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Imagens que não fizeram história (5): a caixa térmica e a máscara

[Prelúdio: escrevi o que segue abaixo entre domingo (31/5) e segunda-feira (1/6). De lá para cá, boa parte do assunto que motivou o texto perdeu relevância, soterrado por eventos mais impactantes e relevantes, como a mobilização anti-racista que ecoa a partir de Minneapolis. Eis aí mais uma maneira pela qual uma imagem pode não fazer história: quando é surpreendida por uma avalanche de estímulos – coisa que, de uns anos para cá, não tem faltado…]

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Manifestações em geral sempre rendem um bom número de imagens interessantes, por bem ou por mal – quer dizer, pelas bandeiras agitadas ou pela fumaça das bombas. Desde 2011, tivemos tantos protestos que pareceria impossível surgir algo digno de nota. Tolice: o campo de possibilidades para que emerja algo capaz de ressoar conosco está sempre em expansão. Considerando a infinita redundância de imagens que nos inundam, seria de se esperar que o universo daquelas que são significantes e informativas estivesse em contração; mas é justamente da atmosfera sufocada em redundância que pode saltar o relevante. Parece que isso ocorreu domingo em São Paulo.

O embate entre neofascistas e antifascistas de 31/5 produziu tudo que costuma se produzir em termos de iconografia de protesto. Bandeiras, punhos erguidos, gente segurando microfone, policial apontando arma, escudos, bandanas, fumaça. Tivemos até algumas novidades bem desagradáveis, como a exibição de tacos de beisebol (velho símbolo anglo-saxão de agressividade) e bandeiras ucranianas de inspiração neonazi. Do ponto-de-vista iconográfico, porém, nada seria novo, a princípio; editores de jornais e revistas poderiam escolher qualquer das imagens corriqueiras de seus fotógrafos ou das agências para ilustrar suas capas.

Mas no próprio domingo, quando os envolvidos mal tinham voltado para casa, em plena indignação pela repressão policial (e o tratamento amistoso à fascista com o taco de beisebol), as redes sociais já tinham elegido uma fotografia como favorita: esta com o entregador de aplicativo (bicicleta? moto?), com a caixa térmica nas costas, máscara de hospital no rosto, prestes a lançar uma pedra, provavelmente contra a polícia.

O gesto, o movimento, a postura do corpo, nada disso tem qualquer coisa de novo e é provavelmente por esse exato motivo que o fotógrafo (Nelson Almeida, da AFP) abriu o obturador nesse momento preciso – e depois escolheu esse clique em particular para editar no computador. De relance, a memória de quem estudou semiótica e a história do fotojornalismo captou a possibilidade de produzir uma imagem relevante não pela novidade, mas pela citação, isto é, pela inserção numa trajetória canônica. Mas é claro que o interesse não se encerra aí: a partir dessa inserção, aí sim, e por causa dela, poderão emergir as diferenças, que tornam essa imagem significativa a ponto de ter conquistado a atenção, mesmo que por poucas horas, das redes sociais – tão inundadas, tão sufocadas por imagens.

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Talvez tenha sido com o maio de 1968 francês que a figura de manifestantes atirando pedras se tornou canônica. Por sinal, a sublevação estudantil da rive gauche forneceu uma série de padrões tanto para protestos urbanos quanto para sua representação nas décadas seguintes. Mas frequentemente capas de livros ou cartazes de filmes sobre o episódio trazem a escolha de alguma das fotografias de jovens se fazendo de catapulta humana, apertados em seus paletós “dandy”.

Desde então, a personagem do jovem que arranca o calçamento e o atira contra policiais ou soldados se tornou uma espécie de ícone do conflito social deflagrado. São abundantes as imagens de rapazes palestinos prestes a lançar uma pedra contra armamentos vastamente superiores – inclusive com o uso de fundas, o que traça um vínculo estranho, que começa no estético e o ultrapassa, entre nosso tempo e o Antigo Testamento.

Gênova, Primavera Árabe, Occupy, praça Taksim, junho, sempre fornecem algumas imagens nessa linha, às vezes muitas. Talvez a consagração do gesto do lançador como síntese da manifestação de rua esteja no mural de Banksy em Jerusalém (“Love is in the Air, or: Rage, the Flower Thrower”), em que o manifestante, de rosto coberto por uma bandana e boné virado para trás, se prepara para lançar flores: o corpo em preto-e-branco, as flores coloridas. Graças à agilidade do estêncil, a imagem se espalhou por paredes e cartões postais de todo o planeta, empapada com o mesmo tipo de ironia que acomete aquele retrato do Che feito por Alberto Korda, hoje quase uma logomarca.

É, de toda forma, um gesto como poucos para atiçar o interesse de fotógrafos e todo tipo de artista fascinado pelo corpo. Rodin, se tivesse vivido um século mais tarde, sem dúvida ficaria encantado com os braços esticados, o peito aberto, as pernas dispostas de modo a lembrar vagamente o “Gong Bu” (posição do arqueiro), e teria esculpido de alguma maneira o manifestante com o petardo engatilhado. Não foi à toa que a personagem se consolidou no imaginário da iconografia política. Se quisermos voltar ainda mais longe, dá para dizer que a figura remete também à antiguidade clássica: o atirador de lança da escultura grega, como no célebre “bronze de Artemísio” do período austero. E foi também uma das personagens escolhidas pelo pioneiro Eadweard Muybridge para suas fotografias quase cinematográficas de decomposição do gesto.

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O entregador de aplicativo não é um estudante da Sorbonne ou de Nanterre, nem um soldado das falanges gregas, nem um esportista. Ou, para dizer a mesma coisa de maneira um pouco mais direta: o entregador de aplicativo é uma figura paradigmática da nossa década. Precarizado, sujeito ao controle algorítmico da economia de plataformas (ou, mais amplamente, a “gig economy”), tratado como empreendedor individual pelo patrão e pela Justiça, serpenteia pela cidade da “big data” atomizada, em busca de boas avaliações e uma remuneração fundada sobre baixas porcentagens do preço das entregas.

