houve nem eleição em 1965 e o pobre do Lacerda acabou cassado, tendo que se aliar com aqueles que passara os anos anteriores vilipendiando: Juscelino e Jango. Cuidado, amigo tucano, há um Lacerda no seu horizonte.

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Também não vai demorar até que as lideranças de Piratininga queiram preparar a cama para seu próprio candidato, seja Alckmin (cruz credo), seja Serra (alho, por favor!). Afastado o grande inimigo comum, o “polvo petista”, as baterias da Paulista e do Jardim Botânico tendem a se virar contra nosso latinista do Jaburu (agora do Alvorada). Em outras palavras, o capital e a mídia vão romper com o governo do usurpador quando puderem começar a pôr em prática seus próprios projetos para 2018. Como eu disse: autofagia.

Mas talvez seja tarde demais. Quem tem a caneta, hoje, são os fisiologistas; suas armas são pelo menos tão fortes quanto as dos bravos bandeirantes de paletó riscado.

As disputas intra-oligárquicas parecem sempre farsescas, vistas daqui de fora. Como foi a crise que culminou na revolução de outubro de 1930, aquela que foi feita antes que o povo a fizesse. Mas elas existem e deixam brechas por onde podem passar mudanças substanciais, ainda que sempre mantidas aquém do que seria necessário para um salto civilizatório no país – aquele muro de que falei acima. Enquanto nossos barões e nossos coronéis disputam o controle da máquina estatal, ou seja, dos métodos de extração de renda fundados na exploração dos nossos corpos, caberá ao resto de nós reconstruir articulações, produzir uma nova leitura da situação, coordenar movimentos, estabelecer uma resistência.

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À medida que essa resistência de fato se articule, é fácil de prever o recrudescimento da repressão. E hoje, quando termino o texto, a última frase já deixou de ser previsão. Enquanto a cúpula fisiológica e oligárquica em Brasília avança nos retrocessos (que hora para brincar com oximoros!), dá para esperar uma disseminação da indignação, das lutas e do desencanto daquela camada despolitizada que hoje está embevecida pelo discurso ultra-reacionário.

Nessas duas tendências, ouso dizer que a tática de terra arrasada não tem mais espaço. Com a complexidade que o país atingiu, não é mais possível suprimir por completo os desejos e as aspirações. Não é mais um país de massas frágeis e corpos disponíveis para a exaustão. Os gargalos e nós que já se acumulavam há anos e vieram à tona em 2013 não foram sanados – do direito à cidade expresso na tarifa de transporte até a precariedade da educação – e mal foram considerados. Os secundaristas de São Paulo, Goiás, Rio e outros Estados dão testemunho disso.

Passada a catarse do ódio a Dilma, a Lula e ao PT, a brutalidade policial contra protestos deixa de ser encantadora para a opinião pública. Por mais que o brasileiro tenha um enorme fascínio pela violência e tenda a apoiar a repressão, existe um ponto de inflexão a partir do qual ele se vira contra a barbárie institucional. Aconteceu em 2013, aconteceu no ano passado. Resta ver o que acontece a partir daí.

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(IN)CONCLUSÃO

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Levei muitos dias para escrever este texto e comecei dizendo que a realidade é confusa. De lá para cá, bem… a realidade se tornou um pouco menos confusa. Estamos entrando em um período em que as máscaras começam a cair. Editoriais e capas de jornal deixaram de lado a sutileza, mostrando que o mea culpa que tiveram de fazer em 2013 passou longe de ser uma “lição aprendida”: foi, sim, uma concessão forçada, que até hoje os barões não engoliram nada bem. O verniz de espírito democrático perdeu completamente o lustre. E, pelo que tenho ouvido nos círculos que se consideram mais iluminados da elite paulistana, só tende a piorar.

Ao mesmo tempo, claro está que o afã investigativo na República passou. Alguns dos bem-intencionados indivíduos que passearam com patos infláveis pela Paulista no ano passado ainda acham que o juiz Sergio Moro vai fazer milagres contra os poderes intocáveis da República. Mas mesmo esse desejo ingênuo vai ser suplantado pelo esquecimento, já que o noticiário vai ter mais do que falar e a urgência de espancar gente na rua porque “é vermelho” será muito maior.

Com isso, tristemente, parece que o jogo volta à estaca zero; e a estaca zero é a República Velha. Mas é claro que não é rigorosamente uma estaca zero, pelos motivos que elenquei acima: as expectativas, no país, são outras. Além disso, a República Velha propriamente dita dizia respeito a um tempo em que o país se compunha de núcleos esparsos, vagamente conectados, de atividade econômica: eram oligarquias estaduais, até então mal e porcamente vinculadas entre si sob o Império. Hoje, o sistema econômico é de fato nacional, a população é conectada, os movimentos podem articular-se entre si. É outra história: o sistema político, sim, é que continua sendo um arcaísmo. As oligarquias são um arcaísmo.

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Se comecei comparando nossa realidade a algum enredo, com gênero ainda indefinido, acho que devo terminar no mesmo tom. O que vão fazer nossos personagens? Como vão se relacionar os derrotados, formais e informais? Como vai reagir o falso vencedor, quando descobrir que as batatas estão na mão de outro grupo? E nossos figurantes amarelinhos, nossos raivosos adoradores da brutalidade, como vai ser a vida deles quando a coisa começar a degringolar na economia?

São cenas dos próximos capítulos…

Enquanto acompanhamos a história, com grande apreensão, as cenas vão se sucedendo, cheias de peripécias e falsas pistas. Com a derrocada dos principais partidos da Nova República, vemos algumas novas agremiações surgindo, em vários segmentos do espectro político. Será que a próxima inflexão política brasileira surgirá no âmbito deles? Difícil dizer, mas mesmo isso deve demorar um bom tempo para tomar forma.

Nem imagino, também, quanto tempo vai levar para que vejamos emergir uma nova etapa de transformações no plano da própria sociedade. Pode até não ser tanto tempo assim, haja vista a pluralidade de formas de reivindicação, físicas e virtuais, que aparecem cá e lá. Seja como for, não tenho a menor dúvida de que, nesse meio-tempo, os subterrâneos ferverão. Mesmo enquanto, de nossos apartamentos, lamentamos mais uma oportunidade perdida.

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Padrão
barbárie, Brasil, direita, economia, eleições, Ensaio, escândalo, esquerda, guerra, história, manifestação, março, morte, obituário, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, Sociedade, tristeza, vida

Golpes e desejos

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Com agradecimentos aos amigos Camila Pavanelli de Lorenzi, Bruno Alvaro, Marcio Miotto e Bernardo Jurema pelo tempo que dedicaram a ler e comentar este texto. Muitas das ideias contidas aqui vieram desses comentários. Nem preciso dizer, mas os erros, imprecisões, chutes e outras tolices são culpa toda minha.

Seria tentador demais começar este texto cometendo a milionésima paráfrase daquela famosa abertura do Manifesto Comunista, com o espectro rondando a Europa. Mas isso passaria a impressão errada: no texto de Marx (e daquele outro alemão), tratava-se de uma força virtual que se atualizava, apontando como potência para um futuro. Ao contrário, se também tem um fantasma que passeia sorrateiro Brasil afora, é o fantasma de um cadáver insepulto, uma morte que não se consumou, um trauma que ficou por superar. É claro que estou falando da ditadura e do golpe que a iniciou.

Até aí, nenhuma novidade. Acontece que quem diz fantasma, de um jeito ou de outro diz fantasiar. E quem fala em fantasiar, inevitavelmente, fala de desejo. Eu poderia agora escolher uma fórmula chocante e afirmar que, sabendo ou não, existe no Brasil um desejo difuso de golpes e ditaduras. Seria verdade, até. Mas não é bem assim que o fantasma age; em vez disso, ele opera sobre o desejo porque se imiscui nele, se introduz onde não foi chamado e sem ser percebido. Assim, quando um desejo vai tomar forma, constituir um objeto, traduzir-se como expressão, enfim, quando vai agenciar-se, a presença sorrateira do fantasma o modula um pouco, lhe confere um outro alcance, uma outra coloração.

Sem levar em conta esse modo de agir do nosso fantasma, corremos o risco de ficar andando em círculos ao tentar dar sentido ao que acontece hoje no país. Passamos completamente ao largo do problema se nos contentamos em perguntar se o que se prepara nas sombras do poder é um golpe ou não. Essa pergunta pressupõe uma consciência muito clara dos atores sobre o que estão fazendo e aonde querem chegar. Hoje, não é esse o caso, porque o que cada ator quer (derrubar o governo, manter o governo, chegar ao governo, aniquilar um partido…) e como ele age (protestos, conluios, publicidade, textão) são duas coisas que estão descoladas, porque entre elas age o fantasma.

Abstraído esse detalhe, toda a questão da derrubada ou não do governo Dilma poderia ser resumida ao problema das zonas cinzentas entre o político e o jurídico: a fraqueza e falta de apoio parlamentar do governo por um lado, a necessidade de encontrar uma justificativa para um gesto violento e as negociações para o período posterior, por outro. Tentei tratar disso no fim do ano passado e acho que esse ponto está muito bem destrinchado neste texto de Moysés Pinto Neto. Mas não é assim, infelizmente, porque nosso momento de soberania em disputa e indecisão institucional inclui um elemento a mais: o fantasma e o desejo do golpe.

1: Desejo de Golpear

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Obviamente, esse nosso fantasma do golpe (que, na maior parte do tempo, como todo fantasma, permanece invisível e só sugestionado) se deixa perceber com mais facilidade no grito de “não vai ter golpe” que soltam os defensores do governo – ou, vá lá, da continuação do atual governo, por falta de lei que o substitua apropriadamente. Aí está explícito: é o discurso de uma esquerda que, na sua própria visão, se recusa a aceitar que venha um novo 64. Mas é uma recusa modulada, como veremos (e deixo para o final porque é a parte mais importante e complexa).

