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O impasse e os impasses

Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais

Caetano Veloso

Desculpe usar jargão; não vejo outro jeito para expressar meu ponto de vista sobre o cenário político brasileiro, com suas passeatas, seu Congresso tenebroso, seu fisiologismo encastelado, seu presidencialismo em migalhas; é que me parece existir um pano de fundo nebuloso para tudo que está acontecendo, e só consigo resumi-lo com a seguinte frase: o Brasil está se desindividuando. Agora vou ter que me dar ao trabalho de explicar o que quero dizer com isso, mas, numa tentativa provavelmente frustrada de segurar o leitor pelos parágrafos abaixo, já adianto que o argumento só vai ficar claro ao final…

Tudo parte de uma pergunta, que pode ser desdobrada em várias: será que não estamos vivendo um período em que a normalidade se tornou impossível? Será que os procedimentos cristalizados há séculos, que se renovam periodicamente, respondendo à sucessão dos períodos históricos, não estão começando a sofrer para fazer essa renovação? Será que os esforços dos nossos caciques patrimonialistas para dominar de cabo a rabo o plano social e o sistema político não seriam uma reação à caducidade das próprias estruturas patrimonialistas?

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É claro que essas perguntas derivam de uma mera intuição, mas essa intuição vem vibrando cada vez mais intensamente de uns tempos para cá. Já há alguns anos, em conversas e entrevistas que tenho feito – por motivos em geral profissionais, mas nem sempre – com sociólogos, cientistas políticos, historiadores e até economistas, o tema dominante tem sido a crise da representatividade, os impasses políticos, os nós que parecem impossíveis de desatar. Acredito que essa crise não é mais segredo para ninguém.

Mesmo assim, um subtexto perpassa essas conversas, e nele algo como um otimismo se deixa entrever. De diferentes maneiras: seja porque o comportamento dos motoristas é menos grotesco do que costumava ser, seja porque camadas populares estão resistindo mais incisivamente a arbitrariedades, seja porque se espera dos novos consumidores do país uma postura mais pragmática em política, seja por mil outras coisas.

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A classe mofadinha

Não posso deixar de compartilhar as citações abaixo, colhidas de entrevistas que fiz ao longo das últimas semanas para uma matéria sobre o consumo de cultura na classe C (a matéria saiu hoje). Elas deixam uma pulga atrás da orelha sobre o que é criar arte e cultura num país que redesenha sua pirâmide social:

Quem tem o volume de dinheiro dita as tendências. Hoje, o dinheiro está com a classe C. O que mais se vê agora são jovens louros, brancos e ricos usando ‘dreadlocks’ no cabelo. Os criadores de moda, de arte, de vestuário, de comportamento, passaram a vir de lugares que ontem eram guetos, não mais da elite.

Renato Meirelles, da consultoria Data Popular 

A arte do centro está escassa. Falta criatividade e originalidade de criação e promoção. A periferia encontrou, em diversos meios alternativos e acessíveis, uma forma de produzir, criar e promover com criatividade. Isso faz com que a arte da periferia ganhe respeito e espaço, para que os consumidores e produtores culturais se tornem capazes de pensar em novas formas de empreendimento artístico.

Marcão baixada, rapper
O ‘hype’ está em olhar o que está fazendo a classe C. A classe A está meio mofadinha e a classe B está deslocada. Não conseguem dialogar com as populações que estão subindo.  A barreira cultural está destruída. As classes abastadas dependem da nova classe média para viver. É o principal mercado consumidor e fonte de mão-de-obra. Não é mais possível fortalecer barreiras. A classe alta quer marcar sua diferença, mas essa diferença pode lhe fazer muito mal, isolando-a dos verdadeiros circuitos de produção de riqueza.
Ana Paula Kuroki e Laura Chiavone, publicitárias
Deixo os comentários a cargo de quem tenha algo a comentar.
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FHC entre o povão e a contradição

Como é pobre a celeuma em torno do artigo de Fernando Henrique! Debater se o homem propõe ou não que o partido dele “abandone o povão” e se concentre na classe média, como se fosse algum absurdo haver partidos de classe média… Um texto inteiro poderia ser dedicado à preferência do brasileiro pela polêmica mesquinha, até mesmo na política, onde as discussões deveriam ser mais penetrantes e corajosas diante da aporia inescapável (sim, a política, enquanto arte, é o bailado numa pista de aporias). A algazarra em torno do texto fernandino é um claro exemplo dessa mediocridade escolhida. Valeria bem mais a pena, por ora, destrinchar o artigo, porque ele expõe o impasse em que se enreda, com muito gosto, o partido de que o autor é presidente de honra. Façamo-lo.