A bem dizer, o entregador de aplicativo é praticamente o oposto do estudante da Sorbonne. Mas se uma foto sua, congelado em pleno gesto de preparar o lançamento da pedra, se conecta com essas figuras icônicas e canônicas, sejam históricas ou ficcionais, justamente essa dissonância é que chama nossa atenção. Esta é, digamos assim, a diferença que resulta da repetição, como o isótopo que escapa do átomo. É difícil determinar se a estereotipia do lançador irrompe na nossa realidade ou se é a nossa realidade que irrompe na linhagem estereotípica. O resultado no espectador, em todo caso, é algo da ordem do abalo afetivo, na linha do envolvimento subjetivo que Barthes denominou o “punctum” da fotografia, e que se destaca do contexto objetivo (“scriptum”) em que está representado um episódio ocorrido durante um domingo de protestos.

O abalo afetivo serve para trazer à superfície da consciência e do discurso essa personagem social contemporânea do entregador de aplicativo. Ela possui alguns traços que a tornam particularmente significativa neste momento. Ao longo dos últimos dois anos, tempo em que acompanhamos a chegada da extrema direita ao governo, essa categoria foi frequentemente analisada como sendo a porção da classe trabalhadora que não se abalou com a destruição de seus próprios direitos tradicionais, como classe. Motoristas, entregadores e outros braços da economia de plataforma teriam, supostamente, adotado a ideia de que são de fato pequenos empresários, que mandam em si mesmos e não dependem de ninguém.

É claro que o problema é bem mais profundo. Se a própria perspectiva de emprego com alguma segurança e direitos se esfacela, como tem sido a tendência e não só no Brasil, é natural que quem está tendo que se virar no precariado demonstre pouco interesse em lutar pela manutenção de direitos aos quais nem sequer teve acesso. A desconexão entre trabalhadores tradicionais e membros do precariado tem razão de ser e, além disso, caberia às instituições da classe trabalhadora organizada expandir suas pautas para abraçá-los, em vez de lhes apontar o dedo. Se os precarizados frequentemente acabaram adotando discursos incompatíveis com seu próprio interesse, se muitos chegaram a abraçar o bolsonarismo em algum momento, se não poucos ainda o abraçam apesar de tudo, é um efeito da posição que ocupam nas relações de trabalho e sociais em geral; algo que, pensando bem, não deveria surpreender.

Ao mesmo tempo, esses trabalhadores continuam sendo o que sempre foram, no essencial, aqueles trabalhadores que década após década tiveram que circular nas grandes cidades em situação mais ou menos precária, mas sem ter, efetivamente, acesso à cidade. Gente que vai de portaria em portaria, e não mais longe; ou que entrega documentos importantes na avenida Paulista, sem espiar o que dizem, e passa na frente de seus cinemas, livrarias e centro culturais, sem poder tomar um minuto que seja para visitá-los. O precário circula pela cidade como o sangue por um corpo, mas fora dos horários de trabalho é confinado à sua quebrada. No tempo da economia da informação e da comunicação, uma economia detalhada e instantaneamente logística, este personagem é mais decisivo para o metabolismo social e urbano do que os próprios produtores.

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Esta é a figura que conseguimos ver, tacitamente que seja, quando olhamos para um entregador de aplicativo, de máscara, atirando uma pedra. Do fato de estar carregando a caixa térmica nas costas, podemos deduzir que não foi à avenida, originalmente, para protestar, mas para trabalhar. É claro que uma imagem como esta esconde pelo menos tanto quanto mostra, o que significa que mil outras possibilidades existem: que tenha pensado em trabalhar depois de sair da manifestação, que tenha esticado seu tempo de trabalho para protestar, aproveitando que já estava ali, ou que tenha carregado a mochila consigo só para reduzir o risco de ser abordado de modo truculento pela polícia. Ainda assim, a associação entre seu trabalho – precário, algorítmico, urbano etc. – e a manifestação salta aos olhos: o trabalho foi o passaporte para a cidade, a manifestação e a fotografia.

Vale lembrar também que as manifestações políticas da última década foram reiteradamente criticadas, com razoável dose de razão (mas não toda), por atraírem um público sobretudo da classe média e das regiões centrais da cidade. Como se dizia, as classes mais baixas, os moradores das periferias etc., no geral, permaneciam indiferentes; não tinham acesso ao espaço, nem compravam a narrativa.

Nesse contexto, outra explicação para o abalo afetivo, para o “punctum” do entregador de aplicativo, é que ele seria, graças à representação inscrita na história iconográfica, a exceção ou, melhor ainda, o indício de que as circunstâncias mudaram. Uma correção de rumos, talvez. Em outras palavras: agora, sim, é o povo, o trabalhador, o precário, que está nas ruas contra o governo opressor, e com disposição para enfrentar a polícia e as maltas fascistas… Exagero? Talvez, mas estamos falando de uma sensação, não de um raciocínio.

Seja como for, no dia em que esta fotografia foi feita, tratava-se de uma manifestação em nome da democracia, contra apoiadores do presidente de extrema-direita, que vinham ocupando sozinhos aquele espaço, à sua maneira: com bandeiras do Brasil misturadas a emblemas neonazistas ucranianos, padrões da bandeira americana e da israelense, carros de som, tacos de beisebol (não me conformo com esse taco), gritos por cloroquina. Do lado anti-fascista, a liderança estava nas mãos de torcidas organizadas, sobretudo a do Corinthians – mas também se verificou uma dessas ocasionais confraternização de seguidores de clubes que sempre nos emocionam um tiquinho.

