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Imagens que não fizeram história (5): a caixa térmica e a máscara

[Prelúdio: escrevi o que segue abaixo entre domingo (31/5) e segunda-feira (1/6). De lá para cá, boa parte do assunto que motivou o texto perdeu relevância, soterrado por eventos mais impactantes e relevantes, como a mobilização anti-racista que ecoa a partir de Minneapolis. Eis aí mais uma maneira pela qual uma imagem pode não fazer história: quando é surpreendida por uma avalanche de estímulos – coisa que, de uns anos para cá, não tem faltado…]

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Manifestações em geral sempre rendem um bom número de imagens interessantes, por bem ou por mal – quer dizer, pelas bandeiras agitadas ou pela fumaça das bombas. Desde 2011, tivemos tantos protestos que pareceria impossível surgir algo digno de nota. Tolice: o campo de possibilidades para que emerja algo capaz de ressoar conosco está sempre em expansão. Considerando a infinita redundância de imagens que nos inundam, seria de se esperar que o universo daquelas que são significantes e informativas estivesse em contração; mas é justamente da atmosfera sufocada em redundância que pode saltar o relevante. Parece que isso ocorreu domingo em São Paulo.

O embate entre neofascistas e antifascistas de 31/5 produziu tudo que costuma se produzir em termos de iconografia de protesto. Bandeiras, punhos erguidos, gente segurando microfone, policial apontando arma, escudos, bandanas, fumaça. Tivemos até algumas novidades bem desagradáveis, como a exibição de tacos de beisebol (velho símbolo anglo-saxão de agressividade) e bandeiras ucranianas de inspiração neonazi. Do ponto-de-vista iconográfico, porém, nada seria novo, a princípio; editores de jornais e revistas poderiam escolher qualquer das imagens corriqueiras de seus fotógrafos ou das agências para ilustrar suas capas.

Mas no próprio domingo, quando os envolvidos mal tinham voltado para casa, em plena indignação pela repressão policial (e o tratamento amistoso à fascista com o taco de beisebol), as redes sociais já tinham elegido uma fotografia como favorita: esta com o entregador de aplicativo (bicicleta? moto?), com a caixa térmica nas costas, máscara de hospital no rosto, prestes a lançar uma pedra, provavelmente contra a polícia.

O gesto, o movimento, a postura do corpo, nada disso tem qualquer coisa de novo e é provavelmente por esse exato motivo que o fotógrafo (Nelson Almeida, da AFP) abriu o obturador nesse momento preciso – e depois escolheu esse clique em particular para editar no computador. De relance, a memória de quem estudou semiótica e a história do fotojornalismo captou a possibilidade de produzir uma imagem relevante não pela novidade, mas pela citação, isto é, pela inserção numa trajetória canônica. Mas é claro que o interesse não se encerra aí: a partir dessa inserção, aí sim, e por causa dela, poderão emergir as diferenças, que tornam essa imagem significativa a ponto de ter conquistado a atenção, mesmo que por poucas horas, das redes sociais – tão inundadas, tão sufocadas por imagens.

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Talvez tenha sido com o maio de 1968 francês que a figura de manifestantes atirando pedras se tornou canônica. Por sinal, a sublevação estudantil da rive gauche forneceu uma série de padrões tanto para protestos urbanos quanto para sua representação nas décadas seguintes. Mas frequentemente capas de livros ou cartazes de filmes sobre o episódio trazem a escolha de alguma das fotografias de jovens se fazendo de catapulta humana, apertados em seus paletós “dandy”.

Desde então, a personagem do jovem que arranca o calçamento e o atira contra policiais ou soldados se tornou uma espécie de ícone do conflito social deflagrado. São abundantes as imagens de rapazes palestinos prestes a lançar uma pedra contra armamentos vastamente superiores – inclusive com o uso de fundas, o que traça um vínculo estranho, que começa no estético e o ultrapassa, entre nosso tempo e o Antigo Testamento.

Gênova, Primavera Árabe, Occupy, praça Taksim, junho, sempre fornecem algumas imagens nessa linha, às vezes muitas. Talvez a consagração do gesto do lançador como síntese da manifestação de rua esteja no mural de Banksy em Jerusalém (“Love is in the Air, or: Rage, the Flower Thrower”), em que o manifestante, de rosto coberto por uma bandana e boné virado para trás, se prepara para lançar flores: o corpo em preto-e-branco, as flores coloridas. Graças à agilidade do estêncil, a imagem se espalhou por paredes e cartões postais de todo o planeta, empapada com o mesmo tipo de ironia que acomete aquele retrato do Che feito por Alberto Korda, hoje quase uma logomarca.

É, de toda forma, um gesto como poucos para atiçar o interesse de fotógrafos e todo tipo de artista fascinado pelo corpo. Rodin, se tivesse vivido um século mais tarde, sem dúvida ficaria encantado com os braços esticados, o peito aberto, as pernas dispostas de modo a lembrar vagamente o “Gong Bu” (posição do arqueiro), e teria esculpido de alguma maneira o manifestante com o petardo engatilhado. Não foi à toa que a personagem se consolidou no imaginário da iconografia política. Se quisermos voltar ainda mais longe, dá para dizer que a figura remete também à antiguidade clássica: o atirador de lança da escultura grega, como no célebre “bronze de Artemísio” do período austero. E foi também uma das personagens escolhidas pelo pioneiro Eadweard Muybridge para suas fotografias quase cinematográficas de decomposição do gesto.

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O entregador de aplicativo não é um estudante da Sorbonne ou de Nanterre, nem um soldado das falanges gregas, nem um esportista. Ou, para dizer a mesma coisa de maneira um pouco mais direta: o entregador de aplicativo é uma figura paradigmática da nossa década. Precarizado, sujeito ao controle algorítmico da economia de plataformas (ou, mais amplamente, a “gig economy”), tratado como empreendedor individual pelo patrão e pela Justiça, serpenteia pela cidade da “big data” atomizada, em busca de boas avaliações e uma remuneração fundada sobre baixas porcentagens do preço das entregas.

A bem dizer, o entregador de aplicativo é praticamente o oposto do estudante da Sorbonne. Mas se uma foto sua, congelado em pleno gesto de preparar o lançamento da pedra, se conecta com essas figuras icônicas e canônicas, sejam históricas ou ficcionais, justamente essa dissonância é que chama nossa atenção. Esta é, digamos assim, a diferença que resulta da repetição, como o isótopo que escapa do átomo. É difícil determinar se a estereotipia do lançador irrompe na nossa realidade ou se é a nossa realidade que irrompe na linhagem estereotípica. O resultado no espectador, em todo caso, é algo da ordem do abalo afetivo, na linha do envolvimento subjetivo que Barthes denominou o “punctum” da fotografia, e que se destaca do contexto objetivo (“scriptum”) em que está representado um episódio ocorrido durante um domingo de protestos.

O abalo afetivo serve para trazer à superfície da consciência e do discurso essa personagem social contemporânea do entregador de aplicativo. Ela possui alguns traços que a tornam particularmente significativa neste momento. Ao longo dos últimos dois anos, tempo em que acompanhamos a chegada da extrema direita ao governo, essa categoria foi frequentemente analisada como sendo a porção da classe trabalhadora que não se abalou com a destruição de seus próprios direitos tradicionais, como classe. Motoristas, entregadores e outros braços da economia de plataforma teriam, supostamente, adotado a ideia de que são de fato pequenos empresários, que mandam em si mesmos e não dependem de ninguém.

É claro que o problema é bem mais profundo. Se a própria perspectiva de emprego com alguma segurança e direitos se esfacela, como tem sido a tendência e não só no Brasil, é natural que quem está tendo que se virar no precariado demonstre pouco interesse em lutar pela manutenção de direitos aos quais nem sequer teve acesso. A desconexão entre trabalhadores tradicionais e membros do precariado tem razão de ser e, além disso, caberia às instituições da classe trabalhadora organizada expandir suas pautas para abraçá-los, em vez de lhes apontar o dedo. Se os precarizados frequentemente acabaram adotando discursos incompatíveis com seu próprio interesse, se muitos chegaram a abraçar o bolsonarismo em algum momento, se não poucos ainda o abraçam apesar de tudo, é um efeito da posição que ocupam nas relações de trabalho e sociais em geral; algo que, pensando bem, não deveria surpreender.

Ao mesmo tempo, esses trabalhadores continuam sendo o que sempre foram, no essencial, aqueles trabalhadores que década após década tiveram que circular nas grandes cidades em situação mais ou menos precária, mas sem ter, efetivamente, acesso à cidade. Gente que vai de portaria em portaria, e não mais longe; ou que entrega documentos importantes na avenida Paulista, sem espiar o que dizem, e passa na frente de seus cinemas, livrarias e centro culturais, sem poder tomar um minuto que seja para visitá-los. O precário circula pela cidade como o sangue por um corpo, mas fora dos horários de trabalho é confinado à sua quebrada. No tempo da economia da informação e da comunicação, uma economia detalhada e instantaneamente logística, este personagem é mais decisivo para o metabolismo social e urbano do que os próprios produtores.

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Esta é a figura que conseguimos ver, tacitamente que seja, quando olhamos para um entregador de aplicativo, de máscara, atirando uma pedra. Do fato de estar carregando a caixa térmica nas costas, podemos deduzir que não foi à avenida, originalmente, para protestar, mas para trabalhar. É claro que uma imagem como esta esconde pelo menos tanto quanto mostra, o que significa que mil outras possibilidades existem: que tenha pensado em trabalhar depois de sair da manifestação, que tenha esticado seu tempo de trabalho para protestar, aproveitando que já estava ali, ou que tenha carregado a mochila consigo só para reduzir o risco de ser abordado de modo truculento pela polícia. Ainda assim, a associação entre seu trabalho – precário, algorítmico, urbano etc. – e a manifestação salta aos olhos: o trabalho foi o passaporte para a cidade, a manifestação e a fotografia.

Vale lembrar também que as manifestações políticas da última década foram reiteradamente criticadas, com razoável dose de razão (mas não toda), por atraírem um público sobretudo da classe média e das regiões centrais da cidade. Como se dizia, as classes mais baixas, os moradores das periferias etc., no geral, permaneciam indiferentes; não tinham acesso ao espaço, nem compravam a narrativa.

Nesse contexto, outra explicação para o abalo afetivo, para o “punctum” do entregador de aplicativo, é que ele seria, graças à representação inscrita na história iconográfica, a exceção ou, melhor ainda, o indício de que as circunstâncias mudaram. Uma correção de rumos, talvez. Em outras palavras: agora, sim, é o povo, o trabalhador, o precário, que está nas ruas contra o governo opressor, e com disposição para enfrentar a polícia e as maltas fascistas… Exagero? Talvez, mas estamos falando de uma sensação, não de um raciocínio.

Seja como for, no dia em que esta fotografia foi feita, tratava-se de uma manifestação em nome da democracia, contra apoiadores do presidente de extrema-direita, que vinham ocupando sozinhos aquele espaço, à sua maneira: com bandeiras do Brasil misturadas a emblemas neonazistas ucranianos, padrões da bandeira americana e da israelense, carros de som, tacos de beisebol (não me conformo com esse taco), gritos por cloroquina. Do lado anti-fascista, a liderança estava nas mãos de torcidas organizadas, sobretudo a do Corinthians – mas também se verificou uma dessas ocasionais confraternização de seguidores de clubes que sempre nos emocionam um tiquinho.

Nesse cenário tão insólito, a imagem que tocou, afinal, o coração dos espectadores foi a do entregador de aplicativo, caixa térmica nas costas, atirando uma pedra. Uma imagem, portanto, com implicações que transbordam a confrontação política ela mesma. E essa é a importância da figura do entregador, percebida subliminarmente por quem se encantou com a foto: está em jogo mais do que a relação entre estado democrático e perigo fascista, entre a população livre e as forças repressivas – não que isso não seja crucial, claro; mas importa muito perceber que estamos tratando das tensões das relações de classe do país como um todo; o destino daqueles que trabalham, ocupam as cidades, tiram delas seu sustento, e carecem do reconhecimento jurídico, institucional, de sua função no tecido social. A imagem é lembrete “do” político, além “da” política, e conclama ao reconhecimento de que é preciso ampliar não só a presença de grupos sociais nas manifestações, mas as próprias pautas. Enfim: é preciso tratar do destino que estamos traçando, enquanto população.

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Há outros pontos, porém. Uma imagem se deixa apreender e analisar por elementos, combinados no seu próprio quadro, ao contrário da cadência linear de um texto. Temos aí a caixa térmica e a pedra (na verdade, dá para ver que ele segura outras pedras, já pronto para iniciar – ou continuar – um bombardeio), que já foram tratadas. Poderíamos também engrenar uma especulação um pouco anódina, mas nem por isso menos interessante, sobre a ausência de um capacete, o que parece sugerir que é um entregador ciclista, não um “motoboy”.

Mas um outro elemento é mais fecundo e instigante, graças à sua ambivalência: a máscara.

