ambiente, barbárie, Brasil, calor, cidade, crônica, crime, direita, economia, imprensa, São Paulo

Sábado: o veranico

Saio para regar as plantas e avisto à distância, no meio de um céu ocre e desolado, uma andorinha voltejando. Uma única andorinha, ágil como sempre, mas estranhamente solitária. Estranha como o próprio céu – que cheira a lenha, ou a cinzas de cambarás, piúvas, bocaiúvas e carandás.

Perto da janela dos fundos, as andorinhas fizeram um ninho, então estou acostumado a vê-las em bando. Só que, desta vez, é uma só. O velho dito popular sobre o “não fazer verão” me vem à mente, mas impregnado de ironia: pelo calendário oficial, estamos em pleno inverno, mas a imagem que me ocorre é a do estio, que a presença da andorinha vem negar.

É inverno e faz calor. E antes mesmo da primavera, a natureza já indica que o verão foi abolido.

Se fosse no tempo da minha adolescência, os jornais já estariam dando alguma trivialidade sobre o “veranico”: uma ou duas semanas de calor, que permitiam enxertar uma retranca prosaica no meio da torrente de notícias pesadas.

“Veranico”, palavrinha recorrente em outro século! Desapareceu, foi esquecida, junto com o período que servia para nomear – a breve interrupção do inverno em São Paulo.

Hoje é sábado, faz calor no meio do inverno, mas não é um veranico. É só mais um dia quente, acima dos trinta graus. Como foi ontem e como amanhã deve ser.

O noticiário, então, tem que se contentar em fazer o oposto: dar palanque a gente do naipe de Aldo Rebelo ou Eduardo Bolsonaro, quando se aproveitam da semaninha de frio que tem feito no inverno para negar a evidência de que os anos têm ficado cada vez mais quentes.

Virou notícia, fazer frio no inverno! Por que não adotamos “invernico”, como antes tínhamos um “veranico”? Fica a ideia: se por acaso calhar de fazer frio no inverno em São Paulo, podemos pautar um “invernico” e aligeirar o noticiário. Que tal?

Falando nisso, esse frio passou por aqui faz uma quinzena, mais ou menos. Agora, só ano que vem – com sorte. Vamos deixar o “invernico” guardado, então.

Hoje, a andorinha voa no calor e no céu ocre que cheira a cinzas. No sentido literal, ela não fazer verão seria até boa notícia. Como costumavam dizer os cariocas, e agora dizemos todos, o oposto do inverno é o inferno.

No sentido figurado, ao contrário, parece que nunca mais teremos um verão. Pensando bem, parece mesmo é que estamos presos indefinidamente num monstruoso inverno escaldante.

A andorinha volteja atrás de insetos, sozinha. Será que ela baila no ar para informar que não podemos almejar um verão, que nunca mais viveremos uma primavera?

No fundo, nem penso em primaveras, mal lembro o que é isso. Penso nas plantas, que estavam secas e agora estão molhadas. Penso por um instante na garganta, que arranha, e nos olhos, irritados pelo ar denso, carregado com os restos de biomas mortos. Fecho a torneira, volto para dentro, lembro de não deixar a janela aberta.

Padrão
barbárie, Brasil, capitalismo, cidade, crime, descoberta, desespero, deus, direita, economia, eleições, Ensaio, escândalo, esquerda, greve, história, lula, manifestação, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, religião, Sociedade, trabalho, tristeza, vida

Em que consiste o retrocesso?

No último texto que publiquei por aqui sobre o que se passa na política brasileira, tentei avançar duas idéias relacionadas ao destino que nos espera. Resumindo bem, são as seguintes: primeiro, que o governo Temer representa o ponto-chave de um retrocesso que não começa com ele e não reverte nem os governos petistas, nem a Nova República, mas uma dinâmica histórica muito mais extensa. Por isso, melhor seria pensar na dinâmica atual como um “retorno” à lógica geral da Primeira República, tradicionalmente conhecida como “República Velha”. Um “retorno”, como eu disse, a uma lógica, a um modus operandi, e não à fase histórica propriamente dita, é claro.

Em segundo lugar, defendi que esse processo de regressão se choca com uma realidade social e demográfica do país, e esse choque torna, quero crer, impossível (pelo menos, impensável) sua chegada a termo com sucesso. Isso significa que o grau de involução que se tentará impor ao país, e que em menor grau já vem sendo sugerido há tempos, é tal que, necessariamente, algo explodirá no caminho. Portanto, o processo ruiria, provavelmente com violência. É inviável.

Mas acho que é preciso explorar em mais detalhes essas duas teses para entender melhor onde estamos, o que significa o retrocesso e que tipos de tensões vêm pela frente. Por isso, o que segue complementa o escrito de setembro, mas ainda é só um passo preliminar para uma questão muito ampla e intrincada.

* * *

Sem dúvida, o coração da crise, no sentido amplo, pode ser designado com a tradicional rubrica do “conflito distributivo“. Na medida em que não dá para todos ganharem algo, como parecia ser o caso na década passada, cada grupo social tenta garantir o que puder do butim. E nesses casos, como é mesmo que se diz? – “Quem pode mais chora menos”… Por outro lado, esse termo não me satisfaz completamente, porque geralmente se refere a recursos financeiros, particularmente em discussões sobre a inflação. E essa visão unidimensional muitas vezes nos leva a esquecer que há outras dimensões para esse conflito.