Nesse cenário tão insólito, a imagem que tocou, afinal, o coração dos espectadores foi a do entregador de aplicativo, caixa térmica nas costas, atirando uma pedra. Uma imagem, portanto, com implicações que transbordam a confrontação política ela mesma. E essa é a importância da figura do entregador, percebida subliminarmente por quem se encantou com a foto: está em jogo mais do que a relação entre estado democrático e perigo fascista, entre a população livre e as forças repressivas – não que isso não seja crucial, claro; mas importa muito perceber que estamos tratando das tensões das relações de classe do país como um todo; o destino daqueles que trabalham, ocupam as cidades, tiram delas seu sustento, e carecem do reconhecimento jurídico, institucional, de sua função no tecido social. A imagem é lembrete “do” político, além “da” política, e conclama ao reconhecimento de que é preciso ampliar não só a presença de grupos sociais nas manifestações, mas as próprias pautas. Enfim: é preciso tratar do destino que estamos traçando, enquanto população.

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Há outros pontos, porém. Uma imagem se deixa apreender e analisar por elementos, combinados no seu próprio quadro, ao contrário da cadência linear de um texto. Temos aí a caixa térmica e a pedra (na verdade, dá para ver que ele segura outras pedras, já pronto para iniciar – ou continuar – um bombardeio), que já foram tratadas. Poderíamos também engrenar uma especulação um pouco anódina, mas nem por isso menos interessante, sobre a ausência de um capacete, o que parece sugerir que é um entregador ciclista, não um “motoboy”.

Mas um outro elemento é mais fecundo e instigante, graças à sua ambivalência: a máscara.

Este é um tempo em que a máscara se tornou obrigatória; e pensar que a proibição de cobrir o rosto andava em voga já faz alguns anos (vide a lei anti-véu na França). Mas há pelo menos duas vertentes interessantes para a simbologia política desta máscara específica, nesta fotografia em particular. A primeira é que um objeto de proteção, de cuidado pessoal, de cunho médico, profilático, acabou sendo revestido de um caráter político surpreendente, a partir do momento em que passou a configurar uma expressão de adesão ao isolamento social, à luta contra o coronavírus – por oposição à parcela tresloucada da população, seduzida pelo fascismo, que pretende negar seja a pandemia, seja sua gravidade.

A segunda é que cobrir o rosto se tornou prática recorrente entre manifestantes há algum tempo, tanto para se proteger dos efeitos do gás lacrimogêneo lançado pela polícia, quanto para evitar a identificação pelo Estado. Hoje, por sinal, a vigilância se dá também por algoritmos, constantemente aperfeiçoados, de reconhecimento facial. A máscara, digamos assim, tomou o lugar da bandana. De modo que, nesse objeto simples, feito de pano, dois vetores de proteção se cruzam, dois vetores de sentido político se cruzam, e esses dois cruzamentos também se cruzam entre si.

Mas há mais cruzamentos: como entregador que circula pela cidade cuja população se recolhe – ou deveria se recolher –, o trabalhador se expõe ao vírus. A máscara que o protege da contaminação, tanto quanto possível, também o protegerá, tanto quanto possível, contra o gás que eventualmente será lançado (e foi). A máscara que em outros tempos, em outras situações, poderia levar policiais a tomá-lo por um ladrão, possivelmente com consequências trágicas, hoje são a marca do “cidadão consciente” (não confundir com “pessoa de bem”).

Será que a máscara o protege de ser reconhecido, caso a imagem seja vista por algum representante da empresa-aplicativo em que se inscreveu para ser entregador, e que lhe cedeu (vendeu? alugou?) a caixa térmica? Será que, ao fotografá-lo, o profissional da France Presse o colocou sob risco de dispensa, comprometendo talvez o sustento de seus familiares, o pagamento de uma faculdade ou de um tratamento médico? É tão mais fácil escrever sobre uma imagem, especular sobre seus sentidos, quando não conhecemos a personagem, quando não sabemos nada sobre ela! No mínimo, podemos ver na máscara um punhado de significados possíveis, mas é a própria possibilidade, quando a evocamos, que nos esclarece algo sobre o real.

Também poderíamos nos concentrar no próprio fato de ele estar portando a caixa térmica. Vamos imaginar por um momento que se tratasse de uma mochila comum, contendo roupas e chuteiras usadas, ou livros e cadernos, ou um tripé dobrado e várias lentes. Ele continuaria com ela nas costas, atrapalhando seu movimento, fazendo peso? Será que ele tem medo de deixar a caixa térmica no chão e ser roubado ou ter que sair correndo, arriscando-se a ficar sem ela? Será que, perdendo a caixa térmica, ele é obrigado a ressarcir a empresa?

Cada elemento da imagem informa algo, não porque assevere ou demonstre qualquer coisa, mas porque conduz a lançar perguntas como essa. Lançar como lança o lançador? Provavelmente não, já que do outro lado não está nenhum batalhão de choque. Mas, em todo caso, a motivação de transformar os elementos da fotografia em questões que a ultrapassam vem das inquietações que já temos, com o que já conhecemos ou intuímos de nosso mundo e das condições de vida que nele vigoram. Esta é provavelmente a diferença mais relevante entre a redundância das imagens repetidas, que nos afogam, e a ressonância da imagem viva, vibrante, que nos afeta.

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Comecei com essa série sobre imagens falando em “fazer história”, e agora me vejo preso a uma espécie de obrigação auto-imposta – dessas que, supostamente, poderíamos deixar de lado sempre que quiséssemos – de ficar falando em história, quando tropeço em uma imagem que me chama a atenção e quero escrever algo sobre ela neste espaço. E no entanto, como leitor de Flusser, não posso evitar de concordar com a sentença de que a invenção da fotografia inaugurou uma era progressivamente pós-histórica. O tempo das imagens técnicas, diz ele, não é linear como o tempo histórico do texto escrito; tampouco é circular como o tempo mítico da imagem tradicional, à qual voltamos para recordar aquilo que é fixo.

