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As efígies de Marina

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Muito se fala em Marina Silva como fenômeno eleitoral que, mais uma vez, irrompe de forma surpreendente no calendário; são muitas avaliações e muitas certezas, mas até hoje não vi nada sobre o que há nela de mais enigmático e fugidio. Não só pelo efeito que teve sobre o petismo – que, de repente, redescobriu-se de esquerda, ao menos em temas estritamente econômicos – e sobre os tucanos – que alegremente abandonaram um candidato que nunca os agradou de verdade –, nem só pelas idas e vindas ideológicas de alguém que quer governar com Lula e Fernando Henrique, Suplicy e Serra, Giannetti e Erundina. Mas também porque à candidata do PSB aderem tantas – e tão bem – versões e interpretações que o substrato desaparece, torna-se inacessível.

Toda vez que leio sobre Marina, seja de marineiros, seja de anti-marineiros, colunistas de jornal, cientistas políticos etc., sinto que estou lendo não sobre uma pessoa, mesmo uma figura política, mas sobre uma efígie, um daqueles ícones gregos cujo conteúdo simbólico era preenchido pela economia afetiva dos fiéis nos quatro cantos do Império Bizantino. Por isso, noves fora o que venha a significar a efígie de Marina Silva na cédula eleitoral e, com uma probabilidade não negligenciável, nas paredes do Palácio do Planalto, tenho mais interesse em discutir as versões de Marina do que a própria Marina. Até porque, como eu disse, a Marina que tem uma voz, um corpo e uma história está soterrada por suas versões e sou incapaz de exumá-la.

Mas pelo menos acho que consigo pentear um pouco esse universo das versões. Essas são quase infinitas, mas as mais importantes são pelo menos três. Para dar um pouco de tempero à exposição, divido essas versões segundo uma lógica semelhante à de gêneros literários. Com isso, temos, para começar, o suspense fantástico, em que Marina é um fantasma que encarna todos os medos passados, presentes e futuros, como no conto de natal de Dickens. Temos, em seguida, a auto-ajuda de banca de rodoviária, em que ela é a tábua de salvação para todas as frustrações de uma vida desajustada. Por fim, temos ainda o épico novelesco, que faz da candidata a encarnação de esperanças órfãs e flutuantes.

Esses são, respectivamente, a Marina dos petistas, a Marina da direita “de raiz” e a Marina de uma certa classe média autoindulgente, que quis fazer de junho de 2013 o instante apoteótico do civismo anódino. O que tem de interessante nessa multiplicidade de imagens de Marina? Respondo: a curiosa coincidência de que todas elas surgem de um mesmo gesto, isto é, o impulso para recobrir com o coque bem-comportado da ex-ministra a própria insuficiência, a própria falha trágica.

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Dickens no Planalto

Começo pela narrativa petista. Nela, Marina é um fantasma assustador,que arrastacorrentes pelo sótão à noite, gritando “buuu”. Ela é a imagem de alguém que vai mandar escada abaixo as conquistas populares dos últimos anos em nome de uma ecologia vulgar, algo como “ela vai parar o país para salvar o mico da Amazônia e a perereca da Baixada”. Vai, por fim, interromper o processo de ruptura com sei lá quais forças políticas que estariam sendo desalojadas pelo triunfo de Lula, ainda que a maior parte dessas forças pareçam estar perfeitamente alojadas no Estado até hoje.

O segundo ponto dessa narrativa faz uso de uma verdade quase inegável para produzir um enorme sofisma. Nela, Lula teria dado início a uma transformação epocal que só Dilma seria capaz de prosseguir. Em que pese a transformação socioeconômica que ocorreu no Brasil desde 2003, a própria noção de uma transformação epocal, isto é, a inauguração de um novo período histórico no país, a superação de uma etapa e assim por diante, pressupõe que ela não possa ser simplesmente prosseguida. Pode-se prosseguir com um estado de coisas, mas não com a superação de um estado de coisas. Se for verdade que o Brasil atingiu um outro patamar com a inclusão social, a superação da fome endêmica e o combate ativo à miséria, e eu acredito que isso seja uma verdade bastante evidente, necessariamente será preciso pensar o país em outros termos. A idéia de “mudar mais” não contém essa percepção, mas retorno a isso em seguida.

Voltemos ao gênero “suspense fantástico”. Para dar conta da ascensão de Marina Silva, essa narrativa não pode ver nada de diferente do que a intenção, ou então um empuxo inerente à sociedade, de barrar ou reverter a transformação epocal. Então, a nova coqueluche eleitoral só pode ser fruto de: 1) uma conspiração conservadora; 2) a ilusão de uma classe média urbana que se crê moderninha, mas é conservadora; 3) um espoucar de fundamentalismo religioso, em aliança instável com um messianismo ambiental também iludido.

Aos olhos petistas, nada mais pode explicar a onda marineira senão a reação ao processo modernizador encabeçado por pontas-de-lança como Guido Mantega, Henrique Meirelles e José Eduardo Cardozo. Como se estivéssemos num novo 32, num novo 54. Afinal, grande parte da narrativa petista ortodoxa consiste em afirmar-se como continuação de Getúlio, o que não deixa de ser curioso, porque toma Getúlio apenas em sua vertente de modernizador econômico-industrial e deixa de lado o Getúlio que compunha com oligarquias e combatia violentamente a dissidência, comunismo em particular – algo que não deixa de ter seus paralelos no Brasil de hoje, falando nisso.

Esse fantasma, que sempre rondou de alguma maneira a ambição de colocar o Brasil na modernidade industrial (veja você), acabou por encarnar-se numa ex-correligionária. Nela se combinam os saudosos do neoliberalismo, o antipetismo difuso e o explícito daquilo que vem sendo chamado de “antiga classe média”, as quimeras de quem preferiria ver um modelo de desenvolvimento menos destrutivo (e aqui surgem afirmações como “o Brasil não é a Alemanha”, que contradizem frontalmente aquela ambição industrializante) e por aí vai. Marina Silva, a síntese espectral de tudo que não é a luz do desenvolvimentismo.

A conseqüência mais visível é aquela que se expressa na denúncia tão repetida de que não há “nova política” nas ações de Marina, ao contrário do que quer seu discurso. De fato, é um discurso enganoso e cheio de inverdades, esse de uma “nova política”. Mas, primeiramente, não deixa de ser divertido ver políticos atirando a primeira pedra no assunto “discurso enganoso”. E, mais importante ainda, ninguém vai se perguntar por que é que o discurso de uma “nova política” ecoa tanto?

No plano meramente fenomenal, poderíamos ficar satisfeitos com a resposta de que “a política tradicional está esgotada” ou “a representação popular é insuficiente”, mas isso não explica a gigantesca carga de paixões que se envolvem num processo eleitoral como este que estamos atravessando. Demonstração disso são as oscilações nas intenções de voto dos candidatos, que dão até mesmo a Aécio uma nesga de esperança. Outra demonstração está no retorno de algum sabor de debate ao período eleitoral. Finalmente estamos vendo posicionamentos em relação a coisas como o papel do Bacen, a relação entre religião e política, e se o Estado deve colocar-se a reboque do mercado ou tentar direcioná-lo de alguma maneira.

Traduzo: não existindo, a “nova política” introduziu na administração do calendário eleitoral algo que andou ausente demais: a política, que poderíamos chamar de “velha”, mas, neste sentido, tem qualquer coisa de atemporal, embora sua roupagem possa envelhecer e rejuvenescer, cá e lá. O que a falsa, enganosa, mentirosa, quimérica “nova política” escancarou não foi o esgotamento de uma “velha política”, como ela se propunha a fazer. A tal “velha política”, na verdade, é apenas a noção de que se possa simplesmente “administrar” ou “gerir” a coisa pública, modo infeliz de pensar que une num abraço caloroso Aécio-choque-de-gestão-lá-em-Minas-Neves e sua arqui-inimiga Dilma-gerentona-que-faz-assessor-chorar-Rousseff. É aquilo a que Jacques Rancière se refere, por exemplo, como “polícia”. Em outras palavras, o que a “nova política” tão ingênua escancarou foi a absoluta despolitização da sociedade, aí inclusos os partidos políticos, mesmo aqueles com raízes altamente politizadas.

