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Na comunidade das frustrações

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Um mês agitado para um ano agitado. Tivemos manifestações, denúncias formais, guerra de narrativas, dança de cadeiras, mas continuamos na incerteza sobre quem despachará do Planalto em 2016. Voltamos a experimentar a combinação sufocante de desemprego em alta, poder de compra em baixa e câmbio proibitivo, enquanto as medidas destinadas a recolocar a economia nos trilhos parecem ter o efeito contrário. Em que pese tudo isso, a constatação mais interessante de agosto de 2015 é provavelmente o vigor daquilo que poderíamos denominar, sem hesitação, a classe dominante do Brasil – mas com artigo definido: “a” classe dominante.

Sabemos que ela existe; sempre há algo como uma classe dominante, e não é só aqui. Podemos até descrevê-la, apontar quem faz parte dela, citar o latifúndio, as “doze famílias” da mídia – se é que são mesmo doze –, os industriais de São Paulo, o sistema financeiro. Mas não é todo dia que a vemos em ação, mobilizada em um esforço concentrado, com a cara à mostra. No mínimo, é instrutivo. E também sintomático.

Como se sabe, os itens a serem levados ao parlamento sob o título de “Agenda Brasil” – note-se como o nome, deliberadamente, não denota coisa alguma (fora o anglicismo) – resultam de uma concertação ágil e veloz. Segundo consta, a iniciativa partiu dos proprietários do maior grupo de comunicação do país, envolveu as entidades de classe do setor produtivo no Sudeste, também abarcou as confederações de indústria e agronegócio, e por fim foi costurado pelo presidente do Senado, em diálogo direto com o ministro da Fazenda. Talvez essa seqüência esteja trocada, mas que importa? O dado relevante é vermos mídia, indústria, agronegócio, dinastias políticas, todos amalgamados e abençoados pelo sistema financeiro.

O que convenceu esse conjunto de poderosos a deixar os bastidores, mesmo que momentaneamente, parece ter sido a bagunça (e essa é realmente a melhor palavra) da conjuntura política. Nada garante que essa bagunça vá se dissipar, já que não temos motivos para achar que a cúpula do Executivo vai aprender a fazer política da noite para o dia – depois de tanto tempo?! E com a saída de Michel Temer da articulação política, essa hipótese parece ainda mais absurda. O que significa que mesmo o acordão de cúpula pode ruir, a depender da sorte de Dilma Rousseff com o TCU e o destino que esteja reservado para Eduardo Cunha – que já deu mostras de que quer sabotar também esse acordão, comprando briga com os poderosos que estão incomodados com ele.

Isso para não falar da economia…

Ainda assim, pode ser amargo, mas também é interessante observar à distância a destreza e a desenvoltura com que nossa classe dominante age e decide o futuro do país, quando julga necessário. Uma desenvoltura que ficou intocada nesses 27 anos de Nova República, sem sofrer um arranhão sequer desde a adoção da Constituição de 1988, nem com os avanços atribuídos aos tucanos, como o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal, nem com aqueles atribuídos aos petistas, como a inclusão de renda e a expansão do mercado interno.

* *

Se, por um lado, possuir uma classe dominante que paira impávida acima do sistema político está longe de ser algo aberrante – basta ver o que se passou nos EUA e na Europa desde a crise de 2008 –, por outro também parece que estamos assistindo a um evento com cara e cheiro de Brasil. Da dissolução da primeira constituinte em 1823 à proclamação da República, da reforma urbana de Pereira Passos à revolução de 30, do Estado Novo às cassações de 1964 e ao AI-5, decisões verticais em momentos graves são recorrentes.1

Os itens divulgados da tal agenda, em suas diferentes versões e mesmo ainda na forma de meras intenções, são talhados com toda a clareza para satisfazer a interesses, muitos deles imediatistas, de quem controla o PIB brasileiro. A começar pelo agronegócio e as empreiteiras, com as infames medidas para agilizar a concessão de licenças ambientais, como se estivéssemos com falta de desastres ecológicos nas megaobras e nos latifúndios país afora. Como se a estação de Cabrobó, recém-inaugurada, não fosse feita para transpor água de um rio São Francisco que está secando. E, se há claramente problemas no sistema tributário e na legislação trabalhista, a regularização dos terceirizados, tal como proposta, fará pouco para reduzir a discrepância entre o “empregado sortudo e privilegiado” e o trabalhador precário, “pejotizado”, e muito para garantir que corporações tratem o trabalho ainda pior do que já tratam.

Considerações de maior envergadura, que antecipem tendências globais inclusive já anunciadas, como o imperativo sustentável e o redesenho da estrutura produtiva global, estão inteiramente ausentes, substituídas por um termo polivalente e ambíguo: a “competitividade”. Mas a competitividade de um miserável país de latifúndios e baixo valor agregado é incompatível com a de um país sustentável e pujante, do mesmo modo que o sentido do desenvolvimento na era do aço e do carvão é um e na era do byte e do painel solar é outro. A “agenda Brasil”, por trás de seu silêncio, já carrega uma escolha nesse mar de distinções – infelizmente, a mesma escolha que o círculo de Dilma já tinha feito.

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Outro problema, igualmente grave, de uma carta de intenções tão extensa, que se aproveita daquilo mesmo que pretensamente viria resolver – o momento de desarticulação completa tanto na esquerda como no centro (precisamos ter isso em mente!) –, é que ela lança a uma condição secundária todo o processo político, as negociações entre diferentes grupos de interesse e representantes de classe, a busca de soluções intermediárias (chamadas também de soluções “de compromisso”, em mais um anglicismo – não que eu seja necessariamente contra os anglicismos). Todas essas coisas que fazem da democracia parlamentar um regime mais maleável e palatável que qualquer outro já experimentado – como na famosa frase de Churchill.

É verdade que tudo que está proposto ali ainda vai passar pelo Congresso, o que é da natureza da democracia parlamentar, com todos os seus defeitos. Mas o que há de mais despolitizante e no caso da “agenda Brasil” é o próprio acordo de bastidores. Com o pano de fundo de toda a nossa história de soluções verticais para a política e a economia – se não citei acima o mais descarado de todos, cito agora: o convênio de Taubaté –, fica difícil evitar a sensação de que a posição secundária reservada à política propriamente dita é como o seu “lugar natural” no Brasil, o que daria razão a Sérgio Buarque de Holanda quando ele escreve que a democracia no Brasil é um “lamentável mal-entendido”. Será que continua sendo assim, depois de tantas gerações, tantas lutas – tanto sangue, suor e lágrimas, para citar Churchill mais uma vez?

* *

Pensamentos negativos, esses. Mas o estranho nisso tudo é que não há como dizer que o país esteja na pasmaceira, despolitizado e desinteressado dos assuntos de Brasília. Temos, afinal, manifestações a rodo, múltiplas e desconexas, desde o famoso junho de 2013 até os “Fora Dilma”, passando pelo “Não Vai Ter Copa” do ano passado e as contraposições governistas, mas encabuladas, aos protestos de direita – e os panelaços, claro. As contradições do Brasil estão perfeitamente explícitas nesses episódios todos: da escolha de quem a polícia e a Justiça reprimirá, sob aplausos de todo o espectro político institucional e com instrumentos bem questionáveis do ponto de vista legal (que o diga Rafael Braga Vieira, preso por porte de Pinho Sol) até a estranha mistura de recusa à corrupção com uniformes da CBF, passando pelos aplausos a uma das polícias mais brutais e corruptas do universo. Eu diria que o momento histórico já está merecendo o epíteto “decisivo”.

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A rigor, o que se pode dizer não é que o país esteja paralisado ou desmobilizado – antes o contrário, isso era o que se dizia antes de 2013 – mas que está amarrado, rodando em falso, tateando às escuras. De um lado, com dificuldade em desapegar-se do PT, ou já desapegados desse partido mas sem ter outro ao qual se referenciar, aqueles com sensibilidade de centro-esquerda sentem que estão no meio de um túnel escuro, com uma luz no fundo se aproximando em alta velocidade, apitando e cheirando a fumaça.

De outro lado, os que têm sensibilidade de centro-direita abrem os jornais e dão com os representantes do partido que poderia acolher seus sentimentos – refiro-me ao PSDB – emitindo declarações cada vez mais tacanhas e retrógradas. E, muitas vezes, nada mais do que tolas. Sem falar na incompetência de um governador que deixa sua capital sem água (e depois mente sem enrubescer, dizendo que isso não aconteceu). Não é sem motivo que se refugiam no mero anti-petismo, sem grande desenvolvimento programático. Em certa medida, é um caso de escapismo.