A imagem técnica, diz o filósofo tcheco, emerge da irrupção a-histórica das equações matemáticas no universo da produção de imagens. Flusser se referia à química e à ótica necessárias para produzir uma chapa, mas essa afirmação é infinitamente mais válida para a imagem digital, que é integralmente algorítmica, da fotometria à compressão – sem falar na pós-produção. Ora, a equação está à parte da história, é uma igualdade matemática que, notação à parte, se supõe eterna e universal.

Isto não significa, porém, que a história desaparece com a imagem técnica. Mas significa que a imagem técnica é capaz de manipular, suspender, desviar a história. Pode ser usada tanto para desaparecer com elementos centrais de seu movimento (que Stalin o diga) como para realçar figuras marginais de seu processo, como nas imagens que celebram vitórias post factum: bandeira americana em Iwo Jima, soviética no Reichstag.

Tudo isso para dizer que cabe a quem opera o aparelho definir a relação com a história, assim como lhe cabe determinar entre a redundância sufocante, entrópica, e o sentido informativo, ressonante. Quem aponta uma lente ou monta uma estrutura gráfica define o retorno, o falseamento, o esquecimento, a perpetuação, naquela chapa a-histórica, de um sentido de história.

Esse poder, essa responsabilidade, transparece na imagem do entregador de aplicativo porque com ela o fotógrafo, em frações de segundo, injeta no ato de um trabalhador precário uma carga de significado que vem do cânone, ou seja, da história. O corpo esticado do manifestante sintetiza as tendências do mercado de trabalho, a trajetória dos movimentos trabalhistas, as aspirações dos protestos do nosso tempo, o contraste com a memória de 1968, o tensionamento da democracia brasileira. Mas isto tudo só ocorre porque sua imagem, por um breve instante, rebateu na lente de um aparelho fotográfico, nas mãos de alguém que tinha a bagagem necessária para saber quando disparar o obturador.

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Outras imagens:

Alguém que não consegui identificar tirou uma foto do lado oposto – quem sabe, da mesma pedra? Ao fundo, vemos uma pessoa tirando foto. Seria o profissional da France Presse?

O bronze de Artemísio (Zeus ou Poseidon, a princípio)

A disposição dos pés na posição do arqueiro (Gong Bu)

Banksy em Jerusalém

O savoir-faire de um sorbonnard

Jovem palestino e sua funda

Muybridge e sua série da “locomoção animal”: 1887

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Oliver Sacks de 5 a 7

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Terminei de ler Oliver Sacks sobre a descoberta da morte batendo à porta e me pus imediatamente a pensar em Agnès Varda. Mais especificamente, um de seus primeiros filmes, Cléo de 5 à 7, de 1962, em que acompanhamos durante duas horas (das cinco às sete, justamente) uma jovem cantora que espera o resultado de um exame; ela tem certeza de que ele virá com a notícia do câncer incurável.

Oliver Sacks é um cientista de 81 anos, com um passado cheio de realizações. Mesmo assim, seu relato altivo e elegante me remeteu a Varda e Cléo. É que ambos tocam no mesmo ponto; um ponto que nos atinge a todos, constantemente, mesmo quando não estamos, nem acreditamos estar para morrer. O filme pode servir para iluminar o que há de mais intenso no breve artigo de Sacks. Graças às sequências filmadas décadas atrás, o texto publicado semana passada ganha uma dimensão ainda mais ampla e uma beleza ainda mais vívida.

Na ficção de Varda como na confidência de Sacks, temos a ocasião de vislumbrar uma nesga da imensidão inerente à vida, tanto maior quanto mais temos a experiência e, claro, a ciência da finitude individual. E aqui devo confessar que esse tema andava mesmo rondando a minha cabeça, tendo revisto há poucos dias o filme de Varda. Posso dizer que, a rigor, estou me aproveitando da metástase de Oliver Sacks, o que à primeira vista pareceria uma atitude vil, mas lembre-se que um dos componentes dessa imensidão, aliás dessa tendência ao infinito, é a possibilidade de fazer na vida coisas aproveitarão a outrem.

Sacks cita Hume sobre a proximidade da morte e a vontade de viver: nunca tanta disposição física, tanta curiosidade para os estudos quanto agora, bem pertinho do fim. Uma estranha liberdade, como se a certeza eliminasse a angústia do outro mundo. Junto com ela, Sacks fala de uma estranha capacidade para enxergar a vida passada como uma totalidade, vê-la como nunca foi vista antes, do alto, coerente e completa. Surpreendente serenidade perante o inevitável, que advém quando ele deixa de ser uma especulação existencial e se torna uma data no calendário.

Agnes Varda

Varda não é cientista, não faz citações (não nesse sentido). Ela é artista, faz imagens. Aliás, outro traço que deveria separá-los, mas estranhamente os une, é que, embora ela seja mais velha que ele (tem 86 anos), quando fez o filme contava 34 primaveras. Como eu disse, é um tema universal e ininterrupto. Aos olhos do velho cientista ou da jovem artista, finitude e eternidade, finitude perante a eternidade, finitude ensejando eternidade. Talvez só mesmo diante da morte os finitos reconheçam que são eternos, e eternos só porque são finitos.

Voltando às imagens: sem precisar dizer nada abertamente, o que seria de uma cafonice atroz (tem um ou outro momento assim, a bem dizer), as seqüências do filme expõem com serenidade a dilatação dos sentidos que dão movimento à vida, no instante em que a doença parece sugerir que a vida se resume à unidade frágil do corpo. No táxi, vemos as ruas de Paris que se sucedem diante do pára-brisas (num tempo em que a faixa de pedestres era marcada por semi-esferas de metal que pareciam cascos de tartaruga), enquanto a motorista ouve rádio e as passageiras (a cantora e sua camareira) fazem silêncio.