Por isso, se Marina é um fantasma para a cúpula petista, isso decorre de sua própria hybris, sua falha trágica. O partido que, no Brasil que se redemocratizava, mais teve a política no cerne da sua formação e de seu crescimento admirável, coisas que não se pode honestamente negar em relação ao PT, foi também o partido que supervisionou o maior processo de despolitização da sociedade brasileira em período democrático. Funcionou enquanto era preciso desativar o campo minado que permitiria a tal transformação epocal, leia-se inserção social e supressão da miséria (em outro texto, tentei argumentar o quanto a questão da miséria é fundamental para entender o sucesso do governo Lula, mas é preciso reforçar essa argumentação, coisa que ficará para ainda um outro texto, a ser escrito sabe-se lá quando).

Essa estratégia imediatamente deixaria de funcionar quando o impulso da inserção começasse a enfraquecer e fosse necessário atacar os grandes nós e gargalos que mantêm tão injusta a sociedade brasileira: interesses encastelados, rentistas, latifundiários, oligarcas e oligopolistas, todos eles muito poderosos e muito articulados. Só haveria um caminho para fazer isso: a política. Seria preciso correr riscos, entre eles o de ficar fora do poder. Haveria confronto, porque quando há política, há confronto. Não se trataria de “prosseguir” uma transformação epocal que só pode ocorrer de uma vez, mas de construir as estruturas da tal nova etapa.

O PT se recusou a assumir essa tarefa. Definiu-se como governo de esquerda cujos antagonistas todos seriam “a direita”. Aliou-se, para tal, a diversas cepas daquilo que, em outras eras, teria denominado “direita”. Atingiu um notável controle sobre a máquina política cujo principal efeito prático não foi jamais a garantia de sucesso na implantação de políticas públicas, essas que desalojariam os poderes tradicionais encastelados, mas a garantia de que seus adversários mais frontais teriam uma posição marginalizada nos processos legislativo e eleitoral. E só. Desse ponto de vista, foi um enorme sucesso, atestado pelo naufrágio do PFL e a contenção em um nível meramente estadual do PSDB. No mais, os interesses encastelados prosseguem impávidos, aprovando seus códigos florestais e barrando suas reformas políticas.

Marina, espectro Marina, cujo uivo na calada da noite pergunta: voltará a política? Pessoalmente, acredito que ela terá de voltar, mais cedo ou mais tarde: ainda somos uma sociedade cheia de cisões e a inclusão social não poderá ter outro efeito senão aguçá-las. Duvido que a política, não “nova”, mas “novamente”, se encarne em Marina Silva, mas temos hoje um gostinho dela. André Singer foi a mente vinculada ao PT que mais cedo entendeu essa urgência de retomarmos um pouco de política que seja, ao escrever sobre junho de 2013 que era o momento de reforçar alguns aspectos e jogar outros fora daquilo que ele denomina “lulismo”. Recomendo ao partido lhe dar ouvidos, senão o próximo fantasma poderá ser um demônio sulfuroso.

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A dama do S.O.S.

Passemos à narrativa conservadora. Aqui, o ponto de partida é a necessidade de remover os usurpadores, para falar grosseiramente. Não há expressão melhor para definir a visão conservadora sobre o governo do PT, o que ajuda muito a explicar a incapacidade de lhe dar uma resposta à altura. Voltaremos a isso. Sim, diz o conservador, o PT venceu eleições em série, mas foi fruto de populismo, clientelismo, cooptação de forças políticas, corrupção e, por que não, sorte. O trono, na verdade, ainda pertence de direito àquele que for ungido pelos poderosos tradicionais, embora de fato esteja na mão de uma corja bolivariana e assim por diante.

Não é por acaso que Aécio Neves derreteu muito mais do que Dilma com a chegada de Marina à corrida presidencial. O PSDB tornou-se, pouco a pouco, o grande ungido dessa força social. Deixou de ser o partido de Franco Montoro para tornar-se o partido de Marconi Perillo e nem se deu conta. Ao aceitar a tarefa de ser a ponta-de-lança do anti-petismo, que na verdade não passa de um sentimento anti-usurpação, os tucanos se contentaram com um papel de subordinado perante forças tradicionais que, como sabemos, nunca tiveram pudores de se associar mesmo aos usurpadores que tanto combatem: Getúlio queimou café de bom grado e Dilma se refestelou com Belo Monte… O PSDB, afinal, tornou-se refém desse papel e ficou paulatinamente desmilingüido com a incapacidade de seus representantes em bater o inimigo. Hoje, sua sobrevivência depende de um governador em São Paulo que mais parece um quadro da Arena e de um candidato a presidente sem presença política e, principalmente, sem o menor vestígio daquela máscara de moralidade que se espera de um candidato do conservadorismo. Triste retrato.

Para piorar, a posição de ungido do PSDB implodiu ruidosamente quando apareceu um ator que parecia um pouco mais adequado para o papel, no curto prazo. É bem verdade que Marina vende a alma ao prometer, para ficar só nesse tema, uma política econômica ortodoxa ao extremo. Coisa que Lula, como se sabe, também fez, e por escrito, sorrindo ao assinar. Mas o contrato que alienou seu velho espírito lhe deu em troca as chaves do coração conservador, escancarando o caminho para encarnar em definitivo o combate ao usurpador. Incomodado com a anemia política de Aécio e a tibieza geral de seu antigo partido-herói, o conservador brasileiro respira aliviado: encontrou sua tábua de salvação. E não podia ser uma efígie mais perfeita: uma pessoa que veio do povo, ambientalista, lutou a vida toda, foi ministra de Lula, atrai o voto evangélico, que costuma ser também conservador… O que poderia ser melhor?

Ainda assim, é uma tábua de salvação, digna daquela literatura de banca de rodoviária, a auto-ajuda mais rasteira. Marina, como qualquer outro ungido de mesma ordem, pode ser bastante confiável, mas não completamente. Jamais poderá apagar a evidência avassaladora do naufrágio: os botes e bóias salva-vidas se espalhando pela água, passageiros e tripulantes ensopados e berrando em desespero, um Schettino que não quer voltar a bordo… Hoje, já não há mais timão para o conservador assumir. O conservador não quer que lhe usurpem o trono, mas tampouco quer se sentar nele, preferindo algum outro aventureiro para fazer o trabalho sujo.

Acontece que, se estivesse disposto a se sentar no trono, seria preciso administrar diretamente o país tal como ele vem se transformando nas últimas décadas, isto é, numa direção que não interessa em nada a quem se beneficia dos antigos desequilíbrios desta terra. Voltar atrás não seria possível, salvo sob catástrofe. Avançar rumo a uma sociedade mais equânime e eficaz poderia ser muito interessante, mas não para os poderes instalados, que teriam que abrir mão de uma parte de suas prerrogativas. Por enquanto, ainda não é necessário fazer isso (até porque o poder, hoje, está nas mãos de um grupo que jamais chegou a tentar isso explicitamente, ainda que tenha criado parte das condições para tal).

Daí a enorme conveniência de poder se apoiar numa tábua que flutua auspiciosamente nas proximidades do naufrágio. Mas por que falo em naufrágio? Ora, sempre pareceu que um usurpador não duraria muito no centro do poder (ainda que o poder, no caso, seja a mera administração de poderes muito pouco dispostos ao deslocamento). O radicalismo, a ingenuidade, a pouca repercussão das idéias, o acesso barrado a meios de expressão, as campanhas midiáticas, a intervenção do Judiciário, o bloqueio do Congresso… Enfim, sempre haveria algum meio de remover o incômodo, o pequeno incômodo.

Mas o usurpador atual, sabe-se lá por quê, conseguiu se instalar e perenizar no posto, apesar de terem ido embora alguns daqueles fatores já mencionados: sorte, vastas alianças, líderes malévolos, corruptos até o talo, e por aí vai. Embora muito pouco tenha sido cedido em qualquer momento, já se chegou ao ponto em que os poderes tradicionais cansam de permitir ajustes pontuais nas relações de poder. Que, afinal, arriscam mais tarde se tornarem ameaças de fato, quem sabe?