Por isso, vale a pena olhar separadamente para as três dimensões do problema. Ele se desdobra, e não é de estranhar, em processos econômicos, sociais e políticos. É claro que são dimensões que facilmente se misturam, mas a divisão é útil, nem que seja para escapar à tentação de se contentar com a leitura moral ou moralista. Ou seja, ficar satisfeito em dizer que triunfaram corruptos, mafiosos, e por aí vai, ainda que pareça ser mesmo o caso…

Além de moralista, como se a política fosse um epifenômeno da moral, essa explicação peca pelo curto-prazismo, tornando-se cega para as dinâmicas determinantes do caminho brasileiro. Não é o melhor dos caminhos, por sinal, e se mirarmos nos problemas errados, nunca vamos reunir forças para sair dele.

1: Desindustrialização

Começo pela dimensão econômica, que o leitor provavelmente vai considerar central. Como se sabe, a participação da indústria de transformação no PIB, na estrutura de empregos e na pauta de exportações vem caindo no Brasil desde fins dos anos 80. Essa queda se intensifica em alguns momentos-chave: da abertura de Collor ao período de câmbio artificialmente valorizado, antes de janeiro de 1999; e os momentos sob Lula e Dilma em que o câmbio também se valorizou além do que seria sensato. Por sinal, houve um momento em 2011 em que o dólar chegou a valer R$ 1,55; atualizando pelo diferencial de inflação entre o Brasil e os EUA, chega-se ao dado de que o real estava mais forte do que no início do Plano Real, quando foi sobrevalorizado para driblar especuladores. Era, em resumo, uma irresponsabilidade.

O resultado é que o Brasil voltou a ser basicamente um exportador de commodities, com uma pauta dominada por cinco produtos: soja, minério de ferro, petróleo, açúcar e carne. São produtos de baixo valor agregado, pouco impacto em outros setores produtivos e baixíssimo nível de ocupação de mão de obra, principalmente qualificada. O que os dados mostram é que, no setor agroexportador brasileiro, a cana gera um emprego a cada 100 ha, a soja, um emprego a cada 200 ha e a pecuária, um emprego a cada 350 ha. É muito pouco.

Por mais que queiram nos convencer de que “o agro é pop” (aliás, que lema mais anacrônico), a verdade cristalina é que o dinamismo econômico dessas commodities é bastante opaco. Como se não bastasse, sua produção demonstra uma voracidade tal que destruiu rios importantes, pode eliminar dois biomas riquíssimos e sonha em extinguir etnias inteiras. É sintomático que Kátia Abreu tenha se referido à “questão indígena” do Mato Grosso usando a expressão “solução final”, evocando fórmulas de péssimo augúrio…

Falando em Kátia Abreu, sua proximidade com Dilma Rousseff é uma demonstração de como aquilo que passou por “desenvolvimentismo” nesta década, por fim jogando na lama o termo de “desenvolvimento”, foi uma política de franco favorecimento a esses mercados que desenvolvem tão parcamente, mas destróem com tanta volúpia. Esse foi seguramente o pior legado da era Dilma, sobretudo porque, ao apresentar tamanho parasitismo como única alternativa “racional” ao parasitismo financista do mainstream global, deixou aberta a porta justamente para as medidas que se propõem agora ao país, apresentados como “conserto” às falhas de seu governo. Mas isso é assunto para outra hora.

Por enquanto, é preciso acrescentar que, para piorar, a transição para a economia pós-industrial no Brasil tem se dado da pior maneira possível, com um nível de qualificação da força de trabalho deplorável (embora ascendente) e a geração de empregos concentrada no “setor de serviços”, mas em áreas como telemarketing, construção civil e a rubrica “comércio” – que designa basicamente vendedores do varejo. São setores com pouca repercussão na produtividade do resto da economia e pouca perspectiva de ascensão profissional.

Para o setor financeiro, claro, isso faz muito pouca diferença, de modo que não é por acaso que economistas ligados a bancos vejam a primarização da economia brasileira como irrelevante. Afinal, existe uma inserção para republiquetas na divisão internacional do trabalho, em papéis que o Brasil já desempenhou por bastante tempo. Mas esses papéis, como sabemos por experiência própria, demandam sociedades desiguais, engessadas, pobres e absolutamente sem ambição. Estamos caminhando rapidamente nesse sentido.

Como eu disse, esse processo não começa com Temer e dificilmente se encerra com ele. Houve medidas durante o governo Lula e mesmo no início do governo Dilma que chegaram a produzir algum efeito na direção oposta, mas foram soterradas por uma orientação geral mais nociva, como o abuso do câmbio como ferramenta de controle da inflação, uma política de financiamento de megacorporações muitíssimo mal desenhada, a aposta em obras grandiosas para reforçar a exportação de commodities (e seduzir as empreiteiras…) e tantas outras. Certamente esse fracasso será, por sua vez, o pior legado do governo petista em termos econômicos.

2: Ascensão abortada

A dimensão social aparece em filigrana no que foi exposto acima. Talvez estejamos testemunhando uma reorganização da estrutura profissional e social no país que, de tão paulatina, acaba também sendo insuspeita. Outra razão possível para que esse processo esteja velado é o efeito de algumas políticas dos anos de bonança petistas, como a valorização do salário mínimo e os programas de distribuição de renda. Quando amplas camadas da população parecem estar subindo de vida, podemos esquecer que a perpetuação desse processo exige uma estrutura adequada a essa dinâmica, ou seja, empregos com salários decentes que remunerem uma produtividade crescente; setores econômicos dinâmicos e modernos em expansão; uma posição mais favorável no sistema do comércio internacional.

