Quem já se apertou num apartamento minúsculo, oprimido pela falta de luz e pelo frio glacial. Quem já flanou entre fachadas de pedra com placas de moradores ilustres. Quem já viu minguar a conta bancária e recebeu ameaças pelo correio. Quem já passou horas procurando pelo menu mais barato do bairro para almoçar mal…
Não fica indiferente a esta canção.
“E quando, em troca de uma boa refeição quente, um bistrô qualquer comprava uma tela nossa, recitávamos versos encarapitados em volta do aquecimento, esquecendo o inverno”.
Viva Charles Aznavour (ou, se preferir, Chahnourh Varinag Aznavourian), o homem que se aposentou 14 vezes e continua trabalhando. E também, claro, protagonista de uma das obras-primas de François Truffaut, Atire no Pianista:
Peço desculpas a Chico Buarque por pegar emprestado o título de sua canção… mas acho que ele não se oporia. Além disso, se é para copiar alguma coisa, que seja uma obra genial. E sou, como já admiti em outras entradas deste espaço, enormemente fascinado pelo poder acachapante do olhar. Nos versos de Chico, a mulher (preciso elogiar a interpretação de Maria Bethânia? Acho que não, pega mal repetir o óbvio) manifesta seu despeito conclamando o antigo amante a revelar, olhos nos olhos, o que lhe causa a felicidade que ela está segura de ter reconquistado. Sou da opinião de que sem a indicação dos olhos nos olhos, o desafio seria nulo. Fraco, artificial, uma tentativa irrelevante de concretizar uma crença meramente racional.
De fato, só mesmo o encontro intencional de dois pares de olhos, recheados, estourando de intencionalidade, pode fixar de fato uma mentira, uma verdade, uma opinião autêntica. Mesmo a razão só consegue, no máximo, pronunciar essas coisas todas. Pode ser em fonemas ou letras, ou ainda gestos, imagens símbolos, qualquer coisa capaz de transmitir um sentido, mas é mera pronúncia, não é transmissão. A fixação, mesmo, só se dá quando os sujeitos se encaram, e se encaram de verdade.
Pois é aí que isso me toca: poucos são os olhos que tenho para olhar e, céus, que falta fazem! Não me entenda mal: os olhos estão por toda parte, surgindo e desaparecendo a cada estação, a cada esquina, em cada sala. Mas que quero eu com esses olhos urbanos, que fogem para o anonimato a cada ameaça de encontro? De tal forma eles me exasperam e entristecem, que prefiro, sem perceber, sufocar minha natural indignação gregária. Resulta que me torno um igual, frio e furtivo como todos os demais, a ponto de escolher a solidão que já me era imposta.
Não, muito antes disso, careço daqueles olhos quentes que se iluminam à nossa vista, os olhos, sem mais rodeios, dos amigos. E se pode parecer estranho que eu não diga, direta e simplesmente, que tenho saudades dos amigos, é que a questão é outra, bem mais complexa. Mais urgente é a presença e, na presença, claro, o face a face: olhos nos olhos. A situação primordial em que um desacordo milimétrico entre palavras e alçar discreto das sobrancelhas atesta, de imediato, a existência de um problema, uma dor, qualquer coisa que o amigo esconde – e esconde, no mais das vezes, de si mesmo. A expressão cúmplice que precede e acompanha o vidro-no-vidro, o copo-no-copo, o olho-no-olho de um brinde camarada, uma expressão sem a qual o brinde é só bebedeira.
Nada contra, por favor, meus contatos como têm sido nos últimos anos! O alô, o “como vão as coisas”, ou “o que tem feito”, “está fazendo muito frio por aí?” e outras frivolidades. Frio está, claro, mas não tanto quanto a frieza dos telefones, dos e-mails que mais parecem relatórios de atividades, em que se vai sabendo de quem casou, quem separou, quem arranjou tal ou tal emprego e mudou de cidade. Fico perturbado só de pensar quanta desgraça, quanto sofrimento, quanto Prozac pode estar escondido debaixo de um “por aqui, tudo ótimo, e por aí?”!
Restam, é claro, os novos amigos, os olhos que se sorriem ainda desconfiados, quase em desespero pela própria raridade. Os brindes enfáticos, preocupados em se assegurar de que podem ser substitutos para a cumplicidade que se esfumou na distância. Verdade seja dita, às vezes isso pode acontecer, eles se correspondem, sim. É uma alegria, um enriquecimento, mas não um substituto que baste. Ademais, mesmo os bons novos amigos que se fazem vêm com prazo apertado. Quantos já não voltaram para casa e se tornaram, eles também, amigos de telefone e e-mail! A intimidade que se vai buscando no dia-a-dia resulta, em geral, algo ressabiado, embora fundamental. Como é estranho o permanente estado de sobressalto com a possibilidade de uma nova despedida e o retorno ao ponto de partida…
Talvez mais estranho ainda, e mais próprio à personalidade peculiar a este mundo que se vai construindo, são os contatos para os quais o velho (e, para muitos, ultrapassado) olho-no-olho nem entra em consideração. Nomes que aparecem nas navegações do tempo ocioso; amigos, e amigos de amigos, em redes sociais. Conversas por comentário, afinidade ou discordância na leitura de textos de terceiros, também desconhecidos. Programas de conversa à distância, digitada enquanto se realiza alguma outra tarefa, como a de escrever sobre a amizade para postar na internet.
Quase não me reconheço pela pouca surpresa que tenho da considerar como amigos pessoas que jamais vi, cujas vozes desconheço, cujos olhos nunca fitei. Alguns não passam de apelidos, pseudônimos, máscaras carnavalescas que, de inocentes, redundaram num autêntico seqüestro ontológico. Outros têm nome, sobrenome e fotografia publicada no perfil, e já é um alento, embora nada garanta que tudo aquilo não seja falso, inventado, um trambique, uma brincadeira. Nada disso, porém, impede que conversemos, contemos causos, ouçamos histórias, aceitemos palpites e conselhos. Não é incrível que nos entreguemos a relações dessas com a maior naturalidade? E será loucura imaginar um futuro em que esse seja o contato predominante entre as pessoas?
Loucura, talvez não seja, mas será menos humano. Ou então, claro, a humanidade é que terá de ser outra, o que não chega a ser uma hipótese tão absurda quanto pode soar. Somos uma raça que já quase não fala com a própria voz, parte em viagens sem deslocar o corpo, dobra a própria existência em mundos codificados, por pura diversão. Então, nada de ilógico em pensar que não olhamos mais com os próprios olhos, não diretamente. Que mediamos toda a nossa percepção do mundo por um véu que, num eufemismo, chamamos de tela. Nos abraçamos por siglas e nos emocionamos com figuras coloridas. Se é assim que haveremos de ser, bom, assim sejamos.
Mas não sei se há lugar para mim num mundo como esse. Olho na tela, tela no olho, ondas e cabos transoceânicos fazendo as vezes do curto espaço entre os rostos de dois velhos amigos na mesa de um bar. Até onde posso enxergar, de meu ponto-de-vista ultrapassado pelo visto, é que pode ser todo feito de máscara e mentira, esse novo mundo que me exclui. Esse mundo que terá abolido o olhos-nos-olhos e às verdades, mentiras e opiniões que poderiam ser feitas restará apenas ser pronunciadas.
Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora…
Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.
Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.
Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.
Se me fosse dado mudar algo no texto de “O Cerejal”, de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.
Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: “Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!” Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.
Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.
Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.