Este é um tempo em que a máscara se tornou obrigatória; e pensar que a proibição de cobrir o rosto andava em voga já faz alguns anos (vide a lei anti-véu na França). Mas há pelo menos duas vertentes interessantes para a simbologia política desta máscara específica, nesta fotografia em particular. A primeira é que um objeto de proteção, de cuidado pessoal, de cunho médico, profilático, acabou sendo revestido de um caráter político surpreendente, a partir do momento em que passou a configurar uma expressão de adesão ao isolamento social, à luta contra o coronavírus – por oposição à parcela tresloucada da população, seduzida pelo fascismo, que pretende negar seja a pandemia, seja sua gravidade.

A segunda é que cobrir o rosto se tornou prática recorrente entre manifestantes há algum tempo, tanto para se proteger dos efeitos do gás lacrimogêneo lançado pela polícia, quanto para evitar a identificação pelo Estado. Hoje, por sinal, a vigilância se dá também por algoritmos, constantemente aperfeiçoados, de reconhecimento facial. A máscara, digamos assim, tomou o lugar da bandana. De modo que, nesse objeto simples, feito de pano, dois vetores de proteção se cruzam, dois vetores de sentido político se cruzam, e esses dois cruzamentos também se cruzam entre si.

Mas há mais cruzamentos: como entregador que circula pela cidade cuja população se recolhe – ou deveria se recolher –, o trabalhador se expõe ao vírus. A máscara que o protege da contaminação, tanto quanto possível, também o protegerá, tanto quanto possível, contra o gás que eventualmente será lançado (e foi). A máscara que em outros tempos, em outras situações, poderia levar policiais a tomá-lo por um ladrão, possivelmente com consequências trágicas, hoje são a marca do “cidadão consciente” (não confundir com “pessoa de bem”).

Será que a máscara o protege de ser reconhecido, caso a imagem seja vista por algum representante da empresa-aplicativo em que se inscreveu para ser entregador, e que lhe cedeu (vendeu? alugou?) a caixa térmica? Será que, ao fotografá-lo, o profissional da France Presse o colocou sob risco de dispensa, comprometendo talvez o sustento de seus familiares, o pagamento de uma faculdade ou de um tratamento médico? É tão mais fácil escrever sobre uma imagem, especular sobre seus sentidos, quando não conhecemos a personagem, quando não sabemos nada sobre ela! No mínimo, podemos ver na máscara um punhado de significados possíveis, mas é a própria possibilidade, quando a evocamos, que nos esclarece algo sobre o real.

Também poderíamos nos concentrar no próprio fato de ele estar portando a caixa térmica. Vamos imaginar por um momento que se tratasse de uma mochila comum, contendo roupas e chuteiras usadas, ou livros e cadernos, ou um tripé dobrado e várias lentes. Ele continuaria com ela nas costas, atrapalhando seu movimento, fazendo peso? Será que ele tem medo de deixar a caixa térmica no chão e ser roubado ou ter que sair correndo, arriscando-se a ficar sem ela? Será que, perdendo a caixa térmica, ele é obrigado a ressarcir a empresa?

Cada elemento da imagem informa algo, não porque assevere ou demonstre qualquer coisa, mas porque conduz a lançar perguntas como essa. Lançar como lança o lançador? Provavelmente não, já que do outro lado não está nenhum batalhão de choque. Mas, em todo caso, a motivação de transformar os elementos da fotografia em questões que a ultrapassam vem das inquietações que já temos, com o que já conhecemos ou intuímos de nosso mundo e das condições de vida que nele vigoram. Esta é provavelmente a diferença mais relevante entre a redundância das imagens repetidas, que nos afogam, e a ressonância da imagem viva, vibrante, que nos afeta.

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Comecei com essa série sobre imagens falando em “fazer história”, e agora me vejo preso a uma espécie de obrigação auto-imposta – dessas que, supostamente, poderíamos deixar de lado sempre que quiséssemos – de ficar falando em história, quando tropeço em uma imagem que me chama a atenção e quero escrever algo sobre ela neste espaço. E no entanto, como leitor de Flusser, não posso evitar de concordar com a sentença de que a invenção da fotografia inaugurou uma era progressivamente pós-histórica. O tempo das imagens técnicas, diz ele, não é linear como o tempo histórico do texto escrito; tampouco é circular como o tempo mítico da imagem tradicional, à qual voltamos para recordar aquilo que é fixo.

A imagem técnica, diz o filósofo tcheco, emerge da irrupção a-histórica das equações matemáticas no universo da produção de imagens. Flusser se referia à química e à ótica necessárias para produzir uma chapa, mas essa afirmação é infinitamente mais válida para a imagem digital, que é integralmente algorítmica, da fotometria à compressão – sem falar na pós-produção. Ora, a equação está à parte da história, é uma igualdade matemática que, notação à parte, se supõe eterna e universal.

Isto não significa, porém, que a história desaparece com a imagem técnica. Mas significa que a imagem técnica é capaz de manipular, suspender, desviar a história. Pode ser usada tanto para desaparecer com elementos centrais de seu movimento (que Stalin o diga) como para realçar figuras marginais de seu processo, como nas imagens que celebram vitórias post factum: bandeira americana em Iwo Jima, soviética no Reichstag.

Tudo isso para dizer que cabe a quem opera o aparelho definir a relação com a história, assim como lhe cabe determinar entre a redundância sufocante, entrópica, e o sentido informativo, ressonante. Quem aponta uma lente ou monta uma estrutura gráfica define o retorno, o falseamento, o esquecimento, a perpetuação, naquela chapa a-histórica, de um sentido de história.

Esse poder, essa responsabilidade, transparece na imagem do entregador de aplicativo porque com ela o fotógrafo, em frações de segundo, injeta no ato de um trabalhador precário uma carga de significado que vem do cânone, ou seja, da história. O corpo esticado do manifestante sintetiza as tendências do mercado de trabalho, a trajetória dos movimentos trabalhistas, as aspirações dos protestos do nosso tempo, o contraste com a memória de 1968, o tensionamento da democracia brasileira. Mas isto tudo só ocorre porque sua imagem, por um breve instante, rebateu na lente de um aparelho fotográfico, nas mãos de alguém que tinha a bagagem necessária para saber quando disparar o obturador.

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Outras imagens:

Alguém que não consegui identificar tirou uma foto do lado oposto – quem sabe, da mesma pedra? Ao fundo, vemos uma pessoa tirando foto. Seria o profissional da France Presse?

O bronze de Artemísio (Zeus ou Poseidon, a princípio)

A disposição dos pés na posição do arqueiro (Gong Bu)

Banksy em Jerusalém

O savoir-faire de um sorbonnard

Jovem palestino e sua funda

Muybridge e sua série da “locomoção animal”: 1887

Padrão
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Os vencedores de sempre e o resto de nós

 

Edipo re

Já que a realidade é tão confusa – e a facilidade com que ela se presta a interpretações simplistas é sintoma dessa confusão –, vale a pena tentar tratá-la como se fosse um enredo ficcional. Digamos: como uma tragédia grega, um melodrama burguês ou um poema épico. Ainda não está claro em qual desses gêneros estamos vivendo, e isso vai depender de como agirão os personagens: são heróis trágicos? São bufões? São semideuses?

Houve quem visse qualquer coisa de divino, por exemplo, na postura de Dilma perante os senadores; os deputados, com seus votos disparatados, certamente transmitem uma impressão de ridículo; e aqueles que, de um modo ou de outro, se colocaram contra a conspiração, ainda que se opusessem aos governos petistas, assumiram uma postura – vamos dizer assim – de heróis trágicos.

Já os vilões, esses os temos de sobra.

O enredo ainda está sendo escrito, mas o que pode ser feito desde já é um esboço dos tipos gerais dos personagens, o que está longe de ser pouca coisa, dada a velocidade com que os eventos nos atropelam. Assim, grosso modo, eu diria que os personagens principais são os seguintes: os formalmente derrotados; os informalmente derrotados – e duas vezes; os vencedores que, quando pensarem melhor, vão se descobrir derrotados; os que, nunca precisando lutar, recebem de bandeja todos os espólios.

Fora esses, tem o coro, os extras, os figurantes, os bichos infláveis.

Odysseus

Essa estranha distribuição de papéis pode pelo menos servir para explicar em parte por que tantos de nós – aqueles que algum dia ousaram ter esperança de alguma coisa – estão se sentindo sem referências, imobilizados, pessimistas. Se não dá para negar, noves fora, que atravessamos uma crise “ao mesmo tempo política, econômica, social e moral”, como tem sido dito por quem quer parecer neutro, o que falta mencionar é que tudo isso são componentes de uma conjuntura crítica com jeito de existencial. Não, é claro, no sentido individual, embora cada indivíduo sinta os reflexos dessa crise; está em jogo não simplesmente uma idéia de país, ou a distribuição dos poderes, mas também o vetor dos próximos ciclos políticos.

A crise é tão existencial que está em jogo até mesmo o passado: qual é, afinal, o tamanho do ciclo que se fecha? 14 anos? 28 anos? 86 anos? A resposta para isso depende de respondermos: o que é que está acabando, de fato? O ciclo do PT, a Nova República ou o ensaio civilizatório do último século?

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Como primeiro esboço – e tudo que segue abaixo são esboços em série –, a síntese mais precisa que consigo encontrar aparece na seguinte pergunta: “onde raios estamos?”, o que, claro, se desdobra em outras questões simples na formulação, mas enigmáticas nas implicações: “como raios viemos parar aqui?”, “como raios saímos desse atoleiro?”, ou então: “onde raios vamos parar?”.

São as perguntas de gente que navega sem bússola, flutuando a esmo. Não é por acaso ou por alguma falha moral que os debates em que temos nos metido são tão estéreis, além de fratricidas. É o debate dos desamparados. Também não é casual que movimentos e reivindicações sociais pareçam ter se tornado estéreis, tendo perdido as principais vias de entrada no sistema político, onde se dá a efetividade, do ponto de vista normativo. O poder, que vinha se fechando aos poucos, agora parece ter batido a porta de vez. Quanto esforço de reconstrução, quantos anos serão necessários, para que se abra novamente?

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PARTE UM

Nosso drama

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Por enquanto, vejamos os personagens que mencionei acima, antes que sejam esquecidos. O formalmente derrotado é, claro, o petismo, ao menos o da cúpula, que buscou delinear um campo de embate e, nesse campo mesmo, foi fragorosamente batido, justo quando acreditava alcançar o sucesso absoluto. Em que pesem a dimensão da débâcle, o recurso (de parte a parte!) a táticas condenáveis, o transbordamento da ação política além de seu quadro jurídico, a derrota é formalmente clara porque se pode mostrar rigorosamente o que foi desejado, o que foi alcançado, o que foi perdido. No jogo das alianças e embates com as forças conservadoras da sociedade, o PT achou que levaria a melhor, primeiro nas alianças, depois nos embates. Pois bem, levou a pior em umas e outros. Assim, com o risco de soar cínico, sou obrigado a dizer: é do jogo.

Só que a derrota formal do PT é custosa e não só para seus líderes. Depois de chegar ao segundo turno em 1989, convergiu em torno do partido a imagem de uma esquerda capaz de vencer. Tendo vencido, convergiu ainda mais a imagem de um projeto bem-sucedido, grupo que soube compor com seus inimigos para obter transformações efetivas e duradouras no país.

O quanto havia de real nessa imagem – ou seja, o quanto as transformações são mesmo efetivas e duradouras, ou o quanto a tal composição com as forças retrógradas não foi, na verdade, uma simbiose – ainda está em aberto. Mas já se pode afirmar que a consolidação do PT no poder esvaziou a possibilidade de constituir outras mensagens, outros projetos, outras articulações, capazes de corresponder à diversidade enorme dos desafios que a sociedade brasileira enfrenta. No frigir dos ovos, para não entregar os anéis, o PT entregou os dedos de todo o campo progressista.

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À medida que as circunstâncias mudavam, no mundo, no país, na política, na sociedade, a paralisia provocada por um centro de atração tão irresistível foi se tornando cada vez mais perniciosa. Entre tantas outras chaves de leitura, junho de 2013 pode ser interpretado por esse ângulo: como foi possível um partido tão bem inserido nas cidades e nos movimentos sociais não perceber o transporte público (e seus oligopólios) como um dos problemas mais urgentes do país? Como pôde não aproveitar a oportunidade de investir contra um feudo (supostamente inimigo) tão bem defendido, logo quando havia uma rachadura na muralha? Como pôde se aliar à direita e entregar à própria direita, à mais tosca das direitas, a narrativa da indignação? Provavelmente estava olhando para o outro lado…

Caso diferente é o do personagem (informalmente) derrotado duas vezes. Enfio nesse saco arquetípico os segmentos sociais e os movimentos, grupos, indivíduos, que tentaram atuar à margem ou fora do sistema político institucional; que tentaram, muitas vezes, atuar através desse sistema, até mesmo por dentro dos partidos, dos ministérios. Que encabeçaram projetos e iniciativas emancipadores, só para vê-los rifados por exigência de tal ou tal aliança espúria. Sem sombra de dúvida, é preciso reconhecer que entram nessa categoria muitos petistas – alguns dos quais, hoje, ex-petistas. Foram derrotados, primeiro, pela estratégia de ocupação de espaços do PT, que depois se tornou uma estratégia de cessão de espaços; mais tarde, por se verem sujeitados a um governo de Michel Temer, Alexandre de Moraes e José Serra. Esses têm bem motivo para estar desanimados, porque o pouco que chegaram a efetivamente conquistar está mais ameaçado que nunca.