Ou bem acreditamos que estávamos desenvolvendo essa estrutura, contra todas as evidências, ou bem acreditamos na falácia de que essa estrutura vem se agregar à população que dela precisa, e não o oposto. Em ambos os casos, foi uma escolha pela autoilusão. Uma ilusão em que continuamos incorrendo é a dos incentivos ao setor automotivo. O que se conseguiu, por exemplo, com o longo período de “IPI zero” foi crer que o desemprego não estava subindo, porque o impacto das montadoras sobre o emprego industrial (por meio da sua cadeia produtiva) é significativo. Depois, tivemos de admitir que também esse setor é defasado no Brasil e, no máximo, mascara as estatísticas de emprego industrial, sem efetivamente refletir a sofisticação produtiva.

Com efeito, o que há de mais problemático e potencialmente desestabilizador nesse processo de regressão produtiva é que diferentes configurações produtivas / econômicas requerem, engendram e implicam diferentes distribuições na configuração social. A partir do século XIX, a industrialização, por exemplo, conduziu (não automaticamente, claro, mas através de muitas disputas internas) a sociedades com classes médias mais amplas, pujantes, afluentes. Por ironia, a China é ao mesmo tempo o grande contra-exemplo e o grande exemplo, já que seu maior crescimento industrial foi baseado em salários deprimidos e crescimento da desigualdade, mas sua atual etapa de desenvolvimento induz a um forte aumento dos salários, que já ultrapassam os do setor industrial brasileiro.

Já o mundo desenvolvido está investindo numa “economia do conhecimento” que fomenta o desenvolvimento de uma “classe criativa” que porta seus próprios ideais, projetos e utopias, como outrora foi o caso das classes trabalhadoras da industrialização ou as classes médias de meados do século XX, cada uma à sua maneira e com seus próprios princípios determinantes… É claro que há muito a criticar na imagem dessa “sociedade criativa”, mas não é o caso de tratar disso aqui.

E o Brasil? O que significa para este país abdicar de uma economia industrial como a que se construía por estas bandas até o fim dos anos 70, sem em seu lugar desenvolver uma “economia do conhecimento” ou uma inserção mais favorável e com remunerações melhores nas cadeias de valor tal como estão hoje? Que grupos sociais (ou, falando mais claramente: que classes) estão implicados na reprimarização da economia, na dominação latifundiária e também no retalhamento territorial da cidade entre cartéis como os dos transportes de massa? Mais ainda: e no triunfo do subemprego simbolizado pelo telemarketing? E nos quase-monopólios em mercados como o bancário, o alimentício (e de bebidas) e o de mídia?

Para complicar a questão: como essa configuração social se comporta quando somamos ao modelo a desilusão do cair-na-real, uma vez que a nova classe média (“aquela-que-teria-sido”) se dê conta de que, na posição em que o Brasil se encontra hoje, mal há espaço para uma classe média qualquer, quanto menos para uma nova? Por sinal, é de se notar que a “velha” classe média já se adiantou e deixou claro que não quer novos condôminos no espacinho desconfortável que as oligarquias lhes concederam. A tal ponto que hoje dá apoio, mesmo que velado, a reformas econômicas que a prejudicam diretamente, só para garantir que outros se prejudiquem ainda mais…

Amarrando todas essas questões, o que me deixa mais perplexo é que o Brasil tenha se tornado um país urbano, com instituições razoavelmente bem desenvolvidas, centros tecnológicos com bastante qualidade, altas expectativas para uma parte não negligenciável de sua população, mas esteja se encaminhando para um quadro econômico e uma configuração social que não conseguirá aproveitar nada disso. Estou certo de que, mais dia, menos dia, essas tendências divergentes vão se chocar.

3: Brindam os patrimonialistas

E quanto à dimensão política, o que dizer? Aqui, sim, talvez fosse o caso de começar pela interpretação moralista: o grande vencedor no Brasil, hoje, é o corrupto tradicional. Mas o corrupto triunfou por quê, se a operação Lava Jato ainda está em curso? E tradicional por quê? A escolha das palavras não é casual. E, se me propus a entrar no assunto por esse caminho “moralizante”, é porque ele me parece um jeito eficaz de introduzir o tema mais propriamente político…
Falei em corrupção tradicional no Brasil porque a tradição da corrupção à brasileira tem um aspecto bastante identificável. Ela é um componente determinante e indissociável do patrimonialismo como lógica de organização econômica e política. Já tratei da questão do patrimonialismo em outros textos, mas acho necessário voltar brevemente ao tema.

Acontece que, no âmbito do patrimonialismo, muita coisa que a lógica liberal (e a socialista, e a social-democrata…) de cara identifica como corrupta não aparece desse jeito. Afinal, o próprio do patrimonialismo é que não apenas a distinção entre os assuntos públicos e os pessoais é pouco ou nada relevante para o oligarca, mas sobretudo o poder político e o econômico se confundem, e podem mesmo se identificar.

No caso específico do patrimonialismo estamental brasileiro, estudado por Faoro e herdado diretamente do medievo português, somam-se a essa lógica, mera orientação de fundo, as ondas de choque de um regime jurídico codificado, pelo qual a Coroa entregava tais poderes diretamente e formalmente a seus nobres, principalmente nas vastas áreas recém-adquiridas da Colônia.