Antes disso, porém, é preciso ter claro que o mesmo fantasma age também nas demais vozes. Desde as mais evidentes manifestações de saudosismo pela ditadura, que são muito maiores do que deveriam, mas não tão grandes quanto pensamos (como demonstram pesquisas conduzidas por Pablo Ortellado), até estranhos editoriais que repetem, quase ipsis litteris, conclamações golpistas – essas sim, inequivocamente – de outras eras.

É interessante, por exemplo, observar como, no caso de um fantasma do golpe, é difícil distinguir o desejo do medo. Assim, mesmo de pessoas que, com toda honestidade, participaram da última manifestação contra Dilma Rousseff com o espírito mais democrático e legalista possível, tenho ouvido a crença numa iminente ditadura de esquerda. “Querem implantar o comunismo”, ou algo assim.

Certamente, essa crença, para além da repetição do tema da “república sindical” que se temia em meios abastados nos anos 60, é fantasiosa, porque ignora o pouco que a cúpula do Executivo ainda detém do poder. (Cáspite, o vice-presidente está abertamente preparando seu próprio governo!) Não importa: em se tratando de desejo, o frisson de enfrentar um inimigo tenebroso e forte é incentivo mais que suficiente para deixar de lado a lucidez.

Só assim entendemos o vínculo entre a pessoa perfeitamente democrática que vai à manifestação dominical e seu colega menos respeitável de protesto, o fascistão que ataca gente na rua por vestir vermelho. As continuidades entre protestar na Paulista, usar camisa da CBF contra a corrupção, tirar selfies com PMs e dar bordoadas em transeuntes são tão relevantes quanto as descontinuidades. Afinal, qual foi o líder das oposições que, mais do que simplesmente lamentar, deu declarações desautorizando essa violência? Quando o intolerável é tolerado, já se vê que, na verdade, é desejado.

O problema é que, uma vez que o fantasma do golpe se instala, na forma mais ampla de um gosto pela ruptura institucional, a violência de rua aparece como efeito colateral ou traço incontrolável de uma situação que, “por si só”, é anárquica (não confundir com “anarquista”). No plano do desejo, o estado de conflagração é fato consumado. Afinal, a crença inquestionável não é a de que estamos em crise, mas de que “rumamos para o desastre”. E se rumamos para o desastre, é salve-se quem puder. O que, paremos para pensar: já é o desastre.

Por isso, também, é difícil não enxergar esse fantasma do golpe involuntariamente desejado no episódio das fotografias que algumas pessoas, na maior inocência (leia-se: ignorância) tiram com policiais militares durante manifestações. Afinal, com o perdão do trocadilho infame, trata-se da instituição que mais desfere golpes no Brasil. E, para além do trocadilho: é a instituição que está sempre flertando com o paralegal, e com muita facilidade sai do flerte para cair na paixão fogosa com o ilegal. Quando? Quando é necessário, em nome de uma ordem muito mais sólida que as leis…

Cá entre nós, mesmo os maiores defensores da ação das nossas PMs sabem disso, mas tentam obliterar essa consciência, porque reconhecem no íntimo que, sem a PM, nossa corrupção entranhada não tem como se sustentar. Nesse sentido, a expressão “quero meu país de volta” faz absolutamente todo sentido, em se tratando de um país onde qualquer dissidência se resolve na bala ou no cassetete. O fantasma está presente porque o inocente, alegre e despretensioso gesto de sorrir para fotos com brutamontes armados no meio da rua traz consigo o desejo de que as dissonâncias se resolvam de uma vez só, com um… golpe… seco e eficaz.

Por isso, foi com grande clarividência que o jornalista Bruno Torturra levantou um ponto fundamental: hoje, muito mais do que os militares, quem tem as condições e a mentalidade para realizar algo parecido com um golpe, no Brasil, são as polícias. (Mas golpe, aqui, não deve ser entendido cartesianamente, como o gesto súbito de bloquear as entradas da capital, tomar as rádios, declarar vaga a presidência etc. Assumir o controle de quem pode manifestar-se ou não, e até, como em alguns Estados, de como se vai estudar, já é golpe suficiente.)

É nas polícias militares que se concentra a imagem dessa solução violenta para o diferente, o desviante, o desconfortável. O policial é aquele que parece ter o poder e o direito (velado) de produzir a solução rápida e dolorosa para problemas vistos como terríveis. Vestindo um uniforme da ordem legal, engendra todo tipo de ilegalidade e desordem, para um lado, enquanto para o outro preserva a continuidade de um modo de existência. É o instrumento de um caos ordenado, esse oximoro com o qual os brasileiros temos muita familiaridade.

Nessa troca de afagos com uma instituição indispensável da nossa corrupção é que se deixa perceber que, na direita brasileira, existe mesmo o desejo de (desferir um) golpe. A incapacidade de se descolar da brutalidade é o gesto que mais desvenda o caráter autoritário e anti-democrático das “elites brasileiras”, e não sua vontade de derrubar a presidente. Isso é mera política.

1A: o desejo de estar por perto quando houver um golpe

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Antes de aprofundar o tema, ainda é preciso mencionar um terceiro ator que anda possuído por esse fantasma, e que responde pelo nome de Paulo Skaf. O presidente da Fiesp, até outro dia, podia ser considerado só mais um aproveitador – com sua candidatura ao governo estadual – ou um oportunista, com seu lance marqueteiro do pato de banheira. Mas o uso da fachada da federação industrial para exigir renúncia demonstra que o desejo recalcado por um meia-oitozinho do Escafe é poderoso, irresistível.

Afinal, as câmeras já devem estar até apontadas, esperando a hora de disseminar pelo país a imagem de mais um herói da redenção nacional. (Falei em redenção? Ops…) Aquele que teria vocação para ser um mero oportunista acaba se tornando muito mais que isso… por quê? Porque o fantasma está ali, rondando, pronto para moldar as manifestações do desejo, na figura de um desejo de repetir-se como golpe…

Escrevi esses parágrafos antes da publicação dos caríssimos anúncios de Skaf nos jornais brasileiros, usando dinheiro público, ou seja, extraído via impostos dos trabalhadores e empresários para ser entregue à Fiesp, que com ele deveria fazer serviços sociais, e não conspirações. Assim, o homem que não quer pagar o pato quer fazer os demais de patos. Mas, em nome de um objetivo maior, por que não deixar passar, não é mesmo?

2: o Desejo de Ser Golpeado

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De todos esses grupos, é claro que o mais fascinante é aquele com um desejo inconfesso não de dar um golpe, mas de sofrê-lo. Isto é, de constituir o sentido último de seus males como a formação de um golpe, atitude ilegítima contra uma instituição legítima. No caso do PT, a questão não está em responder se um eventual impeachment da presidenta seria essa atitude ilegítima, ou seja, um golpe. Isso será sempre discutível, considerando a lei brasileira de remoção de presidentes: é quase impossível que um processo desses observe estritamente o que está na lei. Torno a esse ponto adiante.

Mais interessante é pensar sobre o lugar do conceito de golpe nessa narrativa. Ao contrário do que pode parecer, ele não surge com a ameaça concreta da remoção de Dilma (por impeachment ou cassação da chapa, tanto faz). Algo dessa natureza está presente há muito tempo, no esforço de construção da imagem que faz da dupla Lula/Dilma uma espécie de novo governo Jango, cercado de uma matilha de direitistas golpistas enraivecidos, prontos para atacar ao primeiro cheiro de sangue.

Basta lembrar, por exemplo, das inúmeras evocações da idéia de lacerdismo durante o período eleitoral de 2010, sobretudo quando a campanha de José Serra buscou uma mensagem próxima ao conservadorismo católico, a gritaria anti-aborto etc. É bem verdade que estava se reproduzindo ali um velho topos da política brasileira, com o uso de pautas tradicionalistas como estratégia contra um alvo considerado progressista (contra tantas evidências!). Também é verdade que Lacerda foi o campeão dessa tática imbecil, que ainda por cima acabou por não lhe trazer nada do que queria. Tampouco é exclusividade brasileira. No entanto, justamente essa brecha permitiu que o governo do PT reforçasse sua imagem como coração da esquerda brasileira, em flagrante contradição com suas políticas e suas alianças.

Para além desse caso específico, já podemos ver que, na arquitetura da visão de mundo petista, a noção do golpe ocupa uma posição basilar. Essa centralidade decorre de um certo poder purgativo, até mesmo redentor, que ela detém. Necessariamente alguém que foi vítima de um golpe, de uma remoção forçada, de um conluio, é alguém gostável.

Por isso, o desejo de golpe, no caso petista, opera bem assim: sem a perspectiva de ser golpeado, o que é o governo Dilma? É um governo de apoio ao latifúndio (com seus corolários, o agrotóxico, o genocídio indígena, a dominação semi-coronelista da política em nível local), e ao extrativismo (está aí o Rio Doce que não me deixa mentir, mas o que dizer dos projetos de exportação de minério de Eike Batista? – aliás, lembra dele?), sem falar no flerte descarado com fundamentalistas religiosos cujo maior interesse não está na salvação da alma de ninguém.

Ou seja, um governo que, em nome de um desenvolvimentismo que não desenvolve coisa nenhuma, se coloca em aliança bastante incestuosa com o capitalismo mais clientelista. Ou seja, torna-se intermediário e fiador de uma brutal acumulação primitiva, fazendo da população e dos trabalhadores que lhe emprestam o nome a matéria-prima para um regime ao mesmo tempo rentista e especulativo.

No entanto, o petista alarmado com a chegada do golpe (alarmado, ou seja, motivado, mobilizado, eletrizado) continua a ver o atual governo como baluarte da esquerda brasileira contra o avanço das tropas fascistas. Como isso é possível? Certamente não é olhando para o próprio governo. Não é pela negociação de cargos no varejo, pela construção de Belo Monte, pela escolha de ministros, pela orientação das empresas estatais. Essa perspectiva só se justifica, só se realiza, na presença de um inimigo a ponto de golpear. O golpe é o único véu entre o governo Dilma e o espelho – ou, para usar uma imagem mais elegante: o retrato do Dorian Gray de Oscar Wilde.