Nosso ex-presidente entende seu texto como um raio-x das insuficiências da oposição, especificamente o PSDB, e uma proposta de reorientação. Entre circunlóquios, lugares-comuns e interpretações bem livres da história recente do país, FHC acaba dizendo, um pouco sem querer, algumas coisas bastante verdadeiras. Se fossem ditas por querer, seriam talvez dolorosas demais para os tucanos e seus correligionários, porque revelam em filigrana que as diretrizes peremptórias que FHC delineia para seu partido, ora, são simplesmente o que o partido, tal como se organiza hoje, não poderá nunca realizar. Em outras palavras, Fernando Henrique atirou no que viu e acertou no que não viu. Só que, como estamos falando de política, o “ver” significa “querer ver”­ – é uma maneira de recortar a realidade de um universo político, tornando-a um discurso coerente, mas coerente segundo determinados pressupostos – e o “não ver” significa “recusar terminantemente, a ponto de não poder ver”. Continuar lendo

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O Brasil desenvolvido – esboço

O que segue foi escrito aos poucos, nos intervalos de uma semana tempestuosa. Não foi revisado e tenho certeza de que está uma bagunça, “longo demais” para a internet e por aí vai. Mas vai assim mesmo, para sair antes que o povo esqueça os assuntos das últimas semanas, e porque as ideias largadas aqui, de qualquer jeito, são importantes para mim.

Lembrei de Jamelão anunciando, em 1997, que 2004 era o sonho brasileiro: “De braços abertos sou o Rio de Janeiro…”. Pois 2004 passou, como passou Jamelão. De lá para cá, falou-se em 2008, 2012, poderíamos falar de 2040 se fosse necessário. Chegamos a 2016 ouvindo a mesma história de que Cesar Maia queria porque queria as Olimpíadas no Rio, depois do Pan de 2007 que rivalizou com a Eco-92 em maquiagem urbana. Ainda deu tempo de o alcaide maluquinho tirar uma onda com a Marta Suplicy e a velha rivalidade com São Paulo, evocando a frase de Vinícius – a beleza é fundamental, talvez a última coisa fundamental neste mundo. Mas bastou Cesar Maia desgrudar da poltrona para que o COI, provavelmente aliviado, abrir o envelope do sinal verde. Coincidência? Provavelmente. Deixeimos o Maluco Beleza para lá, que ele já não conta mais.

Na verdade, dir-se-ia – e agradeço aos céus pela existência da mesóclise – que o mundo está ficando mais esférico. As Olimpíadas no Rio são um indício disso, ao lado da Copa do Mundo na África do Sul e o Oscar para um quase-Bollywood. Parece que já ficou para trás o eurocentrismo do mundo colonial, a bipolaridade do pós-guerra, o choque unívoco de civilizações que Huntington, com sua mentalidade bipolar, esperava. Seria também o fim do Fim da História, se é que houve um começo. A profecia de um mundo de grandes blocos, de que ouvimos falar desde o início da década de 90, começa a se concretizar e não tem volta: nem mesmo o mais poderoso dos ex-impérios da era moderna pode vencer isoladamente, e é bom (para eles) que os britânicos entendam isso de uma vez por todas.

Aliás, os europeus de maneira geral só se dão conta da urgência de algutinar quando uma crise os aperta, como provam os irlandeses, esses adoráveis pinguços. Quando a coisa começa a melhorar um pouco, todo o continente perde de vista o correr da história e se fecha em nacionalismos anacrônicos e já algo ridículos. Sendo assim, vivam as crises! Ao mesmo tempo, os temíveis chineses se esforçam por espalhar contratos com o mundo inteiro, mas sempre de uma posição de dominância que talvez acabe revelando ser seu calcanhar de Aquiles. Afinal, eles empilham gente num território enorme, mas continuam dependendo de alguns apertos-de-mão para não se ver diante de uma massa bilionária de ex-camponeses esfaimados e revoltados. Já os americanos, que passaram oito anos tentando enfiar cubos quadrados em buracos triangulares, agora correm atrá do tempo perdido, acenam para tudo mundo, sorriem e tudo mais, enquanto, em casa, os mais atrasados continuam atirando dardos na efígie de Obama. Eis aí, em poucas palavras, um instantâneo geopolítico do mundo.

Se tivesse tempo e paciência, eu poderia enveredar a falar da turma que está pondo as manguinhas de fora militarmente: indianos, paquistaneses, iranianos, russos. Mas são iniciativas que não têm grande perspectiva de sucesso, porque é cada vez mais improdutivo negociar pela ameaça, particularmente a atômica. Lembremos que é sempre mais fácil ser atingido que atingir e o primeiro a lançar a bomba será também o primeiro a sumir do mapa – e isso vale tanto para Israel quanto para a Coréia do Norte.