Oriunda do ninho inimigo, Marina Silva carrega a imagem perfeita de salvadora da pátria e parece ter percebido isso ao mandar sinais como a velha história do Banco Central independente e a promessa de não concorrer a um segundo mandato. Não tem uma estrutura partidária forte que a sustente, o que, do ponto de vista de quem a quiser manipular, parece torná-la mais manipulável (muito embora estruturas partidárias fortes também se deixem manipular, como sabemos). Sua principal bandeira, a ambiental, pode aparecer sobre inúmeros aspectos, inclusive alguns que agradem às maiores esferas do poder. Sua disposição em governar com “os homens bons” ou “os melhores de cada lado” ressoa, aos ouvidos de quem se considera elite intelectual e esteio moral de uma sociedade, como um convite para retomar as rédeas.

O ícone bizantino de Marina, quando olhado por esse grupo, se desenha como uma imagem iluminada surgindo através de uma bruma espessa e escura, e não como a aparição fantasmagórica de todos os temores. (A bem dizer, me parece que quem tem cumprido esse papel, por enquanto, é Fernando Haddad, mas deixemos isso para outra hora.)

Mesmo assim, é o traço de uma falha trágica, e ainda mais sedimentada que a versão petista. É a hybris de quem desconsidera a existência de movimentos internos na sociedade e a inevitável formação de espaços para grupos que não sejam o seu próprio. Em outras palavras, é a típica arrogância de quem enxerga uma determinada sociedade como um espaço pronto e estamentado, que se deve apenas administrar e manter sob controle. De modo que é também uma despolitização, ou, mais claramente, uma deslegitimação da política como um todo. O Estado aparece aí como instância administrativa a ser ocupada por políticos que incorporam executivos, instalados pelo verdadeiro conselho de administração que compõe o grupo dos verdadeiramente poderosos. Por sinal, Marina ganha pontos entre esses brâmanes ao subscrever à idéia de que se possa tocar um país com “quadros técnicos”, qualificados e assim por diante.

Um último ponto sobre as tábuas de salvação do conservadorismo brasileiro: elas têm uma característica muito estranha, que se mete no meio do cálculo conservador e pode ser resumida na expressão “vida própria”. A cada vez que surge uma nova tábua, o conservadorismo brasileiro se esquece desse traço incômodo e é por isso que, até hoje, não houve momento de catarse redentora que não acabasse dando em algum tipo de confusão. Dos militares a Joaquim Barbosa, de Jânio a Carlos Lacerda, as tábuas de salvação sempre acabam saindo do “script”. Às vezes, até que o resultado não é muito terrível. Outras vezes, dá em tragédia, seja do ponto de vista dessa direita de raiz, seja do de todos os demais. (Aproveitando, nesse caso específico não acho tão infértil comparar Marina a Jânio: cabe lembrar que um dos motivos pelos quais seu governo ficou travado, forçando-o a tentar o golpe, é que ele não quis ser simplesmente um títere da UDN. Será que Marina está disposta a ser títere? Eu não poria minhas fichas nisso.)

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Deus ex machina

“Um mês de gente na rua e descobrimos que o modo de fazer política no Brasil já não dá mais, chega, precisamos de caras novas, precisamos sonhar. Tudo que desejamos é que apareça alguém trazendo algo em que se possa acreditar, simplesmente acreditar, algo que seja belo e mobilize todas as classes sociais, todas as raças, todas as profissões, todas as origens regionais e étnicas, rumo à reconciliação final, absoluta, essa sim verdadeiramente redentora. Uma pessoa, um rosto, uma imagem, que desate todos os conflitos e traga à flor da pele o que há de puro e belo em todos nós. Alguém que nos conduza a um novo patamar de sociedade e desenvolvimento, sem nenhum tipo de ruptura, sem conflito, sem que ninguém perca nada, nem mesmo os privilégios que mantêm o estado das coisas mais ou menos igual ao que sempre foi. Algo como um anjo…”

Eis que já havia uma pessoa disponível, que poderia corresponder a essa expectativa imagética. Uma pessoa que irrompeu na cena eleitoral alguns anos atrás de maneira algo obscura, mas já com elementos muito aproveitáveis, como a mensagem pacífica, conciliadora; a bandeira de alcance potencialmente universal que é o ambientalismo; a história de vida inspiradora, com o aspecto agradável de quem veio para somar, não dividir.

Forma-se assim mais uma imagem para Marina: a síntese corporificada de uma esperança social e política. Uma esperança difusa, é certo, mas ainda assim mobilizadora. É importante ver com clareza que não existe a mínima necessidade, neste contexto, de que o conteúdo da plataforma de Marina coincida com os anseios de quem quer que seja. A rigor, o fato de que os diferentes anseios não coincidem entre si chega a ser um trampolim, catapultando essa associação que, em outras circunstâncias, poderia ser vaga, mas com a proximidade do processo eleitoral se tornou mais sólida. Como ninguém sabe ao certo qual é a linha em torno da qual se coordenam os diferentes anseiose as diferentesansiedades que se amalgamaram em algum momento de 2013 (removendo um pouco a concretude dos problemas de mobilidade e violência policial, com os quais a agitação começou), basta que sejam, eles mesmos, anseios – isto é, afetos. Hesito em dizer que se trata de uma rede de cunho substancialmente afetivo, para não parecer que estou associando essa rede à Rede que Marina tentou transformar em partido político, sem sucesso.

Olhada por esse ângulo, a história de vida, a postura pública e a mensagem de Marina deixam completamente de ser de Marina: a relação se inverte. Ou seja, Marina é que se transforma no apêndice, na manifestação material e corporificada, inevitável ainda que um pouco incômoda, de uma imagem, uma história, uma postura e uma mensagem desejadas. Como acontecia com os ícones bizantinos, e de maneira geral com toda forma simbólica em religiões, movimentos políticos, agremiações políticas etc., Marina (não a pessoa, estou falando da figura pública) se torna uma estrutura vaga, com compartimentos disponíveis para se preencher com a inscrição, aliás a representação, de uma miríade de desejos. Esses desejos tão variegados passam a parecer, desta feita, milagrosamente semelhantes, coincidentes, próximos. Eles estão espaçados, como numa díade, em que de um lado existe a singularidade indiscernível e indeterminada e, de outro, sua versão estampada na efígie de Marina.

Até aqui, a diferença entre a Marina-dos-desejos e qualquer outro líder político carismático da história é muito pouca. Tudo que está dito acima pode ser encontrado em descrições e análises de fenômenos políticos de massa em autores tão inconciliáveis quanto Ortega y Gasset e Freud, Gustave le Bon e Adorno, Gabriel Tarde e Elias Canetti. A pequena diferença que existe está no aspecto de resolução que a Marina candidata recobre, e que estava faltando na Marina vice-candidata de EduardoCampos. Perante um cenário em que esse impulso desejante estava se desvanecendo, perdido na discussão estéril sobre Black Blocs, Sininho, Copa do Mundo e sei lá mais o quê, quando parecia perdida a perspectiva de que os anseios desaguassem em algo de concreto, ou ao menos visível (quero dizer, identificável, apontável numa tela de televisão ou computador), o que representaria um nível de frustração com alto potencial destrutivo, eis que apareceu um deus ex machina, pairando sobre o cenário como se saído dos escombros de alguma tragédia.

Mas existem diferenças mais significativas, particularidades mais acentuadas. Essa é mais uma imagem de Marina, aquela que não exatamente angariou a multidão, mas foi angariada por ela e, no mesmo gesto, produzida por ela. Mais uma vez, isso não significa que a própria Marina tenha algo a ver com isso, o que faz muito pouca diferença, considerando que o assunto deste texto é justamente a imagem caleidoscópica de uma candidata. Uma característica interessante dessa imagem em particular é o quanto ela atraiu uma certa classe média que, sem ser anti-petista, muitas vezes tendo até mesmo sido petista no passado, desencantou-se com o governo do PT em alguma das levas de desencantamento que esse governo produziu, mas se recusa a bandear para as hostes do adversário tradicional, leia-se o PSDB. Aquela vasta onda de indecisos que apareciam nas pesquisas eleitorais quando Eduardo Campos era candidato implodiu e uma parte disso deve se dever, sem dúvida, especificamente a essa Marina entre tantas, a Marina-deus-ex-machina. Alguns poucos desses desencantados estavam dispostos a votar em Aécio apenas para se verem livres de Dilma, que parece infinitamente mais insuportável do que Lula por diversos motivos, entre eles sua notória empáfia – cabe lembrar que essas pessoas eram as mesmas que desejavam alguém “menos político” liderando o país. Pois, o “menos político” é isso aí: alguém que não sabe atrair simpatia apenas com sua mera figura. – Agora, todos podem bandear, com uma dose razoável de alívio, para Marina.