Acontece que o golpe tranquiliza a consciência de quem ainda quer manter aquela alma petista dos bons tempos, ao estabelecer um contraponto assustador. Sem golpe, não há esquerda no governo e isso é insuportável para quem, considerando-se uma pessoa de esquerda, se mantém fiel ao partido. Por isso, a presença constante do golpe é indispensável; e é, assim, desejada, da mesma maneira como desejamos aquilo que tememos, uma vez que baseemos nossa existência nesse temor.

O desejo de quem vê o golpe vindo do outro lado tem, por isso, um componente de individuação. Ou seja, de constituir-se como sujeito dentro de um quadro de relações e graças à projeção desse desejo no mundo exterior. Aquele que está constantemente prestes a sofrer um golpe da direita – e não há dúvidas de que quem age com maior agressividade contra o PT, hoje, é a direita – só pode ser esquerda. Em consequência, pode exigir solidariedade de todos os demais e, com isso, aglutiná-los em sua órbita. “Como assim, não vai cerrar fileiras conosco, isentão?”; “Não percebe que está fazendo o jogo da direita?”; esses e outros bordões têm jorrado com tanta insistência quanto os gritos de “petralha” vindos do outro lado.

Esse pesadelo só não pode se concretizar, é claro. Aí a fantasia explode.

2A: O Desejo de Golpes Idos

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Falei do “não vai ter golpe” como expressão de uma esquerda sobre a qual sempre pende o fantasma de 64, quando a tensão nas ruas chegou a um nível ainda mais profundo do que o atual, mas, na hora do vamos ver, ela simplesmente não lutou. É bem verdade que a capitulação das esquerdas no Brasil em 64 tem muito a ver com a decisão pessoal de Jango, que não quis resistir, ao contrário de seu cunhado, disposto a repetir em escala ampliada a campanha da legalidade de 61. Os motivos para isso são discutíveis, da tal pusilanimidade do rancheiro à informação de que a Quarta Frota estava próxima à nossa costa. Pouco importa. O subtexto do “não vai ter golpe” é o tradicional “desta vez vai ser diferente”.

Assim, à primeira vista, o novo 64 desejado pelo inconsciente governista é aquele em que o grande capital tenta derrubar o governo popular e democrático, mas “desta vez” não consegue, porque o povo se subleva e garante que não haja golpe, ou que ele seja rapidamente abortado, como ocorreu na Venezuela em 2002.

E quem operaria essa resistência? Quem daria o sangue contra a derrubada do governo? Certamente não os movimentos sociais, cujo sangue só é derramado pelo governo à base de cassetete. Os sindicatos? Talvez cobrem caro demais, já que desta vez a exigência envolve correr riscos – fazer discurso em alto-falante com distorção não basta. A Odebrecht, possivelmente, mas na planilha dela não tem distinção de grupos políticos: tanto faz. O povo? Quer mais é ver o circo pegar fogo…

O golpe desejado seria, assim, um modo de expurgar não só a conversão do governo do PT às alianças com a direita coronelista e patrimonialista brasileira – alianças estas que foram muito além da mera Realpolitik, lá está Kátia Abreu que não me deixa mentir –, mas também a memória de uma queda sem resistência. Assim, um governo que, em matéria de reformismo e progressismo, foi em tudo oposto ao de João Goulart passa a ser visto por seus defensores como potencial corretor dos rumos da história, lutando onde o outro não lutou, resistindo onde o outro não resistiu, nem que seja só para cair de pé, bravamente.

Pouco realista? Isso é você que está pensando…

3 – Golpe: Fantasma e Desejo

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Mas afinal, objetivamente: o impeachment é golpe ou não é? Olhando por um lado, está certo o argumento da oposição, segundo o qual não há golpe se o processo seguir o devido trâmite; por outro, está certo o argumento da situação, para quem o uso das “pedaladas fiscais” é uma desculpa esfarrapada, no máximo um deus ex machina, para justificar a derrubada da presidente. Como escrevi em dezembro, é o problema do impeachment de Schrödinger.

O que há naquele texto que mereça ser repetido é que esse tipo de processo existe precisamente para situações como a atual, em que o problema não é jurídico, mas político; é a válvula (uma delas) pela qual a política acontece. (Naquele texto, falei das ambiguidades e dos rigores inalcançáveis da lei como uma das válvulas; outra era a atuação da polícia, sobretudo a militar; mas há muitas outras, e uma das mais importantes é a construção de sentido operada pelos meios de comunicação.)

Com seu componente de instrumento legal e seu componente de golpe político, o processo de impeachment é um sintoma de que as vias de operação do poder estão congestionadas. De um jeito ou de outro, seguindo a velha máxima de que a política tem horror ao vácuo, essas vias serão reabertas.

Não custa lembrar que quem tinha mais poder para reabrir essas vias a seu favor, até muito recentemente, era o governo (leia-se: o Executivo). No sistema político brasileiro, a presidenta da República detém muito, muito poder; ou, como se costuma dizer, “a caneta”. Dilma teve, é preciso estar consciente disso, todas as oportunidades do mundo para manter sua coalizão e abortar a ascensão do, vá lá, golpismo. Se não o fez, grande parte da culpa recai sobre sua própria incompetência política, sem falar no sufocamento atroz das mobilizações de esquerda que efetivamente houve no Brasil desde 2013.

Sem conseguir apoio no Congresso e tendo deixado as ruas completamente escancaradas para a direita, e uma direita bem tacanha, também desejante de golpes, o que Dilma e seus assessores mais próximos conseguiram foi concretizar aquele fantasma tão desejado: o golpe iminente. Repetindo: a situação não chegou a esse ponto simplesmente por causa de uma enorme mobilização anti-governista. Essa mobilização existe, mas só conseguiu ganhar corpo, só conseguiu obter apoios, porque foi alimentada pelo governo. Inclusive como fantasma: lembra da propaganda eleitoral de 2014?

Até mesmo Michel Temer, hoje conspirador, traidor, golpista abjeto, fez das tripas coração para salvar um governo que não queria ser salvo. Não haveria ruptura institucional, nem o menor risco de impeachment, se Dilma fizesse um único gesto acertado para evitá-los. Mas ela fez o oposto, ajudada por seus brilhantes assessores Mercadante, Cardozo e Wagner. De que adianta falar agora em golpe?

No fim, a incompetência foi tamanha que a situação provavelmente irá longe demais, com a concretização que, na estrutura da fantasia petista, não poderia ocorrer. Chegamos a um estado de soberania disputada, um ponto-chave eminentemente político, em que todas as forças são lançadas para dentro do jogo e todas as estruturas se tornam instrumentos. Desde o texto da lei até os textos de jornal, passando pela atuação da polícia, a “negociação no varejo dos cargos”, os púlpitos de igreja, os movimentos sociais.

A pergunta agora é: quais desses estão fortalecidos? Quais estão enfraquecidos? Quem os fortaleceu? Quem os enfraqueceu? Com golpe ou sem golpe, temo que a resposta a essas perguntas pinte uma imagem pouco favorável para o governo.

Quando o desejo de golpear e o desejo de ser golpeado coexistem, é fatal que, eventualmente, venham a convergir. A princípio, pode parecer que eles só se encontrem no infinito. Até o momento em que algo excepcional, uma crise, um governo inepto, uma investigação policial, desvia os fachos e os aproxima. Esse é o momento que estamos vivendo: uma espiral rumo ao abismo em que se entrelaçam tipos diferentes de fascínio pela ruptura, atualizando desejos de golpe e memórias de golpe.

4: O Cadáver Insepulto

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Como eu disse, o desejo inconsciente do golpe, a fantasia em relação a uma iminente intervenção extra-legal, o espectro que nos ronda, é indicativo de que temos entre nós um cadáver insepulto que atende pelo nome de “ditadura militar”. Isso quer dizer que nunca chegamos a encarar esse legado sobre nossas instituições e mesmo sobre nossas relações sociais cotidianas.

Não investigamos o suficiente, apesar da Comissão Nacional da Verdade, que recebeu muito menos holofotes (e fundos) do que merecia. Não punimos, e quando tivemos a chance de rever a lei de anistia, todo mundo com um pouco de poder foi contra. Ao fim, o STF a manteve, com os mais batidos e tristes argumentos.

Não repensamos instituições como a Polícia Militar. Continuamos aplicando leis produzidas pelo período autoritário (e, por extensão, ilegítimo); isso inclui o famigerado e grotesco uso da Lei de Segurança Nacional contra manifestantes em 2013. Damos ouvidos a gente que participou do exercício do regime de exceção. Mal e porcamente tivemos a coragem de retirar os nomes de tiranos das nossas ruas, e as tentativas nesse sentido foram muitas vezes recebidas com má vontade.

Para muita gente, ainda é perfeitamente aceitável a idéia de que a recusa terminante a uma ditadura só pode significar o apoio a alguma outra ditadura, o que parece indicar que a perspectiva de viver sob opressão não parece ser um grande problema para boa parte da população. De fato – e isso está muito claro em textos como o do historiador Bruno Alvaro, que nessas horas é quem “dá a real” do jeito mais poético –, a maior parte dos brasileiros ainda vive tal e qual na época da ditadura, com a mesma repressão, a mesma fluidez entre a legalidade e os crimes cometidos por agentes do Estado, as restrições a direitos básicos (e constitucionais) como a liberdade de ir e vir e a inviolabilidade do lar. Basta ser negro, pobre, índio. E se é para falar de estado de exceção, podemos dar nome e sobrenome: Rafael Braga Vieira, a grande vítima da supressão do levante de 2013.