Assim, na falta das âncoras do que um dia foi o centro, sem ninguém investido de suficiente autoridade moral para, como dizia Fernando Henrique, “administrar o atraso”, o caminho da hegemonia e até, cruz credo, do poder está desimpedido para toda uma malta de fundamentalistas religiosos, saudosos da ditadura, adoradores da truculência policial e qualquer grupelho de desvairados pretensamente politizados, desses cujos cartazes os sensatos – porém órfãos – se comprazem em ironizar, como se esse sarcasmo todo fosse conter a enxurrada do retrocesso.

* *

Pois é justamente nesse momento que vemos costurar-se um acordo de cúpula operado pela tal classe dominante, e para ela mesma, por cima das nossas cabeças. Um acordo que (repito) se aproveita da própria situação que supostamente vem resolver: a tibieza nos círculos centrais, normalmente os mais parrudos, do sistema político; o Executivo politicamente incapaz e administrativamente imóvel; a Câmara dos Deputados entregue a interesses pessoais e delírios fundamentalistas; a desconfiança global com a economia brasileira. A contrapartida que nos oferecem, se é que se pode falar assim, é a permanência da mandatária no poder, para alegria de seus parcos correligionários restantes – mas como no máximo um fantoche, uma vez que sua equipe já deu inúmeras mostras de incapacidade para recuperar o poder de iniciativa.2

Fico me perguntando qual seria o resultado, se o acordo e a “agenda Brasil” forem bem-sucedidos em manter Dilma no posto até o fim do mandato. Afinal, as energias que estão à solta nas ruas do Brasil, a começar pelas do “Fora Dilma” (mas de jeito nenhum se limitando a elas) não vão simplesmente se dissipar. A erosão lenta do PT nesse período não vai contribuir para a elaboração de novas forças de centro-esquerda, assim como a fixação de parte do PSDB com o impeachment – bem como o jogo de caciques do resto do partido – vai manter a centro-direita anestesiada e satisfeita em andar a reboque do extremismo conservador.3 Em uma palavra, repetida três vezes: frustração, frustração, frustração.

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Há outros pontos nevrálgicos no Brasil contemporâneo onde a frustração pode já estar construindo comportamentos e narrativas insensatos – a frustração é péssima conselheira. Vendeu-se na última década a idéia do Brasil Grande, Brasil Potência, Brasil quinta maior economia, Brasil desenvolvido, sem miséria e assim por diante. Vendeu-se a idéia de que seríamos um país de classe média e que todos teriam chances na vida. De uns tempos para cá, essa imagem ficou reduzida às viagens de avião e ao consumo de roupas e eletrônicos, como no já longínquo episódio do rolezinho – que no entanto ocorreu há menos de dois anos. Mas há elementos muito mais essenciais.

O caso das faculdades, por exemplo. O jovem da classe C, ou “nova classe média”, como se dizia, via no acesso ao ensino superior a porta de entrada para o respeito. Melhor dizendo, o reconhecimento. A bolsa do Fies, o ProUni e, mais tarde, o Ciência Sem Fronteiras seriam o caminho para uma carreira de sucesso, algo como um “sonho americano” em que o diploma exerceria um papel crucial. E agora, com cortes no CsF e com um quadro recessivo intenso, como vai reagir quem acreditou nesse sonho, se endividou, passou anos dormindo poucas horas por noite para poder conciliar trabalho e estudo? Alguém que se dá conta de que a faculdade que fez é de baixíssima qualidade; que o mercado de trabalho, não bastasse encolher, ainda por cima esnoba o fruto de tanto esforço?4

* *

Uma das falhas das narrativas polarizadoras, à direita (“petralhas!”) como à esquerda (“coxinhas!”), é fechar os olhos justamente para essa comunidade das frustrações. Pensando bem, chega a ser engraçado se dar conta de que existe um abraço de afogados entre gente que se odeia tanto. Nessa comunidade das frustrações há espaço para todos nós, incluindo aqueles que chegamos a crer, em algum momento, que seria dado um salto quântico na política deste país, e também no dia-a-dia social, quando a miséria extrema fosse erradicada, inviabilizando alguns dos modos pelos quais as oligarquias se perpetuam. Pode até ser (quem sabe?) que esse vácuo, esse impasse, tenha origem numa ainda invisível derrocada das oligarquias… Mas seria invisível mesmo: hoje, tudo que podemos ver é o exato oposto, a oligarquia propondo um acordão de cúpula para superar o impasse da maneira que mais a beneficie. A ela e mais ninguém.

É preciso enxergar melhor essa comunidade da frustração, que transparece, por exemplo, na heterogeneidade das opiniões que uma pesquisa realizada por universidades paulistas captou nas manifestações “Fora Dilma” do dia 16. Em primeiro lugar: como bem apontaram seus detratores, de fato, verdade verdadeira, a grande maioria das pessoas que ali estavam eram brancas, eleitoras de Aécio Neves em 2014, detentoras de diplomas universitários. São contra cotas (62%) e são punitivistas (60%). O que justificaria, pelo visto, tachá-los de elite, “elite branca”, ou, como eu dizia meses atrás, “a elite que não é elite”.

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Mas os tais detratores preferiram ignorar que essa mesma pesquisa aponta nas nossas “manifestações de direita” a concordância “total” com a saúde pública para todos (88%) e gratuita (74%), a educação pública para todos (92%) e gratuita (87%), e com o transporte coletivo (72%) – que poderia ser gratuito, com concordância total ou parcial, para 50,4%. Isso mesmo: metade dos manifestantes “de direita e saudosos da ditadura” vêem algum sentido na idéia de tarifa zero, o que os coloca em linha com os anarquistas do MPL. A mesma multidão supostamente ultra-capitalista rejeita em massa (73%) o financiamento empresarial de campanha.

Acontece que uma multidão como aquela pode parecer um grande bloco quando vista nas fotografias à distância, e mais ainda nos recortes feitos com interesses precisos, ao elencar os cartazes mais esquisitos e os personagens mais pitorescos, como o já batido “por que não mataram todos em 64”. Mas multidões não se deixam apreender assim. Elas costumam se comportar menos como o gado conduzido ao abatedouro e mais como os íons de um campo eletromagnético ainda não polarizado, vinculados por ligações fracas; e no caso dessa multidão de agosto, ligações até mesmo circunstanciais, como a rejeição enfática a um governo em particular.

* *

O quadro se torna ainda mais heterogêneo se incorporarmos a ele aqueles que rejeitam o governo sem participarem das manifestações – nas periferias, por exemplo. E mais heterogêneo ainda quando lembramos de tantos grupos de esquerda que estiveram nas ruas entre junho de 2013 e o “Não Vai Ter Copa” – sem falar nas manifestações do Movimento Passe Livre também este ano em São Paulo e Belo Horizonte, as greves de professores no Paraná e em São Paulo, a resistência de índios e ribeirinhos em Belo Monte. É muita energia se acumulando, muita raiva, muita hostilidade. E muita repressão, sem dúvida, o que não ajuda em nada. Acima de tudo, muita frustração, o afeto-rei da política brasileira em 2015.

Não consigo deixar de ver uma boa dose dessa frustração no recrudescimento da violência quotidiana, social, que se materializa em massacres como o do Cabula, chacinas como a de Osasco, linchamentos em diversas cidades, estupros recorrentes (fiquei particularmente chocado com um dos casos ocorridos no metrô de São Paulo, felizmente não consumado), ataques a transexuais, atentados contra religiões de matriz africana, a polícia do Rio barrando jovens negros, suburbanos, que queriam ir à praia. Talvez em outra escala, o mesmo valha para a guerra em torno das ciclovias “do Haddad” em São Paulo – na verdade, em torno de qualquer iniciativa do prefeito petista. Com o risco de soar especulativo, anti-científico e o cacete, sinto que tudo isso manifesta uma tensão crescente: as pessoas estão com os nervos à flor da pele e os caminhos mais sensatos para discutir a convivência social estão fechados no Brasil.

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Tentando clarear um pouco o quadro, eu poderia tentar vincular tudo isso aí acima às expectativas dos diferentes segmentos sociais, tal como expressas, por exemplo, em 2010, o ano do “crescimento chinês”. Uma nova estrutura social, dizia-se, em forma de losango e não mais pirâmide, traria um novo ciclo de desenvolvimento, ao custo dos privilégios de alguns poucos. Quais privilégios? Talvez a falha trágica esteja em não se ter tocado nessa pergunta, levantando assuntos sensíveis e cruciais como o latifúndio, o patrimonialismo e a carteirada. Falou-se bastante em baixar os juros (parece que isso ficou para as calendas gregas) e no fim do trabalho doméstico. E só.