Ainda preciso explicar por que acho que aqui também há uma falha trágica em ação. Qual é a hybris desse contingente que produziu a imagem de Marina como síntese do “desejo de mudança”? Ora, essa efígie de Marina é provavelmente a mais cândida de todas, porque ela não apenas rejeita o conflito – e aqui cabe apontar mais uma vez a presença de um instinto de despolitização que anda grassando entre nós –, como ainda o ignora. Marina, aquela que pode unir a todos. Marina, enviada para nos redimir sem que tenhamos de partir para o confronto. Marina, a figura distante no interior da qual podemos nos reunir como jamais conseguiremos fazer aqui fora. Com ela, alguma mudança muito positiva será obtida sem as cenas de violência que presenciamos nos últimos 15 meses. Marina, cuja história de vida tão entrelaçada com a história social do Brasil representa a superação que o próprio Brasil precisaria viver – e viver, cabe dizer, é sinônimo de atravessar.

Mas será que é possível descrever essa história de vida apagando todas as partes que dizem respeito ao conflito? Será que a fome que ela passou é apenas o ponto de partida dramatúrgico para uma bela história de superação? É nisso que vamos transformar o horror – antigamente se dizia flagelo – da fome? Será que vamos silenciar sobre a dor, a doença, a angústia, a fraqueza, a morte que circundam a fome? Vamos obliterar as origens políticas e sociais, leia-se conflituosas, da fome?

O mesmo vale para a questão religiosa: tornar-se evangélica após décadas de catolicismo, envolvendo-se ao mesmo tempo em lutas políticas que envolvem o confronto, lado a lado com agnósticos e ateus, contra poderes espirituais instituídos e violentos, será que isso é apenas um detalhe a mais? Não existe aí uma escolha de lados que denota uma cisão, isto é, um conflito?

Na bandeira ambiental, a mesma coisa. Será que é apenas a linguagem de uma política futura, ou será que é o confronto com poderes rigidamente encastelados, como parecem indicar o destino de Chico Mendes (da elite, como ela disse, ou não, esse não é o ponto) e o gigantesco aparato repressivo montado na curva do Xingu?

Será que o partidário da imagem-redenção de Marina reconhece a presença nela dessa síntese não da esperança e do desejo, mas das contradições sociais de um país em que ainda há muita luta a ser travada?

Não me parece. E fico me perguntando como esse eleitor reagirá, isto é, o que ele fará com o ícone bizantino para o qual orou, quando a verdadeira Marina – aquela que tem um corpo, uma voz, uma presença – tiver de lidar com todos esses pontos de conflito, dominação e exclusão, tendo assumido a presidência. Ele vai incorporar também a redescoberta da política, essa que sempre esteve ali em algum lugar, em estado latente? Ou vai se tornar um iconoclasta? Até que pode ser algo interessante a descobrir.

Para encerrar

Não deixa de ser uma certa covardia dispor-se a falar tanto sobre as imagens que os outros têm de Marina Silva, e não da minha própria. Mas enfim, se sou covarde, que pelo menos se faça bom proveito da minha covardia. Honestamente, eu não seria capaz de ir muito além disso, porque nas minhas tentativas de ler o processo eleitoral, Marina em particular, minha concepção de nossa candidata oscilou entre as três imagens acima (talvez nem tanto a segunda) e mais algumas outras. O que não chega a ser um fracasso; devo confessar que personagens enigmáticos me fascinam.

E me fascinam mesmo quando podem ocupar um cargo importante como a presidência da República. Sou muito cético quando dizem que este ou aquele presidente vai destruir o país ou algo assim. Sou igualmente cético com a idéia de que este ou aquele candidato seja algum tipo de panacéia. O Brasil é uma sociedade muito complexa, urbanizada, diversa e extensa, seu sistema político absorve uma infinidade de forças, e me parece altamente improvável que alguém assuma o Executivo federal e vire tudo de cabeça para baixo da noite para o dia.

Sociedades como a brasileira têm uma dinâmica própria, que pode acelerar ou ralentar, desviar-se de alguns graus, sofrer revezes, de acordo com quem ocupa ou deixa de ocupar o poder. Mas é pouco mais do que isso. E mesmo assim, sempre produz suas linhas de fuga, suas alternativas criadoras. Sempre acumula energias neste ou naquele ponto para um salto que desate este ou aquele nó. Acusado de pretender virar a economia de cabeça para baixo, Lula imediatamente produziu a “carta ao povo brasileiro”. Acusado de pretender eliminar o Bolsa-Família, Serra em 2010 imediatamente prometeu dobrá-lo. Acusados de ter idéias de suprimir benefícios sociais e trabalhistas, Aécio e Marina imediatamente afirmaram que os reforçarão. Nada de surpreendente aí.

No caso da eleição de 2014, prefiro me concentrar em dois fatos: o primeiro é a volta de uma certa discussão política efetiva: o que queremos para o Bacen? O que queremos para a Amazônia? Até que ponto a religião deve se misturar com a política? E o segundo pode soar mais trivial, mas não creio que seja. Como bem apontou o editorial do New York Times (N.B.: nenhuma mídia brasileira), o Brasil, esse país tão racista e tão machista, se encaminha para escolher a próxima presidenta entre duas mulheres; uma das duas, negra. Como eu disse, uma sociedade complexa e vasta como a brasileira tem sua dinâmica própria.

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Se formos sociedade civil

Eu deveria dar mais um tempo antes de sentar para escrever isso, mas por instigação do Catatau e da Nicole no texto anterior, vamos aos comentários sobre a Marcha da Liberdade do sábado último. Na verdade, desconfio de que o assunto vai deslizar para a ocupação das cidades espanholas por sua juventude desiludida e indignada – é que não tem como comparar uma caminhada de poucas horas com as semanas de manifestações –, mas vou fazer algum esforço para evitar a escorregadela…

A primeira coisa a ser dita é que a importância de uma ocasião como essa passeata está muitos graus abaixo do perfil revolucionário que muitos querem ver nela, inclusive seus detratores, que gostam de debochar justamente do fato de que não haverá revolução alguma, como se esse fosse o âmago da questão. Em outra escala, o mesmo valeria para o caso espanhol, que já andam chamando de “revolução espanhola”, quando na verdade o que parece é que as coisas não precisam ser propriamente revolvidas, mas redescobertas. Volto a isso depois. Por enquanto, o fundamental é entender que “abaixo” não foi dito em tom pejorativo, mas puramente geométrico: o que está sendo questionado é o primeiro degrau da escada. Numa imagem barata, mas expressiva, podemos dizer que o modo de assentar esse primeiro degrau vai determinar a direção em que a escada pronta subirá. Continuar lendo

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A minha nova inscrição

Desde que me instalei de novo em São Paulo, estive duas ou três vezes no Cidão, minúsculo bar de Pinheiros onde, às quintas, eu costumava ouvir tocar João Macacão e seu grupo. Claro, também ia em outros dias e vivi ali bons momentos (maus também). Mas João, para meu desgosto, não toca mais lá. Em seu lugar, músicos que não conheço e não me cumprimentam à entrada. O lugar que eu adorava se tornou hostil. Assim mesmo, num estalo.

O tempo não passa, ele despenca das alturas. Continuar lendo

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Campo ao Centro (Mudar de endereço, parte 2)

Será que todos os filhos de uma criação urbana demais sonham com uma pincelada de província? Um toque, digamos, de doçura ou leveza num tempero adstringente como é o das cidades (todos sabemos)? Seria, suponho, um desejo que nutrimos em segredo, de introduzir aquele pouco de bucolismo que faz falta mesmo ao espírito mais dinâmico.