Como as ruas, as notícias se sucedem. A guerra na Argélia. As declarações de um ministro. Dois ou três faits divers. O cenário perfeito para o enfado. Mas junto com a sucessão de prédios e pequenos engarrafamentos, acompanhando a voz monótona do radialista, segue a personagem, em quem não consigo deixar de ver uma conexão, embora difusa, com tudo que aparece e tudo que é dito. Nem que seja pelo enfado, por uma reação de defesa, um bloqueio. Sem que ela soubesse, tudo aquilo sempre a afetou, como afeta a todos nós.

É claro, são afecções muito diferentes daquelas que povoam o dia-a-dia de qualquer um. Ainda assim, são inextirpáveis delas, porque o que as produz é o dia-a-dia levado ao limite, ao extremo. Se uma briga de casal na mesa vizinha do bar sempre parece algo constrangedor e muitas vezes mesquinho, como parecerá a alguém em conflito com o destino do próprio corpo? E como será para essa jovem mulher com dinheiro, já retratada como consumista e vaidosa, atravessar a cotoveladas um bulevar apinhado de lojas, em que todos os demais se dedicam à atividade do eterno consumo de objetos fugazes – fugazes como a moda que os criou? Um bulevar que ela mesmo deve ter atravessado tantas vezes a passo lento, saboreando as cores, as luzes, os chamados quase convincentes dos vendedores?

A realidade da duração eclode a cada seqüência de Cléo, com seus intervalos rigidamente e cronologicamente marcados. Uma duração que é sempre indefinida, porque remete tanto a memórias e marcas quanto a perspectivas e aspirações, mas em todo caso sempre envolve a percepção, a ação, o desejo da cantora angustiada. Nas suas relações, nas suas escolhas, nos seus caprichos, ela está sempre além das próprias fronteiras porque as partes de sua vida e de seu ser aparecem, se iluminam, pelo contato com o que está fora dela; e é aí mesmo que essas parcelas de realidade aparecem e se iluminam também, junto com ela.

A tal ponto que ela pode chegar a esquecer o que a angustia: porque apaixonou-se por um chapéu, porque um compositor lhe apresentou uma canção adorável, porque uma amiga a levou para o cinema. A visita ao ateliê em que essa amiga trabalha como modelo para escultores, onde o professor corrige com certa impaciência um aluno que não soube representar a curva do quadril. Ela esquece, mas o espectador não. E é no alívio do breve esquecimento, da alegria que sabemos fugaz, que se produz a beleza da narrativa de Varda e, com ela, um sabor a mais na vida como um todo.

É também pelo concurso de estímulos externos que retorna a lembrança do medo, da angústia, do diagnóstico. O chapéu preto, que lhe “cai muito bem”, juízo pronunciado em voz grave. Uma piada do músico que a faz sufocar no próprio apartamento e descambar rua afora. Um galanteador que, inadvertidamente, menciona o início do período de Câncer. Em cada um desses episódios, o alcance da vitalidade de Cléo se contrai novamente, a finitude deixa de ser a janela para um infinito virtual. A duração esmorece e o tempo volta a ser cronológico, uma prisão de sucessões que sufoca a personagem mais do que a angustia.

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Se pudermos fazer do filme de Agnès Varda um pano de fundo para como Oliver Sacks se refere a seu próprio “5 a 7”, o estoicismo do cientista talvez apareça sob uma nova luz, eu diria até que mais intensa. Tem algo a mais do que o mero “cabe a mim agora escolher como viver os meses que me restam; devo viver da maneira mais rica, profunda e produtiva que puder”, que ele diz. Isolado do resto do texto e sem o pano de fundo desse vínculo estreito entre finitude e eternidade, entre duração e tempo, esse trecho seria quase um truísmo – e bastante sintomático da mentalidade contemporânea, com sua ênfase na produtividade. (Note-se que em sua enumeração ele não inclui “compensadora”, “agradável”, “satisfatória”, “alegre”…)

O que tem a mais está adiante: a sensação de estar vivo “intensamente”, que também pode ser traduzido como “intensivamente”, se pensarmos no caráter de contração da finitude e de expansão da virtualidade: é alguém que vê o prazo (cronológico) curto para esticar os braços rumo a um mundo que não tem motivo para limitar-se, e quer esticar seus braços como se fosse um polvo e suas cabeças como se fosse uma Hidra. Cada vez menos cronologia, cada vez mais duração…

Como a passageira do táxi em sua ambígua relação com o noticiário, Sacks também se posiciona, mas intencionalmente, sobre o mundo com seu noticiário e suas politicagens. Diz que não vai mais prestar atenção no que ocorre no Oriente Médio e nos argumentos sobre aquecimento global, não porque tenha tenha deixado de se importar, mas porque essas coisas pertencem a um futuro do qual ele não fará parte. Sacks decidiu manusear a topologia do seu mundo, escolhendo ele mesmo seu formato e seu alcance. Uma eventual questão sobre a viabilidade dessa decisão é estéril, porque o mero gesto de aceitar ou recusar dimensões do mundo é uma expressão de duração, dessa eternidade inerente à finitude.

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Quando Sacks, na esteira de Hume, fala em desprendimento (termo com o qual estou traduzindo insatisfatoriamente “detachment”), ele transmite a idéia de que está deixando um legado e que, quando encontra jovens inteligentes, sente que “o futuro está em boas mãos”. Ele expressa com uma clarividência notável a noção de que sua própria individualidade, sua subjetividade, se podemos dizer assim, está tanto ou mais fora dele (de seu corpo, quero dizer) quanto dentro; ele, enquanto sujeito de um mundo, enquanto alguém que vive – pensa, sente, ama, deseja –, na verdade não é um corpo no espaço, embora sempre atravesse esse espaço do corpo. E seu tempo, naturalmente. Mas se seu tempo terminará certamente, sua duração não necessariamente. Existirá ainda uma porção de subjetividade dele na subjetividade dos outros, nas mãos do porvir, da dita posteridade.