Assim, pensemos em determinados fenômenos tão comuns no Brasil, como um oligarca, ou simplesmente alguém poderoso, que se apropria de terras públicas, legisla para dificultar o acesso de classes inferiores a serviços básicos, trata o território que governa (mas pode também ser um ministério, uma empresa etc.) como seu quintal e seu patrimônio. Nessas horas, a tendência intuitiva é não identificar aí gestos de corrupção. De fato, muitos desavisados, influenciados por gente de má fé, realmente creem ser um princípio liberal que ao proprietário (ou posseiro) se permita tudo. Não é obra do acaso que o Brasil seja o país da carteirada.

O trágico nisso tudo é que o desenvolvimento de um Estado nacional e de uma economia mais aproximadamente capitalista nesse contexto não implica imediatamente a supressão do patrimonialismo, substituído por formas de dominação “mais racionais”, como diria um weberiano. Há sempre algum grau de fusão, ou de confusão, entre essas duas lógicas. No Brasil, o resultado é esse capitalismo profundamente patrimonialista que conhecemos, em que o mercado não é um plano de concorrência, mas um repositório de onde se pode extrair renda.

Daí a configuração ineficiente, careira e parasitária dos planos de saúde, das universidades privadas, das telecomunicações, dos bancos… A propósito, duvido que o interminável debate sobre os juros e a inflação no Brasil chegue a qualquer conclusão satisfatória até que se aceite tocar nesse ponto. O que é a Selic, no contexto da economia brasileira atual, senão um mecanismo de retroalimentação patrimonial? Pode-se discutir até a exaustão seu efeito sobre a inflação; aliás, não seria a inflação brasileira um mecanismo de acomodação do conflito distributivo? Em todo caso, a taxa de juros no Brasil é alta por motivos que vão além, muito além, da mera gestão macroeconômica. Ou será que quem sempre esteve acostumado a rendimentos fáceis e polpudos vai aceitar que eles sejam reduzidos… “na marra”? Imagine, só imagine, o que poderia acontecer a um governo que tentasse isso!

Eu diria, inclusive, que a figura mais evidente hoje dessa fusão, ou melhor, desse monstrengo, em que não dá para divisar direito onde está o patrimonialismo e onde está o “racionalismo liberal”, é o atual prefeito de São Paulo. O sujeito passou a vida toda manuseando o que deveria ser o público em benefício próprio, para depois apresentar-se como “não político”, “mero gestor” e outros oximoros. E, sem saber distinguir alhos de bugalhos, embebidos nessa lógica patrimonialista mal e mal misturada com liberalismo, o eleitorado acabou acreditando. Mas essa lamentável figura não é o assunto deste texto.

O fisiologismo de que tanto se fala nos partidos brasileiros e particularmente no Legislativo tampouco é fruto do acaso: o político fisiológico nada mais é que um patrimonialista querendo garantir o seu. Aliás, quando você estranhar que uma polícia tão incapaz de elucidar crimes como é a nossa se esmera tanto em reprimir reivindicações legítimas, lembre-se: ela está protegendo o patrimônio tácito de alguém contra aqueles que teriam o direito legal àquele patrimônio, na medida em que, oficialmente, ele é público…

* * *

É nesse sentido que dá para afirmar que a corrupção está ganhando de lavada, sem que essa afirmação seja mero moralismo. Uma demonstração cabal está na indicação escandalosa de Alexandre de Moraes para o STF, com sua pronta aprovação, conduzida sem sobressaltos e com um pessimamente disfarçado apoio de veículos de mídia. Por sinal, muitos desses veículos bradavam poucos dias antes contra sua presença no Ministério da Justiça, por incompetente.

E não é nem preciso evocar as suspeitas quanto à morte de Teori Zavascki, ainda que sejam suspeitas legítimas. O problema vai além da implicação direta da presença do títere no Supremo sobre os futuros julgamentos de políticos próximos ao usurpador, principalmente no contexto da operação Lava Jato. Com Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Luiz Fux e Alexandre de Moraes, há pouca esperança de que o STF seja qualquer coisa além de um escudo reforçado para garantir o sossego de oligarcas e de seu patrimônio (ou seja, o país).

Não é o caso de se estender sobre o Judiciário, já que se trata da instituição a que o patrimonialismo recorre sempre que necessário, e portanto um assunto interminável. Mas vale mencionar a facilidade com que poderosos se livram de pagar por seus crimes. Esse nosso traço tão conhecido reflete bem aquilo com que abri esta discussão: se o público se confunde com o privado, como se dar conta de que determinados gestos são corruptos ou, mais especificamente, criminosos? Ainda que sejam tipificados como tal, a fronteira embaçada ente a lógica patrimonialista e a racionalidade jurídica permite aliviar as penas para alguns escolhidos…

Também é possível ler nessa chave o processo oposto ao “fenômeno Alexandre”: que os controladores da economia brasileira aproveitem um governo ilegítimo, fisiológico e infinitamente chantageável para moldar essa economia da maneira que lhes pareça mais conveniente, sem ter que passar pelo incômodo de negociações com o resto da sociedade. Afinal de contas, a economia brasileira, dentro desse registro, não é um assunto comum a todos que nela tomam parte, mas um patrimônio desse punhado de grupos e famílias.