É claro que este último item já seria uma enorme conquista, mas dificilmente viria sozinho e se estabeleceria de maneira duradoura. De fato, continuaremos a ser uns escravocratas mal disfarçados enquanto qualquer assalariado puder contar com uma doméstica em casa. “Ter uma empregada”, como se diz. Qualquer gerente, qualquer assistente. No Brasil, até algumas empregadas domésticas têm empregadas domésticas! Mas não é só a empregada, claro, embora essa seja uma figura paradigmática. O que dizer de porteiros para abrir a porta do elevador, restaurantes com um garçom para cada duas mesas, postos de gasolina cheios de frentistas?

Mas veio o crescimento. Vieram o ProUni e o Fies. Filhos de trabalhadores precários, domésticos em particular, puderam tentar profissões mais bem pagas e consideradas mais dignas. O custo desse trabalho começou a subir e a gritaria foi tão violenta que camponeses da China ouviram e ficaram se perguntando de onde vinha tanta barulheira. Por causa de um único, mísero privilégio ameaçado. Finalmente, estávamos diante da perspectiva de que alguns não seriam mais obrigados a se humilhar e outros teriam de tomar conta da própria vida. E foi um pandemônio.

Acontece que parou por aí. Para contra-atacar a ofensiva anti-governista, os defensores de Dilma podem perfeitamente invocar a raiva de uma elite que vê seus privilégios ameaçados – um deles, pelo menos. “Agora pobre anda de avião e faz faculdade”, como se diz. E o que mais? Os ruralistas seguem exaurindo as terras e metendo a grana no bolso. Os bancos continuam sendo alimentados como gansos de foie gras pelos juros usados para segurar o câmbio e, com ele, a inflação. A mídia continua absurdamente concentrada. Os elefantes brancos da Copa, a poluição e as remoções na “Cidade Olímpica”, o ecocídio de Belo Monte estão aí para mostrar que o único temor que um empreiteiro precisa ter hoje no Brasil é o de passar uma breve temporada na cadeia. E depois voltar à rotina.

Paradoxo! Mais um para a interminável coleção brasileira: é perfeitamente verdadeira a raiva por causa de privilégios perdidos… e é perfeitamente verdadeira a manutenção dos privilégios históricos. Isto aqui, ô-ô, é um pouquinho de Brasil, iaiá.

* *

Momentos como este, que misturam agressividade, imobilismo e frustração, sugerem a aproximação de um clímax catártico. Talvez a ascensão de um líder muito carismático, para o bem ou para o mal, arrastando multidões com a promessa de eliminar a sujeira ou reconquistar a pujança nacional, algo assim. Talvez uma guerra civil, um golpe de Estado, um colapso financeiro. Já passamos por algumas dessas experiências, e até mais: tivemos também um suicídio.

A esta altura, uma possível catarse seria o tão propalado impeachment de Dilma, com suas variantes – impugnação da chapa, renúncia, licença médica. Fico imaginando como seria esse momento (talvez eu descubra logo), dado o nível de tensão em que as pessoas se encontram. Seria certamente uma imagem impactante, o retrato vivo da destruição do PT, que alguns iam vivenciar como epifania e outros tentariam retratar com tintas de tragédia – Dilma, aliás, certamente tem cara de quem se esforçaria para ser um Creonte do planalto central…

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É mesmo preciso discutir a sério o que seria essa catarse, o que ela implicaria, o que viria depois, a quem interessa – e o que podemos esperar caso ela não ocorra. Esta última hipótese talvez seja a mais fácil de responder: a tensão continuaria crescendo, o PT continuaria sendo carcomido, os tucanos continuariam em suas disputas de caciques. As sensibilidades mais ao centro, esquerda como direita, seguiriam órfãs, e talvez pudéssemos torcer avidamente pela recomposição de outras forças para ocupar esse espaço antes que sobrevenha a próxima reviravolta – ou, para seguir na analogia teatral, a próxima peripécia –, que seria cataclísmica. Caso contrário, vozes no estilo Reinaldo Azevedo vão encontrar cada vez mais ressonância e cada vez mais hidrófobos passariam à ação. Para não falar em personagens terríveis, daqueles que circulam pelo meio político e podem fazer leis, controlar orçamentos públicos, gozar de imunidade parlamentar…

Sobre a catarse de um impeachment ou renúncia, meu medo é que ocorra o exato oposto disso: que as tensões se acalmem de uma vez só – o que seria uma ilusão temporária, sem dúvida. Nesse cenário, Dilma desceria a rampa, em grande medida, com o figurino de um bode expiatório, sacrificado pela pólis (estranha pólis, essa nossa) para expurgar nossas incontáveis transgressões. Não é por acaso que um dos maiores interessados em manter de pé a tese do impeachment (mas talvez não levá-lo a cabo) é justamente Cunha, no esforço de enfraquecer o governo e afastar de si próprio o perigo espectral das investigações de corrupção.

Na imaginação simplória de muita gente, a remoção do PT do poder significaria o sucesso do combate à corrupção, a realização definitiva de um processo acompanhado com avidez; daí por diante, nada mais seria necessário fazer, o problema estaria resolvido, o mal cortado pela raiz. Seria possível voltar ao dia-a-dia, ao “business as usual”, à vida de sempre. Mas a vida de sempre, no Brasil, bem sabemos o quanto envolve a violência, a corrupção, o déficit democrático. Sangra o boi de piranha, a boiada segue firme, pisoteando o território.

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Escoar todas as frustrações pelo buraco negro de um impeachment poderia ter a vantagem de evitar a explosão que se anuncia, mas seria uma solução falsa, que removeria o ímpeto daquela que talvez seja a única boa notícia do momento: a ofensiva contra as relações incestuosas entre grande capital e grande política no Brasil, que são, não custa lembrar, generalizadas e suprapartidárias (prefiro dizer: diapartidárias). Passado o momento catártico, permaneceria o rancor. Novas frustrações se somariam às já existentes quando ficasse claro o quanto as estruturas permanecem intocadas – estruturas que sustentam o incesto mencionado acima.

Muitos da multidão presente no “Fora Dilma” se sentiriam traídos e, mais uma vez, frustrados. Mas é bastante comum que mobilizações multitudinárias acabem resultando em transformações políticas que em nada lembram as reivindicações originais dos protestos; está aí a Primavera Árabe que não me deixa mentir. Acontece que, ao provocar um curto-circuito no exercício quotidiano do poder, essas mobilizações abrem espaço para a ação de outras forças e outros poderes, em geral mais organizados e com objetivos mais claros que os seus. No nosso caso, ainda não chegamos a esse ponto, já que a tal classe dominante entrou em ação.

* *

Isso tudo é o que caracteriza o impasse, o mato-sem-cachorro, o vai-não-vai. Estamos entre dois pólos. Aqui, uma catarse que nada resolve, mas passa a impressão de resolver, para a alegria dos eventuais sobreviventes – Cunha à testa. Ali, o acordão que tudo resolve, mas seria melhor que não resolvesse, porque só resolve para uns e deixa o abacaxi na mão de todos os demais – você e eu, basicamente. No meio, um governo que já se demonstrou inviável em inúmeras ocasiões desde 2011, incapaz de garantir vitórias parlamentares com segurança mesmo nos momentos de maior apoio popular, e hoje sem quase nenhuma popularidade, nenhum poder de iniciativa e nenhum diálogo com as próprias bases, isto é, com o que um dia foram suas bases.

Seguimos assistindo ao desenrolar da trama em nossa comunidade de frustrações, em nosso abraço de afogados. Seguimos torcendo pelos nossos grupos políticos favoritos e odiando uns aos outros. Seguimos acompanhando as chacinas reiteradas e a dissolução dos códigos de convívio social, acusados de “defender bandido” e outras imbecilidades. Aqui na terra, como diz Chico Buarque, vão jogando futebol; mas cada vez pior, e nem uma goleada em casa por 7 a 1 nos dá forças para derrubar o Ancien Régime. E seguindo com Chico – já que citei o pai, cito o filho também: uns dias chove (cada vez menos), outros dias bate sol (cada vez mais forte), “mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”.


NOTINHAS

1Há também os exemplos que contaram com expressivo apoio popular, como a candidatura de Tancredo (depois de rejeitada a emenda Dante de Oliveira) e a derrubada de Collor.

2É especialmente difícil analisar uma conjuntura em que uma das principais variáveis é a incompetência e o comportamento errático de um pequeno grupo de indivíduos que ocupam uma posição central. Nos últimos meses, até anos, houve várias ocasiões em que portas se abriram para que o governo saísse das cordas, e ele mesmo preferiu continuar levando bordoadas. Não dá para explicar. Tudo seria muito diferente com lideranças mais sagazes.