A ditadura, no Brasil, pode estar desencarnada, se por “encarnar” entendemos o controle sobre o aparato do governo central. Mas morta, não está. A rigor, como fantasma, a ditadura pode até ser mais eficaz, por conseguir se imiscuir na mente de todos e, em grande medida, orientar o funcionamento das instituições e das relações cotidianas mesmo em democracia.

Assim sendo, o cerne do nosso problema não está em identificar o golpe aqui ou acolá, mas em entender que estamos agindo constantemente sob o signo do golpe. Não o que poderá vir, mas o que já aconteceu. Estamos revivendo essa experiência porque não a digerimos até hoje e estamos condenados a novas encenações de instabilidades institucionais, com lacerdismos, golpismos e tudo o mais a que temos direito. Não precisa ter golpe, porque no Brasil o golpe é ubíquo.

5: Um Posicionamento, Enfim

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Com tudo isso, devo dizer que minha posição pessoal é rigorosamente contrária ao impeachment de Dilma Rousseff, nas bases em que está para se dar. À parte o fato de que a base legal parece de fato não existir (mesmo se eu acabei de dizer que, no fundo, a base legal não é determinante); à parte também meu completo ceticismo de que algo de bom ainda poderá sair deste governo, caso ele se salve e permaneça até 2018; à parte, por fim, meu enorme pasmo diante da crença de que haverá alguma “guinada à esquerda” de uma administração apaixonada pelo concreto armado: acredito que o recurso ao impeachment é um erro histórico profundo, do qual o país ainda se arrependerá amargamente.

Como já apontado por muitos, o impeachment é um momento catártico cujo principal efeito (e os atores políticos que o tocam têm plena consciência disso) será o esvaziamento das atuais tensões no país. Por um lado, são tensões quase insuportáveis e queremos mesmo um pouco de calma para voltar a viver. A economia, por exemplo, agradeceria bastante, é forçoso admitir. Por outro, são tensões que mobilizam, obrigam à tomada de posição, favorecem rearticulações e desnudam as insuficiências da nossa sociedade, a começar pelo déficit democrático.

O impeachment seguramente serviria para costurar um acordo que entregaria o PT aos leões e livraria todos os demais implicados na Lava Jato, principalmente os do PMDB, maiores favorecidos com essa lama toda, e em seguida os do PSDB, que têm a vantagem de poder contar com a complacência da classe média e o apoio da classe mídia. A pessoa que defende o impeachment em nome da luta contra a corrupção pode até ser bem intencionada (algumas são, outras não), mas posso garantir que não tem a menor ideia do que está dizendo. (A bem intencionada, claro; a mal intencionada eu suponho que saiba até bem demais.)

Esse momento catártico é típico de um país que não quer assumir suas responsabilidades. O que nos faz falta não é uma solução sumária para o “problema Dilma”, o “problema Lula”, o “problema PT” ou “o problema desses safados todos que estão aí”. Precisamos é de constituir forças políticas bem articuladas, efetivamente ancoradas na nossa diversidade social, capazes de dialogar com a sociedade civil e extrair dela sua força de atuação. Partidos, movimentos e organizações, portanto, programáticos e propositivos. O impeachment nos trará o oposto disso.

É bem verdade que, no começo, a economia deve responder bem ao governo Temer e parecerá que as crises foram “solucionadas”, os erros do governo Dilma, apagados. Vamos possivelmente esquecer a tensão em que vivemos desde 2013, graças aos dois ou três anos de crescimento econômico moderado que poderão resultar daí e do sufocamento dos impulsos contestatórios nas ruas. Pautas agressivamente impopulares serão aprovadas e os porta-vozes do mercado, ingenuamente, vão comemorar.

O problema é que, daqui a poucos, muito poucos anos, quando esse arranjo bater de frente com as efetivas condições demográficas e sociais do Brasil, que mudaram muito nos últimos 20 anos, vamos ter esquecido de fazer o mais urgente: construir essas novas estruturas políticas.

Tendo transformado o Judiciário em ramo heróico do poder, vamos nos deparar com uma sociedade judicializada e policializada, o que não tem como ser bom: afinal, como bem sabemos, muitos juízes pensam que são Deus e os policiais, se não se acham deuses, certamente acreditam ser algum tipo de arcanjo Miguel. Mas isto é um país supostamente democrático, não é algum reino celestial.

Nesse sentido, e apenas nesse, o impeachment é certamente “um golpe”: no sentido clássico em que é sinônimo de bordoada. A vítima desse golpe não é Dilma, nem Lula, nem o PT, mas a paulatina constituição de um novo arranjo político, pós-88, pós-Odebrecht, para o Brasil. Algo muito importante, que ainda está nos estágios iniciais, mas seria ceifado ainda em botão. Algo que se pode divisar vagamente nos novos partidos (Rede, talvez Raiz, até mesmo, se bobear, esses partidos liberais que tentam se registrar) e no vigor de movimentos sociais autônomos como o das escolas. Tudo isso é muito recente e está em grande risco.

São esses que deveriam estar gritando contra um golpe, e não o PT.

Post-scriptum – Tantos Fantasmas

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Comecei o texto falando do golpe como o fantasma de um cadáver insepulto; mas logo me dei conta de que está longe de ser o único dos nossos fantasmas. É, certamente, o que mais atua nas nossas refregas políticas, sobretudo quando chegam ao ponto em que chegaram. Mas existem outros, dos quais, é bom lembrar, a própria ditadura é herdeira.

Por sinal, eu poderia dizer que os fantasmas são uma entidade dinástica, que vai se renovando a cada geração, adaptando-se às condições de cada época e, principalmente, acumulando forças, saberes, poderes; estendendo o alcance de sua atuação; reforçando os nós entre os diferentes pontos de assombração.

Segue uma breve lista de fantasmas, os cadáveres insepultos em que tropeçam todas as nossas iniciativas emancipatórias ou modernizadoras, isto é, nossas boas intenções. O genocídio indígena da colonização, que se traduz em genocídio indígena da república. O rentismo/extrativismo da economia, que vai de Duarte Coelho a Marcelo Odebrecht, passando por Percival Farquhar e os Setúbal. O patrimonialismo estamental, que joga por terra a já normalmente ineficaz distinção entre estado e mercado.

E o principal de todos, claro, evidentemente, sem sombra de dúvida: a escravidão. Está aí Joaquim Nabuco, que não me deixa mentir, e cujo prognóstico de que “a escravidão permanecerá por muito tempo a característica nacional do Brasil” aparece tatuado em baixo-relevo na testa de cada secretário de Educação, Segurança Pública, Transportes ou Habitação deste país.

Sendo assim, o golpe é fractal, ou seja, tem múltiplas dimensões que se dobram umas sobre as outras. Também por esse motivo, mais uma vez, é estéril discutir se há golpe ou não há, porque cada gesto, de cada lado, traz consigo uma fração de desejo de golpe, que também é uma encarnação do conflito inescapável que caracteriza um país como o nosso. Um conflito que é bem mais que luta de classes, porque envolve condições de vida e de ocupação do território transversais em relação à classe: envolvem raça, ascendência, sobrenome.

A ditadura, esse nosso fantasma mais recente, não foi derrubada, como se sabe. Caiu quando quis, vendo que tinha feito besteira na economia e percebendo que o apoio internacional esmaecia. Os militares garantiram o perdão para si próprios e ainda não vi nenhuma declaração oficial das Forças Armadas se retratando por lançar o país nas trevas por tanto tempo. Uma ditadura que, depois de golpear a esquerda, golpeou também a direita democrática (tão pálida no Brasil) e até a direita pouco democrática, como logo percebeu o pobre diabo do Lacerda.

Se hoje temos uma Constituição minimamente humanista, nós a devemos ao momento histórico único da redemocratização, não a algum espírito nacional ou coisa que o valha. Mesmo assim, a Constituinte foi marcada pelos péssimos augúrios do Centrão, germe do nosso pemedebismo, como apontado por Marcos Nobre, e termo que reaparece na nossa política pela via das tentativas do governo de se salvar. Triste sina.

Ataques ao progressismo da Carta esperavam apenas por um governo fraco e um sistema político esfrangalhado para se desvelar em toda sua força. É fácil de prever, como fiz acima, que a grande ofensiva virá com o governo do PMDB: Temer, Cunha, Renan, e nem quero pensar em quais sócios menores… São gente que não tem escrúpulos quando se trata de repartir o território e as forças produtivas.

Infelizmente, porém, a realidade é que a atual paralisia é muito mais favorável aos retrocessos. Com um Executivo em constante xeque e os movimentos sociais com a cabeça fixa no golpe, o Pântano, o Centrão, o exército de Cunha têm curso livre para agir, chantagear, extorquir. Para dar seus golpes constantes, institucionais, legais. Sim, enquanto uns desejam, temem e devaneiam com os golpes, outros os desferem.

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Padrão
barbárie, Brasil, capitalismo, cidade, costumes, direita, economia, eleições, Ensaio, escândalo, esquerda, junho, manifestação, opinião, Politica, reflexão, Sociedade

As duas válvulas

parturient montes nascetur ridiculus mus

Atribuída a Horácio, mas acho que é de Michel Temer

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É por isso que evito escrever no calor dos eventos. Logo que Eduardo Cunha aceitou o pedido de impeachment de Bicudo et al, sentei para redigir alguns parágrafos, argumentando que o processo contra Dilma Rousseff seria a oportunidade para vermos se desenrolando a atividade política (eu deveria dizer palaciana) que na maior parte do tempo fica escondida debaixo da mesa. As maiores potências da República, aquelas que comandam a economia e gerem o Estado, sairiam desabaladas para ganhar o quanto pudessem, com a queda ou a permanência de Dilma: certamente algo mudará na relação de forças.