Da mesma maneira, quando ele diz sentir que as mortes dos outros, na sua geração que “está de saída”, são como a perda de uma parte dele mesmo, poderia com até mais razão dizer o oposto: a morte dos outros deixa subsistir desses outros apenas aquilo que eles gravaram e deixaram em nós, nos demais, no mundo. O que não passou pelo outro é o que some.

Ou seja, quando Sacks escreve que os mortos deixam buracos que não podem ser preenchidos, na verdade ele está expressando o oposto: os buracos são seus próprios preenchimentos. Eles têm positividade, subsistência, talvez até mesmo existência. São presenças na forma de marcas, reminiscências, influências, sempre a postos para serem revividas quando alguém as busca e recupera. Essa é a natureza da singularidade absoluta que Sacks expressa ao fim do texto: a singularidade de uma duração, de uma intensividade, de um bailado eterno com o virtual.

Para concluir, volto a Cléo em Paris. Mas antes, um último comentário sobre Sacks. Como é lindo lê-lo a dizer que teve, como escritor e leitor, um “intercourse” especial com o mundo. Termo muito bem escolhido, porque expressa tão maravilhosamente o que pode ser a comunicação como gesto autopoiético e relacional que é usado para se referir ao sexo. Sacks está dizendo que sua relação com o mundo – ou seja, com a vida – foi, para todos os efeitos, carnal. Uma relação de tesão pelo mundo, à qual o mundo responde com tesão. E quando as relações envolvem tesão, elas tendem a criar algo a mais do que os indivíduos que entram nelas. Sacks deixa isso bem claro ao falar de si próprio.

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Agora sim, tenho todos os elementos para concluir com o filme de Varda. O que se pode afirmar, com leveza e alegria, é que a personagem é muito maior, mais viva, mais bela, mais forte, infinitamente mais interessante, ao final de sua jornada do que no início. As duas horas representadas pela cineasta são sem dúvida o principal intervalo da existência de Cléo, o período que mais valeu a pena ou melhor, as penas de caminhar sobre esta Terra.

Em que pese uma escorregada no romantismo barato ao final do filme (uma pena, mesmo…), essa súbita expansão da vida de Cléo perante a morte é resumida na primeira cena, que me parece ser um dos inícios de filme mais brilhantes da história do cinema. Na sala da cartomante, com a câmera fixa acima das mãos das personagens, contemplamos como, em dois minutos, aquilo que parecia ser a consulta de uma menina tola e sonhadora, querendo saber seu futuro amoroso, se transforma no percurso épico de uma mulher angustiada e torturada. É uma reviravolta brutal, executada magistralmente por uma cineasta então ainda iniciante.

Cléo teve de encarar de frente um tempo que lhe parecia curto para aceder à duração. Precisou que fosse rompido seu contato com as coisas do mundo para que o mundo fizesse enfim sentido para ela, tanto em seus objetos quanto em suas relações. Diante dos olhos do espectador, uma pessoa é puxada para além do imediato, esse que é fonte de tantas frustrações, sobretudo à medida que o tempo vai se esvaindo sem avisar.

Oliver Sacks, naturalmente, nunca foi alguém do mero imediato ou do eterno consumo do mesmo. Mas é notável como uma situação semelhante à da personagem de Varda foi o que o incentivou a expressar para o mundo, na imprensa, esse encontro com sua própria duração, no bailado entre finitude e eternidade. Não é por acaso que o texto deixou tanta gente tocada.

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Da série Citações: Aldous Huxley para George Orwell

Há algum tempo, circulou pela internet uma comparação entre as previsões distópicas desses dois autores, Huxley em Admirável Mundo Novo (de 1932) e Orwell em 1984 (de 1949). A conclusão era de que o universo previsto por Huxley era mais parecido com o mundo como ele é hoje do que o imaginado por Orwell.

No mundo de Huxley, a sedução, a hipnose e o prazer (em suma, a alienação) seriam os elementos nodais da dominação totalitária definitiva. No de Orwell, seriam a vigilância, o controle, o pavor. A diferença de datas de publicação não deixa de carregar uma parte da explicação para tamanha disparidade. Ao escrever, Huxley acompanhava o desmoronamento dos anos loucos anteriores à Grande Depressão, era do Fox Trot e dos americanos em Paris. Já Orwell, ao escrever, acabava de saber da existência de Auschwitz. Atroz seria escrever um livro depois de Auschwitz, a não ser que fosse 1984?

Na comparação que rodou a rede, o consumismo, a indústria cultural e a maior parte da internet eram apresentados como demonstrações do acerto de Huxley. Esse lance de terror, opressão e vigilância tinha ficado para trás, derrotado em Stalingrado e na Normandia.

Aí veio Obama, o homem dos drones e do Prism, o Bush de fala macia. E embaralhou tudo de novo. Minha tentação é dizer: ambos previram bem, mas parcialmente. Fazendo rodopiar incestuosamente a opressão e a sedução, o baile está garantido para o dominador.

E no meio disso tudo, encontro a carta que vai aí abaixo. No lançamento de 1984, Orwell pediu ao editor que mandasse um exemplar do livro para seu outrora professor de francês, Aldous Huxley. E Huxley respondeu. É interessante aprender de onde ele tirou a referência de sua sociedade da sedução, do Soma, do hedonismo Ikea. No mínimo uma curiosidade, enfim.