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O vencedor que vai se perceber derrotado é o eleitor inclinado para os tucanos, aquele que se considera um conservador esclarecido e ainda, até hoje, em pleno 2016, enxerga no PSDB o partido da modernização econômica, das “políticas econômicas sãs” – expressão que tenho ouvido ultimamente e que me soa bem divertida. Passou despecebido a esse personagem, que costuma ser muito trabalhador e, por isso, não tem tempo para examinar o mundo à sua volta com o devido detalhamento, o fato de que ele perdeu a viagem: aquela tal tucanagem… não existe mais. Ele pensa que ainda convive com Franco Montoro e Mario Covas, reencarnados em Marconi Perillo, Aécio Neves e Geraldo Alckmin. Pois sim.

Na verdade, era natural que um partido cuja imagem se associa às elites políticas e econômicas do país, em particular as do maior Estado da federação, se tornasse paulatinamente mais parecido com o grupo social que veio representar. Esse grupo, vale lembrar, não é composto por “empresários schumpeterianos” dotados de admiráveis “instintos animais”, mas por oligarcas, rentistas, patrimonialistas e tudo que tão bem conhecemos da história do país. Esse eleitor, achando que recuperou o governo para a vanguarda do capitalismo mundial, que é como até hoje ele enxerga o período FHC, não vai demorar a se descobrir em uma versão repaginada da República do Café – isto é, quando tiver tempo de prestar atenção ao que ocorre em volta de seu nariz.

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Gostamos de pensar no PMDB como o partido que está sempre no poder e se adapta às circunstâncias, numa representação que coloca o PT como esquerda institucional, o PFL como direita tradicional e o PSDB como direita mais moderninha. Essa representação esquece da tradicional imagem do tucano: aquele que está em cima do muro, esperando para ver qual lado vai se dar melhor e então pender naquela direção. Lembra disso? Recomendo lembrar. A bem da verdade, lamento, mas não existe, hoje, um partido que efetivamente represente alguma “vanguarda econômica” no Brasil, e nem poderia existir: no país do agronegócio latifundiário, do spread bancário e da especulação imobiliária, tal vanguarda não passa de fachada. Aliás, aí está uma especialidade brasileira: a fachada!

A charge foi publicada em inícios de 1907, cujo título é "Uma idéia do Zé para o carnaval: O Convênio de Taubaté". A legenda referente ao desenho é a que segue: " TIBIRIÇÁ: - Força, rapazes! Dos seis mil contos para comprar cafés baixos, quero 2.000 para São Paulo! JOÃO PINHEIRO: - E Minas não há de ficar no - 'ora, veja'! Puxa! ALFREDO BACKER: - Quem… teve Mateus que o embale! A União é mau de todos, e o Estado do Rio é um bom filho… Aguenta! Oh! Upa! ZÉ POVO: - Xi!!! Com que gana eles dão à bomba! Que valem economias, impostos, sela à barriga, se o 'melado' corre assim para os Estados?! E nunca mais volta!… Uma idéia: vou lembrar este quadro para um carro carnavalesco; mas faço questão de ser representado… por uma besta! "

Resta falar dos verdadeiros vencedores, aqueles que sempre saem por cima, os autênticos “donos do poder”, para usar a expressão de Raymundo Faoro. Esses não tiveram do que reclamar sob FHC, Lula ou Dilma; dominam o Judiciário sem grande oposição (com seus juízes que se ofendem quando lembrados de que não são Deus); disseminam tranqüilamente sua mensagem de ódio social e desprezo à sociedade. Prosseguem com a exploração predatória das terras e, por extensão, dos corpos. Controlam as polícias, mal pagas e formatadas para a brutalidade; ocupam o Legislativo em praticamente todos os níveis da federação (haverá talvez algum Estado ou município que conte como aldeia gaulesa?). Também dominam amplamente os meios de comunicação – a propósito, por esses dias o STF esteve para votar a posse de veículos de mídia por parlamentares; como andará a obrigatoriedade de publicação dos balanços, hein?

E agora podem também contar com a cúpula do Executivo Federal. Não custou muito: bastou uma conspiração contra gente incapaz de contê-la, sob os aplausos dos nossos “esclarecidos”.

Parabéns aos envolvidos!

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Quase todo mundo sabe de cor e salteado que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, mas não parece estar claro o que isso implica em termos sociais e, principalmente, políticos. Fala-se em desigualdade como se fosse meramente uma questão de renda, poder de compra, acesso a bens. Por sinal, é sintomático que os avanços sociais da última década tenham estado tão concentrados justamente na questão do consumo – o que não significa que sejam ilusórios, como já mencionei em outros textos.

A manifestação pecuniária da desigualdade é um mero sintoma; não é nem causa, nem efeito, sobretudo em se tratando de um sistema social, em que a causalidade é circular. Miséria, doenças parasitárias, saneamento deficiente, analfabetismo, raquitismo, periferias supersaturadas, subemprego, violência, nada disso são “efeitos” da desigualdade; são seus componentes, suas faces, como as faces de um poliedro. O mesmo vale para a ostentação, a humilhação de subordinados, a corrupção, o desprezo à lei, a sonegação. Todos esses aspectos se alimentam e justificam mutuamente, compondo o quadro da desigualdade e da lógica política e social do Brasil. Esse quadro remete ao que há de mais decisivo para o que vem por aí: é o momento crítico desse retrato, com a oportunidade de recompor suas poucas rachaduras, que está em jogo para o grande vencedor.

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Então poderíamos perguntar: como se relaciona essa distribuição de papéis na nossa dramatização nacional com aquilo que chamei, acima, de crise existencial? Em grande parte, a crise decorre do fato de que todos os segmentos sociais que efetivamente quiseram alguma coisa, que tiveram algum projeto de mudança, alguma idéia para o país, se não acabaram de mãos abanando, acabaram dando de cara com um paredão. Para usar uma imagem meio poética, meio cafona, podemos dizer que a parede em questão é o muro da fortaleza dentro da qual os verdadeiros “donos do poder” (“classe dominante”, “oligarquia” etc.) tomam seu champagne, guardados por Deus, contando o vil metal.

Parece que sempre foi possível contornar esse muro de alguma maneira, ocupar algum espaço do lado de cá, satisfazer um punhado de demandas com migalhas, fazer alguma composição, acomodar interesses, empurrar mais para adiante uma crise mais séria, possivelmente violenta: um verdadeiro confronto social. Agora, parece que isso não é mais possível. Ninguém vê mais uma saída como essa, porque não estamos nem nos anos 20, do tenentismo, nem nos 50, do juscelinismo, nem nos 60, das reformas de base, nem dos 80, quando se fundou o partido de massas que ora implode.

Ninguém parece enxergar nada que corresponda a essas nossas figuras históricas, exceto por pequenas fagulhas, como eventualmente o movimento secundarista do ano passado. Mas esse movimento, como qualquer outro, para ter mesmo efetividade, precisaria poder desaguar em estruturas mais firmes, concretizar-se de alguma forma. Essa concretização, que dependeria de articulações hoje indisponíveis, dada a implosão dos grupos mais progressistas oriundos da era da redemocratização (incluo aí os personagens tucanos), é o que as pessoas não têm conseguido enxergar. Isso justifica, ou ao menos explica, a pasmaceira, a angústia, o pessimismo, a crise existencial.

Explica, inclusive, a derrota próxima dos grupos que se crêem vencedores.

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Passando os olhos pelos diagnósticos do presente disponíveis na imprensa, na academia e na internet, posso dizer com razoável margem de segurança que qualquer análise que se pretenda séria – isto é, que seja mais do que torcida – enxerga nosso momento como algo que vai muito além do “empessegamento” de Dilma Rousseff. Assim, alguns dos nossos melhores observadores têm notado no derretimento político do país a marca dos estertores da Nova República, ou seja, aquela que se fundou com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Há vários artigos sobre o tema, mas o mais completo (e afinal, também o mais extenso) é provavelmente o de Marcos Nobre na revista Novos Estudos.

Em resumo, o argumento ressalta o fato de que o arranjo político do período, pelo qual uma bipolaridade PSDB/PT comandaria e controlaria um grande pântano de fisiologismo (essa é a descrição de Nobre), se desmilingüiu, na medida em que o petismo foi implodido por ataques externos e inapetência interna, enquanto o tucanato se tornou um apêndice um tanto caricato do pântano que acreditava ser destinado a controlar. Esse arranjo vai além das relações entre o Legislativo e o Executivo, está aí Gilmar Mendes que não me deixa mentir.

Por esse prisma, Sergio Machado tinha razão, parcialmente ao menos, ao dizer que “o mais fácil é botar o Michel”, em conversa com Romero Jucá sobre as tramóias que dariam cabo da operação Lava-Jato. Jucá, por sinal, deixa claro que era preciso trocar de governo, e isso foi feito. Assim, o esperado de um governo Temer é alinhar todos os poderes e todas as forças do patrimonialismo estamental, deixando de fora, primeiro, o PT (jogado aos leões?) e, em seguida, a sociedade (que, vamos convir, sempre esteve de fora e, em geral, não se incomodou). A tese da crise da Nova República, porém, afirma que essa tentativa implica mais do que um simples acordão para livrar nossos fisiologistas da Polícia Federal: implica o fim do arranjo político instaurado nas últimas três décadas. Resta saber: cria um vácuo? O que ocupa esse vácuo?

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Um detalhe interessante: se olharmos em retrospectiva, podemos dizer que cada governo eleito depois da Carta de 1988 teve como mote algum tipo de transformação profunda no país (traço também sugerido no artigo de Nobre). A começar pela própria CF, que recebeu o apelido de “constituição cidadã”, em certa medida porque estava expresso nela um desejo de consolidar, na letra fria das normas, a cidadania à qual os próprios cidadãos nunca puderam ter acesso efetivamente – e isso não é pouca coisa, como temos visto nos últimos anos.

Pensemos no governo Collor, que, conservador como era e oriundo das piores oligarquias, escancarou a economia como estratégia de transformação de um empresariado industrial dependente das reservas de mercado. O governo Fernando Henrique, mesmo se esquecermos o que ele escreveu, foi dedicado à modernização econômica e financeira do país, concorde-se ou não com o que significava essa modernização. Havia ali a idéia de transformar a gestão das finanças públicas em todos os níveis da federação, mesmo que à custa da asfixia dos governos estaduais – e essa asfixia também pode ser lida como estratégia para esvaziar coronelatos.

O governo Lula, por sua vez, ressaltava uma transformação social que ia muito além da transferência de renda e da valorização do salário mínimo; a criação de universidades, a instituição de cotas, os pontos de cultura, têm um papel importante aí. Já o governo Dilma tinha em seu início, não nos esqueçamos, uma promessa infelizmente frustrada de recuperação da taxa de investimentos, o que, se bem executado e somando-se às transformações anteriores, poderia mudar profundamente a dinâmica da economia brasileira. Poderia, a rigor, realizar a parte estritamente econômica do projeto de 1988. A péssima leitura das dinâmicas do capitalismo global condenaram o projeto, é claro, além da inabilidade política e do erro em crer que era possível uma verdadeira transformação sem quebrar a espinha dos “donos do poder”. Mas o que interessa a este texto é o discurso da transformação e do otimismo.

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O período que conhecemos como “Nova República”, precisamos ter isso em mente, carrega consigo algo como uma “missão histórica”, se é que existe tal coisa. Podemos chamar também de “ambição implícita” ou “possibilidade única”, se for o caso. Imaginou-se ali um Brasil para além da dominação oligárquica que nos persegue como república desde o 15 de novembro, apesar de todas as falhas.

Creio que uma leitura cuidadosa do texto constitucional, dos debates durante a constituinte e dos movimentos sociais ativos ao longo dos anos 1980 poderia chegar a uma demonstração de que a verborragia e as incongruências da Carta Magna cristalizam uma síntese do país, com todas as suas complexidades: o varguismo, as oligarquias, as demandas sociais de um povo desamparado – aqueles aos quais Collor iria se referir como “os descamisados”.

Foi com esse pano de fundo que se sedimentaram as referências do período, essas que agora racharam e fazem água. Tanto as tentativas de tornar realidade os dispositivos constitucionais como os ataques a eles (por exemplo, o parasitismo dos planos de saúde sobre o SUS) se organizaram dentro desse eixo.

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Pois é a partir desse quadro que emerge um novo governo – até outro dia interino. Não tendo sido eleito (ou seja, seu projeto não tendo sido chancelado pelas urnas), esse governo não poderia ser simplesmente associado a uma etapa a mais na seqüência dos parágrafos anteriores (o governo de Itamar Franco, por exemplo, está ausente da listagem). Que sua chegada ao poder tenha se dado por vias tortas, claramente ilegítimas, golpe parlamentar ou não, só reforça seu caráter de tentativa de restauração, na linha do Congresso de Viena. Só o que faltou, no nosso caso, foi uma autêntica revolução anterior…

Colocada dessa forma, a imagem que emerge do governo Temer é a de um Executivo que, depois de quase 30 anos, não quer transformar nada, antes muito pelo contrário. Notemos uma coisa interessante: do “Avança Brasil” ao “País de Todos”, das “cinco metas” de 1994 à “aceleração do crescimento” e daí para a pouco sincera “pátria educadora”, nossos slogans das últimas décadas foram todos muito otimistas, refletindo o “momento singular” da Nova República. Pouco importa que também sejam artificiais e enganadores, pelo menos quando os comparamos ao tenebroso e pouco imaginativo “Ordem e Progresso” em que fomos parar – uma divisa positivista e superada, uma expressão do século XIX, para um governo afinado, precisamente, com o século XIX (resta ver sua relação com o próprio positivismo).