3Que está estranhamente misturado a grupos ultra-liberais em economia, composto por jovens incultos que importaram suas idéias de neo-conservadores americanos, já desqualificados em seu próprio país. A esse respeito, recomendo um recente texto de Moysés Pinto Neto.

4No que está muitas vezes enganado, diga-se. O diploma de uma péssima faculdade, na mão de um formando esforçado e ambicioso, pode valer bem mais do que o de muitos colegas que tive da USP.

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Imagens que não fizeram história (3): candangos e índios

A terceira fotografia da série de “imagens que não fizeram história” – e eu aqui pensando que iam ser só duas! – talvez cause um certo estranhamento; afinal, é uma fotografia muito recente, que nem “fez história”, nem deixou de fazer. Posso tentar contornar esse estranhamento dizendo que a imagem “ainda” não “fez história”, mas fará, por tais e tais motivos. Então este texto é uma aposta? Não faz mal, que seja. Estou disposto a apostar de vez em quando.

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Por outro lado, tudo gira em torno dos jogos que se possam fazer com essa fórmula: “fazer história”, que é dúbia e ainda mais maleável quando a usamos no negativo: “não fez”! Seja como for, quando dizemos que uma imagem “fez” história, geralmente estamos ressaltando seu caráter icônico, ao sintetizar nosso conceito de um determinado período ou acontecimento, esse sim “essencialmente” histórico. A imagem em questão é, portanto, a imagem visual referente a uma imagem mental de valor coletivo. A imagem que efetivamente “fez” história é aquela que aparece nos manuais escolares, nas retrospectivas dos telejornais, nas páginas não-numeradas, impressas em papel mais caro, de livros editados décadas depois, mas só para reforçar uma outra imagem e uma outra narrativa, da história que “se fez”, retratada ou não.

Então “fazer história”, no fundo, significa nada mais do que reaparecer a cada vez que alguém quer pontuar a memória social e, para isso, recorre ao ícone mais à mão. “Renúncia de Jânio”; “Guerra do Vietnã”; “Exército Soviético em Berlim”: para cada um desses sintagmas, imediatamente aflora na mente do leitor uma determinada imagem. E dificilmente vou perder dinheiro se apostar, para cada caso, que imagem será essa.

Se a fotografia que escolhi, como imagem, não fez história ainda, porque acabou de ser tirada; mas intimamente sentimos que está em sua essência um certo “fazer história”, será que estamos falando do mesmo caráter icônico?


Valter Campanato, da Agência Brasil, é o profissional responsável por esta peça tão linda. Na terça-feira, a manifestação de 1500 lideranças indígenas contra a PEC 215, no eixo monumental, acabara de ser interrompida por um temporal. Temporais, como sabemos, não são exatamente o evento mais corriqueiro em Brasília. Mas este grupo de índios (algo entre 12 e 14) continuou a fazer a dança ritual que estava fazendo como parte do protesto.

O fotógrafo capturou a dança na chuva bem quando ela passava diante do Monumento aos Candangos, que parece reverberar, na vertical, a marcha dos índios. O pé d’água, que borra as figuras, deixa impassível o bronze do monumento, mas aproxima ambas as formas por realçar seus contornos e esconder os detalhes. Passam a ser índios tão abstratos quanto aquelas duas figuras estilizadas, supostamente representando os construtores da “novacap”, tantos deles vítimas fatais do delírio de ocupação do Planalto Central…

Os candangos que empunham cajados; os índios que empunham armas. Alinhados em cruz, como se buscassem sinalizar uma simetria histórica. Com isso, a própria composição se torna o vetor pelo qual a imagem lança seu apelo ao passado e situa-se na história, fazendo-se perante a história e, se não propriamente “fazendo história”, pelo menos fazendo da história alguma outra coisa.

Ou melhor, para ficar menos enigmático, talvez seja o caso de inverter a exposição: enquadrados diante da simbologia presente de figuras do passado (o Monumento aos Candangos), os índios trazem o que “já foi” para junto do que “está sendo”, fazendo-os colidir, transformando-os em uma terceira coisa.

Uma constelação, como diria Benjamin?

Afinal, o que é um candango? O que é um índio? Em mais de um sentido, o candango (não o morador de Brasília, bem entendido, mas seu construtor) é o paradigma do lugar reservado ao índio, e não só a ele, no projeto nacional brasileiro. A mão-de-obra precária, depauperada, aculturada (esse talvez seja o traço mais essencial), disposta a deslocar-se em péssimas condições pelo território, na medida do avanço do extrativismo e demais atividades que reproduzem sua lógica. Disposta a morrer por acidentes de trabalho, por doenças que resultam da insalubridade, por violência.

É o mestiço, mas não segundo a perspectiva brilhosa de um amalgamento das raças ou coisa que o valha, e sim pelo esvaziamento das identidades (étnicas, raciais, lingüísticas) do colonizado e/ou escravizado. Esvaziamento que se opera enquanto é barrado o acesso à identidade do colonizador: o branco, europeizado, herdeiro de Dom Antônio de Mariz. É o “pardo”, aquele de cujo rosto não se desenham nem se esculpem os traços, como no monumento que o homenageia na Praça dos Três Poderes. A imagem nítida da construção de Brasília, que guardamos como ícone no fundo da memória, é a do rosto sorridente de Juscelino Kubitschek, acenando à frente de um Congresso cercado de andaimes.

Já o índio é o oposto disso: o obstinado caiapó, ashaninka, tukano, ianomâmi. É o muro em que esbarra o projeto nacional, naquele momento surpreendente em que alguém insiste na autodeterminação. É o desmentido de Rondon. É o rosto cujos traços a chuva pode borrar numa fotografia, mas o escultor não borrará no monumento. Se lá atrás o bronze dos candangos pesa sobre a Praça dos Três Poderes, com seus oito metros de altura – como uma sentença, podemos dizer –, aqui na frente a dúzia, pouco mais, de índios a atravessa, com a leveza realçada pela chuva.

Talvez seja esse o motivo pelo qual muita gente fica tão horrorizada e perturbada quando vê um índio de bermuda ou com a camisa do São Cristóvão. Ali está, materializada, a assinatura da aculturação. Então por que a recusa em admiti-la? A bermuda não é, nesse raciocínio, objeto de uso, mas mercadoria; não pode ser vista como concessão do mundo civilizado, só como porta de entrada ao sistema produtivo e à cultura que passou a lhe servir de penduricalho. O renitente índio que aceita a bermuda mas não aceita ser “pejotizado”, que continua empunhando seu arco mas não quer ir para a favela empunhar um .38 contra a polícia, está enfiando seu tacape bem no meio da engrenagem dos tempos modernos. Ou seria dos Tempos Modernos?


Mas… se é possível enxergar na fotografia um vetor de conexão cronológica, nada impede de procurar nela também um vínculo topológico, afirmando que a imagem é capaz de operar uma amarração que ressignifica a geografia. E se fizer isso, ela também dá um novo sentido ao território, com seus conflitos internos e seu enraizamento no planeta, do qual aparentemente não é tão fácil escapar. Acho que é possível ler essa imagem assim, mas vai ser necessária uma certa dose de sarcasmo. Não que isso me incomode!

O olho treinado pela televisão – que é o meu e, muito provavelmente, o seu também – quase certamente fará a imediata associação entre índios avançando em grupo debaixo de um toró e a expressão “dança da chuva”. Para o olho treinado pela televisão, o que é um índio? Ora, é alguém que faz uma dança da chuva. Porque quem dança “na” chuva não é o índio, é Gene Kelly, mas só porque tem uma câmara na frente, a chuva é de mangueira e a cantoria vem em playback.

Sem essa tecnologia toda, prossegue o raciocínio, o índio convoca a chuva dançando. E assim o reconhecemos como índio, com nosso olhar formado pela televisão. Digna de nota é a poesia embutida na idéia de convocar a chuva com uma dança: o moderno, o branco, o tecnológico, o civilizado, convoca a chuva bombardeando nuvens. Um bombardeio, pois: notória invenção do moderno, branco, tecnológico, civilizado.