Note-se: por mais que alguém seja favorável, abstratamente, a um dispositivo constitucional que limite os gastos primários, a uma completa transformação das relações de trabalho ou à reformulação do funcionamento da Previdência, é forçoso admitir que o atual governo não tem legitimidade para impor essas pautas. E não só porque o presidente não foi eleito: é também porque os parlamentares que hoje o apóiam chegaram ao cargo graças a chapas alimentadas por dinheiro desviado, e depois mudaram a cabeça do Executivo ao sabor das ofertas de favorecimento que iam recebendo. A aprovação de emendas constitucionais em tal cenário é uma afronta à democracia em seus princípios mais básicos, pouco importa se “operacionalmente” tudo segue os ritos. Neste caso, os ritos são secundários, a não ser que pensemos com a cabeça de um Eduardo Cunha ou um Gilmar Mendes.

No entanto, em defesa da “ponte para o futuro”, o empresariado, grande parte da mídia e sobretudo um caminhão de economistas ignoram solenemente a exigência de que, numa democracia, mudanças tão profundas no quotidiano do país sejam decididas democraticamente. Ou seja, que as propostas sejam debatidas com a população por períodos suficientes e, em seguida, sejam votadas por representantes legitimimamente eleitos (ou melhor: eleitos com um mínimo de legitimidade). É um escândalo que não se levante essa questão, e não se cogite de uma insuficiência democrática no processo. Para mim, é a demonstração de que “nossas elites” enxergam a sociedade como um apanhado de súditos, e não como uma rede de cidadãos. Não há futuro para um país com essas condições.

* * *

Com esse interlúdio sobre o patrimonialismo, acredito que já é possível enxergar como as três dimensões estão tão articuladas que chegam a se confundir, a ponto de não sabermos ao certo quando estamos tratando de um tema econômico, político ou social. Assim, a perda de dinamismo econômico do Brasil pode ser ao mesmo tempo a causa do triunfo das oligarquias (patrimonialistas) como a conseqüência de sua notável capacidade de se agarrar ao poder ao longo de todo o período da industrialização, de Vargas aos generais, e de compor, na condição de parceiro inescapável, com todas as forças da redemocratização.

Muitos dos epiciclos e outros volteios absurdos que aparecem na Constituição resultam das pressões desse grupo, reunido sob a alcunha de “Centrão”, que de centro não tem nada. Vale a pena se perguntar até que ponto esses episódios políticos foram responsáveis por enfraquecer a base produtiva do país daí por diante. Por outro lado, eles também demonstram que não havia suficiente força ou atenção na sociedade civil para barrar os esforços patrimonialistas. Aliás, não é nenhum acaso que Eduardo Cunha tenha ressuscitado esse nome de “Centrão” quando presidiu a Câmara dos Deputados. Deveríamos ter atentado mais para esse detalhe.

No período da Nova República, provavelmente a principal perda de poder desses grupos tenha sido a renegociação da dívida dos Estados, no primeiro governo de Fernando Henrique. Mas o golpe não foi tão duro, pelo visto. E, se fosse, aliados daquele governo como Michel Temer, Eliseu Padilha, Antônio Carlos Magalhães e Renan Calheiros não teriam permitido que fosse adiante. O mesmo vale para aquilo que pareceu ser a destruição do PFL, hoje renascido com um nome mentiroso: olhando para o mapa eleitoral de 2010, era possível acreditar que as oligarquias estavam feridas de morte. Que ilusão!

Ao contrário, com o enfraquecimento das forças associadas à redemocratização, todas elas, desde aquele antigo PSDB de Montoro até o PT dos tempos de sua combatividade, as oligarquias podem reivindicar aquilo que sempre foi seu de facto, embora todas as constituições do Brasil independente tenham tentado fazer com que fossem públicas, de jure. Com a derrocada final do governo Dilma e o mercado financeiro implorando por alguém que aplique sua cartilha sem precisar recorrer a difíceis refregas com um Congresso hostil, o caminho estava aberto, e nossos barões, tubarões, pantagruéis, não perderiam jamais a oportunidade. Hoje, eles até mesmo disputam espaço internamente, no governo das oligarquias. Há quem veja aí sinal de fraqueza, como se fossem destruir-se mutuamente. Acho improvável: eles se destruiriam se ocupassem um espaço exíguo, mas me parece que, com a porteira aberta como está, da para acomodar todos…

* * *

Esse é o cenário em que nos encontramos atualmente. Na falta de uma economia dinâmica e de um setor produtivo diversificado e na fronteira tecnológica, que seja capaz de exigir do Estado uma legislação que lhe seja adequada; na ausência de uma classe média em expansão, qualificada e bem formada, que seja capaz de pressionar seus representantes; na ausência de uma classe trabalhadora articulada e, como a classe média, bem formada e qualificada, capaz de exigir uma parte da riqueza produzida, sobretudo por meio de serviços públicos decentes (nada de “padrão Fifa”), há muito pouco anteparo para o avanço das oligarquias sobre o butim daquele país que tentou ser, mas ficou pelo caminho.

Afinal, são eles que têm acesso mais direto às riquezas, seja por meio da posse da terra, seja pelos super-salários do Judiciário, seja pela ocupação dos cargos públicos de comando e do controle sobre o sistema partidário, seja pelas aplicações a juros altos com a mais absoluta tranqüilidade. São eles, também, que têm acesso aos mecanismos de exercício de controle do poder, seja pelos cargos do próprio Judiciário (juízes, desembargadores, ministros…), seja pelos cargos eletivos, seja pelo poder que organizações como a CNA adquirem, seja pelo conluio com instituições religiosas que colocam a fé em segundo plano, seja pelo acesso direto ao comando das polícias.