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É claro, há quem se iluda com a mensagem de “abertura aos mercados” que eventualmente o novo governo envia como sinalização para os segmentos encarapitados na Berrini. Essa mensagem é flagrantemente falsa, como se vê pelo déficit previsto para este ano, a simpatia pelo aumento do Judiciário e o estranhamento entre o PMDB e o PSDB, mantido, por enquanto, em níveis controláveis: não vai ser assim por muito tempo.

Se há pontos de convergência entre o interesse dos mercados (como os entendem os profissionais que neles atuam, não os que os controlam) e o das nossas elites oligárquicas, esses são pontos casuais, que geralmente dizem respeito ao controle direto sobre a distribuição dos benefícios da atividade econômica: previdência, negociações coletivas, saúde pública, infraestrutura. E acaba por aí: coisas que de fato tornariam o mercado mais eficiente, como aumento da concorrência, um sistema tributário mais equânime, uma lei de licitações mais competitiva, uma reforma do Judiciário, investimento em pesquisa e formação, vão ficar para as calendas gregas.

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Não foram poucos os acusadores que, reconhecendo a insuficiência das pedaladas fiscais como causa para a remoção de Dilma, trataram do “conjunto da obra”, referindo-se ao descalabro econômico, ou seja, alta da inflação, recessão, volta do desemprego (creio que a própria Dilma foi a primeira a usar a expressão). Está cheio de gente inteligente por aí achando que vem adiante um ajuste fiscal que reequilibre as contas públicas e nos leve ao nirvana econômico.

Lamento ser o portador de uma mensagem apocalíptica, mas um conhecimento mesmo parco dos mecanismos de retroalimentação inflacionária do Brasil anterior ao Plano Real deveria nos deixar com as barbas de molho. Ou alguém acredita que as promessas de Temer aos senadores e deputados, incluindo diretorias de bancos estatais, investimentos de ministérios e sabe Deus mais o quê, como pagamento pelo voto anti-Dilma, vão sair baratinho? Não se surpreenda se a inflação voltar à casa dos dois dígitos – e os juros reais também. Talvez aí os vencedores ilusórios se dêem conta de quem levou mesmo a melhor…

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De modo geral, se a crise existencial é o ponto em que estamos – não que isso responda a muitas das angústias existenciais que temos que enfrentar –, resta perguntar se é esse mesmo o ciclo que se fecha. Ou seja, se o que está em jogo é a imagem constituída na luta da redemocratização e, mal e mal, cristalizada na Constituição Cidadã. A Nova República.

Essa perspectiva já é mais ampla e mais tenebrosa do que a do mero fim do ciclo petista, é claro. São três décadas, não só uma década e meia. Mas se quem hoje se apropria da quase totalidade do poder é a oligarquia em estado puro, ou seja, os representantes de um modo de poder fechado para qualquer concessão econômica, social ou política, o que está em risco, o ciclo que pode estar se fechando, será ainda mais amplo. Será aquele que se inaugura quando o regime legal passou a tentar incorporar os conflitos distributivos, quando se abriu (um pouco) para uma sociedade mais ampla e mais complexa. O ciclo da década de 30, iniciado sob Vargas.

Isto não significa dizer, é claro, que o varguismo seja algum grande exemplo de progressismo – aliás, um erro das esquerdas no Brasil é continuar a mirar-se em idéias adequadas a quase um século atrás. Está mais do que documentado que o projeto encabeçado de Vargas diz respeito a uma acomodação das demandas das classes industriais e urbanas em expansão no Brasil do século XX. Acomodação a um sistema que jamais deixou de ser oligárquico no seu cerne; algo expresso na célebre frase do mineiro Antônio Carlos: “façamos a revolução antes que o povo a faça” – às vezes o Brasil consegue ser assustadoramente sincero, em especial quando é questão de desfaçatez…

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Ainda assim, o que a história do último século nos ensina sobre o varguismo é que ele foi, ao mesmo tempo, insuportável e insuperável para seus oponentes (para seus defensores, me parece que virou um fetiche, mas isso é tema para outra hora). Esse duplo caráter deve significar alguma coisa e precisaria ser estudado com mais afinco. Senão, vejamos: o modelo de Vargas, ou mais especificamente seu modo de regular as relações de trabalho, era o alvo central nas crises políticas de 1954-55, 1960, 1961 e 1964.

Quando enfim tomaram o poder com o golpe civil-militar, as forças mais conservadoras do país miraram na figura de Vargas e em seus herdeiros políticos. Depois de poucos anos no poder, viram que teriam de deixar para lá o projeto de implodir o legado varguista, sobretudo a CLT. A tal ponto que, quando se despediu do Senado em dezembro de 1994, quase uma década depois do fim da ditadura, Fernando Henrique se comprometeu, mais uma vez, a encerrar definitivamente a era Vargas. Privatizações à parte, não o fez – para falar a verdade, também não se esforçou tanto assim.

Insuportável: precisa ser eliminado. Insuperável: não se pode escapar dele. Não ousaria tentar uma resposta a esse problema aqui. Mas acho que o esclarecimento dessa questão-chave na crise existencial que atravessamos passa por entender que, com efeito, as leis trabalhistas são imperfeitas e, em alguns pontos, cruéis. O trabalho no Brasil é regido por dispositivos com intenções que passam longe do benefício ao trabalhador, como o FGTS, que foi desenhado para criar uma poupança forçada que financiasse a industrialização. Sem falar em questões previdenciárias; em favorecimento, por exemplo, ao setor militar, em benefícios extra-salariais que provocam ainda mais transferência para grupos de renda mais alta – magistrados em particular – e outras distorções, que vão muito além da CLT e das “relações entre patrão e empregado”.

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Nesse contexto, não é difícil ver como a reforma trabalhista que deseja o conservadorismo brasileiro nada tem de “modernização” ou “atualização”. Observe-se, por exemplo, que os principais projetos no Congresso em torno do trabalho dizem respeito à terceirização de atividades-fim, negociação individual e prevalência do negociado sobre o legislado, que são, grosso modo, as mesmas reformas que a troika tenta empurrar goela abaixo dos países da zona do euro, para deprimir os salários e “ganhar competitividade” na competição global com países onde o trabalho é quase escravo. Detalhe: nesses países europeus, os salários são muito mais altos que no Brasil; lá, o risco é a perda de poder de compra. Aqui, é a recaída na miséria.

Projetos de lei que de fato combatessem distorções das leis brasileiras do trabalho, ninguém sabe, ninguém viu. Essas leis afetariam uma camada da população, em boa parte composta por funcionários públicos e militares, que ironicamente é muito conservadora e se considera liberal (quando interessa). Com essa gente, um governo conservador brasileiro nunca vai mexer, já que são um de seus principais esteios urbanos. São as pessoas que tanto espernearam, por exemplo, quando trabalhadores domésticos passaram a ter direitos iguais aos seus…

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A questão não está na superação do modelo varguista, bem se vê. Está na manutenção das distorções, que são redistributivas, mas na direção regressiva, de exploração da base. Sempre que se dá conta de que terá de mexer onde não pode, ou seja, nos privilégios de seus apoiadores, o governo conservador recua e as leis do trabalho distorcidas seguem impávidas. Insuportável… e insuperável. Um governo fisiologista como esse que começa agora não vai ser diferente, exceto se as circunstâncias forem diferentes: será que são?

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PARTE DOIS

Até aqui… e daqui por diante.

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Das muitas circunstâncias envolvidas na determinação dos nossos destinos (como raios chegamos aqui; onde raios vamos parar), creio que duas mereçam maior realce. Primeiramente (sim, sim, fora Temer etc.): precisamos entender melhor como, desde o instante em que se anunciou o resultado das urnas em 2014 (tanto para o Legislativo no primeiro turno quanto para o Executivo no segundo), no horizonte do segundo governo Dilma havia um governo Temer, literal ou figurativamente. Note-se: “um” governo Temer, e não “o” governo Temer.

Isso significa que, mesmo enquanto Dilma esteve no poder, o fisiologismo e o retrocesso foram tomando conta de cada vez mais espaços, naquela sucessão insana de ministros tétricos. Não podemos, hoje, estar surpresos quando simplesmente terminam o serviço tomando conta do que faltava, ou seja, a cadeira presidencial. Ao longo desse processo paulatino de corrosão, as forças que poderiam se opor a ele estavam ocupadas demais seja na defesa, seja no ataque a um governo que não tinha mais chances.

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Segundo, apesar dos pesares e do controle quase inconteste que o patrimonialismo estamental sempre exerceu no país, essa concepção de Brasil que o entourage de Temer pretende cristalizar, nem que seja a ferro e fogo, pode já ter se tornado inviável. Seja em razão de mudanças demográficas ocorridas ao longo de muitas décadas, seja graças a avanços obtidos desde a promulgação da constituição (e particularmente nos governos tucanos e petistas), as expectativas e as condições de funcionamento da sociedade brasileira talvez não permitam mais o tipo de dominação e exploração pressuposto por esse regime, e essa pode ser uma janela de esperança. Talvez os grandes vencedores acabem perdendo, afinal.

É por isso que, ao analisar a ascensão da dupla Temer/Cunha, é preciso pensar para além da Nova República. O que está em jogo ultrapassa o estancamento dos avanços civilizatórios introduzidos em 1988. E ultrapassa em muito a mera derrubada do PT.
Vejamos mais calmamente cada um desses dois pontos.

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Primeiro: o que significa dizer que no horizonte do segundo governo Dilma havia um governo Temer? O atual ministério que nos governa (e assusta) estava implícito de que maneira no ministério do governo petista que o precede? Hoje, finalmente está claro que a eleição de 2014 foi uma derrota completa para o PT, uma derrota para a qual a conquista do Executivo foi nada menos do que um agravante. A energia despendida para garantir um segundo turno contra Aécio Neves, em vez de Marina Silva, escorreu por caminhos inesperados (o que não significa que fossem imprevisíveis), indo concretizar-se na eleição dos piores tipos possíveis para o Congresso, seja qual for o critério.

O Executivo teria de se ver desde o início com uma base frouxa e uma oposição empolgada, além de vingativa, já que, desde 2011, a tentativa de enfraquecer o PMDB dividindo o fisiologismo com a ajuda de Kassab deu o resultado que não poderia deixar de dar: fracasso completo. À incapacidade articulativa de Mercadante e sua turma ainda viria se somar (Opa! Em tempos de Temer devemos dizer: somar-se-ia) o fortalecimento de Eduardo Cunha, ainda mais depois da tentativa amadora de evitar sua eleição à presidência da Câmara. Este último, como já advertia o perfil do então candidato a vice-presidente na Piauí em 2010, é “cunha e arne” com o atual presidente-usurpador-que-não-admite-ser-chamado-de-golpista.

Só uma esperteza política muito acentuada poderia evitar a metástase fisiológica sobre o governo daquela que havia começado com a “faxina” dos ministérios.

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A rigor, a única coisa que poderia acontecer de ainda pior do que os eventos deste ano seria a perpetuação do processo de dissolução do governo Dilma. Nesse caso, em 2018 elegeríamos com certeza um Congresso ainda mais retrógrado do que o atual; e o presidente poderia sem sombra de dúvida ser alguém cujo nome não merece ser pronunciado. Nesse caso, o processo seria perfeitamente legítimo e não teríamos nem mesmo o consolo de acusar um golpe. Este era, a rigor, o “horizonte” propriamente dito. O impeachment precipitou a queda desse céu sobre nossas cabeças, com um ar burlesco, uma perspectiva de muita repressão e a nesga de esperança de que seja possível resistir.

Voltando o olhar um pouco mais para o passado, poderíamos dizer que as primeiras nuvens, ainda indivisáveis, desse horizonte temerário começaram a se acumular quando emergiu a figura do próprio Temer. O “mordomo de filme de terror” de ACM ascendeu após “bons serviços prestados” na presidência da Câmara; e apesar da falta de brilho eleitoral próprio, sabe manter a coesão da alcatéia e mereceu por isso a indicação como vice-presidente na chapa montada para 2010.

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Foi o momento em que se consolidou uma escolha no planejamento estratégico petista, atraindo as oligarquias que, pela história de sua fundação, esperávamos que combatesse. O período coincide com a preferência acentuada pelos mamutes (perdão, os campeões nacionais) na economia – na esteira da crise de 2008 – e com o papel inchado de um BNDES incapaz de questionar o sentido da letra “D” no próprio nome. Foi o período em que se apostaram todas as fichas no motor chinês e na condição de fornecedor para os asiáticos do material bruto que alimentava a máquina. Foi o período em que se tentou seduzir a bancada ruralista – em parte, funcionou, como vemos pela tenacidade com que a senadora Kátia Abreu defendeu o mandato de Dilma. Não funcionou o bastante.