Mas às vezes nem o bombardeio funciona, então é preciso recorrer… à dança? Parece ser o que fez o governo de São Paulo – moderno, branco, tecnológico e civilizado – no fim do ano passado, quando, a crer na imprensa local, entrou em contato com a Fundação Cacique Cobra Coral para ver se fazem chover em São Paulo. A fundação em questão não é indígena; é espírita, mas parte da premissa de que sua presidente recebe o espírito do cacique Cobra Coral (do qual temos poucas informações, senão que seu espírito também teria sido [sic] o de Galileu Galilei e Abraham Lincoln, o que me deixa intrigado, porque não vejo a relação desses dois senhores com a chuva). Pois esse cacique “tem poderes para interferir em fenômenos meteorológicos”, ou seja, faz chover.

Trocando em miúdos: enquanto o grupo de índios dava uma de Gene Kelly (que era moderno, branco, tecnológico, civilizado) e dançava “na” chuva, o branco e nem tão moderno, vagamente tecnológico e nada civilizado governador de São Paulo convocava uma dança “da” chuva.

Eu disse que seria preciso sarcasmo, e acho que esse sarcasmo começa a partir de agora. Afinal, São Paulo define-se como o “Estado bandeirante”, como testemunham os nomes de tantas de suas ruas e rodovias, sem falar na estátua de célebre mau gosto na avenida Santo Amaro. Mas o que é um bandeirante, senão um brutamontes descalço que leva a vida a se embrenhar pela mata para escravizar índios – e matar, estuprar…? Senão aquele cuja função histórica era limpar o terreno para a emergência de uma população aculturada e depauperada, ou seja, destinada a se tornar alguma das variantes daquele fenômeno do candango, homenageado no monumento de Brasília?

Que divina ironia! O líder político do “Estado bandeirante” recorre ao espírito de um índio para ter a chuva, enquanto os índios que conseguiram escapar à escravização e à proletarização, na capital do país, interrompem um protesto pela própria sobrevivência por causa… da chuva! E passeiam nela, dançam nela, e parecem mesmo estar se deleitando, esses maledettos nietzscheanos!


Está bom de ironia? Calma que tem mais. Se estou tratando de uma imagem e das conexões que ela é capaz de fazer, não posso deixar de citar um dos maiores marcos do “bandeirantismo” do Estado em questão. É também uma escultura, como o Monumento aos Candangos: o mais que famoso cartão-postal paulistano, o “empurra-empurra”, que pretendia ser conhecido como “Monumento às Bandeiras”.

Lá está ele, no meio do engarrafamento, retratando os maiores heróis do genocídio em traços enrijecidos, angulosos, um descarado flerte de Victor Brecheret com a estética fascista que florescia em seu tempo (há muito disso em São Paulo, a começar pelo Pacaembu). E não é que, debaixo do toró, os índios de 2015 lembram vagamente o formato da escultura-símbolo da ressecada capital paulista? De um lado, os corpos vivos, com membros flexionados; do outro, a postura marcial e os corpos de pedra.

De um lado, o protesto pela sobrevivência; do outro, a conquista do território e das populações. De um lado, o toró; do outro, o volume morto.

Em constelação, como diria Benjamin?

Resta ainda uma última questão, que não consegui identificar, com meus olhos formados pela televisão: de que etnia são esses índios? Vêm de que parte do Brasil? Sei que em Brasília, nesta semana, estiveram índios dos quatro cantos do território. Mas e esses em particular? Por sorte, posso ser preguiçoso e recorrer a meus olhos formados pela televisão, repetindo com meus confrades de televisionismo: “se é índio, deve ser da Amazônia”.

Então, em nome da poesia que pode haver nas imagens, vou simplesmente pressupor que o olhar formado pela televisão está certo, desta vez, e que os índios em questão são de uma etnia amazônica. Simplesmente porque isso convém à minha retórica: se eles vêm da Amazônia, então vivem na região do país de onde saem os rios voadores que irrigam com chuvas abundantes grande parte do resto do país… a começar por São Paulo.

Assim sendo, o que a imagem mostra é uma espécie de dança triunfal que sintetiza as contradições fundamentais do Brasil, tal como elas se manifestam hoje: o índio que protesta para garantir a sua sobrevivência e a de sua terra também é aquele cuja terra fornece o elemento indispensável à sobrevivência de todos os demais. E notadamente dos que querem forçar a aprovação da PEC que põe em risco o território dos índios. Como pano de fundo, temos a informação de que a demarcação de terras indígenas é um poderoso instrumento para frear o desmatamento, cuja consequência mais imediatamente visível para metade da população, que vive longe da floresta, é a paulatina diminuição das chuvas.

A história que se faz quase por conta própria nesta fotografia pode ser descrita como a materialização de uma anti-história do Brasil, em que o primeiro plano apresenta aqueles que são ao mesmo tempo anti-candangos e anti-bandeirantes em plena procissão triunfal, justamente no instante em que mais estão ameaçados. E quem é que vem fornecer as condições para que tudo isso seja sintetizado num único enquadramento, numa composição com basicamente dois elementos, muito pouco contraste de cor e uma simplicidade formal deliciosa? Ora, ninguém menos que a chuva. Terá sido mandada pelo cacique Cobra Coral, em resposta à convocação dos paulistas?

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Imagens que não fizeram história (2): Paz Celestial

Quem convive com fotojornalistas deve estar careca de saber que o principal fator para conseguir uma boa imagem é estar no lugar certo na hora certa, o que, para além do clichê (sem trocadilho), significa não ter medo de se meter num fogo cruzado, perder o equipamento por causa de água ou areia, ser assaltado, seqüestrado e tudo mais de horrível que possa acontecer a alguém. Robert Capa que o diga: esteve na Guerra Civil Espanhola, na Segunda Guerra Mundial, no conflito árabe-israelense, e foi acabar morrendo no Vietnã (então ainda conhecido como Indochina), ao pisar numa mina. E, no entanto, é por isso que ele é Robert Capa.

Maus fotojornalistas, e maus jornalistas em geral, são pessoas como essas que têm vindo à tona ultimamente: gente que inventa histórias ou relata eventos que não presenciou como se os tivesse presenciado. Mente, em suma, como fizeram Jayson Blair, Stephen Glass e Bill O’Reilly. Há correspondentes de guerra que não sabem o que é a guerra, porque passam seus dias na piscina do hotel, e acabam só reproduzindo, sobre um conflito qualquer, os relatos enviesados da narrativa oficial…

Mas viver, além de muito perigoso, também é um negócio altamente sarcástico. Nada impede que, vez por outra, o profissional sério, esforçado e digno acabe conseguindo uma reportagem – neste caso, uma foto – pior do que a dos acomodados que se escondem do fogo cruzado e passam seus dias repetindo os boletins de agências – ou, para atualizar um pouco a coisa, descrevendo o que se diz pelo Twitter.

outra foto de pequim

De certa forma, é o caso desta imagem, que andou circulando pela internet há alguns anos. Quando resolvi batizar esta pequena série de textos como “imagens que não fizeram história”, eu na verdade tinha em mente esta fotografia, mais do que a do tribunal de Nuremberg que publiquei em primeiro lugar (nem sei bem por quê). Este é o meu pequeno paradigma pessoal da imagem que tinha tudo para “fazer história”: foi tirada por alguém que fez tudo certo, estava onde deveria estar e quando tinha de estar, mostra um evento histórico, envolve um perigo terrível, capta o estado emocional do entorno… E, com tudo a seu favor para fazer história, não fez. Continuar lendo

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Duas, três, muitas escolas Friedenreich

Estou com a impressão de que o campo de batalha decisivo para o levante social das últimas semanas será o Rio de Janeiro. O rumo que os eventos tomaram me sugere que o caminho que o país vai querer traçar para si próprio não vai ser tanto o fruto de deputados que passam duas ou três madrugadas votando coisas às pressas, mas o embate entre a vontade da guerra e o sonho de vida entre cariocas. Na antiga capital está em jogo e, de certa forma, tem estado há alguns anos, aquilo que me parece mais central e fecundo nas agitações pelo país, ainda que a gota d’água tenha sido derramada em São Paulo, naquela assustadora quinta-feira. Falo da violência com que se reproduz quotidianamente o abismo social do país. E também, sem dúvida, do próprio abismo.

Vi por esses dias alguém comentando como era impressionante ver, ao mesmo tempo, o complexo da Maré se erguendo contra a brutalidade policial, depois da chacina da madrugada; os estudantes se reunindo no Centro (sede do IFCS) com movimentos sociais; manifestantes pressionando diretamente o governador, mesmo com relatos de ameaças de morte; instrumentos de mobilização recém-surgidos conseguindo aprovar na câmara dos vereadores a CPI dos transportes públicos, a polícia e o governo deixando de lado qualquer civilidade no discurso e, para tomar emprestada a expressão do Sakamoto, perdendo o pudor do terrorismo de Estado. Continuar lendo

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Pauta difusa e derrota, mais uma vez

Para finalmente dar meu palpite sobre o furacão que passou no Brasil nas duas últimas semanas, adotei dois princípios: pensar em termos conceituais, em vez de impressionistas, e começar do começo. Os motivos, espero, vão ficar claros ao longo do texto.