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Verdade seja dita, há uma legião de almas que se sentem sufocadas pela selva de pedra, a tal ponto que se consomem no devaneio de uma vida campestre, cercada de gado e carroças. Mas esses vão além da medida da ilusão: se algum dia realizam seu sonho, pobres diabos, não dá um mês estão entediados, retorcendo as mãos de saudades da cidade grande. (Dirá alguém que a internet e o satélite de televisão amortecem o choque. Pois que tente… quero ver se o Youtube fala mais alto que os mugidos da madrugada!)

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Do outro lado, há os incondicionais do buzinaço, os amantes da fuligem, cosmopolitas, metropolitanos, conectados de todo tipo. Aqueles que nem concebem o prazer de estirar-se no sofá para sentir o cheiro da terra. Essas almas frenéticas que não param para nada, no máximo se deixam cair sobre um colchão, pesadas e inertes, quando se cansam de todas as exigências das Exigências exigentes. Desses espíritos de concreto, destaquemos o subgrupo dos que, bem-sucedidos nos negócios, conseguem uma sobra para adquirir casas de temporada (não valem praias badaladas como Maresias ou Cabo Frio, estamos falando de vida campestre!)

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No meio, estamos nós, os que se iludem por querer ou, pelo menos, que queríamos nos iludir. Nós que desejamos morar em vilas isoladas, onde ainda se ouvem cantar pássaros – e carros, só à distância. Nós que, ao olhar pela janela, preferiríamos dar com begônias, lírios e parreiras, onde hoje nossos apartamentos só nos oferecem viadutos, painéis e engavetamentos.

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E quanto à perspectiva oposta, isto é, a dos filhos do campo que tremem de desejo ao imaginar o dinamismo das capitais, a panóplia de distrações que esses centros oferecem? Sou obrigado a reconhecer que compreendo seu ponto. Mas só concordo enquanto eles estiverem na mesma freqüência (embora revertida) de auto-ilusão que acabo de atribuir a mim mesmo: pouco adianta querer mergulhar no quotidiano do extremo oposto, que essas águas turvas são também rasas demais.

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Tantos parágrafos, só para justificar a enorme satisfação de, no coração de uma antiga capital, numa construção erguida há não menos de duzentos anos, viver no estado mais próximo, até agora, do equilíbrio que há tempos venho acalentando. Próximo, mas longe, longe de completo (com oximoro ou sem): abro a janela e dou com um paredão, que, feio ou não, é minha única fonte de luz solar; ouço poucos pássaros, automóveis menos ainda, mas as conversas de vizinhos são como deixar ligado um rádio na sala. E assim por diante.

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Mas o que conta mais forte é poder marcar a passagem das horas pelos carrilhões da igreja de St. Paul, como certamente faziam os primeiros moradores do apartamento que, depois de tanta e tanta gente, é ocupado por minha mulher e por mim. É passar as tardes de domingo num silêncio que parece apagar a cidade que me cerca, como se os trigais ainda cobrissem os morros. É chegar perto de acreditar que, de vez em quando, o tempo desiste de escorrer, já que ninguém o reitera à minha frente, com as freadas bruscas, os berros de comércio, as sirenes ansiosas.

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Não só de móveis e lembranças se faz uma mudança, mas da reconstrução de hábitos e experiências. Neste caso, para minha maior satisfação, posso até brincar de manipular a experiência. Posso acreditar, sem sair daqui, que estou ali ou acolá, na capital ou na província, em casa ou numa propriedade de veraneio, que poderei transformar, por sua vez, em chalé das montanhas quando o inverno chegar. Se, é claro, minha imaginação seguir fortalecida até lá.

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Amazon 451

Mais uma vez, literatura e poder. Talvez a mais antiga história de amor e ódio. Poetas e imperadores, ditadores e romancistas, jornalistas e magnatas, desde sempre, e reciprocamente, se acusaram, bajularam, subornaram, degolaram, degredaram. Stalin e Luiz Napoleão preferiam ter os gens de lettres do seu lado, isto é, alguns degraus abaixo. Se não fosse possível, Guiana ou Sibéria neles. Savonarola, que não tinha tempo a perder, queimou livros e com eles seus autores, se estivessem por perto. Adolf , síntese das maldades concebíveis, também recorria às fogueiras para o papel, mas quem empunhava a pena ia para Dachau. O monge malvado de Umberto Eco envenenava os leitores incautos, mas isso num ambiente um tanto restrito e, cabe lembrar, ficcional. Médici e Geisel asfixiavam as editoras e exilavam os autores, o que dava resultados medíocres, porque os pentelhos insistiam em continuar escrevendo, mesmo na Europa. Os exemplos, bem se vê, são intermináveis.

Mas eles têm uma coisa em comum: dava um trabalhão suprimir os livros indesejados… Todo cinéfilo que se preze sabe a temperatura em que o papel entra em combustão espontânea: Fahrenheit 451. Na distopia futurista imaginada por Ray Bradbury e filmada por Truffaut, o governo autoritário e hedonista que tomaria de assalto os EUA fazia um esforço sobre-humano para encontrar volumes escondidos e reduzi-los a cinzas. Brigadas de bombeiros, em carros que deviam parecer futuristas à beça, mas hoje têm um ar terrivelmente arcaico, cruzavam as cidades atrás de infratores. Tudo em nome da saúde mental da população, é claro.

Mas era uma tarefa ingrata. Como encontrar e suprimir todos os livros do país? Não é tão difícil esconder um volume. Tampouco é trabalhoso fazer um punhados de cópias e distribuí-las por aí. Mesmo assim,  perseguiam-se os insurretos. Porém, eis a mensagem de esperança tanto do livro quanto do filme: amantes da literatura sempre existirão, nem que precisem aprender obras inteiras de cor para resgatá-las no retorno à democracia. É uma ideia e tanto, que enche de coragem quem se opõe a tiranias (a princípio, todo mundo que não se beneficia de alguma). Acima de tudo, a moral da história reproduz uma crença não de todo falsa, em que pese uma infinidade de escritos da Antiguidade terem sido perdidos: nunca se poderá apagar toda a literatura, a poesia, a história, a filosofia, a ciência. É um patrimônio rico e volumoso demais.

Agora pulemos para 2009. Como todo mundo, não pude deixar de sorrir amarelo. A Amazon, fabulosa livraria virtual, que por sinal frequento bastante, e proprietária do Kindle, a bugiganga sensação do momento, não se entendeu com os herdeiros de George Orwell (ou com seus editores, sei lá eu). Livreiros e representantes não chegaram a um acordo quanto aos valores que cada um embolsaria. Em outras palavras, nada de Winston Smith na bugiganga da Amazon. Mas os textos já estavam sendo vendidos e, claro, comprados no mundo inteiro por fãs da boa literatura e das boas distopias. Aliás, como acontece todo ano, e isso é talvez o mais irônico da situação, professores já tinham exigido dos alunos a leitura de 1984, para despertar neles o amor à liberdade de expressão.

Pois o erro foi, de fato, da Amazon. Vendeu o que não era pra vender e isso não podia continuar assim, que os advogados já salivavam à porta. Que fez ela então? Ora, nada mais simples: à distância, apagou os livros de todos os Kindles que os tinham baixado. E lá se foram os romances sobre manipulação do passado, controle de consciência e tudo mais. Não avisaram, não pediram licença, mas pelo menos devolveram o dinheiro. Menos mal. E a piada natural, que todo mundo já fez, é: Big Brother não quer, Big Brother não deixa. Nada de ler 1984 no meu produto: ele vai sumir como se nunca tivesse existido. Quem diria, Stalin vendendo livros pela internet…

Só ficou faltando a gargalhada triunfal dos detratores da rede. Noves fora, a previsão de Orwell foi mais acertada do que a de Bradbury. Livrar-se de livros inconvenientes não exige corporações de bombeiros, nem fogo, nem polícia secreta, nada. Basta um acordo de bastidores e pimba, desapareceu o problema. Sabe aqueles livros ou discos que são o orgulho de uma meia dúzia de colecionadores apaixonados? Viraram coisa do passado. O poder não precisa mais correr de banca em banca recolhendo jornais. Basta apagá-los e é como se não existissem. Ou melhor, não existirão mesmo. Não existirão mais.