Seria coincidência que o país escolheu assumir na divisão internacional do trabalho um papel semelhante ao da Primeira República ao mesmo tempo em que o governo se decidia pela aliança com figuras políticas que remetem a esse mesmo período? Seja como for, ali se substituiu a aliança com o empresariado “pé-de-chinelo” (no bom sentido: gente que rala…) encarnado na figura de José Alencar por uma rendição às oligarquias patrimonialistas do PMDB e quetais, para constituir a “supercoalizão”, aquela contradição em termos cujo único propósito era eleger Dilma e cujo destino inescapável era a implosão.

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Por esse prisma, as ambições formais do governo Dilma eram inviáveis desde o princípio. Com a o fracasso da redução da Selic e da política (improvisada) de desonerações, foi relegada ao milagre do pré-sal e a delírios de empreiteiras – na verdade, “para” empreiteiras, como a Copa, a Olimpíada e, sobretudo, Belo Monte ¬ a ambição que em 2011 tanto se repetia, de elevar a taxa de investimento acima de 20% do PIB. (Ironicamente, o outro presidente que assumiu falando especificamente em elevar a taxa de investimento acima de 20% também falhou: trata-se de Fernando Henrique, que mencionou esse objetivo no mesmo discurso de dezembro de 1994 em que se comprometeu a encerrar a era Vargas.) Mas a variação do preço do petróleo e as investigações contra empreiteiras lançaram a pá de cal nesse último projeto.

É evidente que alinhar-se com a direita em 2013 foi a cereja do bolo, um erro crasso. Desde então, as pessoas mais próximas ao governo se esmeram em marcar aquele momento como a ascensão da extrema direita no país. Um esforço tão bem-sucedido que não podia ter outro desfecho senão confirmar-se. Ou melhor, concretizar-se: a “idéia” realizada no concreto… Será que faz tanto tempo assim que a cúpula petista passou das ruas para os gabinetes, a ponto de esquecer como funcionam as polícias no Brasil? Era tão difícil enxergar o perigo de repetir o discurso de Alckmin, televisões et caterva, taxando toda aquela gente de baderneiro, vândalo, black bloc, fascista e por aí vai? Era mesmo impossível se dar conta de que uma lei anti-terrorismo cairia como uma luva de ferro para a mão pesada de nossa pior direita? Não era evidente que, uma vez aberta a via das ruas e bloqueado o acesso para movimentos populares, a rua não poderia ser tomada por ninguém outro senão a direita? Certamente tudo isso era perceptível já em 2013. Afinal, muita gente percebeu. Mas os nossos personagens, hoje “formalmente derrotados”, preferiram não ver.

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Cito isso tudo para ressaltar duas coisas: primeiro, que a excepcionalidade do momento que estamos vivendo é menor do que pode parecer. Que eventualmente as oposições e o fisiologismo tenham se aliado, decidindo passar além do quadro institucional para retomar o poder, continua sendo terrível e ainda aponta para uma ruptura muito mais grave do que apenas o golpe contra uma presidenta. Mas esse evento era algo inscrito nos caminhos possíveis desde 2014 e mesmo antes, por dentro do governo até mais do que por fora, já que não teria havido manifestações tão massivas contra Dilma sem que atores políticos importantes as tivessem fomentado. (Aliás, por onde anda Paulo Skaf?)

É forçoso admitir, e isso não é nem de longe uma justificação, que o poder transborda a política e a política transborda a lei. Se assim não fosse, um gigantesco algoritmo político-legal daria conta de todos os recados. Temos de ter isso em mente ao fazer a leitura das incongruências dos políticos, de seus acordos, suas alianças e suas interpretações não raro absurdas do texto legal. Um político profissional geralmente reconhece esse dado; aos primeiros sinais de transbordamento, recua, se ajusta, se acomoda. Perante a iminência de ser derrubada, como tem sido dito e com razão, Dilma foi tenaz, foi heróica, foi realmente admirável. É incrível como ela só fala bem sob intensa pressão. E foi tudo isso porque agiu de um jeito como nenhum político agiria. Dilma, que cresceu no aparelho do Estado como burocrata (no bom sentido), não como política eleita, não tem os mesmos compromissos que teria alguém com a ambição de ser mandatária para o resto da vida. A grandeza de Dilma perante os senadores foi, precisamente, a grandeza que o político jamais pode ter. Graças a ela, vimos “em tempo real” o que ocorre quando a política e o poder transbordam a lei. Não é bonito.

A segunda coisa que eu queria ressaltar é que a derrocada do governo Dilma expõe o quanto a arquitetura política da Nova República é – ou era – frágil. Como se diz, o chamado presidencialismo de coalizão induz à contaminação dos governos pelo fisiologismo, mais cedo ou mais tarde levará à compra de votos, garante que os projetos mais urgentes de reformas para o país nunca sejam de fato julgados. A seguir a descrição de Nobre sobre o condomínio fisiológico administrado por um ou outro dois rivais mais – supostamente – programáticos, arraigados realmente em algum extrato social, é preciso que pelo menos um desses “partidos administradores” esteja forte e articulado. Também é preciso que tenha convicção de sua conformação programática.

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Quando esses partidos não conseguem exercer esse papel, o que temos é uma espécie de barreira da Samarco. Se o PSDB se torna um apêndice arrogante das oligarquias e o PT vira as costas para os movimentos sociais para tornar-se um edifício de burocratas, não há nada mais que segure a lama. Inundados, soterrados, sufocados, podemos até manifestar surpresa, mas teria bastado um sobrevôo para perceber que, enquanto tocávamos a vida nas últimas décadas, a sujeira se acumulava. A lama sempre esteve lá, a lama é a normalidade. A vida limpa e tranqüila dos vales é que era a ilusão. O arranjo quase progressista da Nova República se rompeu, ao que parece, mas foi por pressão acumulada, não por alguma intervenção externa.

Os estragos dessa inundação de rejeitos políticos podem ser bem vistos com um enquadramento mais aberto. O grande vencedor, como sabemos, é esse ministério velho, branco, masculino e investigado por corrupção, de que tanta gente já falou. Um retorno à República Velha, eu diria, mas acrescentando: se é que a República Velha chegou a ser superada, realmente. É bem possível que ela tenha simplesmente sofrido mutações, acomodações, rearranjos, para manter-se como paradigma da política brasileira.

Afinal, esse vencedor não precisou de grandes sacrifícios, porque, no fundo, o país sempre foi seu. Bastou uma pequena conspiração e o beneplácito de quem controla nossos oligopólios, no campo, na indústria, nas finanças, na mídia, na pirâmide socioeconômica. A seu lado, o pobre coitado do pretenso vencedor, o iludido, que espera recolher as migalhas que lhe atirarem os oligarcas, contente por trabalhar feito um camelo tendo como único benefício a possibilidade de humilhar alguém que trabalha ainda mais, ganhando muito menos. Alguém que espera do governo fisiologista que faça um ajuste fiscal duradouro…

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Cabe citar, também, que esse arranjo tem seus próprios mecanismos de escape, suas válvulas, por assim dizer, que permitem ao poder das lideranças políticas sobrepujarem o próprio desenho do sistema político e sua fundamentação legal. Em outras palavras, algo intrigante no sistema político da Nova República, e que – importante – coincide com sistemas adotados em países vizinhos, é que ele comporta a possibilidade de que haja golpes que não derrubem o sistema como um todo e sejam traumáticos apenas para quem o próprio sistema quer expelir.

Os cientistas políticos Mariana Llanos e Leiv Marsteintredet cunharam a expressão “presidential breakdown” para se referir ao fato de que, antes de Dilma, eram 17 os presidentes latino-americanos derrubados, de modo mais legítimo ou menos legítimo, desde a onda de redemocratização dos anos 1980. A nossa ex-presidenta é a décima oitava. Criou-se um sistema pelo qual as elites, ou seja, as oligarquias, neste subcontinente tão oligárquico, conseguem golpear e expelir quem não lhes interessa, mas garantir a perenidade do arranjo, ou seja, fechando a válvula. Daí a dificuldade em identificar a presença de um golpe de Estado: a lógica que leva a esse golpe já é enxertada no próprio sistema.

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O informalmente derrotado duas vezes continua gritando, quando tem forças, e agora precisa decidir como reagir à volta do formalmente derrotado ao campo da oposição. Essa é uma decisão difícil: passar os próximos meses exigindo retratações? Abraçá-lo em nome de algo maior, a luta contra o regime fisiológico? Segui-lo no projeto pouco sagaz de reconduzir Lula ao poder em 2018? Não é à toa que, hoje, esse seja o grupo que mais está batendo cabeça.

Por fim: o formalmente derrotado é aquele que fracassou porque, acreditando-se progressista, acabou sendo meramente governista. No frigir dos ovos, nenhum governismo é progressista, exceto em contraste com algo muito mais tenebroso… como um golpe.

* * *

Resta ainda o segundo ponto, que é o mais importante, referente à questão de “para onde raios estamos indo”. É preciso se perguntar se o Brasil que os oligarcas, os fisiologistas (que não são rigorosamente o mesmo grupo, atenção) e o governo Temer têm na cabeça é viável. Como já adiantei, creio que não. Acredito que nem a estrutura produtiva, nem a distribuição demográfica permitem mais o nível de dominação, repressão e arbitrariedade ao estilo da Primeira República que os personagens que emergem com Temer representam. Também não é mais possível o nível de instabilidade social que se verificou nas décadas centrais do último século, porque não há mais dezenas de milhares de migrantes internos fugindo da seca, o índice de analfabetismo é muito menor, embora ainda alarmante, o crescimento urbano não é mais tão acelerado, as massas da periferia não são mais tão desamparadas, desesperadas e desconectadas.

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O Brasil do século passado, mesmo durante a industrialização e o dito milagre, era um país praticamente em equilíbrio malthusiano, caracterizado por subnutrição, analfabetismo e doenças endêmicas típicas de ambientes miseráveis. Além das taxas de natalidade e mortalidade muito altas. Era um país rural e pouco conectado – literalmente: estou falando de estradas e ferrovias, telefones e agências dos Correios. Um quadro perfeito para as formas mais brutais e toscas de dominação.

Embora os avanços tenham sido bem aquém do que precisávamos que fossem, estamos longe desse equilíbrio malthusiano. A mortalidade infantil e a incidência das “doenças da pobreza” caíram rapidamente, sobretudo graças ao SUS. O país é urbano, camadas cada vez mais amplas da população têm acesso a serviços públicos e, com todas as suas limitações, à educação.

Quando alguns Estados perdem 20% ou 30% de sua população (como exclamou Maria Bethania), quando as rodoviárias das metrópoles recebem centenas de milhares de migrantes internos todos os anos, é possível, é até fácil, explorar esse enorme contingente humano até o esgotamento. Os retirantes que, entre os anos 50 e 80, chegavam nas cidades em busca de qualquer trabalho que os mantivesse alimentados eram corpos plenamente disponíveis, sem aspirações, sem ambições.

Quando surgiam bairros e favelas novos nas periferias, eram áreas sem identidade próxima, sem conexão comunitária, sem meios para exigir infraestrutura. Quando milhões de pais e mães achavam um luxo seus filhos saberem ler e escrever, não ambicionavam o ensino universitário, um trabalho melhor do que o pior qualificado, uma casa melhor do que um barraco. Quando as pessoas não tinham nenhum poder reivindicatório, eram obrigadas a suportar se a polícia matasse a esmo nos subúrbios. Esse é o Brasil de “O Homem que virou Suco” e “Bye-bye Brazil”, em que se sentiam tão confortáveis os Temer deste mundo, e no qual até hoje se espelham.

Outra coisa é o Brasil de “Que Horas Ela Volta” e “O Som ao Redor”. Uma parte importante da crise, do ponto de vista social, mais do que político, é que existe um descompasso entre as condições objetivas do país e o modo como ele ainda é administrado, seja na cúpula, seja no dia-a-dia. Aqueles ajuntamentos periféricos surgidos às pressas no século XX são hoje bairros constituídos, embora deficientes, onde vivem pessoas nascidas e crescidas ali, a segunda e até terceira geração. As reivindicações são outras: saneamento, asfaltamento, segurança, equipamentos urbanos (de lazer, saúde, educação, transporte…). Nas quebradas, essas mesmas onde a polícia continua soltando chumbo, pululam as associações de bairro, os coletivos artísticos, os saraus poéticos, os bancos comunitários.

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A mera demografia tem um papel. Não nascem, nem morrem, tantos novos corpos disponíveis para a exploração: pelo mero fato de estar vivo, o brasileiro de hoje vale mais, aos olhos do capital, que seus pais ou avós. A exigência, agora, é pelo direito a ambicionar: qualificar-se, educar-se, galgar degraus na escala social. O jovem urbano brasileiro, o pobre, não entende por que deveria ser um mero corpo disponível para a exploração: doméstica, porteiro, frentista etc. O jovem rural, por sua vez, tem o direito de se imaginar cultivando aquelas terras com dignidade pelo resto da vida, fazer benfeitorias, negociar sua produção no mercado, obter financiamento agrícola; tudo isso, apesar do avanço do latifúndio e apesar das secas.