Em vez disso, prefiro me concentrar no Brasil, esse país que todo mundo adora, à exceção dos agentes de imigração europeus e dos zagueiros da seleção argentina. Nosso acesso a esse mundo G-20 que nasce é particularmente auspicioso, como todos sabem. A economia cresce, os juros escorregam, a desigualdade começa a ceder, a diplomacia dá boas tacadas, voltamos a fazer o básico, qual seja, investir em pesquisa, ensino e transporte. No lugar de uma grande massa de funcionários públicos mal pagos e sem função, como outrora, temos ministérios e autarquias ocupados por técnicos qualificados como talvez nunca tenhamos tido.

E assim por diante. No mundo inteiro, jornalistas, analistas e todo tipo de gente que gosta de dar pitaco manifestam simpatia por nós. Um aponta o país como contrapeso aos EUA na América Latina. Outro se admira de nosso potencial energético renovável. Outro ainda louva a firmeza demonstrada perante a quartelada de Honduras. Muitos lembram a iniciativa de valorização do G-20, ponto culminante de uma idéia de não-alinhamento que começou há décadas mas, até hoje, tendia a só patinar. Parece que tudo vai muito bem para Pindorama – e esse apelido talvez esteja a caminho de desaparecer. Quem sabe?

É tentador dizer que estamos diante de uma oportunidade de desenvolvimento de uma dimensão que jamais conhecemos. Parece mesmo fantasiosa a ideia de um Brasil desenvolvido, rico e justo, não mais o país do futuro, mas um verdadeiro – como é mesmo que se diz? – global player. Mas a verdade é que já vivemos situações mais ou menos parecidas, sim. Oportunidades de subir alguns degraus na escala da História, tivemos algumas. Desde uma hipotética industrialização ainda no século XIX até a reforma agrária nos anos 60 e o controle da inflação em 94, deixamos todas pela metade. É por isso que, quando ouço Lula dizer que o Brasil deixou de ser um país de segunda classe para se tornar um país de primeira, logo penso: “Calma, presidente. Você está tomando por fato consumado o que não passa de potencial”.

Não quero soar pessimista. Não estou insinuando a existência de uma maldição de atraso que paira sobre as nossas cabeças. Mas quero, sim, chamar a atenção para o fato de que desenvolver-se envolve muito mais do que o crescimento econômico, o reconhecimento da mídia internacional e a esperança de “ética já” ou coisa que o valha, como se um salto de patamar trouxesse milagrosamente o fim “dessa roubalheira toda que está aí” e o início de uma vida de moleza, espelhada no que muita gente em nossa classe média pensa que acontece no “primeiro mundo”. Na verdade, passar à categoria de país desenvolvido, daqueles em que a desigualdade é pouca e a segurança muita, implica uma mudança radical na vida de um povo, algo de que o brasileiro terá de se mostrar capaz se quiser cumprir a profecia do presidente.

Nos anos 70, um analista do governo americano de nome Herman Kahn – uma figura estranha e interessantíssima, cheia de ideias heterodoxas sobre guerra nuclear, possivelmente um dos inspiradores do Dr. Fantástico de Kubrick – especulou que existiria uma curiosa lei da economia: a partir de um certo patamar de renda per capita, ou seja, com o enriquecimento de uma dada sociedade, as condições de vida da classe média alta se tornam “menos confortáveis”. Esse discreto desconforto resultaria do desaparecimento, ou pelo menos da restrição, de alguns serviços de luxo: babás, motoristas, contínuos (sim, existe uma palavra em português para office boy) e assim por diante. Todos esses passam a estar reservados apenas aos “muito ricos”, categoria bastante restrita, como se sabe.

A experiência é muito traumática e provoca uma sensação algo esquizofrênica em quem a atravessa: a impressão de ao mesmo tempo enriquecer e empobrecer, se é que algo assim é possível. Grande parte das convulsões sociais de 1800-1970 na Europa, por exemplo, podem ser interpretadas assim: gente de nariz empinado que não aceitava a ideia de que seus criados e lacaios acedessem a uma condição de relevância social, leia-se política. Em muitas ocasiões, ganhou quem queria segurar a marcha do desenvolvimento (1848 na Alemanha, 1871 na França); em outras, ganhou quem queria acelerá-lo (um bom exemplo não é europeu, mas pouco importa: a guerra civil americana).