Falei em riquezas e em mecanismos de poder político – e o que se obtém quando se somam esses dois fatores? Ora, nada menos do que o controle social. Como se sabe, quem controla a riqueza e os mecanismos de poder tem controle quase absoluto sobre a sociedade. Qual é a conseqüência? É essa que estamos vivendo. Cada vez mais, a bancada ruralista e seu discurso retrógrado e falsamente liberal ganham peso. Cada vez mais, as instituições que deveriam sustentar o capital industrial (CNI, Fiesp etc.) se tornam apêndices do capital agroexportador. Setores políticos ligados ao trabalho industrial e/ou urbano se transformam a ponto de ficar irreconhecíveis, e se não o fazem, minguam. Mas se o fazem, também minguam, na medida em que dependiam da proximidade perdida com o governo.

Talvez esteja aí a resposta para um enigma que vem incomodando muita gente à esquerda: por que movimentos recentes e embrionários que deram as caras nos últimos anos, como a luta pelos transportes, os direitos dos índios, os movimentos feminista e negro, os sem-teto e, mais recentemente, os estudantes secundaristas, não foram capazes de articular uma oposição consistente na sociedade e nas ruas a um governo usurpado e declaradamente contrário a todos esses grupos?

O problema pode ser que uma tal articulação exigiria um poder de pressão dos setores populares, dos trabalhadores, de camadas urbanas, que não está dado. E de onde viria esse poder de articulação, se as categorias que se mobilizam com mais eficiência, principalmente as industriais, estão com a espinha quebrada? Será por acaso que nos últimos anos as greves têm sido feitas basicamente pelo setor público e pelos bancários, com efeitos limitados? A propósito, os bancários também não compõem uma categoria com perspectivas muito luminosas para o futuro…

Some-se a isso que as centrais sindicais se tornaram dependentes de um governo que deixou de existir; o aparato repressivo foi inflado com enorme colaboração desse mesmo governo (cujos apoiadores, ironicamente, agora gostariam de estar na rua ao lado daqueles que reprimiram…); grupos financiados por Skaf, Lehmann e outros desinteressados patriotas para fazer protestos até o ano passado hoje já completaram a transição para milícias cujo modo de atuação não deve nada, mas nada mesmo, aos bandos fascistas dos anos 30 ou aos dezembristas de Luiz Napoleão.

Com isso tudo, o curso me parece livre para que as oligarquias recuperem cada centímetro do pouco de poder que foram obrigadas a ceder ao longo do último século. Cito um caso apenas, que me parece bastante ilustrativo, porque vai ao cerne da mobilização que iniciou todo esse processo, e também porque atinge o coração do problema da extração de renda no ambiente urbano, que é a tendência do século XXI. Lembra-se de quando os empresários dos transportes estavam acuados e corriam o risco de ter de melhorar o serviço ou, se for permitido sonhar, retorná-lo ao setor público? Pode esquecer. A pauta da melhoria das condições de vida foi perdida completamente por um bom tempo e os cartéis do transporte podem dormir tranqüilos. A propósito, esse é um tema que merece um texto só para si: como se manifesta o patrimonialismo oligárquico no mundo urbano e tecnológico de hoje.

* * *

Existem esperanças de que a operação Lava Jato, desestabilizando o governo Temer, dificultando sua relação com o Congresso e comprometendo seus ministros possa pelo menos frear um pouco o processo político de regressão. Que pelo menos suas medidas mais drásticas e cruéis não passem, ou que haja tempo de alguma recomposição de forças em contraponto às oligarquias. Na verdade, essas esperanças refletem o sonho de uma recomposição da esquerda.

Confesso que tenho muito pouca esperança por esse lado. Primeiro, porque, como eu disse, o processo não começa com Temer e nem se encerra com ele: o “mordomo de filme de terror” é só um ponto de convergência. Por mais que seu governo seja desestabilizado, permanece o problema de que não há nem plataforma comum, nem base social para forças que se contraponham efetivamente ao avanço da tradição patrimonialista nos próximos anos. É provável que 2018 traga um fortalecimento desses grupos, dessa vez em toda legitimidade, e isso me assusta bem mais que a ascensão do grupo de Temer.

Segundo, porque quando se fala em “recompor a esquerda” ou coisas parecidas, imediatamente se imiscui aí a idéia de “recompor o PT”. Mas o próprio PT, com seus satélites na esfera pública, não parece estar compondo nada de muito novo. A demonstração mais clara disso é a insistência no projeto de Lula para 2018, só porque as pesquisas de opinião o mostram bem posicionado. Não aprendemos nada com Getúlio em 1951?

E mais importante ainda: que raio de projeto progressista é esse? Quer dizer que para não regredir 88 anos é preciso regredir 15? O projeto de eleger Lula novamente em 2018, para além de seu aspecto como mera tentativa de resolver o problema pessoal do ex-presidente com aqueles que tentam fechar o cerco contra ele (jurídico, midiático, político…), é a prova cabal de que desapareceu no Brasil a esquerda eleitoral com diagnóstico e projeto para o país. E isso não é só trágico. É também sintomático: se uma tal esquerda desapareceu (primeiro com o trabalhismo, depois com o petismo), é provavelmente porque sua base social se desmilingüiu.