É claro que não se trata de meros efeitos secundários de uma evolução “natural” das populações. A economia mais estável, os programas de instalação de cisternas, a redistribuição de renda, a ampliação do ensino fundamental, a valorização do salário mínimo, a implantação de universidades em áreas até então isoladas, tudo isso também fez muita diferença e vai continuar fazendo. Por sinal, uma das causas da nossa crise existencial é que teria sido necessário continuar nessa direção, principalmente quando começaram a vir os sinais de que a sociedade estava madura para quebrar algumas barreiras. Não faltaram reportagens sobre as ambições da “classe C”, artigos sobre como os avanços eram só no consumo, só dentro de casa; que lá fora as cidades continuavam atrasadas, que as condições sociais eram um terror. Seria necessário dar o que chamei de “segundo passo”, mas a cúpula burocrática do PT não percebeu e foi formalmente derrotada.

Os sinais se tornaram cada vez mais claros e é perfeitamente evidente que aí está uma das raízes de junho de 2013, que a burocracia petista preferiu ler como geração espontânea de black blocs (avaliação idêntica à de Alckmin e da mídia conservadora, por sinal) e fascistas. No entanto, a maior lição de 2013 deveria ter sido constatarmos o abismo entre esse país em paulatina mutação e as modalidades de exercício do poder. Afinal, mesmo antes daquela explosão afetiva, já se liam cá e lá expressões do problema do acesso à cidade, da qualidade dos serviços públicos e da caducidade dessa nossa extrema desigualdade (que é de renda, de patrimônio, social, racial, de gênero, tudo misturado – não são muitas desigualdades, são muitas dimensões da mesma desigualdade, como eu disse no começo deste texto).

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Infelizmente, tem um outro lado que precisa ser mencionado. Não está claro, pelo menos para mim, como essa tendência social se comporta perante uma outra tendência muito forte, em sentido contrário, que é a da desindustrialização. A parcela dos manufaturados na economia brasileira, e particularmente nas exportações, está diminuindo aos poucos desde os anos 80. Foi agravada pela abertura de Collor e, depois, pelo uso irresponsável do câmbio para segurar a inflação sob FHC, Lula e Dilma.

A desindustrialização teve efeitos graves sobre a capacidade de mobilização dos sindicatos no Reino Unido e dos partidos trabalhistas de toda a Europa. Não é um acaso que hoje eles sejam uma caricatura, com figuras como Tony Blair na Inglaterra, François Hollande na França e Sigmar Gabriel na Alemanha. No Brasil, o sindicalismo que sobrou é basicamente pelego, inclusive com o curioso fenômeno dos pelegos de oposição – ou melhor, que eram de oposição, como a turma do sr. Paulinho.

Fala-se de vez em quando em greve geral, mas a probabilidade de que ocorra algo assim é ínfima. Não existe mais aquela concentração de trabalhadores como a do ABC de fins dos anos 70. As forças que tradicionalmente se mobilizaram neste país e em outros estão desoxigenadas porque seu poder de barganha, o trabalho industrial, está desvalorizado. O trabalho, hoje, é mais atomizado e disperso, com menor acesso ao controle do maquinário. Ao que parece, o que vamos ter é só mais uma greve de bancários…

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O que parece estar despontando à distância é uma outra forma de mobilização, extra-sindical, que ainda é embrionária, mero rascunho. No que vai dar, ainda vamos ter que ver. Quanto tempo vai demorar para ter alguma efetividade, quem pode dizer? Infelizmente, essa é a situação que está posta e o que resta é torcer para que as circunstâncias precipitem a busca por novas articulações. Sem falar no risco de que não dê em nada…

Resumindo: o ministério, o Congresso e a mentalidade que ora se instalam na direção do país (e que já vinham tomando conta, pouco a pouco, com o beneplácito involuntário de quem fetichizava o controle do Executivo) representam a tentativa de não apenas esquecer, mas negar esse abismo e a caducidade da nossa renitente República Velha. Um Brasil do “Jeca Tatu” ou dos filmes do Mazzaropi. Não vai dar certo.

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* * *

Talvez passemos alguns meses muito estranhos, até mesmo calmos, enquanto a sociedade absorve o golpe, quero dizer, sua nova realidade. Uma vez que as lideranças oligárquicas e fisiológicas vão dar um sumiço das denúncias da operação Lava-Jato (tendo fazer o mais fácil, que era “colocar o Michel”, e tendo esvaziado a legislação anticorrupção), o assunto pode vir a sumir dos jornais, dos táxis, dos almoços de fim-de-semana.

Um possível lado bom é que essa falsa calma talvez tenha o poder de desinflar a paranóia de extrema-direita que tem se disseminado país afora nos últimos anos. Afinal, o único traço de união entre a alta burguesia dos Jardins, o fundamentalista no púlpito de Bangu, o taxista do Tucuruvi e os filhotes da ditadura país afora é o ódio ensandecido ao PT. Mais precisamente, a algo que, sei lá por qual razão, lhes parecia ser um diabólico governo proto-comunista que queria estatizar toda a economia, botar todo mundo para fumar maconha nas praças, promover abortos ao som de Molejo e preparar a criançada das escolas públicas para apresentar shows de drag na Paulista ao crescer. É possível que o período de interinato do usurpador corresponda a uma boa parte dessa fase.

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Seja como for, não vai durar muito. Gosto de comparar os fenômenos multitudinários de 2011 (no mundo) e 2013 (no Brasil) com as revoluções frustradas de 1848. Aquelas agitações, tão ambiciosas, foram derrotadas, pelo menos no curto prazo, como ocorreu com a Primavera Árabe e com as reivindicações de direito à cidade no Brasil. Michel Temer talvez seja nosso Luís Bonaparte, a versão cafeeira do sobrinho de Napoleão, que tomou o poder cercado de picaretas e defendido por brutamontes conhecidos como “dezembristas” – a propósito, aquela frase de Marx que andam citando por aí, da história que se repete como farsa, é sobre ele.

Sinais do que vem pela frente já eram visíveis desde o interinato, com a posse de um ministro da Justiça (ó, ironia) que representa o que há de pior no governo Alckmin em São Paulo e o uso de armamentos violentos, já no dia da posse (interina). Cabe lembrar, também, da intimidação pela Polícia Federal a estrangeiros que participaram de manifestações. No pouco tempo desde a consolidação do impeachment, já tivemos olhos furados, gente atropelada, presos sem explicação, câmeras destruídas. Particularmente chocante é o vídeo de um policial dizendo, com desdém: “pode filmar”. Agora a violência tem carta branca e será atribuída pela mídia aos bons e velhos “vândalos, baderneiros, infiltrados, black blocs”, como bem sabemos.

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Esses sinais apontam para um esforço de rapidamente afirmar-se no poder, à base da dispersão e do silenciamento da dissidência. Some-se a isso o fato de que, para muitos agentes da repressão, mesmo quando agiam em nome e sob as ordens de governos petistas, sempre viam em toda mobilização social uma iniciativa de “petistas”. Tendo triunfado sobre os petistas na cúpula, e com a provável presença de efetivos petistas nos protestos, nas ruas quem vai apanhar é todo mundo mais – aqueles que, acima, chamei de “derrotados informalmente duas vezes”.

* * *

Resta saber o que vai acontecer com a resistência, ou seja, que cara ela vai ter, como vai ser sua dinâmica, quanta força terá. Sou cético quanto aos primeiros momentos. Ainda há muita associação entre a rejeição a Temer a o apoio a Dilma e ao governo petista em geral, o que deixa muita gente tímida e provoca verdadeira rejeição em quem foi “derrotado informalmente duas vezes”, e que muitas vezes apanhou, foi chamado de vândalo e assim por diante. A estratégia anunciada de recorrer a Lula para 2018 não ajuda em nada, já que o problema é preparar o futuro, em vez de tentar recuperar um passado já estilhaçado.

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Mas muita água vai passar debaixo dessa ponte. Os conflitos sociais e distributivos, as disputas de poder e as aporias do regime não têm outro caminho a tomar que não seja se intensificar e se tornar muito claros, uma vez que batam de frente com as condições demográficas e socioeconômicas que descrevi acima. Há um limite para o quanto a população pode aceitar de retrocesso uma vez que tenha aspirações.

Mesmo todo o proselitismo religioso que testemunhamos ao longo do processo do impeachment não pode atropelar os sonhos dos fiéis, sobretudo nas igrejas ligadas à “teologia da prosperidade”. Como essa teologia lidará com retrocessos sociais? É isso que vamos descobrir agora, e não posso me impedir de ter um medo enorme da resposta que vamos receber… Porém, fora isso, o uso de uma retórica pseudo-religiosa para estigmatizar o governo perde boa parte da eficácia uma vez que o governo em questão deixa de existir.

Um ponto importante sobre o governo Temer é que sua única chance é agir como recomendava Maquiavel: fazendo todo o mal de uma só vez. O primeiro motivo é evidente: é preciso passar o pacotão de retrocessos enquanto não há uma oposição articulada – e ela vai acabar surgindo, mais cedo ou mais tarde. O segundo motivo é um pouco menos evidente, mas nem por isso indivisável: vencida a batalha contra o inimigo comum, o fisiologismo começa sua autofagia, ou seja, as disputas em torno dos espólios e da ocupação dos espaços do poder.

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Não sei quanto tempo isso leva, mas já ouvimos de Ronaldo Caiado que ele vai ser “independente” do governo usurpador, o que significa, obviamente, que sua ação vai ser pautada por fazer o governo, tanto quanto possível, dependente dele. O PSDB, coitado, acha-se ainda muito importante. Faz ameaças, enche o peito, exige um ajuste fiscal mais rigoroso. Só que tem uma bancada insuficiente para influir de fato, com meros 55 deputados. Daí o ministério temerário ter só três tucanos, um deles posto para cuidar de um assunto que não entende e no qual não pode atrapalhar o mordomo de filme de terror; sim, estou falando do Serra. O tal ajuste, já se vê, não virá. ou melhor: virá na superfície, e em seguida vai se desmanchar no ar como o pó de pirlimpimpim.

É interessante como, de vez em quando, opositores do usurpador se referem a ele como “neoliberal”. Ora, Temer não é um neoliberal. Ele não é nem sequer liberal. É pemedebista, um porta-voz das oligarquias, um ponta-de-lança do fisiologismo e nada mais. Sem dúvida, haverá neste início de seu lamentável governo uma série de medidas do mais puro liberalismo-Malan. E não faltarão analistas, a grande maioria economistas (essa gente com visão tão estreita) para dizer que é um governo com “boas intenções”.

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* * *

Essa gente parece não saber que a tal da “Ponte para o Futuro” divulgada em outubro, nome oficial do ajuntamento de idéias que passa por projeto de governo, destinado a acariciar as consciências das nossas lideranças empresariais, é só para inglês ver. O arquivo, como pode perceber quem o procure no Google, tem o singelo nome de “Release Temer” (confira no quadro vermelho abaixo). Em outras palavras: o grande projeto do PMDB para o país não passa de um “release”, ou seja, uma mensagem de divulgação para a imprensa, um documento de propaganda. E não do partido, mas do próprio Temer. Foi um mero passo da conspiração, desprovido de qualquer preocupação em concretizar-se como programa de governo. (Já não lembro quem foi a pessoa que me apontou esse detalhe, mas fica aqui o agradecimento.)

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Não é difícil perceber que as prioridades de Temer passam longe da estabilização da economia, da “união do país” ou qualquer coisa assim. Não é à sociedade como um todo que ele deve a faixa presidencial que indevidamente porta, mas a quem barganhou os votos necessários para colocá-lo na cadeira presidencial. Temer, em seu governo de conciliação e “salvação nacional”, seja lá o que isso for, terá oligarcas, oligopolistas e demais sanguessugas econômicos a agradar. A primeira vítima vai ser a boa vontade dos iluminados conselheiros do livre-mercado, que, uma vez mais, vão ficar a ver navios, escorados em suas convicções de livro-texto. É bem provável que, em poucos meses, o poeta paulista tenha se transformado numa cópia do romancista maranhense José Sarney. Inclusive na economia.

Pobres “vencedores que vão se descobrir derrotados”… Fazem pensar em Carlos Lacerda, o iludido paradigmático da República, que vendeu a alma ao demônio marcial pensando que seria eleito presidente em 1965. Não houve nem eleição em 1965 e o pobre do Lacerda acabou cassado, tendo que se aliar com aqueles que passara os anos anteriores vilipendiando: Juscelino e Jango. Cuidado, amigo tucano, há um Lacerda no seu horizonte.

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Também não vai demorar até que as lideranças de Piratininga queiram preparar a cama para seu próprio candidato, seja Alckmin (cruz credo), seja Serra (alho, por favor!). Afastado o grande inimigo comum, o “polvo petista”, as baterias da Paulista e do Jardim Botânico tendem a se virar contra nosso latinista do Jaburu (agora do Alvorada). Em outras palavras, o capital e a mídia vão romper com o governo do usurpador quando puderem começar a pôr em prática seus próprios projetos para 2018. Como eu disse: autofagia.

Mas talvez seja tarde demais. Quem tem a caneta, hoje, são os fisiologistas; suas armas são pelo menos tão fortes quanto as dos bravos bandeirantes de paletó riscado.

