Eu deveria dar mais um tempo antes de sentar para escrever isso, mas por instigação do Catatau e da Nicole no texto anterior, vamos aos comentários sobre a Marcha da Liberdade do sábado último. Na verdade, desconfio de que o assunto vai deslizar para a ocupação das cidades espanholas por sua juventude desiludida e indignada – é que não tem como comparar uma caminhada de poucas horas com as semanas de manifestações –, mas vou fazer algum esforço para evitar a escorregadela…
A primeira coisa a ser dita é que a importância de uma ocasião como essa passeata está muitos graus abaixo do perfil revolucionário que muitos querem ver nela, inclusive seus detratores, que gostam de debochar justamente do fato de que não haverá revolução alguma, como se esse fosse o âmago da questão. Em outra escala, o mesmo valeria para o caso espanhol, que já andam chamando de “revolução espanhola”, quando na verdade o que parece é que as coisas não precisam ser propriamente revolvidas, mas redescobertas. Volto a isso depois. Por enquanto, o fundamental é entender que “abaixo” não foi dito em tom pejorativo, mas puramente geométrico: o que está sendo questionado é o primeiro degrau da escada. Numa imagem barata, mas expressiva, podemos dizer que o modo de assentar esse primeiro degrau vai determinar a direção em que a escada pronta subirá.
Uma resposta simples e direta para uma pergunta simples e direta: por que participar da Marcha da Liberdade? Porque sou membro de uma sociedade civil. Não é para “mudar o mundo”, que isso ele faz por conta própria, as escadas do parágrafo anterior estão sempre em construção e tem sempre uma multidão subindo por elas – até que o peso fica grande demais e ela entra em colapso. Não é para derrubar governos, nem alterar de uma hora para a outra o equilíbrio de poder, nem uma série de outras coisas que uma passeata, em si, não pode fazer (mas pode ajudar a fazer se estiver controlada, leia-se manipulada, de cima, como parte de uma estratégia política maior e não raro inconfessável).
Ser membro de uma sociedade civil parece banalidade, mas é de tirar o fôlego, uma vez que, pelo menos desde que me tomo por gente – o que não é muito tempo, mas coincide com o fim da Guerra Fria –, a noção de que fazemos parte de algo dessa ordem foi quase inteiramente esquecida. Nos últimos 20 anos, talvez mais (isso eu não poderia afirmar), adquirimos o hábito de crer que vivemos em cidades, negociamos no mercado, votamos nas eleições e a coisa acaba aí. A maneira mais eticamente louvável de viver é ficar na sua, trabalhar duro e reiterar sua rejeição à política como um todo, particularmente aos políticos. Esses, por sua vez, tratam de ficar bem à distância da realidade dos demais cidadãos, relacionando-se com eles quase só através da emulação dos elementos com que a sociedade se identifica, nomeadamente os produtos das prateleiras. À parte a caricatura das últimas duas frases, o argumento geral é esse: a sociedade civil ficou esquecida, pelo menos no plano do discurso, da épistemè, da gramática pela qual foi possível, nesses últimos 20 anos ao menos, se comunicar, organizar o pensamento e tomar decisões.
Mas é claro que a sociedade civil jamais deixou de existir. Enquanto houver soberania e algum tipo de lei, haverá sociedade civil. O que não é nenhuma declaração espantosa, é simplesmente uma das maneiras de explicitar a definição de uma sociedade civil em sua acepção clássica, por oposição a uma turba descontrolada. Adquirimos o costume de dividir a sociedade em governo, iniciativa privada e sociedade civil, mas essa divisão me parece absurda, porque parte do princípio de que as estruturas presentes são dadas, únicas, estanques, quando na verdade elas necessariamente surgem a partir de um fundo comum, de uma realidade que justifique qualquer divisão desse tipo. Tornar-se civil é tornar-se sociedade, é deixar de ser bando. Isso vale mesmo para uma sociedade civil que procura se ignorar ou até se negar, numa atitude que, sem querer abusar de novo do velho Freud, tem qualquer coisa que lembra a denegação: uma entidade política que diz “eu recuso a política”, como um paciente que diz “a mulher no meu sonho não é minha mãe”.