Wrightwood. Cal. 21 October, 1949

Dear Mr. Orwell,

It was very kind of you to tell your publishers to send me a copy of your book. It arrived as I was in the midst of a piece of work that required much reading and consulting of references; and since poor sight makes it necessary for me to ration my reading, I had to wait a long time before being able to embark on Nineteen Eighty-Four.

Agreeing with all that the critics have written of it, I need not tell you, yet once more, how fine and how profoundly important the book is. May I speak instead of the thing with which the book deals — the ultimate revolution? The first hints of a philosophy of the ultimate revolution — the revolution which lies beyond politics and economics, and which aims at total subversion of the individual’s psychology and physiology — are to be found in the Marquis de Sade, who regarded himself as the continuator, the consummator, of Robespierre and Babeuf. The philosophy of the ruling minority in Nineteen Eighty-Four is a sadism which has been carried to its logical conclusion by going beyond sex and denying it. Whether in actual fact the policy of the boot-on-the-face can go on indefinitely seems doubtful. My own belief is that the ruling oligarchy will find less arduous and wasteful ways of governing and of satisfying its lust for power, and these ways will resemble those which I described in Brave New World. I have had occasion recently to look into the history of animal magnetism and hypnotism, and have been greatly struck by the way in which, for a hundred and fifty years, the world has refused to take serious cognizance of the discoveries of Mesmer, Braid, Esdaile, and the rest.

Partly because of the prevailing materialism and partly because of prevailing respectability, nineteenth-century philosophers and men of science were not willing to investigate the odder facts of psychology for practical men, such as politicians, soldiers and policemen, to apply in the field of government. Thanks to the voluntary ignorance of our fathers, the advent of the ultimate revolution was delayed for five or six generations. Another lucky accident was Freud’s inability to hypnotize successfully and his consequent disparagement of hypnotism. This delayed the general application of hypnotism to psychiatry for at least forty years. But now psycho-analysis is being combined with hypnosis; and hypnosis has been made easy and indefinitely extensible through the use of barbiturates, which induce a hypnoid and suggestible state in even the most recalcitrant subjects.

Within the next generation I believe that the world’s rulers will discover that infant conditioning and narco-hypnosis are more efficient, as instruments of government, than clubs and prisons, and that the lust for power can be just as completely satisfied by suggesting people into loving their servitude as by flogging and kicking them into obedience. In other words, I feel that the nightmare of Nineteen Eighty-Four is destined to modulate into the nightmare of a world having more resemblance to that which I imagined in Brave New World. The change will be brought about as a result of a felt need for increased efficiency. Meanwhile, of course, there may be a large scale biological and atomic war — in which case we shall have nightmares of other and scarcely imaginable kinds.

Thank you once again for the book.

Yours sincerely,
Aldous Huxley

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Duas, três, muitas escolas Friedenreich

Estou com a impressão de que o campo de batalha decisivo para o levante social das últimas semanas será o Rio de Janeiro. O rumo que os eventos tomaram me sugere que o caminho que o país vai querer traçar para si próprio não vai ser tanto o fruto de deputados que passam duas ou três madrugadas votando coisas às pressas, mas o embate entre a vontade da guerra e o sonho de vida entre cariocas. Na antiga capital está em jogo e, de certa forma, tem estado há alguns anos, aquilo que me parece mais central e fecundo nas agitações pelo país, ainda que a gota d’água tenha sido derramada em São Paulo, naquela assustadora quinta-feira. Falo da violência com que se reproduz quotidianamente o abismo social do país. E também, sem dúvida, do próprio abismo.

Vi por esses dias alguém comentando como era impressionante ver, ao mesmo tempo, o complexo da Maré se erguendo contra a brutalidade policial, depois da chacina da madrugada; os estudantes se reunindo no Centro (sede do IFCS) com movimentos sociais; manifestantes pressionando diretamente o governador, mesmo com relatos de ameaças de morte; instrumentos de mobilização recém-surgidos conseguindo aprovar na câmara dos vereadores a CPI dos transportes públicos, a polícia e o governo deixando de lado qualquer civilidade no discurso e, para tomar emprestada a expressão do Sakamoto, perdendo o pudor do terrorismo de Estado. Continuar lendo

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Pauta difusa e derrota, mais uma vez

Para finalmente dar meu palpite sobre o furacão que passou no Brasil nas duas últimas semanas, adotei dois princípios: pensar em termos conceituais, em vez de impressionistas, e começar do começo. Os motivos, espero, vão ficar claros ao longo do texto.

No começo, isto é, entre a porradaria geral da polícia e a primeira manifestação realmente gigantesca, a interpretação geral era de um “aqui também”. Até então, o país que realmente estava fervendo era a Turquia. Lá como cá, o primeiro vetor invocado para explicar a súbita capacidade de motivação foi o acesso às redes sociais. Ou seja, a Turquia e o Brasil seriam algo como um segundo tempo do animado ano de 2011, que teve Primavera Árabe, Occupy Wall Street, indignados na Espanha, manifestações em Israel, Chile e mais tantos outros países.

Mas eis que veio 2012, o ano da decepção: a Espanha, como o resto da Europa, seguiu com suas políticas de austeridade; na Grécia, o neonazismo ganhou terreno. No mundo árabe, os países sortudos se viram com governos religiosos e conservadores; os azarados, com guerra civil. O Occupy teve de se contentar em descobrir que não só Obama baixou a cabeça para Wall Street, como, no que tange aos direitos civis, estava na mesma linha de Bush. Derrotas, ao que parece.

Agora, 2013. Novos países entram na dança. Além da Turquia e do Brasil, Índia e Indonésia, além de, mais uma vez, os bravos chilenos, se colocam em movimento. Como sempre acontece, comparações pululam com o famoso maio de 1968, quando a greve geral francesa, somadas às manifestações dos estudantes franceses, se espalharam para o Leste Europeu, o México, o Brasil, antes de resultar em derrota e apatia.