As disputas intra-oligárquicas parecem sempre farsescas, vistas daqui de fora. Como foi a crise que culminou na revolução de outubro de 1930, aquela que foi feita antes que o povo a fizesse. Mas elas existem e deixam brechas por onde podem passar mudanças substanciais, ainda que sempre mantidas aquém do que seria necessário para um salto civilizatório no país – aquele muro de que falei acima. Enquanto nossos barões e nossos coronéis disputam o controle da máquina estatal, ou seja, dos métodos de extração de renda fundados na exploração dos nossos corpos, caberá ao resto de nós reconstruir articulações, produzir uma nova leitura da situação, coordenar movimentos, estabelecer uma resistência.

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À medida que essa resistência de fato se articule, é fácil de prever o recrudescimento da repressão. E hoje, quando termino o texto, a última frase já deixou de ser previsão. Enquanto a cúpula fisiológica e oligárquica em Brasília avança nos retrocessos (que hora para brincar com oximoros!), dá para esperar uma disseminação da indignação, das lutas e do desencanto daquela camada despolitizada que hoje está embevecida pelo discurso ultra-reacionário.

Nessas duas tendências, ouso dizer que a tática de terra arrasada não tem mais espaço. Com a complexidade que o país atingiu, não é mais possível suprimir por completo os desejos e as aspirações. Não é mais um país de massas frágeis e corpos disponíveis para a exaustão. Os gargalos e nós que já se acumulavam há anos e vieram à tona em 2013 não foram sanados – do direito à cidade expresso na tarifa de transporte até a precariedade da educação – e mal foram considerados. Os secundaristas de São Paulo, Goiás, Rio e outros Estados dão testemunho disso.

Passada a catarse do ódio a Dilma, a Lula e ao PT, a brutalidade policial contra protestos deixa de ser encantadora para a opinião pública. Por mais que o brasileiro tenha um enorme fascínio pela violência e tenda a apoiar a repressão, existe um ponto de inflexão a partir do qual ele se vira contra a barbárie institucional. Aconteceu em 2013, aconteceu no ano passado. Resta ver o que acontece a partir daí.

*

(IN)CONCLUSÃO

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Levei muitos dias para escrever este texto e comecei dizendo que a realidade é confusa. De lá para cá, bem… a realidade se tornou um pouco menos confusa. Estamos entrando em um período em que as máscaras começam a cair. Editoriais e capas de jornal deixaram de lado a sutileza, mostrando que o mea culpa que tiveram de fazer em 2013 passou longe de ser uma “lição aprendida”: foi, sim, uma concessão forçada, que até hoje os barões não engoliram nada bem. O verniz de espírito democrático perdeu completamente o lustre. E, pelo que tenho ouvido nos círculos que se consideram mais iluminados da elite paulistana, só tende a piorar.

Ao mesmo tempo, claro está que o afã investigativo na República passou. Alguns dos bem-intencionados indivíduos que passearam com patos infláveis pela Paulista no ano passado ainda acham que o juiz Sergio Moro vai fazer milagres contra os poderes intocáveis da República. Mas mesmo esse desejo ingênuo vai ser suplantado pelo esquecimento, já que o noticiário vai ter mais do que falar e a urgência de espancar gente na rua porque “é vermelho” será muito maior.

Com isso, tristemente, parece que o jogo volta à estaca zero; e a estaca zero é a República Velha. Mas é claro que não é rigorosamente uma estaca zero, pelos motivos que elenquei acima: as expectativas, no país, são outras. Além disso, a República Velha propriamente dita dizia respeito a um tempo em que o país se compunha de núcleos esparsos, vagamente conectados, de atividade econômica: eram oligarquias estaduais, até então mal e porcamente vinculadas entre si sob o Império. Hoje, o sistema econômico é de fato nacional, a população é conectada, os movimentos podem articular-se entre si. É outra história: o sistema político, sim, é que continua sendo um arcaísmo. As oligarquias são um arcaísmo.

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Se comecei comparando nossa realidade a algum enredo, com gênero ainda indefinido, acho que devo terminar no mesmo tom. O que vão fazer nossos personagens? Como vão se relacionar os derrotados, formais e informais? Como vai reagir o falso vencedor, quando descobrir que as batatas estão na mão de outro grupo? E nossos figurantes amarelinhos, nossos raivosos adoradores da brutalidade, como vai ser a vida deles quando a coisa começar a degringolar na economia?

São cenas dos próximos capítulos…

Enquanto acompanhamos a história, com grande apreensão, as cenas vão se sucedendo, cheias de peripécias e falsas pistas. Com a derrocada dos principais partidos da Nova República, vemos algumas novas agremiações surgindo, em vários segmentos do espectro político. Será que a próxima inflexão política brasileira surgirá no âmbito deles? Difícil dizer, mas mesmo isso deve demorar um bom tempo para tomar forma.

Nem imagino, também, quanto tempo vai levar para que vejamos emergir uma nova etapa de transformações no plano da própria sociedade. Pode até não ser tanto tempo assim, haja vista a pluralidade de formas de reivindicação, físicas e virtuais, que aparecem cá e lá. Seja como for, não tenho a menor dúvida de que, nesse meio-tempo, os subterrâneos ferverão. Mesmo enquanto, de nossos apartamentos, lamentamos mais uma oportunidade perdida.

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Pauta difusa e derrota, mais uma vez

Para finalmente dar meu palpite sobre o furacão que passou no Brasil nas duas últimas semanas, adotei dois princípios: pensar em termos conceituais, em vez de impressionistas, e começar do começo. Os motivos, espero, vão ficar claros ao longo do texto.

No começo, isto é, entre a porradaria geral da polícia e a primeira manifestação realmente gigantesca, a interpretação geral era de um “aqui também”. Até então, o país que realmente estava fervendo era a Turquia. Lá como cá, o primeiro vetor invocado para explicar a súbita capacidade de motivação foi o acesso às redes sociais. Ou seja, a Turquia e o Brasil seriam algo como um segundo tempo do animado ano de 2011, que teve Primavera Árabe, Occupy Wall Street, indignados na Espanha, manifestações em Israel, Chile e mais tantos outros países.

Mas eis que veio 2012, o ano da decepção: a Espanha, como o resto da Europa, seguiu com suas políticas de austeridade; na Grécia, o neonazismo ganhou terreno. No mundo árabe, os países sortudos se viram com governos religiosos e conservadores; os azarados, com guerra civil. O Occupy teve de se contentar em descobrir que não só Obama baixou a cabeça para Wall Street, como, no que tange aos direitos civis, estava na mesma linha de Bush. Derrotas, ao que parece.

Agora, 2013. Novos países entram na dança. Além da Turquia e do Brasil, Índia e Indonésia, além de, mais uma vez, os bravos chilenos, se colocam em movimento. Como sempre acontece, comparações pululam com o famoso maio de 1968, quando a greve geral francesa, somadas às manifestações dos estudantes franceses, se espalharam para o Leste Europeu, o México, o Brasil, antes de resultar em derrota e apatia.

Algo nessa comparação, porém, não se encaixa. Em 1968, o que houve de efetivo, como a greve que, sem eufemismos, parou a economia da França, foi comandado pelos fortíssimos sindicatos da época, um tempo de mobilização industrial e partidos de esquerda poderosos. Os caminhos para se chegar aos objetivos, fossem quais fossem as pautas de cada grupo social envolvido, à exceção provável dos estudantes, estavam bem traçados, até onde podiam divisar os envolvidos.

Hoje, não há nada disso. Em 2011, os árabes queriam derrubar seus ditadores. E depois? Os espanhóis queriam mandar embora o neoliberalismo… e mais o quê? Os novaiorquinos eram contra a plutocracia, como quase todo mundo. E assim por diante. No Brasil, as manifestações mais ou menos pequenas contra a cara de pau do transporte público se expandiram da noite para o dia numa maçaroca de gente despolitizada que protesta contra conceitos abstratos como a corrupção, mas não quer saber de questões concretas como… a corrupção do oligopólio do transporte. Com isso, as mesmas críticas endereçadas aos indignados e ao Occupy voltaram: as pautas são difusas, as pessoas não propõem nada de concreto. Continuar lendo

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O pedestal

Este é alguém que fabricou para si um pedestal. É alguém que, na gramática usual, não pode grande coisa. É o estereótipo do impotente. No dia-a-dia, precisa fabricar ou garimpar tudo que usa, mas seus poderes terminam aí. E um pedestal não é algo que se use, simplesmente. Continuar lendo

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A classe mofadinha

Não posso deixar de compartilhar as citações abaixo, colhidas de entrevistas que fiz ao longo das últimas semanas para uma matéria sobre o consumo de cultura na classe C (a matéria saiu hoje). Elas deixam uma pulga atrás da orelha sobre o que é criar arte e cultura num país que redesenha sua pirâmide social:

Quem tem o volume de dinheiro dita as tendências. Hoje, o dinheiro está com a classe C. O que mais se vê agora são jovens louros, brancos e ricos usando ‘dreadlocks’ no cabelo. Os criadores de moda, de arte, de vestuário, de comportamento, passaram a vir de lugares que ontem eram guetos, não mais da elite.

Renato Meirelles, da consultoria Data Popular 

A arte do centro está escassa. Falta criatividade e originalidade de criação e promoção. A periferia encontrou, em diversos meios alternativos e acessíveis, uma forma de produzir, criar e promover com criatividade. Isso faz com que a arte da periferia ganhe respeito e espaço, para que os consumidores e produtores culturais se tornem capazes de pensar em novas formas de empreendimento artístico.

Marcão baixada, rapper
O ‘hype’ está em olhar o que está fazendo a classe C. A classe A está meio mofadinha e a classe B está deslocada. Não conseguem dialogar com as populações que estão subindo.  A barreira cultural está destruída. As classes abastadas dependem da nova classe média para viver. É o principal mercado consumidor e fonte de mão-de-obra. Não é mais possível fortalecer barreiras. A classe alta quer marcar sua diferença, mas essa diferença pode lhe fazer muito mal, isolando-a dos verdadeiros circuitos de produção de riqueza.
Ana Paula Kuroki e Laura Chiavone, publicitárias
Deixo os comentários a cargo de quem tenha algo a comentar.
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FHC entre o povão e a contradição

Como é pobre a celeuma em torno do artigo de Fernando Henrique! Debater se o homem propõe ou não que o partido dele “abandone o povão” e se concentre na classe média, como se fosse algum absurdo haver partidos de classe média… Um texto inteiro poderia ser dedicado à preferência do brasileiro pela polêmica mesquinha, até mesmo na política, onde as discussões deveriam ser mais penetrantes e corajosas diante da aporia inescapável (sim, a política, enquanto arte, é o bailado numa pista de aporias). A algazarra em torno do texto fernandino é um claro exemplo dessa mediocridade escolhida. Valeria bem mais a pena, por ora, destrinchar o artigo, porque ele expõe o impasse em que se enreda, com muito gosto, o partido de que o autor é presidente de honra. Façamo-lo.

Nosso ex-presidente entende seu texto como um raio-x das insuficiências da oposição, especificamente o PSDB, e uma proposta de reorientação. Entre circunlóquios, lugares-comuns e interpretações bem livres da história recente do país, FHC acaba dizendo, um pouco sem querer, algumas coisas bastante verdadeiras. Se fossem ditas por querer, seriam talvez dolorosas demais para os tucanos e seus correligionários, porque revelam em filigrana que as diretrizes peremptórias que FHC delineia para seu partido, ora, são simplesmente o que o partido, tal como se organiza hoje, não poderá nunca realizar. Em outras palavras, Fernando Henrique atirou no que viu e acertou no que não viu. Só que, como estamos falando de política, o “ver” significa “querer ver”­ – é uma maneira de recortar a realidade de um universo político, tornando-a um discurso coerente, mas coerente segundo determinados pressupostos – e o “não ver” significa “recusar terminantemente, a ponto de não poder ver”. Continuar lendo

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Bouazizi, o herói de Nietzsche

Nem Assange, o indiscreto hacker australiano. Nem Zuckerberg, o ainda mais indiscreto empresário precoce da rede, como quis a revista Time. Nem Suárez, o goleiro fugaz dos pampas, sobre o qual ainda hei de escrever. O maior herói de 2010 foi um vendedor de frutas, ambulante e sem licença, natural de Sidi Bouzid, no interior da Tunísia. Chamava-se Mohamed Bouazizi e tinha 26 anos quando morreu.

O gesto heróico de Bouazizi foi um martírio que, em si, não tem nada de novo, mas sempre impressiona. No Vietnã de 1963, Thích Quảng Đức desceu do convento e, com toda a calma que se espera de um monge budista, imolou-se na praça mais movimentada de Saigon. Kennedy admitiu que a imagem daquele corpo se consumindo abalou o mundo. Na Tchecoslováquia de 1969, Jan Palach, estudante de filosofia, escolheu que sua existência não passaria dos 21 anos. De que valia viver sob o jugo soviético? Em 1989, a celebração de sua memória desaguaria na Revolução de Veludo, batendo um cravo no caixão da Cortina de Ferro.

É perturbador, mas parece que morrer dá resultado. Continuar lendo

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Entrevista: “O capeta está por todo lado”

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Quando cheguei ao local marcado, ele já estava sentado à mesa, brincando com o gelo de seu Bloody Mary. Temi que estivesse atrasado, mas ele percebeu minha perturbação e meu gesto instintivo de olhar para o relógio. Nem bem me aproximei, levantou-se sorridente e me acalmou, explicando que sempre aparecia (com trocadilho) com ao menos uma hora de antecedência para qualquer compromisso. Questão de conhecer o ambiente, explicou, com a expressão de quem quer dizer algo completamente diferente – mas não consegui divisar o que seria.