Se for verdade que estamos em pleno salto para o desenvolvimento (e há controvérsias), terá então chegado a hora e a vez do Brasil (nessas horas chego até a simpatizar com Galvão Bueno: Brasil-sil-sil-sil!). Fico me perguntando se conseguiremos fazer essa auto-transposição para um país em que as famílias não “têm” empregada e quem lava a louça são as crianças. Em que “eu estou pagando” não é argumento para justificar abusos mesquinhos de poder. Em que quem serve as mesas nos restaurantes são jovens não necessariamente “desfavorecidos”, que financiam seus estudos pelo trabalho mas nem por isso acham essa condição humilhante ou degradante, muito pelo contrário. Imagine, o Brasil um país em que usar o transporte público é normal e até preferível, por muito mais prático do que se submeter ao trânsito, às multas, ao estacionamento caro. Imagine, o carro já não mais aquele símbolo de status tão paradigmático…

Tudo isso parece muito longe de acontecer no Brasil, é claro. Mas o problema, porque o choque de mentalidades é sim um problema, já começa a se esboçar. Quando, por exemplo, nossa diplomacia começa a ter um peso em decisões de interesse mundial, é preciso que a opinião pública, em casa, tenha acesso às verdadeiras questões que estão em jogo – função da imprensa – e possa se posicionar de acordo com essas questões; e como, repito, são questões de interesse mundial, é preciso que esse posicionamento tenha em vista essa dimensão maior, e não um mero partidarismo de fundo de quintal. Afinal, como sabemos, o alcance da política de um país desenvolvido ou quase desenvolvido transborda largamente suas próprias fronteiras. Sim, isso pode vir a acontecer: a opinião pública brasileira influindo de verdade. Mas para isso será preciso que ela seja de fato uma opinião, e não só um amálgama de impressões dispersas e predominantemente emotivas. Será preciso que ela se baseie em algo estável, ou seja, um ambiente político em que todas as vozes têm peso – sim, porque num país desses, o conceito de “excluído” é vergonhoso.

O caso das Olimpíadas no Rio é sintomático, portanto o catalisador desta breve reflexão (não tão breve, considerando que está num blog). À parte as avaliações objetivas do evento – se é verdade que traz benefícios de longo prazo, se é mais estorvo que bênção etc. –, podemos dividir em dois campos as reações à notícia. De um lado, a euforia com o “triunfo”, com o reconhecimento de nossos esforços, com a integração da América do Sul à festa do esporte. Do outro, a velha história de que, até hoje, tudo em nosso país foi superfaturado e resultou em serviços frustrantes, a começar pelos jogos panamericanos no próprio Rio há dois anos.

Retomando o argumento das exigências de um país que pretende se desenvolver, posso afirmar sem risco de engano que é preciso superar o pensamento de ambos os campos. Não vou ser frio a ponto de deplorar a alegria de ter realizado em 2009 um “sonho brasileiro” declamado em 1997 pela bateria da Mangueira, nem alienado a ponto de fingir que o desvio de verbas não é uma modalidade em que somos medalha de ouro. Mas acredito que não mereço ser lapidado por lembrar que tanto o bom funcionamento dos jogos quanto o bom uso do dinheiro, mais quaisquer benefícios que o evento possa trazer, dependem de nós e apenas de nós.

Em outras palavras, a primeira vítima de um Brasil desenvolvido (a esse ponto ainda profundamente hipotético, não vamos perder de vista) será esse velho fatalismo que nada mais é, na verdade, do que conservadorismo disfarçado. Uso aqui conservadorismo num sentido talvez errado: não é o ser conservador no sentido de defender antigos valores morais, sociais, políticos, econômicos – alguns dirão “ser de direita” –, mas de agir, talvez inconscientemente, para manter mesmo aquilo que em nossa sociedade é vício e reconhecemos como tal. Isso inclui o ódio rancoroso contra “os países ricos” que, mal disfarçado, está por trás da euforia de muitos, a começar pelo presidente, com o “Rio 2016”.

Mas é mais manifesto nesse tal fatalismo, cujas principais vertentes são, por um lado o “todo político é ladrão” e, por outro, o “todo favelado (ou pobre, se preferir) é ladrão”. A primeira frase é mencionada com uma frequência razoável e não está tão longe da verdade. Mas, embora poucas pessoas não-fanáticas entrem para a vida política sem querer tirar um benefício pessoal, uma declaração tão peremtória acaba não servindo a outro propósito senão justificar a alienação voluntária. Sabendo que “todo político é ladrão”, temos uma boa razão para não nos metermos nisso. Ficamos cuidando da nossa vida e, quando passamos nas Cinelândias da vida, deploramos aqueles grupos de pessoas mal-intencionadas com seus cartazes e buzinas diante da Assembleia. Sim, porque, se estão dialogando com políticos, só podem ser mal-intencionados…