As sociedades civis podem ter muitas caras, dependendo de quem está capacitado a construí-la e reproduzi-la. Daí temos monarquias, tiranias, democracias, plutocracias, oligarquias, teocracias… Palavras não faltam, para quem é chegado a uma tipologia. De forma extremamente esquemática, mas útil, pode-se estimar que, em cada uma dessas formações, há um ou alguns sentimentos que se sobressaem. Por exemplo, pavor nas tiranias, ganância nas plutocracias, piedade nas teocracias. Antigos filósofos políticos adoravam esse tipo de associação, de Platão até, pelo menos, Montesquieu. Mas duvido que algum deles pudesse ligar algum sentimento a uma sociedade civil incapaz de enxergar a si própria como tal…
Há quem teorize profundamente a respeito dessa cegueira reflexiva, como Bauman, Stiegler, Sloterdijk, ou, em outro registro, Negri e sua entourage. No âmbito deste texto, acredito que o que estamos presenciando ao redor do mundo, em grande escala entre os árabes e os espanhóis, em pequena escala (por enquanto) na França e no Brasil, é a redescoberta da sociedade civil. Por isso a importância de ser parte dos eventos em que a existência dessa sociedade é trazida para o primeiro plano, para não dizer algo cafona como “celebrada”. Considerando que a face visível da sociedade civil, como mencionei acima, é determinada por aqueles que estão capacitados a implantá-la e reproduzi-la, ou seja, mantê-la em funcionamento, eu poderia resumir assim a questão: quero ser um desses.
Isto dito, há muitas coisas que considero repreensível na manifestação de sábado, a começar pelas bandeiras de organizações que bem conheço dos tempos de faculdade, ligadas a e manipuladas por partidos políticos que não fazem jus ao próprio nome. Pessoas que claramente só estavam ali pela questão da maconha, não a maconha em geral, mas a própria. Um sociólogo que caminhava um pouco atrás do meu grupo e tentava convencer a todos em volta de que ele era o pai daquela passeata e de todas as outras. Uma jovem muito entusiasmada, mas tão entusiasmada que provavelmente teria preferido sair a se manifestar sozinha, sem toda aquela gente em volta para roubar o seu foco. A fixação com a questão pontual do preço da passagem de ônibus. O momento, logo no início, em que cheguei a pensar que tinha me enganado e ido parar numa marcha religiosa: o megafone lançava mantras, piamente repetidos pela multidão. E assim por diante.
Repreensíveis, eu disse, mas tudo bem: na sociedade civil que mais prezo, entre as existentes, há muito que cada um possa e queira repreender. Embora o espírito algo reverente e pio dos mantras me incomode, porque copia estruturas de poder com fortes tendências autoritárias, sei bem que o ritual – e isso é uma forma de ritualismo – está bem arraigado no espírito humano e serve para estabelecer parâmetros de conduta e leitura da realidade. Há gente chata como a menina entusiasmada e pedante como o sociólogo pedante (sim, repeti a palavra), mas quem sou eu para definir quem virá a público em nome da liberdade. Questões pontuais como o preço da passagem resumem e representam o desastre civil, civil como a sociedade, do transporte público em São Paulo. Quanto aos partidos, seus vícios não existiriam se as forças políticas não tivessem esses mesmos vícios – opa, quem são as forças políticas? Ora, são os membros da sociedade civil…
Cinco mil pessoas na rua certamente não permitem decretar a redescoberta da sociedade civil, mas provoca vibrações que podem, quem sabe, se tornar ondas de choque. Posso citar vários exemplos. Primeiro: poderíamos reprochar à manifestação o fato de que os verdadeiros oprimidos, nomeadamente aqueles oprimidos quotidianamente pela violência policial, não têm voz e força, neste país (adoro a expressão “neste país”), para realizar uma passeata como essa. É fato, os verdadeiros oprimidos têm muito pouca força, mas muito pouco não é sinônimo de nada. Lá estavam eles, distribuindo panfletos: “a violência policial é coisa quotidiana para quem acorda com chutes de coturno ou é espancado quando caminha por seu bairro”. Não eram muitos, mas marcando presença, falando, mostrando o rosto, e lembrando àquela mesma menina entusiasmada, àquele insuportável sociólogo, àquelas pessoas que só pensavam na própria maconha, a mim também, que o buraco é mais embaixo.
Esse tipo de diálogo faz parte de uma sociedade civil em bom estado de funcionamento. Deve, portanto, ser generalizado. Da próxima vez que mandarem a tropa de choque contra cidadãos sem-teto, o movimento negro ou usuários de ônibus, lembremo-nos desses folhetos e da Marcha da Liberdade: uma sociedade em que cidadãos são tratados na base da porrada é uma sociedade incapaz de perceber seus membros pobres como cidadãos. É uma sociedade, portanto, adoecida. É necessariamente a mesma sociedade em que líderes sindicais são assassinados, depois vaiados (essa foi inacreditável) no Congresso (mais inacreditável ainda). E é necessariamente a mesma sociedade em que rábulas se vêem no direito de assinar uma sentença que rasga a constituição. Mas é sempre uma sociedade civil, muito embora capenga.