Pode parecer estranha a comparação entre histórias de governos totalitários e o caso de uma empresa que, por maior e mais importante que seja, está longe de ter o alcance de um aparelho estatal. Bom, pode até ser. Mas enfim, concorrência monopolística à parte, deveria causar um certo desconforto saber que uma corporação pode, para aplicar uma decisão judicial, rasgar e deitar fora, de uma hora para outra, centenas de páginas eletrônicas em milhões de telas, de bilhões (desculpe o exagero) de leitores, ao redor do globo. Ou será que estou sendo muito dramático?

Anúncio oficial, leia com atenção: podemos ficar tranquilos. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. É assim que devemos pensar. Sim, a Amazon apagou Orwell do Kindle. É verdade. Mas nada de comparar a ação da empresa com os livros distópicos do romancista. Não faz sentido. Não se pode pensar de outra forma. Eis o argumento. Acredite nele. Orwell falava de governos totalitários. A Amazon é uma corporação monopolista, nada mais. Diferença monumental. Eis a verdade. Podemos ficar tranquilos.

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O rumo dos vasos

Não era sonho quando vi minhas veias correndo em paralelo ao meio-fio. Posso assegurar que eu não estava chapado, nem alto, nem nada. Foi uma dessas coisas que a gente vê com nitidez e sabe que não é invenção da nossa cabeça. Todo mundo já passou por isso. Resumindo, foi simplesmente um dia em que eu acordei metafórico.

Sim, claro. Esse é um traço que já tenho normalmente. Mas, naquela noite, acho que passei dos limites. Quando levantei, já me sentia estranho. Estava escuro ou não tinha clareado ainda, depois de uma interminável madrugada que, de fato, não tinha terminado.

Na mesma hora, eu soube que estava em todas as madrugadas da minha vida, me levantando de todas as camas em que já dormi, espraiado pela minha história e pelos meus cantos, pingando aqui e ali como se pinga pela existência.

Daí minha tranqüilidade. Eis por que não me abalei de ver as veias, que deveriam estar aqui dentro, acompanhando a sarjeta. Segui meu caminho e me lembro de ter comentado, num tom que se pretendia irônico, algo como “Ah, minhas veias”. Muito blasê, como se alguém, algum amigo, alguma mulher, estivesse andando ao meu lado.

Tive, é verdade, um certo receio de que passassem por cima de um de meus vasos; uma bicicleta, ou moto, ou patinete, enfim. À hemorragia de um atropelamento, seria difícil reagir com comentários infames.

Depois, me acalmei um pouco, ao lembrar da biologia que, um dia, aprendi no colégio: na superfície, as veias, carregando o sangue ruim. O sangue bom está lá no fundo, enterrado e protegido. Nenhuma razão para alarme, a confiar na educação que me deram.

Cheguei à esquina e descobri nela um entroncamento de vasos sangüíneos. A visão daquele amontoado de tubos, uns por cima dos outros, sangue por todo lado, pressurizado… enfim, aquilo me causou um sobressalto, finalmente. Meu coração acelerou.

E, coisa incrível, as veias se puseram a pulsar mais rápido.

Deu um aperto no peito. Tudo junto, aquele trânsito insuportável das horas condensadas, aquele fluido vital correndo em desespero para meus tecidos sedentos, e eu, me fazendo de calmo enquanto contemplava aquelas avenidas todas, num bairro interminável, os sinais, os faróis, as válvulas, varizes, acidentes, colesterol, e a pulsação…

Perdi o fôlego. Caí. Por um tempo, não vi nada, depois tive vontade de chover. Era uma noite sem estrelas, que me embaralhava as idéias… Nem sei direito como contar, veja, não estava muito claro. Quis levar a mão ao coração, mas não pude, porque eu tinha esquecido o caminho. Quis acordar, mas me lembrei de que não era sonho.

E, pelas janelas, as luzes acesas: dali desciam as veias, tendo alimentado as lâmpadas e os fogões, ou seja, tendo cumprido seu dever.

Minhas veias tratavam de correr em busca de sua pureza, o novo oxigênio e o novo impulso ao sangue fatigado. Suprema contradição, aliás, um pouco vexatória: meu fluido sabia onde encontrá-lo; eu, não.

Movido por uma curiosidade tanto mais sincera porque eu mesmo não a reconhecia, esqueci da vida e me pus a seguir o caminho, a picada que me indicava o sangue encanado. Esqueci meu próprio rumo e meu destino, esqueci que também buscava renovar a cada dia minha energia e a força de viver. Esqueci das impurezas que eu, ser venoso, também carregava, e que também buscaria trocar, em mil milhões de alvéolos pontilhando a cidade. Esqueci dos pulmões, que aceitam toda a fumaça e a processam, digerem, revendem.

Tudo isso, em todas as manhãs da minha vida, em que eu estive mais metafórico do que o normal. O meu normal, quero dizer.

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De volta aos rostos

Mundo+de+gente
Quase esqueci dos outros. A Terra está apinhada de gente, mas todos já iam sumindo da minha memória. Uma semana inteira com os olhos voltados para dentro bastou para que eu me isolasse do mundo. Eu, que gosto tanto das fisionomias, das expressões, das histórias de vida que os rostos não conseguem esconder. Dias a fio, sem contato com ninguém além dos comerciantes da rua. Mas os comerciantes não são outros. São os mesmos de sempre, estão sempre ali. Têm seus nomes, suas profissões, seus postos na minha realidade. Os outros são imagens no desfile cotidiano de faces, que procuramos não encarar. Anônimas, dizemos, cretinos que somos. Elas não são anônimas. Cada uma cultiva seu orgulho do nome a que responde. Cada uma carrega no bolso uma carteira puída, com números a preencher em formulários. Cada uma inventou – e não esqueceu – um punhado de senhas, para abrir as portas da vida social. Cada rosto desses é tão anônimo quanto o meu. E, como o meu, reconhece um “eu” como centro de seu universo.

Ao reencontrar as fisionomias, sou tomado pelo alívio. Estão todos ali, onde deveriam estar, indiferentes, na plataforma do metrô. Vejo-as congeladas, num estranho estado de suspensão, enquanto esperam o trem para subir. Também eu estou em estado de suspensão. Oscilo, pendular, na mesma freqüência dos demais. Congelado, na plataforma do metrô. Só que eles não me olham, e eu olho para eles. São relances, olhares curtos e furtivos como os dos criminosos e dos amantes tímidos. Quando percebem que alguém ali os contempla vagamente, ficam incomodados, afastam-se, franzem a testa. Ofendidos, há até os que gesticulam e se põem a ameaçar, aos berros. Melhor ter cuidado. Eu mesmo, na verdade, tampouco gosto que me olhem. Não sei o que pode buscar um olhar perscrutador nesta fisionomia carrancuda, de manhã, esperando o trem. Detesto que tentem decifrar minha vida pelas linhas de minha preocupação, como eu tento ler as rugas desses desconhecidos todos. Sou assim. Inconsistente. Rejeito meu papel no anonimato.

Como é prático atribuir a cada corpo desses um anonimato generalizado! É cínico, é injusto, mas é prático. De um gesto, cria-se a massa. Inerte e pluricelular, uma forma cuja agitação não tem sentido e se pode ignorar. Condená-los ao anonimato parece expiar a culpa do isolamento. Se não têm nome, não são indivíduos, não vivem histórias que mudem com o dia. Manter-se afastado durante uma semana não é perda alguma, não é nada. Falar em massa, sufocar os nomes, é colocar-se em outro plano. O único plano individual, em que o eu é legítimo e a vida deve se conservar. Melhor. A ilusão é um caminho justo para a paz de espírito. Pois mais vale encher de enfeites esta margem que me cabe na existência, que desesperar dos muros altos do entorno.

Assim se apresenta o estranho gosto pelos rostos meus estranhos. Misto de curiosidade e desprezo, despeito e orgulho. Em comum, todos eles traçam biombos imaginários para resguardar a intimidade. Em pleno transporte público. Todos têm nuvens diante dos olhos. Há os sérios, de pensamentos distantes, solitários no rumo das funções. E há os grupos, os pares, os casais, os amigos. Falam, gesticulam, movimentam-se. Incomodam os sérios, porque parecem mais leves, embora sofram tanto quanto cada um. Há os espalhados, jovens garbosos: ainda não entenderam que seu universo é só mais um canto escuro. Há os pequenos, humildes, escondidos nos assentos porque desistiram de crer no próprio mundo. Há os leitores insondáveis, os músicos tristonhos, os pedintes em profusão.