Eu até tinha razão de imaginar que os eventos se acelerariam. O que não imaginei foi que a tensão represada era tamanha. Eis que, quando pus o último ponto final na última frase, quando terminei a última revisão e estava para jogar o texto no WordPress, saiu a notícia da carta que nosso poético vice-presidente, o latinista Michel Temer, enviou para nossa enigmática presidenta. No dia seguinte, o sorrateiro presidente da Câmara conseguiu duas de suas manobras de extrema agressividade. Daí por diante, Brasília se tornou um tiroteio. Estão implicados o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, a Polícia Federal, o Ministério Público, a Procuradoria-Geral da República, a mídia e as manifestações de rua. A trégua acabou e a indiferença também. O país voltou a ferver.

Resta ver se ele ferve em cima do fogão, só para fazer um chá, ou se ferve como uma caldeira prestes a explodir. A julgar pela sequência de episódios desde 2013, creio que existem antagonismos sociais suficientes para que seja a segunda opção. Mas acredito também que aqueles que encaminham o processo não pensam assim e vêem adiante só uma troca de governo. Para seguir com a imagem da água fervente: tudo que querem é esquentar uma chaleira para depois verter calmamente numa xícara. Talvez estejam subestimando a agitação na sociedade, talvez confiem cegamente no poder da repressão; talvez tenham razão, conhecendo bem este país que sempre recuou na hora das grandes transformações. Mas isso tudo está em aberto.

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Se aqueles parágrafos ficaram desatualizados, persiste mesmo assim um campo em que vale a pena especular. Posso resumi-lo com uma pergunta: no limite entre os dois desfechos, o do chazinho para políticos e o da caldeira que estoura, o que será que vai ser o elemento decisivo? O que é que vai dar o empurrãozinho, quando a água estiver chegando no ponto de ebulição? Acredito que essa decisão vai depender do uso que se dê e do modo de funcionamento de duas válvulas capazes de regular os caminhos políticos do país. São elas a interpretação da lei e a ação da polícia.

* * *

Antes de entrar na questão das válvulas, duas palavras sobre conjuntura. Ouço falar o líder do PSDB na Câmara, Carlos Sampaio, que é da turma de Aécio Neves. Ele discursa como se tudo fosse uma grande brincadeira escolar e claramente não consegue dimensionar a seriedade do que se passa. Nós mesmos, pelas redes sociais, fazemos piada com o latim empregado por Michel Temer em sua carta. Governistas falam em golpe, falam também em precedente, esperam uma “guinada progressista” depois da ruptura definitiva de Cunha e Temer com Dilma, ignorando tudo que se passou neste país nos últimos cinco anos. Cegos para os perigos de associar-se a alguém como Cunha, opositores mais assanhados dão de ombros à evidência e vêem apenas a perspectiva de obter uma vitória com a derrubada de Dilma. Acabam subscrevendo a atitudes de Cunha e seus acólitos que justificam as acusações de um golpe em curso, já que, de fato, o político fluminense golpeia repetidamente a Constituição.

Acima de tudo, persiste a pergunta: que raio de vitória é essa?

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Embora por motivos equivocados, os governistas (e também quem é oficialmente de oposição, como o PSOL) têm razão em assinalar que a motivação tucana para o impeachment é retomar o poder por vias tortuosas, como sócios minoritários do eventual governo do PMDB. Como acreditar no argumento de que a motivação é derrubar um governo corrupto, quando o meio para tal é a associação íntima com personagens ainda mais corruptos? (O leitor sabe de quem estou falando.) E mais: com os personagens que estão à testa do partido hoje, o PSDB não tem muita legitimidade para gritar contra a corrupção.

Mas é inegável que o partido passa um enorme atestado de tibieza e irrelevância quando, depois de não encontrar um candidato capaz de vencer uma presidente mal avaliada, ainda por cima precisa ficar a reboque de forças fisiológicas para tentar agarrar um naco do Estado. Faz mesmo lembrar a UDN, que precisava se escorar em figuras como Jânio Quadros para alcançar o poder, por falta de capacidade para construir uma verdadeira base eleitoral – para não falar nos militares.

Ou seja: o assim chamado principal partido da oposição é incapaz de mobilizar bases para vencer eleições, é incapaz de assumir a frente no exercício do confronto parlamentar contra um governo enfraquecido e notoriamente incompetente, faz-se de marionete das raposas políticas no processo de impeachment e contenta-se em comandar o país graças a esse artifício – sem mencionar a administração deplorável que tem feito nos Estados que governa. Se esse é o “principal partido da oposição”, então o que salta aos olhos é a falha grosseira do nosso sistema político, que não consegue produzir nem uma situação, nem uma oposição verdadeiramente estruturadas. (Daí o conceito de peemedebismo avançado por Marcos Nobre.)

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Para não ser mal entendido: compreendo perfeitamente o partidário do impeachment que sonhe com um governo mais palatável para os mercados e encabeçado por alguém com mais habilidade política, ainda que fosse Temer, cujo carisma só é maior do que o da própria Dilma, o que não é grande coisa. Eu mesmo preferiria mil vezes ter outro governo. Porém, por mais que o raciocínio se sustente, o entusiasmo trai uma enorme imprudência política e histórica: o terreno do impeachment é muito perigoso e envolve forças sinistras, como as últimas semanas deixam bem claro. Não dá para negar que, ao longo dos próximos meses, quem vai se favorecer não vai ser nem o mercado, nem a população, mas um certo número de caciques políticos dos quais não temos nenhum motivo de orgulho.

Todos os atores do jogo político deveriam saber disso, mas parecem não se importar. Deveríamos ser mais sagazes e aprender com os erros do passado. Tenho tentado evitar as comparações com março de 64, porque é uma analogia batida. Mas o fato é que também naquele momento havia muita gente sensata, e que se considerava em toda honestidade democrata, que estava disposta a qualquer coisa para ver Jango fora. É a mesma cegueira inocente de quem aceita qualquer coisa para remover Dilma. Mas qualquer coisa, em poucos meses o veremos, é sempre demais.

O que deveríamos perguntar a nós mesmos é: por que temos tanta disposição para jogar esse jogo perigoso? Se cavamos um buraco no meio de um pântano e nos enfiamos nele, por que achamos que uma solução mágica vai nos trazer de volta para o conforto do lar? Se sabemos que chegamos aonde chegamos porque não fomos capazes de fazer melhor e construímos um sistema manco e corrupto, por que continuamos oferecendo respostas breves e insignificantes, como “tem que derrubar”, “tem que prender”, “tem que matar” e semelhantes?

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* * *

Se estamos jogando um jogo perigoso, não é só nessa relação ainda difícil de divisar do lado oposicionista entre Cunha, Aécio, Serra e Temer. Do outro lado, há coisas ainda mais tenebrosas: não só Lula foi correndo pedir ajuda a Luiz Fernando Pezão, governador do Rio pelo PMDB, a mesma agremiação de Cunha e provavelmente um dos maiores focos de desmandos na política brasileira, como no dia seguinte recebemos a notícia de que pemedebistas fluminenses que ocupavam cargos estaduais e municipais voltavam à Câmara para reforçar o governismo. Em resumo, salvo algumas figuras isoladas e de pouca projeção, tudo cheira muito mal e prenuncia um futuro péssimo, no que tange ao sistema político.

Não há nada a celebrar para nenhum dos lados. O mais terrível neste momento é a convocação incessante para que cada um de nós se declare radicalmente favorável ou contrário à defenestração de Dilma. Quando falam em “golpe paraguaio” e nos pedem para “defender a democracia”, por mais que sejamos obrigados a concordar que muito do atual processo de impeachment corre por fora da legitimidade (a começar pela atuação de Cunha, como sempre), não há como negar que o que nos colocou nesta situação foi a absoluta inépcia do governo Dilma, à qual se soma a volúpia com que o PT buscou tomar controle dos fluxos de poder e dinheiro que controlam o país.

À parte o fracasso deplorável deste governo, que pode mesmo significar o naufrágio de todo o projeto petista e até da idéia de uma esquerda partidária no Brasil por um bom tempo, o fato é que um governo que assuma após um eventual impeachment não terá muito mais legitimidade que o atual e deve ter até menos. Em 2014 a população votou na imagem mentirosa que lhe foi entregue pela campanha de uma presidenta que já tinha péssima avaliação. Em 2015, recebeu dessa presidenta o oposto do que lhe tinha sido prometido. Em 2016, corre o risco de receber uma dose reforçada do remédio que ora prova, aplicado por atores que lhe terão caído de pára-quedas. Para qualquer lado que olhe, ninguém vai enxergar uma vitória digna do nome.

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Isso não vai terminar bem e não estamos levando o problema suficientemente a sério. Nem parece que este é aquele país que há cinco anos acreditava estar a ponto de tornar-se potência e de lá para cá tem que se ver constantemente com corrupção, repressão, crimes ambientais, chacinas, recessão, inflação e intrigas palacianas. Hoje, a tensão cresce em torno do parlamento e da presidência, mas resta entender como essas energias ressoam com as da sociedade.

Dito isso, vejamos a primeira válvula, que diz respeito ao processo de impeachment.

O impeachment de Schrödinger

Como sabemos, entre as pessoas que se opõem ao possível impeachment há muitas que adorariam ver Dilma longe do palácio do Planalto. O motivo é uma postura legalista, algo sempre louvável em um país como o Brasil. Acontece que, em tese, o impeachment no Brasil obedece à lei 1079/50, que é bastante clara sobre um ponto: é preciso que esteja provado um crime de responsabilidade durante o exercício do mandato. Tal prova, como parece ser quase consensual entre juristas e cientistas políticos, não existe hoje.

Este detalhe é significativo. Tem sido interessante seguir os debates entre juristas sobre a legitimidade do processo, mesmo se, de vez em quando, o juridiquês afasta os leigos como eu. É sorte poder contar com uma consultoria jurídica informal, como se verá nos próximos parágrafos.

É esse detalhe que hoje nos permite – a nós, o público normalmente tão desinformado sobre o que se passa debaixo das mesas do Poder – vislumbrar a movimentação tacanha e selvagem da política brasileira, esse pântano em que as convicções se criam e se trocam, alianças se formam e se desmancham. Mas o mais interessante é poder descobrir a que ritmo a letra fria da lei baila com o ato decisório da soberania, que é escaldante.