A vertente oposta é menos evidente, já que não pega muito bem dizer que “todo favelado é ladrão”. Mas é o que pensa muita gente na classe média, que não poupa nem a própria empregada doméstica, “lá em casa há 20 anos” mas vigiada bem de perto. Mesmo quem, muito pudico, não afirma que “todo pobre é ladrão” imediatamente presume que o carro de alguém com “cara de favelado” (sic) só pode ser roubado ou comprado com dinheiro de origem duvidosa. Esse sentimento difuso, mas bem real, é consequência de uma configuração social em que “pobre” é um conceito que vai muito além de “pessoa com renda baixa” e implica de fato uma outra categoria humana, outra casta, outra classe de seres humanos. Coisa de antigamente, aliás, o mundo inteiro foi assim pela História quase inteira. Mesmo o uso da língua é diferente entre essas classes; os de dentro zombam do “falar errado” dos de fora, que, por sua vez, tentam caprichar quando se comunicam com seus “superiores” e acabam só produzindo mais motivo para chacota. Quem não reconhece, nisso, o Brasil? Pois bem, somando tudo, temos que “todo político é pilantra, todo pobre é ladrão, fala errado e tem que saber o seu lugar”.

Pois bem, não poderá existir “o lugar do pobre” num Brasil que se pretenderá desenvolvido. Tomando “lugar” no sentido literal, desfavelizar é fundamental mas é pouco e teleféricos não vão apagar esse que é um dos maiores símbolos da nossa fratura social (o termo é um galicismo, mas funciona). Num país desenvolvido, a diferença entre ricos, pobres e classe média é quase inteiramente quantitativa, em vez de qualitativa. É uma diferença enorme, claro, mas bem mais fluida e menos cruel. Paralelamente, não pode haver lugar em nosso imaginário Brasil desenvolvido (ou qualquer outro país, aliás) para o dar de ombros político: exultar com qualquer piada ridícula que ironize o dedo perdido do presidente e lamentar que seja possível uma ação governamental justa e adequada, a não ser as que me beneficiem direta e particularmente. A emergência de novos interesses e opiniões, novos pontos de vista, novas exigências de gente que até então não tinha nem voz, nem perspectiva, nem visibilidade, transforma o jogo político numa roleta com incontáveis casas. Para todos os grupos, o interesse e a participação políticos, seja na forma de reivindicações, seja pela administração, tornam-se imprescindíveis, para não dizer inescapáveis. O espaço público organizado (ou seja, a política) é o meio de interação de sociedades “desenvolvidas”, da mesma forma como o Bope e congêneres são o meio de interação de sociedades atrasadas.

O que tem de especial no “sonho brasileiro” que Jamelão cantou não é a perspectiva de que se torne realidade. Essa, sempre tivemos e sempre frustramos, porque o Bope continua sendo mais fácil do que a política, principalmente para quem comanda as bordoadas em vez de levá-las. A diferença, pelo menos até onde posso senti-la, é um pouco mais de interesse, um pouco mais de exigência, para que o futuro de fato se torne presente, como se tem falado. Organizar jogos olímpicos é um pálido exemplo disso. Pálido, mas com enorme cartaz. Sem uma gestão competente, fruto de uma determinada capacidade de organização coletiva (leia-se política), é certo que o evento não decola. Velhas perdas de tempo, como o fatalismo já mencionado, o bairrismo e o espírito de porco de quem prefere puxar papo pelas reclamações, deixam de ser excentricidade nacional para se revelarem os estorvos que realmente são. Só por isso, a perspectiva do “Rio 2016” já é, pelo menos potencialmente, algo a celebrar.

De maneira geral, o que me deixa razoavelmente otimista não é nem o pré-sal, nem a Copa, nem as Olimpíadas, nem a política externa, nem o PAC, nem o editorial do Clarín, do FT ou do NYT. É, sim, uma percepção difusa de que as gerações mais jovens, no país, têm um interesse maior na administração da coisa pública, no planejamento urbano, em projetos de desenvolvimento de longo prazo. Na esfera federal como em Estados e municípios, começam a ser ouvidos os grupos de estudo e os gestores qualificados, que antes viviam abafados pelo fatalismo político e os lobbies dos aproveitadores de sempre. Quanto tempo isso vai durar, nem imagino, mas é um momento auspicioso, embora longe da panaceia que o Planalto quer fazer crer. Resta ver se não vamos querer sabotar mais uma vez nosso próprio futuro, como já é nosso hábito.

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