* * *

Falando em base social em frangalhos, na segunda parte do argumento de setembro, eu levantava a idéia de que o retrocesso não tem como ser bem-sucedido. De modo geral, é claro que nenhum retrocesso é estritamente uma volta para trás, tal e qual. Eu seria louco se o afirmasse. Por outro lado, não se surpreenda se alguns dos operadores do retrocesso imaginarem que estejam fazendo exatamente isso. Pense em Rodrigo Maia dizendo que a Justiça do Trabalho não deveria existir… Pense em Michel Temer dizendo que a mulher é importante para o país porque faz compras no supermercado… Mas creio que foi Talleyrand que, na restauração dos Bourbons na França, após a Revolução e após Napoleão, advertiu que não seria prudente esperar que tudo voltasse efetivamente ao que era antes de 1789: a plebe não se conformaria com um retorno à vida anterior depois de ter experimentado uma vida civil mais participativa e, na medida do possível, mais livre.

https://i0.wp.com/www.ville-imperiale.com/wp-content/uploads/2013/02/l-homme-aux-six-tetes-caricature-de-talleyrandpetit.jpg

Em alguma medida, é o caso no Brasil, onde o último século testemunhou o surgimento de classes médias e trabalhadoras urbanas e diversas; de uma camada de funcionalismo público com aspirações à ascensão para seus filhos, ou ao menos à manutenção do status conquistado, considerado um direito adquirido; de uma infraestrutura passável, com uma rede de estradas e aeroportos que, tudo bem, deixa a desejar, mas conecta todo o país: não é mais um agregado de regiões quase isoladas, como no tempo dos governadores; de redes de telecomunicações que, em que pese o quase-monopólio “global”, também ligam as populações das várias regiões. Este não é mais o país do Jeca-Tatu.

Na década passada, novas transformações vieram ampliar o nível de exigência sobre a evolução institucional e sociopolítica do país. Não só de ilusão foi feita a saga da “classe C”, que de fato incluiu no sistema do consumo, da produção e da interação urbana grupos, inclusive raciais, que nossas tradições arraigadas e em geral veladas relegariam à categoria de “humilháveis”. Programas de distribuição de renda e combate à miséria podem promover mudanças importantes nas relações hierárquicas em nível local. Cotas raciais em universidades permitem pequenas trincas na noção de instrução como patrimônio de classe, ou seja, no célebre “bacharelismo” brasileiro.

Além disso, as metamorfoses ocorridas no último século ganharam, neste século, um certo grau de consolidação, de modo que a fragilidade patente daquele processo quando ainda em curso já se transformou em muito mais solidez. Os bairros estão assentados, com associações atuantes; hoje, há identidades a defender, no sentido dos vínculos entre populações e territórios, onde antes havia migrantes em estado precário. Assim, a exigência de melhorias nas condições de vida têm um peso multiplicado. Mas este foi o lado que explorei mais a fundo no texto de setembro, então não vou me repetir.

https://i0.wp.com/s2.glbimg.com/DzLUe87wXkEYZl1HPg1Gob0mE4k=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2013/06/25/img_0548.jpg

O que ainda preciso explorar aqui é outro problema, mais grave: se por um lado não há articulação social bastante para se contrapor ao retrocesso oligárquico/patrimonialista e, por outro lado, não há como retroceder como esses grupos gostariam e tentarão, sem a completa dissolução do tecido social no Brasil, então para que lado a corda é puxada? O que acontece quando um projeto é impossível, mas barrá-lo também é impossível? E, nesse meio-tempo, quem se beneficia? Que formas surgem para tapar o buraco quando as formas bem delineadas se desmancham?

Essas são, me parece, as perguntas do Brasil de 2017, ou do Brasil de 2013 a 2018, e provavelmente muito além de 2018… Sobre as formas que tapam os buracos: receio que sejam, pelo menos no primeiro momento, formas monstruosas. A bem dizer, tenho muito pouca esperança no futuro próximo do Brasil. Esse desalento não pode me isentar de procurar qualquer nesga de luz que possa haver, mas me parece bastante evidente que os próximos anos vão testemunhar conflitos terríveis e que há poucas chances de que, pelo menos nas primeiras refregas, o resultado penda para um lado mais humano e uma sociedade menos cruel e sanguinária que a bem conhecida realidade brasileira.

Esperança, medo, desalento

http://m.memorialdademocracia.com.br/publico/image/5435

É claro que não tenho como descrever em detalhe como são essas “formas monstruosas”, mas acho que posso esboçar com razoável fidelidade como elas se constituem. Categorias, formas, grupos, instituições, se formam como respostas a anseios de grupos, difusos a princípio, mas que se esclarecem à medida que, justamente, tomam forma: se delineiam. É para isso que servem as categorias: dar nomes às aspirações, aos afetos, que perpassam a massa ainda disforme, o “corpo social” naquilo em que ele não parece ainda ser um corpo, porque não tem suas funções e divisões internas bem definidas.