Algo nessa comparação, porém, não se encaixa. Em 1968, o que houve de efetivo, como a greve que, sem eufemismos, parou a economia da França, foi comandado pelos fortíssimos sindicatos da época, um tempo de mobilização industrial e partidos de esquerda poderosos. Os caminhos para se chegar aos objetivos, fossem quais fossem as pautas de cada grupo social envolvido, à exceção provável dos estudantes, estavam bem traçados, até onde podiam divisar os envolvidos.

Hoje, não há nada disso. Em 2011, os árabes queriam derrubar seus ditadores. E depois? Os espanhóis queriam mandar embora o neoliberalismo… e mais o quê? Os novaiorquinos eram contra a plutocracia, como quase todo mundo. E assim por diante. No Brasil, as manifestações mais ou menos pequenas contra a cara de pau do transporte público se expandiram da noite para o dia numa maçaroca de gente despolitizada que protesta contra conceitos abstratos como a corrupção, mas não quer saber de questões concretas como… a corrupção do oligopólio do transporte. Com isso, as mesmas críticas endereçadas aos indignados e ao Occupy voltaram: as pautas são difusas, as pessoas não propõem nada de concreto. Continuar lendo

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O pedestal

Este é alguém que fabricou para si um pedestal. É alguém que, na gramática usual, não pode grande coisa. É o estereótipo do impotente. No dia-a-dia, precisa fabricar ou garimpar tudo que usa, mas seus poderes terminam aí. E um pedestal não é algo que se use, simplesmente. Continuar lendo

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Da série “viva a arte de rua”

Às vezes, para expressar uma grande verdade, basta inverter um grande lugar-comum.

Nem sempre é assim, claro.

Mas é interessante notar como as palavras bonitas e inspiradoras oferecem um momento de satisfação, algo que se deixa facilmente confundir (talvez voluntariamente, na verdade) com mensagens edificantes.

Palavras duras, num ambiente duro (essa aí é uma parte da Lapa não particularmente favorecida pela boemia zona-sul), talvez sirvam melhor para edificar, se lembrarmos que todo processo de edificação começa pela terraplenagem.

Não estou falando de demolição, de trazer abaixo seja o que for, mas de enxergar o terreno ainda na condição de terreno, sobre o qual se possa imaginar um projeto.

Como reverter a um estágio de terreno e de projeto, como dar início a uma terraplenagem, sem postular alguma quixotesca demolição, dessas que exigem dinamite e só podem ser realizadas por empreiteiras enormes, ricas e estruturadas, com um alvará na mão, leia-se um documento concedido pelo poder?

Sei lá. Passo a pergunta aos artistas de rua.

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Enquanto vou fechando: Charles Aznavour

Quem já se apertou num apartamento minúsculo, oprimido pela falta de luz e pelo frio glacial. Quem já flanou entre fachadas de pedra com placas de moradores ilustres. Quem já viu minguar a conta bancária e recebeu ameaças pelo correio. Quem já passou horas procurando pelo menu mais barato do bairro para almoçar mal…

Não fica indiferente a esta canção.

“E quando, em troca de uma boa refeição quente, um bistrô qualquer comprava uma tela nossa, recitávamos versos encarapitados em volta do aquecimento, esquecendo o inverno”.

Viva Charles Aznavour (ou, se preferir, Chahnourh Varinag Aznavourian), o homem que se aposentou 14 vezes e continua trabalhando. E também, claro, protagonista de uma das obras-primas de François Truffaut, Atire no Pianista:

Então viva Truffaut também, mas fica pra próxima…

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A Internacional Digital

Deixo como isca para debates um trecho não publicado da entrevista que fiz com Bernard Stiegler, filósofo francês. A versão editada está no Valor de hoje. Transcrevi o trecho que segue abaixo porque me parece que tem muito a ver com algumas coisas que tenho tentado escrever por aqui ultimamente. (Claro, pombas, como leitor dele, muito do que ele diz me influencia.) Mas ele se expressa, naturalmente, muito melhor do que eu.

Stiegler é um dos principais herdeiros de meu autor de predileção, Gilbert Simondon. É também diretor do Instituto de Pesquisa e Inovação do Centro Pompidou (Paris), fundador da associação Ars Industrialis e professor em Compiègne, Londres (Goldsmiths), Cambridge e, a partir do segundo semestre, mais uma instituição superior francesa. Para saber mais sobre o sujeito, basta clicar nos links. Continuar lendo

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Se formos sociedade civil

Eu deveria dar mais um tempo antes de sentar para escrever isso, mas por instigação do Catatau e da Nicole no texto anterior, vamos aos comentários sobre a Marcha da Liberdade do sábado último. Na verdade, desconfio de que o assunto vai deslizar para a ocupação das cidades espanholas por sua juventude desiludida e indignada – é que não tem como comparar uma caminhada de poucas horas com as semanas de manifestações –, mas vou fazer algum esforço para evitar a escorregadela…

A primeira coisa a ser dita é que a importância de uma ocasião como essa passeata está muitos graus abaixo do perfil revolucionário que muitos querem ver nela, inclusive seus detratores, que gostam de debochar justamente do fato de que não haverá revolução alguma, como se esse fosse o âmago da questão. Em outra escala, o mesmo valeria para o caso espanhol, que já andam chamando de “revolução espanhola”, quando na verdade o que parece é que as coisas não precisam ser propriamente revolvidas, mas redescobertas. Volto a isso depois. Por enquanto, o fundamental é entender que “abaixo” não foi dito em tom pejorativo, mas puramente geométrico: o que está sendo questionado é o primeiro degrau da escada. Numa imagem barata, mas expressiva, podemos dizer que o modo de assentar esse primeiro degrau vai determinar a direção em que a escada pronta subirá. Continuar lendo

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