No começo, isto é, entre a porradaria geral da polícia e a primeira manifestação realmente gigantesca, a interpretação geral era de um “aqui também”. Até então, o país que realmente estava fervendo era a Turquia. Lá como cá, o primeiro vetor invocado para explicar a súbita capacidade de motivação foi o acesso às redes sociais. Ou seja, a Turquia e o Brasil seriam algo como um segundo tempo do animado ano de 2011, que teve Primavera Árabe, Occupy Wall Street, indignados na Espanha, manifestações em Israel, Chile e mais tantos outros países.

Mas eis que veio 2012, o ano da decepção: a Espanha, como o resto da Europa, seguiu com suas políticas de austeridade; na Grécia, o neonazismo ganhou terreno. No mundo árabe, os países sortudos se viram com governos religiosos e conservadores; os azarados, com guerra civil. O Occupy teve de se contentar em descobrir que não só Obama baixou a cabeça para Wall Street, como, no que tange aos direitos civis, estava na mesma linha de Bush. Derrotas, ao que parece.

Agora, 2013. Novos países entram na dança. Além da Turquia e do Brasil, Índia e Indonésia, além de, mais uma vez, os bravos chilenos, se colocam em movimento. Como sempre acontece, comparações pululam com o famoso maio de 1968, quando a greve geral francesa, somadas às manifestações dos estudantes franceses, se espalharam para o Leste Europeu, o México, o Brasil, antes de resultar em derrota e apatia.

Algo nessa comparação, porém, não se encaixa. Em 1968, o que houve de efetivo, como a greve que, sem eufemismos, parou a economia da França, foi comandado pelos fortíssimos sindicatos da época, um tempo de mobilização industrial e partidos de esquerda poderosos. Os caminhos para se chegar aos objetivos, fossem quais fossem as pautas de cada grupo social envolvido, à exceção provável dos estudantes, estavam bem traçados, até onde podiam divisar os envolvidos.

Hoje, não há nada disso. Em 2011, os árabes queriam derrubar seus ditadores. E depois? Os espanhóis queriam mandar embora o neoliberalismo… e mais o quê? Os novaiorquinos eram contra a plutocracia, como quase todo mundo. E assim por diante. No Brasil, as manifestações mais ou menos pequenas contra a cara de pau do transporte público se expandiram da noite para o dia numa maçaroca de gente despolitizada que protesta contra conceitos abstratos como a corrupção, mas não quer saber de questões concretas como… a corrupção do oligopólio do transporte. Com isso, as mesmas críticas endereçadas aos indignados e ao Occupy voltaram: as pautas são difusas, as pessoas não propõem nada de concreto. Continuar lendo

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O sol e o século

Primeiro dia do ano com sol e temperatura acima de zero, já na última semana de fevereiro. Então ela aproveitou para levar as cartas todas ao correio, depois comprar queijo, vinho, carne e pão. Apesar da luz ressuscitada e do clima agradável, o clima ainda era fresco: cinco ou seis graus. Caso para um bom casaco, mas não pesado demais. Ela escolheu um escarlate, de lã, um de seus preferidos desde o dia em que Henri Salvador, do palco, atirou uma flor e ela foi cair em suas mãos. Passou a ser o casaco da alegria.

Para quebrar a tonalidade alegre demais do vermelho, pôs uma boina cor de creme, cuja sobriedade, somada aos óculos de aro dourado, deveriam emprestar à sua figura um equilíbrio elegante. Desde pequena, sua mãe lhe transmitira a certeza de que não há valores para a mulher como a elegância e o equilíbrio. A mãe já passou há muito, mas ela ainda segue a lição à risca.

A rua era a mesma de todos os anos, desde que comprara o apartamento em que vivia, com muito esforço e trabalho, dela e do segundo marido. Os mesmos prédios de pedra, haussmanianos, opacos e solenes. A mesma fileira de árvores sem folhas, a mesma linha de trem depois da cerca. Mas os tantos meses sem luz, como acontecia a cada ano, quase a levaram a esquecer que cara tinha o bairro quando banhado de sol. Na esquina, a claridade conferia a cada braço das ruas um tom próprio, inteiramente diferente dos demais.

É o que faz o sol, sempre que lança pinceladas sobre uma esquina. Mas ela não reparava nisso há muitos anos, desde muito pequena, quando quase foi atropelada por um Citroën Traction Avant. Salva por um desconhecido de sapato envernizado e bigode esquisito (sua mãe dizia que era um famoso artista espanhol), a única lembrança que ela guardava do episódio era a luz do sol, que embelezava um lado da rua e deixava o outro, aquele de onde vinha o automóvel, esfumaçado e umbroso.

De lá para cá, tanta coisa! Uma adolescência dura, em que os pais evitavam o quanto podiam deixá-la sair. O medo dos boches, os invasores que falavam pela garganta. E o dia em que não conseguiu chegar em casa, voltando da escola, porque as ruas estavam apinhadas de gente, como nunca ela tinha presenciado. Era algo que ela nem imaginava, acostumada que estava aos bulevares desertos senão por veículos camuflados. E então, o desconhecido de boina negra e jaqueta surrada que apareceu de lugar nenhum, um rifle às costas, tomou-a pelas faces e lhe tascou um beijo. Foi seu primeiro beijo. E o rapaz exclamava: “Eles foram embora! Os americanos estão chegando!”

Depois da Liberação, a escassez de comida e os tempos de normalista. E ela rompeu relações com o pai, envergonhada de ele não ter aderido à Resistência. Aceitara passivamente os soldados invasores atravessando a rua debaixo da janela. Sem esboço de reação, senão pela expressão de desgosto e asco. Continuara trabalhando, gerando renda para o inimigo, enquanto o resto do mundo lutava e morria para libertá-los. Como ela o repreendeu naqueles anos de juventude inflamada! Ele jamais deu uma respondeu. Só a mesma seqüência de suspiros. Enfim, levou muitos anos até que ela pudesse compreender a escolha de um homem que precisava engolir todas as humilhações para alimentar a família, tanto quanto em tempos de paz. Ela só o perdoou numa tarde chuvosa de janeiro, de joelhos diante de sua tumba no Père Lachaise.

O primeiro emprego, para contribuir em casa, foi num liceu suburbano. Aulas de francês, matemática e geografia para uma garotada pouco interessada nos estudos. Com o tempo, ela acabou se acostumando a pegar o trem todas as manhãs na Gare Saint-Lazare e sacudir sobre os trilhos, como se montada num cavalo mal adestrado, por mais de uma hora, enquanto as construções escasseavam. A cada vez que um aluno baixava a cabeça e dormia durante a aula, ela se lembrava de como desejara estudar medicina e de como os pais a demoveram da idéia.

Casou-se pela primeira vez por impulso: um rapaz para quem seu pai torcia o nariz, garoto sem eira nem beira, sempre do contra. Ela não era nada do contra, a não ser, é claro, quanto às atitudes do pai durante a guerra. Pois o primeiro marido era filho de um mártir da resistência, cujo nome estava inscrito na fachada de um edifício do Quartier Latin, marcando o ponto em que ele foi abatido a tiros pelos alemães em agosto de 44.

A união por rebeldia não demorou a se revelar um erro. Em menos de dois anos, ela já nutria um desejo, obviamente secreto, de divórcio. Mas não queria dar o braço a torcer ao pai. Não queria se ver sozinha, mesmo que valesse mais a pena. E a essa altura já tinha a filha, linda e meiga, que não merecia a dor e a vergonha de uma separação. “Pela menina”, ela dizia para si mesma, à noite, enquanto tentava pegar no sono, “é preciso suportar”.

O sol não mudava seu jeito delicado de banhar as esquinas, mas o mundo, entre um raio de luz e o seguinte, se transformava como esquizofrênico. E ela nunca teve certeza, ao longo dos anos, se tanta mudança era algo a aplaudir ou lamentar. Foi com esses sentimentos misturados e palavras molengas, evasivas, dúbias, que ela lançou sua condenação à irmã caçula quando, batendo as portas e lançando maldições a toda a geração anterior, abandonou a casa dos pais e desapareceu. Rebeldia muito mais grave do que um casamento intempestivo. E muito mais segura, autônoma, poderosa. A primogênita, em sua altivez de mãe e trabalhadora, invejou, muito sem querer, a atitude. E a definia como “capricho de agitação juvenil” quando conversava com os pais.