Em comum, o fato de que não sei como se chamam. Tento adivinhar, examino as fisionomias, invento nomes para todos. Nomes brasileiros, em geral. Até me dar conta de que dificilmente alguém se chama assim. Invento outros nomes, agora internacionais. Como um despótico Adão, batizo-os. De todas as pessoas que convivem naquele parco espaço, uma apenas não é renomeada pela minha imaginação doentia. Ora, eu conheço meu verdadeiro nome. Não teria por que escolher outro. Mas dentre eles todos, não há um que saiba quem sou. Nem há quem invente um nome para mim. Entre as criaturas que batizei, eu mesmo sirvo apenas para compor a massa.

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Pessoas simples e gostos abstrusos

Nelson+rodrigues+dorme
Certa vez, eu estava muito contente – lembro que, nesse dia, bebi um pouco além da conta –, graças a um jogo de futebol. Um triunfo sonoro, além de qualquer recurso, para cima de um tradicional e maligno rival. (Sim, sustento até hoje, com a maior seriedade, que forças demoníacas alimentam aquele clube.) Era uma final de campeonato, o juiz e o locutor torciam sem pudores para o outro time, mas goleamos mesmo assim. “Goleamos”? Não, eu não entrei em campo. Mas minhas poderosas emanações de torcida cumpriram a missão. E com sobras. Para resumir, todos os ingredientes de um alegre final de tarde esportiva estavam reunidos, ali, entre meus amigos e mim. À noite, quando tomei o rumo de casa, só queria que aquele instante se eternizasse.

Na chegada, o elevador fez escala no andar onde vivia, e ainda vive, uma curiosíssima e típica família alemã. Os homens, pai e filho, são bonachões, relaxados e, na verdade, um pouco ridículos. As mulheres, mãe e filha, ocupam o pólo oposto: rígidas, sisudas, intolerantes. (Poderia ser o contrário, claro.)

Pois bem: na noite em questão, quem tomou o mesmo elevador que eu, de saída para algum jantar, foram os pais. A senhora, mais acostumada à minha postura sorumbática das manhãs, ficou chocada com o sorriso largo, o cumprimento efusivo e o bafo de cachaça. Olhos arregalados, perguntou-me se eu tinha acertado a centena e o milhar. Não, repliquei. Minha alegria era bola na rede e caneco na mão.

Como se poderia esperar de um casal tão antinômico, as reações foram díspares. Entre suas bochechas afogueadas, o velho teuto soltou uma breve risada e um lamento: “– Perdi o jogão! Me dei mal!” Já sua esposa, de quem sempre desconfiei ser uma agente infiltrada da Stasi, ergueu as sobrancelhas e desdenhou de minha euforia: “– Pessoas simples têm prazeres simples”, comentou, e nada mais. Só me restou concordar com a justeza da observação, mesmo sabendo que, ao me chamar de simples, na realidade ela queria dizer que sou simplório.

Ofensas à parte, o único motivo pelo qual sei que não sou simplório é o fato de que, eventualmente, tenho inveja de quem é. Isso acontece quando me angustiam problemas abstratos, até metafísicos, que, espero, não podem me ferir de verdade. Ora, a única angústia do simplório é com o risco de ter um celular ultrapassado. Logo, não sou um deles. Desse risco, pelo menos, estou livre.

Mas não chega a me incomodar a idéia de ser uma pessoa simples, com prazeres simples. Acontece que conheço alguns prazeres bem complexos, intrincados, diria mesmo… abstrusos. E, para ser honesto, preciso confessar: não são assim tão prazerosos quanto parecem. Vale para o sabor de um Pauillac tinto, com seus taninos reforçados e o gosto que persiste. E vale igualmente para a compreensão, terrivelmente árdua, de uma frase de Marcel Proust com 481 palavras, que só adquirem um sentido mais ou menos inequívoco depois de relidas uma dúzia de vezes.

Não me entendam mal. Longe de mim recusar os prazeres eruditos. Mergulhar nos volumes do Tempo Perdido é uma delícia, e mais difícil do que fazê-lo é convencer os demais de que vale a pena. Mas é coisa arriscada, e exige mais força moral do que, propriamente, inteligência. Não é difícil conceber, até porque acontece quase sempre, o que pode se passar com uma alma tíbia que se entrega a esses prazeres exigentes. Pouco a pouco, sem perceber, o ser inocente vai absorvendo as coisas de que gosta, vai se tornando complexo, depois intrincado, até que… pronto. Tornou-se abstruso. Talvez seja o que aconteceu com a minha vizinha, a agente da Stasi.

O espírito que é forte, além de inteligente, pode se enfiar até o pescoço nas delícias difíceis da alta cultura, que mesmo assim jamais abandonará sua simplicidade. Não será um bárbaro primitivo porque enche a cara depois de uma vitória de seu time; talvez o seja, se arranjar briga com uma horda rival, mas isso é outro problema. Tampouco é absurdo que aquele mesmo torcedor, que ontem dormia na calçada em posição improvável, hoje vista terno e discuta, entre os sábios do templo, as obras-primas de Fassbinder.

Aí está o erro da disciplinada senhora alemã. Pessoas simples têm, sim, prazeres simples. E estão corretíssimas. Já as pessoas complicadas, e que gostam de ser complicadas, essas precisam ser mandadas, na falta de casas de correção, para colônias de repouso. Um Spa moral, digamos assim. Para ver se recuperam um pouco de sua simplicidade, no lugar de murchar entre gostos abstrusos.

PS:
Dicionário Caldas Aulete –
abstruso: adjetivo.
1 Que se acha oculto ou encoberto: As conseqüências são claras, as motivações, abstrusas [Antônimo: claro, evidente, manifesto]
2 Difícil de entender (estilo abstruso); obscuro; intrincado.
3 Sem ordem, lógica, estrutura; confuso; incongruente [Antônimo: coerente, ordenado]

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Triste é depender do acaso

Patos+dormindo
Raras vezes falei de futebol por aqui. Não que eu ache o tema inferior. Ao contrário, os irmãos Rodrigues estão aí para provar que textos maravilhosos podem ser escritos sobre o brutal esporte bretão. A poética dos pontapés e dribles me encanta e fascina. Mas há um lado idealista em mim, e tem coisas que não estou disposto a fazer. Por exemplo: comentar a Seleção Brasileira. Jamais de la vie, mon cher. A camisa canarinho, aquela mesma de Pelé, Zezé e Didi, anda sendo conspurcada pelos jabazeiros que a envergam, em nome da ganância espúria “daqueles que usam terno”. A exemplo de seu escrete, o futebol brasileiro anda no mesmo nível. E, particularmente, soy contra. Como não sou homem-bomba, minha única reação possível é o silêncio.

Contudo, não posso me furtar a deixar uma palavra sobre o assunto do momento, ou seja, o rebaixamento do Corinthians. Nem tanto pelo fato em si, que pode ser explicado de muitas maneiras, a principal delas sendo: “fez um número insuficiente de pontos para permanecer na primeira divisão”. Mas por todo o barulho que se produziu em torno do evento, e principalmente, o que mais me interessa, pelo que tudo isso nos diz sobre nosso país, esse que construímos no cotidiano, em cada gesto e palavra proferida.

Sim, um evento futebolístico pode explicar a essência do Brasil. É o país do futebol, não é? Os muitos rebaixamentos de clubes grandes que já tiveram lugar pouco repercutem na história nacional, a não ser na dos próprios clubes. A queda do Corinthians, ao contrário, é um excelente trampolim para entender nossos vícios nacionais. Por quê? Nem tanto pelo fato de que, pela primeira vez, a CBF se distrai e “deixa” cair um clube de massa. Tampouco pela festa da torcida arco-íris paulista (e, sejamos honestos, nacional), que fez buzinaço pela avenida Paulista como se fosse para um time campeão. E sim, principalmente, pela forma como esse rebaixamento se deu. Pelo rebaixamento em si. E, de quebra, pela reação da imprensa e dos torcedores em geral.