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Falando em ambiente, meu interlocutor destoava completamente daquele bar de hotel de luxo. O fraque encarnado, com duas fileiras de botões dourados, era talvez a única peça colorida no ambiente dominado por paletós e correlatos – fazia concorrência aos copos de bebida. Enquanto tomávamos nossos lugares à mesa e eu acionava o gravador, minha atenção foi atraída por sua cabeleira solta e flamejante, que emolduravam um olhar tenebrosamente sereno, para lá do cinismo.

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Jamais estive tão apreensivo antes de começar uma entrevista. Também, pudera. Não é todo dia que se recebe a incumbência de metralhar com perguntas um autêntico representante do Outro Mundo. À minha frente, Jinn Daimon, diretor de Relações Públicas do Inferno (LTDA), aguardava com ar de mofa as duas dúzias de questões que eu tinha preparado para ele. Pelos 90 minutos seguintes, seríamos só eu e um Arrenegado, frente a frente, cara a cara.

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Cabe frisar que a proposta desta entrevista partiu do próprio setor de RP da Tisnado Corporation, a holding que controla o Inferno. O telefonema chegou em plena madrugada, quando só este desavisado, de plantão, dormitava diante do terminal, à espera de que não caísse algum avião presidencial, nem morresse uma princesa, nem um terremoto sacudisse algum país e me obrigasse a trabalhar. Em vez de qualquer desses eventos estraga-soneca, um estranho convite para entrevistar um gramulhão de verdade. E o plantonista, já dominado pelo sono, concordou sem se dar conta do que fazia.

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Contra todas as expectativas, Jinn Daimon foi de uma cortesia atroz. Apesar de uma tendência a desprezar os mortais em geral e os jornalistas em particular, o das-trevas não ergueu a voz em momento algum, mesmo quando oferecia réplicas de grande rispidez, e explicou com muita paciência cada ponto de seu programa satânico. A seguir, leia os principais trechos da entrevista, concedida em pleno coração de São Paulo.

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Em primeiro lugar, por que este lugar para a entrevista?

É assim que funcionamos. Você pensa, a gente faz. Olhe em volta: metade das outras mesas tem pilantras fazendo negociatas. Nas outras, prostituição, adultérios, mafiosos tomando V.S.O.P. com dinheiro sujo. Não é assim que vocês imaginam o inferno, cá neste vale de lágrimas? Pois então, desejo-lhe as boas vindas. Eu só estava querendo agradar e é muito agradável ver suas expectativas confirmadas. Sinta-se um felizardo.

Então o inferno não se parece em nada com isso?

Custo a crer que seus leitores estejam interessados na aparência do inferno. Desculpe invadir a sua mente, mas sei bem que não é isso que você quer perguntar. Por favor, não faça cerimônias, eu não sou nenhuma sumidade infernal. Sou apenas um espírito de negócios. Sou um profissional do mercado. Vamos, solte suas perguntas.

Por que o inferno decidiu vir a público?

Como qualquer outro grupo empresarial, a Tisnado Corporation traça, a cada temporada, um planejamento de longo prazo. Nosso foco atual é na abertura com o público. Buscamos maior visibilidade e transparência. Somos a maior central de vileza no universo e queremos que o mercado saiba valorizar nosso produto. Estamos cansados de concorrentes reivindicando nossas atividades e atraindo investidores que deveriam ser nossos.

Quem andou reivindicando maldades demoníacas?

Você sabe. Ditadores, bispos, bandas de heavy metal… Essa molecada toda.

Os negócios do inferno estiveram ameaçados por essa concorrência mais… visível?

Imanente. Nós dizemos imanente. O Inferno é transcendente e a concorrência é imanente. Entendeu? O que costumava ser nossa vantagem passou a ser uma desvantagem, muito em parte por causa de alguns erros de estratégia que nós mesmos cometemos. Sim, nossos negócios foram abalados. Mas nada irreversível, graças às Profundezas. Por sinal, eu assumi o cargo com exatamente essa missão: reverter a derrocada do inferno.

Dizia-se, há alguns anos, que “a estratégia mais inteligente do tinhoso foi convencer o mundo de que ele não existe”. Essa estratégia existiu mesmo ou foi só um dito popular?

Fico contente que você tenha feito essa pergunta. Demorou, mas chegou. Você é muito tímido. Olha, faço questão de que você coloque no texto que, nessa época, eu não era responsável pela área de RP no inferno. Eu ainda era estagiário. Não quero ter meu nome associado a esse fracasso retumbante e mais que anunciado.

Parece uma estratégia sagaz… Se as pessoas pensam que o Coisa-Ruim não existe, elas ficam livre para fazer o mal, certo?

Você claramente não entende nada sobre o funcionamento do mal! Deveria se preparar melhor antes de fazer uma entrevista.

O mal não é mesmo minha especialidade…

Pouco importa. Veja, vou lhe dar um exemplo banal, mais banal impossível, de como nossa marca foi apropriada pelos outros. Até a coisa mais medíocre que existe: a indústria do entretenimento, que se considera infame, como se alguém pudesse nos igualar em infâmia… Você certamente viu a trilogia de Guerra nas Estrelas na infância. Pois bem, aquela famosa frase de Yoda: “Fear leads to anger, anger leads to hate, hate leads to suffering”… lembra?

Claro, perfeitamente… É a descrição do caminho para o lado negro da força… o que vocês têm com isso?

Ora, meu filho! George Lucas roubou esse tema de nós! Lado negro da Força, bah! Há seis mil anos esse dito está na porta da empresa!

Não era “Deixai toda esperança, vós que entrais”?

Isso é nos pontos de venda. Estou falando da sede social. Enfim, você é um despreparado. O que quero dizer é que, desde que a humanidade é humanidade, nosso trabalho consiste, com algumas variações, em deixar as pessoas com medo. Por quê? Ora, porque o medo leva ao ódio, o ódio ao sofrimento, e o sofrimento traz o cliente para nossos braços! Conquistamos legiões e legiões de almas assim, a ponto de tomar empréstimos no Banco Outro-Mundial para expansões urgentes. É a estratégia dos quatro “m”: Medo, Medo, Medo e Medo. Está em qualquer manual de marketing.

E por que isso deixou de funcionar?

Convencer as pessoas da nossa inexistência foi o maior erro. Aliás, eu fui contra. Sem risco de sofrer os castigos da danação eterna, as pessoas vão ter medo de quê? O resultado não poderia ter sido mais desastroso. A humanidade – felizmente não toda ela, mas pelo menos uma maioria pertencente a uma certa geração – resolveu ser feliz. Assim, sem mais nem menos. Passaram a agir em liberdade, a buscar diálogo, a tentar resolver seus próprios problemas, a compreender e aceitar o outro, a questionar seus preconceitos… Chegamos a ficar com 70% de capacidade ociosa! Imagine você que houve gente que se meteu a buscar a paz, a paz de fato, quer dizer, na Terra, entre pessoas vivas, em vez de proceder com violência em nome de uma paz idealizada e atribuída ao outro mundo! Quando as pessoas perderam o medo do inferno, elas perderam no instante seguinte a capacidade de odiar! Foi a ruína para nós, você imagina!

Como isso se traduz em valor de mercado?

Pensávamos em fazer um IPO. Desistimos, não ia trazer nada. Além do mais, nosso mote foi parar em filmes de ficção, como já falei. Coisa mais humilhante… Até a figura de nosso CEO foi representado ficcionalmente, de uma maneira até ridícula… Jack Nicholson, Al Pacino… Nunca chegamos tão baixo. Felizmente, outras companhias do mundo espiritual foram tão afetadas quanto nós. Sem pensar em demônio, quem se preocuparia em seguir cegamente os preceitos de algum grupo religioso? Assim como nosso mercado de vilania, o mercado de orações minguou, minguou… Qualquer pé-de-chinelo poderia fazer uma oferta hostil na Bolsa e levar o Céu inteiro. Só que foi uma quebradeira geral. Nem os pés-de-chinelo escaparam.

E quando a luz vermelha se acendeu…

Então houve uma reunião emergencial com representantes de todo o universo desencarnado. Tinha serafins, grandes figuras do Limbo, espíritos malignos de todas as levas… Foram meses e meses de discussões levadas em poucos segundos, de maneira não raro áspera, com idas e vindas… Não tenho muito como falar porque não estava presente, só vi os autos depois de minha nomeação para o cargo que ora ocupo.

Como foi essa nomeação?

Tanto no céu quanto no inferno decidiu-se que já passava da hora de injetar sangue novo – sangue, aqui, é uma metáfora, você compreende… – nos negócios. Toda uma geração jovem e com muita vontade de trabalhar foi promovida para os cargos principais. Eu sou um representante dessa geração. Comigo subiu, por exemplo, o Arcanjo Raul nas finanças do Céu, Alexandre o Grande no Ministério da Defesa do Limbo… e tantos outros. O Purgatório foi customizado, construímos resorts na beira do Lethê, os Campos Elísios deixaram de cobrar consumação… Foi uma verdadeira revolução. Resolvemos tornar o Outro Mundo mais jovem, dinâmico e atrativo para as gerações que cresceram vendo televisão. Tínhamos chegado a um ponto em que a publicidade causava mais mal às pessoas do que nossos próprios agentes, os súcubos e íncubos. Isso era ridículo.

Quais foram suas principais medidas?

Tudo muito simples. Posso resumir minhas decisões em poucas palavras: nada de esquecimento do Belzebu. É preciso que as pessoas o vejam em toda parte. Onde está, onde não está, onde já esteve, onde nunca estará. É claro que isso nunca funcionaria sem a colaboração estreita com o Purgatório, o Céu e o Limbo. Percebendo que a situação era crítica, todos decidiram juntos que não se poderia mais separar o medo do ódio. Era preciso atacar em ambas as frentes ao mesmo tempo, caso contrário ambos se consumiriam sem jamais chegar ao sofrimento que leva ao mal e ao inferno. Todos os representantes na Terra das instâncias do Lado-de-Lá agiram em concerto para instilar ódio, preconceito, pavor, ressentimento, radicalismo e cinismo nas almas dos viventes. Eram pastores pregando, vendilhões negociando, políticos acusando, jornalistas vociferando, grupelhos se explodindo… Uma festa!

Isso não configura um cartel?

Meu filho, deixe de ser ingênuo. Você acha que alguma agência reguladora teria a força de combater um monopólio envolvendo o Céu e o Inferno? Fique contente por ainda não ter havido uma fusão. Aliás, digo isso em off: as negociações estão bem avançadas! [N.B.: o jornalista não respeita off demoníaco.]

Vocês já têm dados sobre o retorno dessa estratégia?

Não poderiam ser melhores. Você não vê a virulência com que a política tem sido feita em alguns países? Você não ouve os berros ensandecidos de determinados articulistas? Você não sabe o que anda sendo feito no Vaticano e em outros grandes centros religiosos? É magnífico! Nossos vestíbulos estão abarrotados, taxa de ociosidade zero vírgula zero vírgula zero vírgula zero. Pensamos até em contrair outro empréstimo no Banco Outro-Mundial para novas expansões. Só não batemos o martelo ainda porque as taxas de juros andam que nem a água benta. O projeto de IPO voltou a todo vapor. O céu também está contente, porque, mesmo se a grande maioria das almas vêm parar conosco, eles conseguem lucros fabulosos no mercado de derivativos de orações, súplicas e exortações… Enfim, voltamos ao jogo.

Que recomendações você daria para alguém que quer escapar da perdição eterna?

Deixe disso, meu filho… Estamos de braços abertos para todos. Tema, odeie, sofra, e venha para este novo e excitante mundo das punições dantescas!

E para quem insiste em não pensar nessas coisas?

Ah, os resistentes! Ah, os lúcidos! Ah, os ponderados! Esses chatos. Digo o seguinte: o demônio está em todo lado. Obama é o demônio! Lula é o demônio! Fernando Henrique é o demônio! Os EUA são o demônio! O Islã é o demônio! A Europa é o demônio! Os católicos são o demônio! Os ateus são o demônio! Os protestantes idem! Madonna é o demônio! Canto gregoriano é o demônio! Umbanda é o demônio! O mercado é o demônio! O Estado é o demônio! Sua sogra é o demônio! O demônio é o demônio!

Obrigado, e…

Espere! O demônio está no álcool! O demônio está no chocolate! O demônio está na gasolina! O demônio está no sexo! O demônio está nas guitarras elétricas! O demônio está no transporte público! O demônio está na pequena propriedade! O demônio está em Marx! O demônio está na ciência! O demônio está na pobreza! O demônio está na imprensa! Nas taxas de juros! Nos telefones celulares!

Boa noite, vamos ter de encerrar…

Você é o demônio! Eu sou o demônio! Nós somos! Eles são! Quando você escova os dentes, é demoníaco! Quando se masturba, é demoníaco! Quando amarra o cadarço, demoníaco! Quando passa perfume, demoníaco…

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Antes que ele terminasse de elencar todos os lugares em que devemos crer piamente (com trocadilho, por favor) que está o demônio, a bateria do gravador acabou. Ele pigarreou, terminou seu Bloody Mary, explicou que a conta já estava paga e desapareceu.

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