E a irmã foi reaparecer dois anos mais tarde, numa fotografia de jornal. Atirava pedras de trás de uma barricada no boulevard Saint Michel contra a parede humana da polícia de choque. A menina estava mudada. Usava os cabelos longos e desgrenhados, berrava frases políticas, impedia o funcionamento da universidade, distribuía beijos indiscriminadamente entre os companheiros de rebelião. Um assombro. A família ficou chocada. Como tinha se transformado aquela garota, que até ontem brincava de boneca! Mas a primogênita, em silêncio, não conseguia evitar de achá-la linda.

Sua filhinha já freqüentava a universidade quando o casamento se dissolveu. E não foi ela que partiu, mas ele, deixando atrás de si um sentimento amargo de abandono, em vez do alívio que ela esperava. Martelava sua cabeça a convicção de que aquilo provava que nem mesmo um homem sem classe e sem educação poderia querê-la para companheira por toda a vida. E ela se viu triste, tendo de cuidar da casa para ninguém, já que a filha estudava numa universidade do sul.

Com a separação, um bom número de homens se apresentaram como pretendentes. Para sua grande surpresa, ela que se sentia velha e sem graça. Mas, em respeito aos sentimentos da filha, declinou com gentileza todas as proposições. Como ela conhecia mal o fruto de seu próprio ventre! Foi a menina que, observando a melancolia da mãe, arranjou uma maneira de colocá-la diante do pai viúvo de um colega. O homem grisalho, de terno xadrez e fala tranqüila, mas segura, era editor em Saint Germain, e se tornaria, em menos de um ano, seu segundo esposo.

Era como se a vida recomeçasse. Tanta novidade, que passou a primavera e o verão, mas ela não se deu um segundo para observar o traçado dos raios de sol. Um ano depois do novo matrimônio, a maior e melhor das surpresas: ela ainda era fértil. Mais uma criança se juntaria à família. Alegria misturada a apreensão, claro, para alguém que já passava dos quarenta e sentia a velhice mais próxima do que a mocidade.

Mas o tempo para pensar no assunto não existia. Era necessário encontrar um apartamento maior, para caberem a nova criança e a biblioteca do novo marido. Economizaram, venderam bens, contraíram empréstimos, conseguiram pagar o três quartos no primeiro andar da rua Cardinet, acima dos correios, que ocupariam pelas décadas seguintes. Foi onde cresceu o menino, cuja maior diversão, em pequeno, era acompanhar a passagem dos trens pela janela. Era onde se faziam os almoços de domingo para a filha, o genro e os netos, garotos barulhentos e pouco mais novos do que o próprio tio. E onde ela sentiu, enfim, que, de um jeito ou de outro, tudo se encaixava e fazia sentido.

Foram os melhores vinte anos de sua vida, muito bem vividos. Sobretudo depois da aposentadoria. Tempo empregado em fruir da família, não em acompanhar os movimentos do sol ou reclamar do radicalismo da agitação política, tão mudada desde os tempos de sua irmã nas barricadas. Ela lamentava as bombas e os seqüestros, mas não pensava neles quando desligava a televisão. Só temeu pela vida do filho – um frio na espinha indescritível, um enjôo injustificado – quando explodiram a estação de Saint Michel. Mas o alívio foi imediato quando ele telefonou, algumas horas mais tarde, para dizer que estava bem, a salvo na casa de um amigo.

Enviuvou na virada do século, mas a morte do marido foi tão tranqüila e paulatina que a tristeza logo se transformou em cálculo de quanto tempo levaria para se reencontrarem. Ela mesma já não era nenhuma garotinha. Nas primeiras semanas, foi difícil encontrar modos de ocupar o tempo solitário, mas, aos poucos, ela foi se inscrevendo em cursos de cerâmica, pintura, história, filosofia. Aprendeu tanta coisa, que parecia ter voltado à escola. Sua cabeça nunca esteve tão boa. Os cálculos para se unir ao esposo no jazigo de Montparnasse desapareceram por completo: era, afinal, uma certeza. E não há necessidade de pensar em certezas. Ela, então, deixou tombar a pressa.

A um passo da primavera, descer à rua para comprar artigos de primeira necessidade se tornou um prazer. Desses pequenos deleites da pequena vida, que tantos anos leva para aprender a apreciar. E esse prazer em particular, o sol se espraiando de maneira desigual pelos braços das ruas, ela ficou contente de reaprender. A vida, tanto tempo passado, tantos eventos, tantos desgostos e alívios, ainda podia lhe trazer novidades. Talvez tenha sido por isso que ela respondeu com um sorriso aberto e um entusiasmo tamanho, talvez até inapropriado, quando o rapaz de sotaque estrangeiro e bons modos (coisa rara nesses jovens de hoje) veio lhe perguntar para que lado ficava a rua de Saussure.

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Esqueletos no armário

Duas semanas atrás, recebi de meu amigo Leonardo (que, aliás, não gosta de ser chamado pelo nome inteiro) um e-mail que me instava a ir ver a última pepita do cinema alemão, em cartaz nalgumas poucas salas de Paris. Der Baader Meinhof Komplex é o nome do filme, que deve sair no Brasil como “A Facção Baader-Meinhof”, a não ser que entre em ação nossa velha mania de estragar nomes de filmes e ele acabe como “Jovens, rebeldes e armados” ou algo parecido.

Achei que não conseguiria atender ao pedido de Léo, assoberbado que estava, e estou, com as obrigações da vida. Mas surgiu um par de horas vagas, vi o filme e posso fazer um agrado ao amigo, que manifestou seu desejo de discutir a obra via blogs. Pois bem, ao trabalho! E já aviso que vou precisar, provavelmente, dividir minhas idéias a respeito por dois textos, se as leis da blogosfera não se opuserem. Neste primeiro, mando comentários sobre o filme em si. No próximo, enveredo pelas questões um tanto problemáticas que ele suscita.

Em primeiro lugar, devo declarar o seguinte: contra os alemães, podemos fazer todo tipo de crítica, mas não dá para negar que cinema, eles sabem fazer. O filme de Uli Edel, apesar de um roteiro que tenta ser enciclopédico e acaba ligeiramente confuso, além de um retrato talvez conveniente demais dos personagens (sei que o comentário é obscuro; pretendo esclarecê-lo adiante), é daqueles que só deixam indiferente o espectador beócio completo (não que essa seja uma espécie rara). Pertence a um gênero bem típico de nosso tempo, e que a Alemanha tem motivos particularmente fortes para cultivar.

Podemos batizar esse gênero como “esqueleto do armário”. São reconstituições romanceadas, às vezes mais, às vezes menos, de momentos históricos traumáticos e, se possível, embaraçosos. No Brasil, por exemplo, discute-se a última ditadura, a luta armada e, de preferência, a tortura. Os franceses começam a abrir a caixa preta da colaboração com os nazistas, enquanto remoem a saudade do tempo em que a juventude não estava contente só de reclamar e tinha coragem de enfrentar, de verdade, a polícia sua inimiga – falo de 68, claro.

E para os alemães não falta assunto. A ascensão de Hitler, o holocausto, a guerra, a Gestapo, a Stasi, a divisão do país, os grupos extremistas, os neonazistas, o muro de Berlim… Milhares de roteiros estão garantidos. Baader Meinhof (vou chamar assim para simplificar) conta a história dos membros fundadores da Rote Armee Fraktion, ou Facção do Exército Vermelho, um grupo de extrema-esquerda que deu um trabalho enorme ao governo da Alemanha Ocidental nos anos 70.

Fundado em reação à morte do estudante Benno Ohnesorg por um policial e a quase concomitante tentativa de assassinato, por um rapaz de simpatias nacional-socialistas, do líder estudantil Rudi Dutschke, a facção acabou se tornando o mais famoso grupo de ação política violenta do país, a ponto de realizar e inspirar ações que beiravam o terrorismo e, no final, descambaram em definitivo para o terror puro e simples. No início dos anos 90, quinze anos depois da morte dos pais do movimento, ao dar por oficialmente encerradas suas atividades, a R.A.F já era definitivamente uma organização terrorista.

Comparado a outros emblemas do esqueleto no armário, como Adeus, Lênin, Edukators, A queda, A vida dos outros e Sophie Scholl, este não chega a ser exatamente um ícone do gênero. Por exemplo, o que deveria ser a história dos fundadores da R.A.F. acaba se perdendo em subtramas sobre as (assim chamadas) segunda e terceira gerações. Mesmo assim, é um grande filme para quem se interessa pelas peripécias da geração de nossos pais. Menção honrosa, como sempre, para as interpretações. Os atores alemães dão seu espetáculo habitual.