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Como se sabe, a maioria dos juristas e cientistas políticos tem dito que o processo, tal como está, só é legítimo em parte. Ou seja, o processo é legítimo, mas o próprio impeachment não é. Resulta que, ao contrário do que argumentam os defensores incondicionais do governo Dilma (e há mesmo que ser incondicional!), o mero fato de que o presidente da Câmara aceitou o pedido não é nada que sequer se assemelhe a um golpe. O que vem pela frente, com a votação da Câmara, a defesa do governo, o processo no Senado, tudo isso está previsto na legislação. Exceto, é claro, os abusos de Cunha, que pontuam o aumento das tensões.

Por outro lado, não havendo prova de crime, o único resultado propriamente legal seria a manutenção da presidenta no cargo. Se a lei exige um crime provado, e não parece ser o caso das “pedaladas fiscais”, então mesmo quem quer ver Dilma pelas costas deve admiti-lo, por mais que seja desconfortável: votar por sua remoção não estaria de acordo com a lei. E assim vai ser até que surja a tal prova.

Como explica o jurista gaúcho Márcio Augusto Paixão, traçando uma analogia com o caso de Rafael Braga Vieira, único condenado pelo levante de junho de 2013:

[O] sujeito é acusado de causar danos à propriedade alheia, e como prova se usa o fato de ter sido pego portando Pinho Sol. Oferecer denúncia criminal e instaurar um processo contra ele não é algo ilegítimo formalmente: está previsto na lei. Porém, condená-lo somente com base nessa prova é algo absolutamente ilegítimo, na visão da ampla maioria de juristas. Nesse caso [impeachment] o raciocínio é o mesmo: não há quem diga que o instrumento do processo por crime de responsabilidade não é legítimo. Ele é. O que não é legítima é a acusação do caso concreto – os motivos do impeachment -, em que se visa condenar a atual presidente por prática de fato que não se amolda a qualquer das hipóteses previstas na lei como crime de responsabilidade. Em outras palavras, o que os juristas querem dizer é: o impeachment é formalmente legitimo, mas materialmente não é.

Resumindo: a maneira como está formulada a lei 1079 é tal que um presidente não pode ser removido senão com a prova de um crime de responsabilidade (definidos nos artigos 4º a 13), e isso significa, antes de mais nada, que hoje o impeachment de Dilma vai contra a lei, mas o processo, não! Afinal, processar alguém não é proibido e, no caso do processo aceito por Cunha, nem mesmo para a cabeça do Executivo. De modo que as discussões na Câmara e talvez, em seguida, no Senado, não são golpistas, como se tem dito; mas se efetivamente chegarem à decisão de remover Dilma do cargo, essa será uma decisão que pode ser considerada golpista…

A difícil remoção

Deixando de lado o caráter paradoxal da situação, que poderíamos até achar engraçada se não estivéssemos implicados nela até o pescoço, o que resta é constatar que a derrubada constitucional de um presidente no Brasil é coisa bem difícil, beirando o impossível. Mesmo quando a ampla maioria da população preferiria uma mudança.

Males do presidencialismo, talvez? Pode ser. Mas cabe lembrar, antes de mais nada, que mesmo se o parlamentarismo oferece caminhos mais simples para trocar de governo, como o famoso voto de desconfiança, nada poderia ser mais “golpista” hoje do que tentar mudar o regime e instaurar um parlamentarismo ad hoc no Brasil. Algo assim chegou a ser aventado algumas vezes este ano, aproveitando-se do fato de que a Constituição traça um caminho estranhamente simples para tal mudança de regime.

Só que o voto popular já rejeitou o parlamentarismo duas vezes, com ou sem razão, tanto faz. Então, por mais que seja possível, conceitualmente, preferi-lo ao presidencialismo, insistir nele a esta altura, sem pelo menos uma terceira (e cansativa) consulta aos eleitores, seria a coisa mais antidemocrática que se poderia fazer sem colocar tanques nas ruas. Pois adivinhe quem se saiu com essa idéia em meados de 2015! E não é que agora a OAB me tira da cartola uma proposta de semipresidencialismo?

Brasil, Brasil, até quando as soluções mágicas?

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Outros sistemas partidários, menos fragmentados e fisiológicos, poderiam chegar a uma resolução em que a situação da presidenta estaria insustentável, porque não conseguiria aprovar nada. Eventualmente, ela seria levada à renúncia. Mas, como eu disse, é outra estrutura partidária, com partidos mais fortes e em menor número. No nosso sistema, em que uma moedinha no fundo do saco tira uma alma do purgatório, por pior que esteja a situação de Dilma, sempre é possível segurar-se na corda bamba até que os deputados sintam necessidade de vir pedir cargos do terceiro escalão. Nessa hora, aprova-se ajuste, imposto novo, qualquer coisa.

Esse é o sistema brasileiro e qualquer coisa aquém de encará-lo de frente é covardia, comodismo ou oportunismo.

* * *

Resta então discutir essa dificuldade para remover presidentes. Poderíamos começar perguntando: por que é tão rigorosa a lei que regula o impeachment no Brasil? Três países nossos vizinhos defenestraram mandatários neste século, mas os exemplos mais recentes são pouco inspiradores: é o caso de Fernando Lugo no Paraguai e Manuel Zelaya em Honduras. Duas deposições bastante duvidosas, bem mais do que seria a eventual derrubada de Dilma. Seja como for, não queremos nada parecido no Brasil.

Provavelmente o caso latino-americano mais bem-sucedido de remoção de presidente tenha sido o de Alberto Fujimori em 2001 – ironicamente, como Dilma, pouco mais de um ano após ser reeleito. Mas Fujimori já estava sob fogo cruzado por muitas acusações, inclusive internacionais: seu caso não lembra em nada o de Lugo, Zelaya ou Rousseff.

Aqui, o que tivemos foi o famoso episódio do Elba comprado por empresas de PC Farias, que derrubou Collor. Mas até o mecanismo de acionamento do portão da Casa da Dinda está careca de saber que não foi por causa do Elba que caiu o caçador de marajás, mas porque bateu de frente tanto com o Congresso quanto com o mercado. E também todo mundo sabe que não seriam as pedaladas fiscais que derrubariam Dilma, mas seus conflitos com o Congresso e o mercado. Seja essa derrubada legítima ou ilegítima.

* * *

Voltando às exigências rigorosas da lei dita “do impeachment“, a explicação mais caridosa toma a via histórica: tanto a segurança do cargo quanto sua força – o cargo de presidente, no Brasil, é considerado particularmente forte, embora haja pesquisas que mostrem uma paulatina diminuição dessa centralidade presidencial – traduziriam os traumas que nos chegam de um passado cheio de remoções forçadas, golpes, contra-golpes, parlamentarismo tirado da cartola, suicídio. Haveria, por isso, a necessidade de garantir tanto quanto possível a posição do mandatário, como salvaguarda para aventuras golpistas. Essa idéia faria bastante sentido se a lei fosse contemporânea de Constituição de 1988, e não da CF de 1946.

Uma interpretação mais cínica colocaria a lei 1079 de par com tantas outras regras, normas e leis que, de tão difíceis de cumprir, exercem uma função implícita de serem burladas de acordo com as circunstâncias. Acredite ou não, regras assim são inevitáveis, porque constituem janelas para a interpretação, a política e a resolução de casos limítrofes. Os bizantinos tinham um nome para isso: “economia”, por oposição à “acribia”, o respeito inflexível à lei, que corria o risco de levar a comunidade à paralisia ou ao totalitarismo (a palavra não existia na época, claro).

Talvez a tradução contemporânea mais próxima de acribia seja “fundamentalismo”. Um termo mais leve poderia ser “purismo”. O caso mais célebre de confronto de acribias na história da arte é provavelmente o de Antígona, que leva à risca a lei dos deuses, versus Creonte, que é inflexível na defesa da lei da cidade. Não há respiradouro, é uma tragédia.

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Se seguirmos essa interpretação, e nada nos obriga a dizer que ela resulte de algo “intencional” – pois basta que a regra exista para que seu rigor produza uma demanda por transgressão diretamente proporcional –, então temos que a dureza da lei faz com que ela seja uma janela para o sistema político revelar-se em sua economia peculiar.

A lei é sempre um dispositivo que se faz atravessar por interpretações e, por isso, produz uma arena para as disputas de interpretação. Pense em qualquer litígio, em que as partes, diante de um juiz, tentam fazer valer suas próprias leituras de determinada lei, ou da hierarquia entre tal e tal lei. Aquela fluidez da causalidade mecânica, como uma espécie de lei (com trocadilho) da gravitação universal em versão textual, não existe.

Esse caráter hermenêutico e agonístico é mais acentuado no processo, aliás qualquer procedimento, que passe por uma instância da política institucional – como, no caso do impeachment, o Legislativo. O que ele tem de indiscernível dá mais na vista do que nas regras que enfrentamos no dia-a-dia, já que a política ela mesma tem a característica de ser vistosa, ainda que deixe o mais importante na penumbra. Por sinal, o regime pelo qual se decide o que vai ser visto ou escondido é uma das pedras de toque da alquimia política.

Nesses casos, o mero embate de interpretações é de cara recoberto por uma camada de disputa de poder. E é exatamente essa dupla camada (disputa de interpretação / disputa de poder) que começou a nos ser entregue esta semana como espetáculo. Espetáculo, é bom mencionar, que vai além do meramente contemplativo, já que o butim a ser ganho é o das nossas vidas.

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A lei como válvula

Então o ponto crucial, o que mais berra neste instante, é esse mesmo: a lei como válvula, dispositivo que se abre por um instante para resolver um impasse político, mas logo em seguida se fecha de novo. A lei 1079 é uma válvula fechada, porque torna a remoção de um presidente quase impossível – embora, lembra Paixão, exista a possibilidade do recurso à quebra de decoro, no item 7 do artigo 9º, que abre uma avenida para que o Legislativo processe um presidente.