O que tem de errado na maneira como caiu o Corinthians? Simplesmente, é uma vergonha, uma verdadeira tragédia nacional, que o clube de Itaquera tenha sido rebaixado pelos resultados do campo. É uma prova de que o brasileiro confia demais na divina Providência. Não fosse a incompetência dos jogadores e o time ainda estaria na primeira divisão. Mesmo depois que seu ex-presidente confessou a manipulação de resultados há dois anos. Mesmo depois de tornar-se patente que o Timão foi usado para a lavagem de dinheiro de um mafioso iraniano. Mesmo onze anos após a gravação em que o então presidente do clube organiza um esquema de corrupção de juízes (quem não se lembra do “um, zero, zero”, estrelado por Ivens Mendes, Corinthians e Atlético Paranaense, é porque não tinha televisão em casa nos anos 90).

Pois bem. Depois de tudo isso, a única punição à irresponsabilidade dos dirigentes, ao desvio de verba, ao roubo puro e simples, teve de cair do céu. Enquanto isso, tomemos exemplo da Itália. Trata-se de um dos países mais desorganizados e corruptos do mundo. Mesmo assim, há dois anos, enquanto o Corinthians passava a mão no campeonato brasileiro, estourou um escândalo de manipulação de resultados no país de Berlusconi. Envolvidos estavam muitas pessoas e quatro clubes: Juventus, Lazio, Fiorentina, Milan. Pois bem. A tradicional Juve foi rebaixada para a segunda divisão, e começou a disputa com 30 pontos negativos, além de ver extirpados de sua sala de troféus dois títulos conquistados no período investigado. Lazio e Fiorentina também foram rebaixados. E o Milan, time do então primeiro-ministro e manda-chuva do país, ficou na primeira divisão, mas não pôde disputar a Copa dos Campeões, e também largou com pontuação negativa. E não estamos falando da Suécia ou da Alemanha, mas da Itália. A Itália!

E o Brasil? O rebaixamento natural, nesse caso, é uma punição branda e casual. O “título” de 2005, primeiro campeonato entre aspas da história do futebol brasileiro, não está com cara de que vai ser revogado. Os clubes prejudicados pelo trambique não serão ressarcidos. O Corinthians não será multado. Nada impede que, daqui a dois anos, tudo tenha sido esquecido, e ainda lancem um DVD com a campanha heróica do clube na segunda divisão.

Nada mudará. O sofrimento dos corinthianos será tão vão quanto a alegria de seus adversários. Nenhuma lição será tirada do episódio. Ora, normal, isso é Brasil. Não punimos a desonestidade no futebol da mesma maneira como não a punimos na política, na economia e na história. É a mesma coisa. Comemorar a queda do Corinthians é tão ridículo quanto celebrar um escorregão de Collor ou uma doença de Maluf.

Mas de quem, em tese, poderíamos esperar um alerta, uma denúncia, uma voz contrária? Ora… Da imprensa, de quem mais? Pois espere sentado. A Globo, não contente em transmitir um treino do clube do Parque São Jorge, lamentou cada gol e cada resultado adverso. As manchetes todas, na segunda-feira, davam conta de uma comoção nacional que deveria existir, é certo, mas por outro motivo. Ávido por um pouco de seriedade, entrei hoje no blog do Juca Kfouri, que tantas vezes já assumiu o fardo de lutar contra as sujeiras de nosso futebol. Um verdadeiro paladino da justiça aplicada ao esporte, que já comprou briga com Eurico Miranda, o finado Caixa d’Água, Ricardo Teixeira e cia. Sempre com muita coragem. E agora, o que ele apresenta? Uma comparação entre o rebaixamento de seu time e Maysa cantando “Meu Mundo Caiu”, a história poética de uma criança que chora a derrota, reclamações tardias contra Alberto Dualib. E mais nada.

Eis por que fico sem vontade de falar de futebol.

(PS: Este texto não é um xingamento ao Corinthians ou seus torcedores; tampouco é mais um a tirar sarro do infortúnio do clube. Pelo contrário, ele é coisa séria; discute a complacência do brasileiro para com a desonestidade. Portanto, nada de reações futebolísticas coléricas. Combinado?)

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Aqui começa a arte

Escadaria+piano
Vendo enfrentar a escadaria aquela figura trôpega, esfarrapada, mal-cheirosa e barulhenta, os dois enormes seguranças não tiveram dúvida. Bastou uma rápida troca de olhares e compreenderam como que teriam de proceder, mesmo que não tenham visto os olhos um do outro por trás dos óculos de sol, debaixo da noite abafada de quase carnaval. Era o trabalho deles. E eles sabiam fazer seu trabalho. Respondendo como uma muralha de pedra ao discurso ilógico do barbudo banguela, cada um enfiou seu braço por baixo de uma axila, e já iam atirar aquele saco de batatas degraus abaixo, como se fosse um incômodo miserável, quando um berro estridente, projetado do interior da galeria, os constrangeu a interromper o gesto.

“Não, não! O que é isso?! Podem parar! Podem parar! O que é isso?! Não, não!” Era o próprio artista que se esgoelava, braços projetados, uma mão espalmada, a outra bem firme ao redor da Piña Colada. Estranho, o contraste entre a indumentária toda negra, colada ao corpo; a mão rechonchuda, tão branca, doentia; e o pára-sol de papel e palito, numa profusão de cores primárias, que encimava o coquetel. “Podem largar! Já!”

Pois largaram. O vernissage era dele. A festa, idem. O trabalho, os convidados, as obras. Enfim, tudo. Por aquela noite, era ele que mandava. Sem um traço de delicadeza, a grande massa amarfanhada foi ao chão com alarde, e a garrafa quase vazia que carregava escapuliu de sua mão, rolou pelo chão e foi se espatifar em contato com o batente da porta. E a porta era de vidro, mas não deu mostras de querer trincar. O artista, todo sorrisos, agachou-se ao lado do corpo andrajoso que gemia. Encarou-o. Sorriu para ele. Mas manteve distância. “Não ligue pra esses brutos”. Referia-se aos seguranças, já restabelecidos em sua posição de sentido. Mãos às costas, faziam de conta que não escutavam. Caras amarradas, espinhas eretas, verdadeiros blocos de pedra. “Você é bem-vindo. Aliás, você é a resposta para os meus problemas. Daqui a meia hora, começa minha exposição. Não estou nada satisfeito com meu trabalho. Pensei tanto em cada obra dessas, mas… Não sei! Falta alguma coisa. O elemento espontâneo!… Inesperado!… louco…”

“Foi meu orixá que te trouxe aqui! Rora-ieiê-ô, Oxum!”

O bárbaro de olhos inchados escutava através da cabeça balouçante. À guisa de acompanhamento, emitia grunhidos de inspiração caprina. De súbito, esticou a mão para a Piña Colada. Mas seus olhos preferiam buscar a luz dos postes. O artista ficou satisfeito, embora um pouco reticente, em ceder seu copo. “Pode entrar aí, beber o que quiser, fazer o que der na telha. Pegue as obras e estrague! Suje! Atire no chão! O que você tiver vontade!”

O paladar estragado pelas décadas de álcool quase puro não apreciou a doçura do coquetel. Ainda a balir, pôs-se de pé, o intruso, e largou o copo, cujo conteúdo, misturado aos cacos de vidro, espalhou-se pelo calçamento em configuração de aparência cartográfica. Os minúsculos cristais aureolavam os espólios da garrafa. Foi-se embora o punhado de ossos, cambaleante, imprecando contra alguém ou algo. Os seguranças mantinham guarda, impassíveis como soldados britânicos. O artista, que não leva desaforos para casa, reservou alguns momentos para encarar a sujeira, imóvel senão pela mandíbula que mastigava a si própria. Em seguida, puxou do bolso um cartão e uma caneta. Rabiscou: “Aqui começa a arte, e aqui ela termina”. A caneta voltou para o bolso. O cartão foi endereçado ao solo, logo abaixo do pára-sol colorido. Sem mais, o artista retornou para o interior da galeria, onde o aguardava, batendo o pé e bufando, o marchand mais importante da cidade.

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