Segundo: como já ressaltaram os textos de Fabrício Kc e Walter Hupsel, os organizadores da passeata tiveram o bom senso de negociar com o comando da polícia as condições para sua realização. Sim, é absurdo que algo assim precise ser negociado e é ligeiramente paradoxal que uma caminhada pela liberdade tenha sua própria liberdade cerceada. Por outro lado, tendo a pensar que não haveria necessidade de passeata pela liberdade na ausência de barreiras como essas. A imagem da fila de policiais em cordão de isolamento diante do Masp, um dos quais segura uma flor entregue pelos manifestantes, tende a se tornar icônica. Também presenciei cenas em que outros policiais recusavam as flores e não era necessária muita sagacidade para perceber que havia outras, ainda, pisoteadas no chão. O raciocínio é o mesmo: existe aí um conflito, mais que tudo um conflito de idéias sobre o papel da polícia: ponta-de-lança da repressão ou garantia da paz? Mas o fato é que esse conflito lógico, discursivo, epistêmico, foi exposto a céu aberto, pela primeira vez em muito tempo. É pouco, muito pouco, mas é uma brisa de sociedade civil redescoberta. Oxalá tomemos gosto.
O fato de que, num espaço de poucos metros, haja o policial que pisoteia a flor, o policial que a recusa por prudência e o policial que a aceita porque mal não há, só isso já lança uma sombra de dúvida sobre o consenso de que a função primordial da polícia é limpar a cidade de tudo que seja desviante ou dissente, aqueles que atrapalham o trânsito, aqueles que exigem melhores condições de moradia, aqueles que, por estarem parados na calçada e não serem ricos, “só podem ser bandidos”. A frase está entre aspas porque é citação, já foi dita milhões de vezes, parece quase um consenso entre paulistanos com opinião política que conte. Uma manifestação que questione esse consenso é apenas uma fissura, não vai implodi-lo. Coisas como as listadas neste texto do Panoptico não vão deixar de acontecer. Mas a fissura foi estabelecida, há quem esteja disposto a peitar a arbitrariedade, não só da polícia, mas também do judiciário, e a tendência é que, se redescobrirmos mesmo a sociedade civil, haja cada vez mais.
A política de uma sociedade vive na medida em que seus membros vivam politicamente. Lamentar-se pela existência de corrupção no país não é viver politicamente, é furtar-se à política, mesmo se for em termos irados como os que vemos nas seções de cartas dos jornais. Porque a vida política se dá onde estão os outros membros da sociedade, em público, naquilo que os gregos chamavam de ágora. Onde, enfim, seja possível enxergar que existem demandas, existem exigências, existem vontades, potências, e elas precisam ter algum tipo de comunicação que resulte na constituição de uma sociedade civil e seu futuro. Ora, se essa comunicação for violenta, a sociedade será pautada pela violência; se for negociada, a sociedade será pautada pela negociação; se for ignorada, abafada, calada, envergonhada, o processo é o mesmo. O que cumpre fazer o quanto antes, e tenho esperança de que esteja começando a acontecer em diversos pontos do mundo, é redescobrir exatamente esse processo, se possível aquele que se pauta pela negociação, o contato que não é violento e que permite a expansão das potências indistintamente.
Duas coisas:
1. Pq vc vê essa Marcha como algo meio novo? Não temos tido dezenas de marchas assim há tempos?
2. Tirania etc. são formas de governo, não? Pq formas de sociedade civil?
abçs
CurtirCurtir
Salve Maceió,
1) A marcha é só um exemplo. O que acho novo é o movimento que está se generalizando, de ir à rua e mostrar quais são as reivindicações. Como coloquei no primeiro parágrafo, não tem como comparar o que acontece na Espanha com uma coisa pequena como a marcha, mas, isso dito, uma certa vontade de olhar de novo para a esfera política está começando a aparecer. Falo da marcha porque estou mais próximo dela. Não se esqueça que este texto é uma reverberação do anterior.
Isso dito, acho útil frisar que esta marcha, diferentemente das últimas, é motivada por um conceito amplo e fundamental, e não por um grupo específico: maconha, gays, mulheres, camponeses… O fato de ter tido bem mais gente do que a da maconha é alvissareiro, porque quebra a idéia de que são só uns moleques querendo fumar em paz.
2) A definição clássica (como eu frisei) de sociedade civil se contrapõe não a governo, mas a malta, direito natural, estado de natureza etc. A forma de governo está incluída nisso. Acho que, nos tempos mais recentes, o conceito de sociedade civil tem sido usado de maneira pouco fecunda, como algo contraposto ao governo e às vezes até ao mercado. Assim, o governo, na definição clássica, é uma das modalidades de organização da sociedade civil. Em todo caso, cabe notar que um regime democrático, por exemplo, não necessariamente reflete uma sociedade democrática; já a tirania tende a engolir a sociedade e sufocá-la em todas as suas manifestações de potência. Tem também o totalitarismo, que tende a se colocar inteiramente no lugar da sociedade (na frase de Gentile: “tudo pelo Estado, tudo no Estado, nada fora do Estado”… (cito de cabeça). E assim por diante.
Abs
CurtirCurtir