Ao mesmo tempo, há claramente uma vontade disseminada no sistema político, na elite econômica e em boa parte da população de operar essa remoção. Já o governo é politicamente incapaz de conseguir apoio, o que pode ser fatal à medida que deputados abandonam seu barco.

O que se faz?

Com todo o tato possível, abre-se a válvula – no caso do Brasil, o tato muitas vezes também pode ser dispensado, como tem nos demonstrado diariamente o Sr. Cunha. Por meio de negociações, realinhamentos, conversas, entrevistas e matérias plantadas na imprensa, qualquer estratégia vale, dá-se um jeito de fazer valer a interpretação mais contrária à presidenta. Pode-se discutir até a rouquidão, mas é forçoso admitir que, a partir de um certo nível de consenso, pouco importa a caracterização do fato como crime: houve sucesso em interpretá-lo como tal. Do ponto de vista da efetividade, isso é mais que suficiente.

O que acontece então? Vem o momento catártico da decisão. Os vitoriosos comemoram, falam em grande momento cívico, em triunfo da democracia e da justiça. Os derrotados se queixam de um golpe, de conspiração empresarial, de intervenção ianque. Toda a emoção que mobilizou o país ao longo de 2014, 2015 e boa parte de 2016 se dissipa nessa descarga digna de Elias Canetti. E volta o dia-a-dia político, porque a válvula se fechou novamente. Pode-se até falar que o caso abre um precedente, como muitos têm apontado, mas o fato é que a válvula sempre esteve ali e o rigor da lei, tal como escrita, vai continuar sendo o mesmo. Só o que pode mudar é a desenvoltura dos arranjos políticos – não que isso seja pouco.

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Talvez meio abusivamente, porque estou puxando para meu próprio lado, é assim que interpreto os seguintes parágrafos de Celso de Barros:

(…) em caso de impeachment, as lições erradas serão aprendidas. O PT sairá do poder sem reconhecer a necessidade de ajuste fiscal e equilíbrio macroeconômico. Dilma, afinal, não terá caído por ter sido populista: por ter sido populista, se reelegeu. Se cair, terá sido por ter feito o ajuste. (…) [A] direita ficará dispensada de explicar como conseguiu perder uma eleição em um ano de crescimento zero, inflação alta e Lava Jato. O impeachment lhe permitiria voltar ao poder sem fazer o trabalho de construção partidária, imposição de sacrifícios às bases e diálogo com os pobres (…). O impeachment não seria a renovação da política brasileira, seria o reforço de nossos velhos padrões: a esquerda economicamente irresponsável, a direita incapaz de se adequar à democracia moderna, e o PMDB com o controle do Orçamento.

Muito está dito nessas linhas. Eu iria inclusive um pouco mais longe, tratando não de “lições erradas” sendo aprendidas, mas de uma reviravolta no melhor estilo Lampedusa, mudando tudo para que nada mude. O impeachment, em seu aspecto catártico, seria o momento de abertura das comportas que seguravam um enorme fluxo de conflitos. Tendo eliminado um indivíduo incômodo, talvez até todo um partido, a comporta pode fechar-se novamente, permitindo a continuidade do mesmo tipo de política que tão bem conhecemos.

Este ponto remete àquela solução mágica do “tem que derrubar”, mas também remete à moleza partidária do “principal partido da oposição”, que, por sua vez, remete ao caráter manco e patrimonialista do nosso sistema político como um todo. Também na Folha, Vladimir Safatle alertou para isso, usando a expressão “Estado Oligárquico de Direito”. Permanecemos na lógica do pemedebismo de Nobre ou, se quisermos ir mais longe – já que o autor restringe sua análise ao período posterior a 1988 –, ao patrimonialismo estamental de Raymundo Faoro, que discuti em outro texto. Seja como for, o que está claro é que a disputa que vamos testemunhar em torno do impeachment será pouco mais do que um espetáculo, a se confirmar a previsão de que as forças políticas vão só reacomodar-se e seguir tocando seu barco, agora com uma nova distribuição de poderes e recursos entre elas.

As ruas e a segunda válvula

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Mas se é assim, o que acontece no país, para além das disputas palacianas? Muita coisa pode ser decidida nessa arena, que caminha pelas ruas e agora também ocupa as escolas. Nos textos sobre política que publiquei este ano, tentei vislumbrar alguma coisa a esse respeito, mas ainda temos muito a descobrir.

Diferentemente das agitações em anos anteriores, a atual se desenvolve perante um quadro de economia em crise bastante profunda, dessas que dificilmente um país atravessa sem grandes abalos (ainda mais se considerarmos o New Deal como um abalo). Antes de junho de 2013, poderíamos acreditar que o Brasil, quando chegasse ao ponto em que está agora, seria exceção: “país apático”, dizíamos. “Povo que aceita tudo.” Hoje, esse tipo de avaliação não tem mais razão de ser.

É realmente notável como o plano das discussões se transformou. Como escrevi em março, saímos de questões anódinas – a preguiça associada ao bolsa-família ou a natureza das concessões de serviços públicos, como privatização ou não – e caímos no problema dos mega-empreendimentos, da renda exorbitante das instituições financeiras e da relação incestuosa entre poder público e empreiteiras mastodônticas.

Assim, se esta é mais uma ocasião em que podemos constatar o descolamento entre as elites dirigentes e o resto de nós, por outro lado é possível dizer com cada vez mais segurança que o país como um todo está se movimentando. Há dois sinais recentes que são opostos e, por isso mesmo, importantes. De um lado, a emergência de uma direita renovada, capaz de dar as caras em manifestações volumosas de rua, como aconteceu três vezes este ano – a quarta ficou bem aquém. Do outro, a capacidade que os adolescentes paulistas demonstraram de angariar apoio da população para peitar o governador, passando por cima de seu autoritarismo e da truculência de sua polícia.

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Por mais folclóricos que sejam os protestos dominicais com camisa da CBF e fotografias com a PM, é preciso levar em conta o subtexto anti-patrimonialista que a maior parte dos participantes traz, mesmo se confusamente – excluindo, claro, defensores de golpe militar e outros desvairados, que são minoria, embora barulhenta. Existe ali um discurso de capitalismo modernizador bastante evidente. No Brasil dos cartórios, das licitações e das indústrias encostadas no protecionismo, é uma verdadeira novidade.

Arrisco dizer que, se esse fosse o raciocínio hegemônico da direita neste país, estaríamos em situação bem melhor, em vez de termos que nos contentar com caiadismos (ou katiabreuismos), aecismos (ou manteguismos) e skafismos (ou dilmismos). Sei que vou soar repetitivo, mas esta é mais uma prova da caducidade do PSDB, que, na condição de “principal partido da oposição”, teria a responsabilidade e até o dever de fornecer os pilares da leitura conjuntural para esse contingente, além de apontar os caminhos para realizar o projeto e mobilizar suas forças. Em vez disso, quem mobiliza qualquer coisa são as figuras folclóricas que não vou mencionar, e que se resumem em ex-celebridades e revoltados de Facebook.

* * *

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Quanto à garotada das ocupações de escolas, são um verdadeiro sopro de esperança para um país que tanto repete a importância da educação e tanto a sucateia. Os relatos que recebemos sobre as escolas públicas no Brasil são tão desoladores que chega a ser inacreditável existirem jovens tão articulados, conscientes, corajosos e dispostos a lutar por seu estudo. As ocupações foram tão bem organizadas, a comunicação tão eficaz, que devo dar razão aos que afirmam que a educação nunca será a mesma em São Paulo – oxalá no Brasil – depois dessa. Para além dos slogans, a demanda é real.

Há outros indícios: cariocas protestam em Madureira depois que a polícia metralhou cinco garotos dentro de um carro. No Recife, o movimento contra a avassaladora especulação imobiliária no cais Estelita, e contando com um apoio expressivo da classe média da cidade, conseguiu uma bela vitória, com a anulação da venda do terreno. Em várias cidades, as mulheres tomaram as ruas contra o machismo rasteiro, grosseiro e homicida de Eduardo Cunha. E agora a onda de ocupações chegou também a Goiás.

A própria operação Lava Jato, de certa forma, tem sido interpretada como sinal da atuação de uma nova geração de servidores públicos, menos acostumados à acomodação que corrompe. Resta torcer para que o espetáculo do impeachment (efetivado ou frustrado, tanto faz) não seja tão catártico a ponto de absorver todas as nossas energias, justamente quando redescobrimos a vontade e a necessidade de disputar as narrativas sobre o país como um todo.

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Esses sinais me levam a pensar que o Brasil de sempre, o do patrimonialismo estamental, do sistema dia-partidário, da “elite que não é elite” e dos grandes acordos de cúpula que ignoram por completo a população, está se tornando inviável. É provável que haja aí razões demográficas, mas não cabe tratar disso aqui. Se as massas explodiram em 2013 por causa das tarifas e em 2015 por causa das escolas, o subtexto disso tudo não é nem a passagem gratuita no primeiro caso, nem a mera transferência de estudantes no segundo.

O que há de verdadeiramente determinante, no primeiro, é que não está mais tão fácil justificar a submissão a máfias do transporte, custosa para a população e ineficaz para a economia. No segundo, é o indício de que entregar o ensino nas mãos de empresários vorazes (“organizações sociais”, eles dizem) não é mais algo que se possa fazer com tanta naturalidade. Não creio que Alckmin ou Perillo tenham se dado conta disso, mas torço para que o desenrolar dos eventos os obrigue a reconhecê-lo.

Se é preciso cortar gastos, com uma população mobilizada e, queira Deus, organizada, os governos terão de sair dessa zona de conforto. Ajustes orçamentários não poderão recair tão facilmente sobre a cabeça dos mais pobres, sem reação. Isso significa que, enfim, privilégios podem estar começando a ser ameaçados. Não estamos mais naquela situação em que o bolo crescia para todos, então as massas poderiam ficar contentes com migalhas. Tampouco estamos na situação em que, advinda a crise, alguns momentos de tiro, porrada e bomba acalmam a fúria dos prejudicados.