Isto aqui, porém, como de costume, não é uma crítica. Muito mais me interessa a história, um enredo que dá pano pra manga a quem se deixa fascinar por eventos do passado, com toda a estranheza que eles podem causar em quem não tem a triste pressa de encaixá-los logo de uma vez num julgamento qualquer, um juízo determinado, no mais das vezes, por conveniências pessoais. Nossas sensibilidades de princípios do século XXI, diante de ações como as de Andreas Baader, Gudrun Esslin e Ulrike Meinhof, provavelmente perguntarão por que essas pessoas jovens, belas e inteligentes largaram tudo para viver na clandestinidade e na cadeia; por que pegaram em armas e arriscaram a própria vida; por que se radicalizaram tanto, a ponto de perder a noção de quem estavam atacando e por quê.

Tenderíamos a rapidamente lhes atribuir um enorme ódio à democracia, pelo fato de quererem derrubar pela força das armas um regime, para instaurar outro em seu lugar, sem grandes consultas à população. Tenderíamos a dispensá-los como iludidos ou loucos. Mas tudo isso parece apressado, se não partimos de um ponto quase ingênuo: a perplexidade perante uma era de conflito e engajamento que, aos olhos de alguém com menos de trinta e tantos anos, parece não ter sentido.

O diretor Uli Edel e o roteirista Stefan Aust (autor do principal livro sobre o grupo) afirmam terem se preocupado em realizar o filme da forma mais objetiva possível. É claro que isso não existe e eles falharam. Através da Europa, estão sendo acusados de glorificar o terrorismo. Talvez por mostrarem na tela o encadeamento causal da escalada do terror, o que é quase proibido num tempo em que as condenações têm de ser sumárias e veementes, qualquer olhar em perspectiva sendo carimbado como “justificativa do injustificável”. Talvez por esconder casos como o de Horst Mahler, que, membro da facção e advogado dos companheiros, tornou-se, atualmente, um dos principais líderes neonazistas do país. Talvez por não mencionar que os principais movimentos de esquerda da Alemanha Ocidental repudiaram com veemência as ações do grupo, a começar pela Sozialistischer Deutscher Studentbund (Sindicato [União] dos Estudantes Socialistas Alemães) de Rudi Dutschke, ironicamente um dos principais inspiradores de Baader, Ensslin e Meinhof.

Talvez, também, por realçar o lado glamoroso dos envolvidos, o apoio popular que eles receberam durante os julgamentos, que foi grande, mas nem de longe tão exuberante. Ou com pequenas atitudes como esconder a língua presa de Andreas Baader, retratado como o rebelde inconseqüente que era, mas um tanto romântico, o que não é preciso: sua rebeldia era uma extensão politizada dos tempos de delinqüência juvenil. Mesmo depois de se engajar na luta contra o capitalismo, continuou tendo fixação por (roubar) automóveis de luxo. Em resumo, ele não tinha, à parte um carisma fora do comum, qualificação nenhuma para liderar um grupo clandestino.

Quanto ao retrato do grupo, o filme insiste de maneira talvez suspeita em mostrar a preocupação da “primeira geração” em não atacar alvos civis (“o povo”, na terminologia que empregavam). Insiste também nas cenas emocionais e na tentativa de explicitar até que ponto aquelas eram, afinal de contas, pessoas normais, como qualquer um de nós, mas que “simplesmente resolveram agir”. Ora, convenhamos, a pasmaceira de nosso começo de século é uma prova irrefutável de que resolver agir não tem nada de simples.

Mas a acusação de apologia ao crime, creio eu, não procede. Afinal, por outro lado, o filme releva algumas questões graves que conduziram à radicalização dos fundadores do grupo. Fica-se com a impressão de que todo aquele esforço era em protesto contra a guerra do Vietnã e nada mais. Embora a maior parte das bombas da primeira geração da R.A.F. tenham explodido em dependências do exército americano, essa interpretação está bastante exagerada.

Por exemplo, o governo da Alemanha Ocidental. A administração do país ainda estava, por incrível que possa parecer, apinhada de ex-membros do governo nazista. O braço direito de Konrad Adenauer, o ícone da democratização da Alemanha Ocidental, era Hans Globke, redator do ato que retirou a cidadania alemã de judeus, em 1935. Em 1966, a coalizão no poder elegeu Kurt Georg Kiesinger, membro do partido nazista durante a guerra, como primeiro-ministro. Muitos alemães não engoliam a rapidez com que o processo de desnazificação do lado ocidental foi dado por encerrado, entendendo que a Alemanha tinha se tornado apenas mais um instrumento do imperialismo americano. (Algo semelhante ocorreu também na Itália.)

Nesse contexto, é menos surpreendente o rumo que as circunstâncias tomaram. Benno Ohnesorg, já mencionado, foi morto pela polícia numa manifestação que o filme reconstitui perfeitamente, mostrando como a polícia permite aos manifestantes pró Xá Reza Pahlevi descer a mão, além de objetos terrivelmente dolorosos, sobre os estudantes que protestavam. O que o filme não mostra é a forma como o rapaz morreu: com um tiro à queima-roupa na nuca. Vemos apenas uma morte acidental, quando o que ocorreu, de fato, foi uma execução.

Não leia os próximos parágrafos quem desconhece inteiramente a história, para não, digamos, “perder a surpresa”. Mas a ausência mais grave do filme é a polêmica em relação à morte dos protagonistas. A versão oficial, do suicídio coletivo, é comprada e, pois sim, justificada. Dos três mortos em outubro de 1977 (Ulrike Meinhof, a jornalista, já tinha se enforcado), dois teriam tirado a própria vida com revólveres que, até hoje, não se sabe ao certo como entraram na cadeia. A terceira (Gudrun Ensslin) se enforcou na janela e uma quarta detenta, Irmgard Möller, golpeou-se diversas vezes no peito com uma faca de ponta arredondada, dessas de passar manteiga no pão, mas sobreviveu para declarar repetidamente que seus companheiros haviam sido executados por agentes da prisão.

Der Baader Meinhof Komplex passa por cima da suspeita. Mostra toda a preparação das mortes, o contrabando das armas para dentro da prisão (uma realização, no mínimo, espetacular), o pranto dos mais jovens quando uma veterana de R.A.F. lhes anuncia o suicídio coletivo. Porém, vá saber por quê, não se vê nada sobre o inquérito relâmpago que, em menos de uma semana, atestou as causae mortis. Tampouco se fala sobre o fato de que o canhoto Andreas Baader tinha marcas de pólvora na mão direita, nem por que Jan-Carl Raspe não tinha marcas de pólvora em nenhuma das mãos. Ficou por explicar, também, como Baader teria conseguido atirar em si mesmo na base do crânio, numa posição de contorcionista um tanto improvável. Aliás, mais que contorcionista, o rapaz era muito ruim de mira: havia três balas alojadas na cela, o que significa que ele errou a própria cabeça duas vezes antes de morrer.

Gudrun Ensslin, que se enforcou pulando de uma cadeira que, magicamente, estava contra a parede do outro lado de sua cela, tinha entregue um bilhete a seu advogado, algumas semanas antes, em que afirmava ter medo de “ser suicidada” como tinha acontecido, no ano anterior, com Ulrike Meinhof. (Cheguei a mencionar as suspeitas sobre a morte dela? Pois bem… a autópsia indica que ela teria sido violentada e sufocada antes do enforcamento.) Mas também não se ouve nada a esse respeito no filme de Edel e Aust, que supostamente celebra o terrorismo.

Somando as omissões de lado a lado, o filme parece equilibrado; objetivo, não. Isso, como eu disse, não existe. Todas essas informações fundamentais que estão ausentes poderiam perfeitamente não aparecer no filme se ele assumisse uma configuração de thriller, aventura, romance. Mas a escolha ficou dúbia, em muitos momentos parece que a intenção era fazer um documentário. Nesse caso, a falta de menção a tudo que está dito acima e a aceitação sem questões da versão oficial são, de fato, graves. Poderíamos alegar que o filme mistura, ou funde, a ficção e o documental, mas num tema tão repleto de polêmicas, o resultado é apenas ficar no meio do caminho.

Mesmo assim, estranhezas à parte, reafirmo que Der Baader Meinhof Komplex faz parte da lista de filmes que precisamos ver, para adquirir um pouco de perspectiva sobre a história recente. Mas, como este texto já está extenso muito além da conta, deixo para o próximo as considerações que o filme me causou.

(Enquanto isso, mudo bruscamente o assunto para deixar meus votos de um feliz natal!)

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