Posso estar transbordando de otimismo ingênuo, mas é isso que aprendo com os adolescentes de São Paulo. É isso que creio ver desde o caso Amarildo, passando pelo “não vai ter Copa” e o Ocupe Estelita – fenômenos, cabe notar, muito heterogêneos, o que é bom sinal. Intuo um pouco disso até nos protestos anti-Dilma e anti-impostos, embora com outra lógica e outros vetores.

* * *

Aqui é que entra o problema da segunda válvula. Não vou me alongar na idéia da polícia como instrumento de regulação para a ineficiência e a corrupção da sociedade brasileira, tema que já tratei em texto de 2013. Mas o fato é que a polícia, no Brasil, tem o ingrato papel de fazer o ajuste fino da nossa desfuncionalidade ampla e irrestrita.

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Sem generalizar, até porque não é necessário, é possível citar alguns aspectos em especial sobre a polícia. Sua interação com o crime organizado, por exemplo, alternando o justiçamento com o arrego, pereniza a economia paralela nas periferias, em sua relação promíscua com a economia oficial. O racismo institucionalizado também represa o enorme turbilhão de reivindicações de negros, indígenas e não-brancos em geral. O gosto pelas propinas representa, por sua vez, uma modalidade de regulação do acesso das classes mais abastadas à ilegalidade, já que é possível ao pagador de propina fazer praticamente tudo que quiser, mas se a situação fugir do controle, há mecanismos de intervenção.

Não é por acaso que as instâncias mais brutais da polícia, notadamente a militar, fazem tanto sucesso com a população; assim como na política existe o “tem que derrubar” como solução mágica, no dia-a-dia social existe o “tem que matar”, “tem que acabar com tudo isso”; tem “a limpa” e “o esculacho”, conceito que um dia merecerá um texto por si só. Na medida em que a brutalidade policial ofereça momentos catárticos em que a figura assustadora do bandido milagrosamente some de vista ou é imediatamente destruída diante dos olhares ávidos dos passantes, ela permite instantes de descarga do pavor cotidiano em que vive a maior parte da população no Brasil.

Mas é só isso: momentos de descarga. Porque também é essa atuação da polícia que permite ao medo constante permanecer inalterado. Também é ela que permite a manutenção da criminalidade em níveis mais ou menos inalterados, sem jamais resolvê-la. Afinal, para reduzir de fato a criminalidade no Brasil seria necessário um outro modo de vida, que envolveria menos corrupção, melhor educação, menos abuso de poder, cidades menos opressivas, relações de trabalho menos exploratórias, mais respeito a leis que seriam mais equânimes…

choque e garotinho

A catarse da violência policial, que é uma forma gritante, mas aceita, de corrupção, é correlata do fisiologismo na política – a forma gritante, mas admitida, da corrupção nas altas esferas. Intervenções policiais em manifestações, mas também no dia-a-dia da periferia, são por isso uma válvula semelhante à interpretação das leis segundo as relações de força políticas. A brutalidade da polícia é o garantidor da brutalidade do país, assim como a corrupção na política é garantidora da corrupção do país. Tudo aquilo que, em 2013, chamei de “síndrome de D. Antônio de Mariz”.

* * *

Mas é aqui que está o pulo do gato. Cada vez que a violência deixa de ser aplaudida pelo grosso da população, como aconteceu em 2013 por um momento e agora novamente no caso das escolas paulistas, o governo é obrigado a recuar. Foi a válvula que não quis se abrir – ou se fechar – na hora certa. Um deslocamento de forças foi necessário. Mas isso não significa que ela emperrou de vez. Um recuo não desativa um mecanismo, e nossa válvula do rés-do-chão segue disponível para atuar no momento em que as condições se mostrem mais propícias. Chegou-se a esse ponto em 2014, por exemplo.

Portanto, o que nos cabe perguntar agora é o que acontecerá se, ou quando, a chapa realmente esquentar em 2016. Em um país, vamos lembrar, em profunda crise econômica, com posições políticas radicalizadas, a administração pública bagunçada, as oligarquias (as do governo e as da oposição, indistintamente) sentindo cheiro de sangue, um setor externo cada vez mais desfavorável e, como cereja do bolo, eleições municipais. Se a alternância entre manifestações amarelas e vermelhas degenerar em batalha campal; se movimentos como o das escolas conseguirem construir conexões – digamos, com o do transporte, com os índios, com o movimento negro – para peitar o Estado; se a Polícia Federal avançar ainda mais sobre as estruturas de financiamento das oligarquias políticas… O que vai acontecer? Como vai proceder a segunda válvula, a do dia-a-dia, a fardada?

policial e menina de laranja

Eis que, na hora de responder a essa pergunta crucial, aparece o instrumento mais tenebroso e traiçoeiro de todos: a dita “lei anti-terrorismo”, o PL 2016/15 – significativamente, uma instância da primeira válvula. Aprovada pelo Senado e aguardando votação na Câmara, o projeto ficou conhecido como “lei Dilma/Aloysio”, por ter sido proposta pelo Executivo e relatada pelo senador tucano Aloysio Nunes Ferreira. Duas pessoas que, por uma dessas ironias que só no Brasil, já foram enquadradas como terroristas por leis brasileiras…

Do jeito que está redigido, esse projeto de lei atroz permite enquadrar manifestações como terrorismo e cria a noção absurda de terrorismo contra coisas, visando provavelmente vitrines de bancos e concessionárias, que a gaiatice de anarquistas tem gosto em alvejar. O projeto extrapola em muito as exigências de tratados internacionais que justificam sua existência.

A se confirmar a explosão de afetos anunciada para 2016, o que se pode esperar da combinação entre conflagrações abertas e esse projeto que se diz antiterrorismo e tem todas as chances de ser aprovado logo no primeiro semestre? Quem seriam os primeiros enquadrados nessa nova lei?

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Dada a sanha punitivista do Judiciário brasileiro, o apetite ilimitado das forças ditas da ordem para a pancadaria, o quadro político de tensionamento até o limite da resistência do sistema, somada a uma crise econômica que atinge em cheio uma juventude que já demonstrou capacidade de mobilização, quanto tempo vai demorar para que a lei seja, de fato, aplicada? Como a classe média do “tem que prender, tem que matar” receberá essa aplicação, e mais: como a mídia a noticiará? Como nossos juízes, de péssima fama, vão interpretar essa lei?

As distorções de um sistema social manco, que começam em Brasília, alcançam, como se vê, o chão de todas as nossas cidades. Assim, o que decidirá o destino do país para 2017 e além não é realmente a conclusão do processo de impeachment, tampouco o avanço da operação Lava Jato. É claro que ambos esses vetores são potentes e importantes. Mas, no limite, se os ventos continuarem soprando na mesma direção – e tudo indica que vão continuar mesmo, até mais intensos –, o que vai decidir nosso futuro vai ser a atuação conjunta dessas duas válvulas. Ambas já dão mostras de estarem prontas e ansiosas por atuar. O que cabe à cidadania, no frigir dos ovos, é encontrar jeitos de emperrar ou subverter seus mecanismos.

greve paraná

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O impasse e os impasses

Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais

Caetano Veloso

Desculpe usar jargão; não vejo outro jeito para expressar meu ponto de vista sobre o cenário político brasileiro, com suas passeatas, seu Congresso tenebroso, seu fisiologismo encastelado, seu presidencialismo em migalhas; é que me parece existir um pano de fundo nebuloso para tudo que está acontecendo, e só consigo resumi-lo com a seguinte frase: o Brasil está se desindividuando. Agora vou ter que me dar ao trabalho de explicar o que quero dizer com isso, mas, numa tentativa provavelmente frustrada de segurar o leitor pelos parágrafos abaixo, já adianto que o argumento só vai ficar claro ao final…

Tudo parte de uma pergunta, que pode ser desdobrada em várias: será que não estamos vivendo um período em que a normalidade se tornou impossível? Será que os procedimentos cristalizados há séculos, que se renovam periodicamente, respondendo à sucessão dos períodos históricos, não estão começando a sofrer para fazer essa renovação? Será que os esforços dos nossos caciques patrimonialistas para dominar de cabo a rabo o plano social e o sistema político não seriam uma reação à caducidade das próprias estruturas patrimonialistas?

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É claro que essas perguntas derivam de uma mera intuição, mas essa intuição vem vibrando cada vez mais intensamente de uns tempos para cá. Já há alguns anos, em conversas e entrevistas que tenho feito – por motivos em geral profissionais, mas nem sempre – com sociólogos, cientistas políticos, historiadores e até economistas, o tema dominante tem sido a crise da representatividade, os impasses políticos, os nós que parecem impossíveis de desatar. Acredito que essa crise não é mais segredo para ninguém.

Mesmo assim, um subtexto perpassa essas conversas, e nele algo como um otimismo se deixa entrever. De diferentes maneiras: seja porque o comportamento dos motoristas é menos grotesco do que costumava ser, seja porque camadas populares estão resistindo mais incisivamente a arbitrariedades, seja porque se espera dos novos consumidores do país uma postura mais pragmática em política, seja por mil outras coisas.

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Lula, para além da sorte

 

O último texto, sobre a sorte de Lula, não foi dos mais comentados na história deste blog, mas pelo visto pode render alguns “espinofes”. Reparei, tanto no que foi comentado aqui, quanto no Amálgama (link), que as principais objeções ao que escrevi recorrem a uma lista de coisas que “Lula não fez”. Coloquei a expressão entre aspas porque me incomoda bastante o velho cacoete de dizer “tal prefeito fez isso”, “tal governador fez aquilo”, como se a administração pública e a política fossem um jogo de tabuleiro. Mas essa é só uma divagação, não é disso que vou falar. Continuar lendo

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Um repórter, finalmente!

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Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.

Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

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