A pergunta passa a ser, portanto: a quantas andam esses anseios? Aqui, para ficar no prazo mais curto, ou seja, o século XXI, pode ser útil evocar aquele dito associado à vitória de Lula em 2002: “a esperança venceu o medo”. Eram tempos de Regina Duarte expressando seu horror à perspectiva do operário no poder, sem atentar para o ridículo do discurso. E também era uma formulação muito justa do que se passava. Alguns tinham muita esperança de que aquele fosse um ponto de inflexão como nenhum outro na história do país, mas também medo de que acabasse não sendo. Outros tinham medo de que fosse um desastre como tantos outros da história deste país, mas também esperança de que tudo caminhasse bem. Sem falar nos tantos que tinham medo de que o governo Lula desse certo e esperança de que falhasse…

Mas é preciso constatar que, naquele momento, triunfou sobre todos os medos a esperança mais ampla de que uma mudança radical na cabeça do Executivo fosse uma alavanca para resgatar o país do ciclo de reafirmação da miséria. Essa foi a “forma” que se consolidou no período: se as transformações trazidas pelo novo governo seriam boas (apoiadores) ou ruins (opositores) para o país. Mas não havia dúvida de que algo estava em jogo. E é preciso sublinhar um ponto essencial: o triunfo da esperança sobre o medo não é uma aniquilação, já que a própria esperança tem sempre um olho para o oposto da realização do que ela espera. Ou seja, o medo está sempre pelo menos na esguelha, e foi assim que ele ficou. Fermentando.

https://i0.wp.com/turmadochapeu.com.br/wp-content/uploads/2014/05/Comercial-Medo-PT-607x339.jpg

Pois foi essa balança de esperança e medo que andaram trazendo à memória logo antes das eleições de 2014, quando o PT lançou aquela campanha publicitária do “mundo alternativo” (digamos assim), com o argumento central de que remover o partido do poder implicaria na perda de toda a qualidade de vida ganha desde 2003. Sem dúvida, era um argumento forte, que pode ter contribuído para muitos indecisos escolherem a reeleição de Dilma, sobretudo aqueles que perceberam uma melhora de suas vidas sob Lula e tinham esperança de continuar assim, mas medo de voltar ao estado anterior. Essas pessoas podem até mesmo não ter apreciado o desempenho de Dilma no primeiro mandato, mas, com medo de uma guinada da política econômica, preferiram a esperança de que ao menos seus ganhos seriam preservados.

Ou seja, aqui também dá para identificar o jogo da esperança e do medo, esses gêmeos siameses. O medo da queda na miséria vinha com a esperança de retomada do crescimento; essa esperança, quando tomava a dianteira, carregava o medo de ser mera ilusão. E mais alguns outros: a esperança de remover os petistas do poder, acompanhada do medo de não conseguir; o medo de perder os cargos e orçamentos, com a esperança de sustentá-los… E por aí vai.

E não é que a primeira medida de Dilma, uma vez reeleita, foi estilhaçar justamente a esperança desse grupo social que se deixou seduzir pela campanha do “mundo alternativo”? É bastante provável que, nesse momento, ela tenha assinado sua própria sentença de morte política. Mais do que isso, aquilo que ficou conhecido como “estelionato eleitoral” (como já havia acontecido com Fernando Henrique em relação ao câmbio em 1998) reforçou a narrativa de que os pólos da esperança e do medo tinham se invertido: aquele governo não seria mais capaz de representar o lado esperançoso, só o lado amedrontado. Naquele momento, toda a esperança foi jogada no colo de seus adversários, e com ela eles fizeram, de fato, o diabo.

https://pensabrasil.com/wp-content/uploads/2015/09/tudo-farinha-do-mesmo-saco.jpg

Acontece que, desse ponto de vista, hoje o quadro chegou a um estágio ainda mais terrível. O que me leva a dizer isso é o brutal desinvestimento afetivo que acomete a sociedade civil, ao tratar de suas próprias possibilidades políticas. Mesmo a polarização de que tanto se fala não tem nada da animação que houve em outros momentos, aqueles em que a vontade de triunfar expressava o desejo de aplicar suas idéias a um futuro projetado, sonhado. O ponto, e isso me parece decisivo, é que tanto a esperança quanto o medo foram implodidos. Hoje, só sobrou o desalento puro e simples.

Se há uma disputa, ou antes um bailado, entre a esperança e o medo, é porque existem possibilidades em aberto. Há uma contenda para saber qual imagem vai prevalecer. Daí o pêndulo: esperança, medo, medo, esperança… Mas não há nem medo, nem esperança, quando o destino é certo. Quando há muito pouco em disputa e a prevalência está praticamente dada de antemão. A tal da polarização, hoje, parece que se define meramente pelo “quem quer ver quem na cadeia”. É uma polarização empobrecida demais.

Assim, pela fraqueza das discussões prospectivas entre correntes políticas; pelo descaramento com que os controladores do poder tomam medidas para blindar-se contra eventuais anseios da sociedade; pela ausência de projetos substanciais, hegemônicos como alternativos, para um avanço de qualquer tipo no país; pela pobreza das mobilizações sociais: parece que estamos atravessando um período exatamente como esse. De desalento, desesperança, quase indiferença.

* * *

Reformulando, então, a pergunta, ela fica assim: o que, e quem, toma a frente em situações de desalento? Um momento em que se perdeu a possibilidade de desejar aquilo que poderíamos estar desejando, dado o tanto que a sociedade se transformou no Brasil no último século; um momento em que nos damos conta do caminho que estamos seguindo, contra nossas próprias possibilidades, e não temos força para reverter o curso, se é que pelo menos teríamos disposição para isso…

https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-linchamento-como-sintoma-2154.html/linchamento.JPG

Muito se fala, por exemplo, na perspectiva da ascensão de Bolsonaro, o caricato grosseirão da vez. A outrora risível figura se tornou o espantalho e também a tábua de salvação moral para os grupos que ainda contam com o petismo de cúpula para renovar a esquerda no Brasil, não porque vejam efetivas possibilidades aí, mas por mero desalento e falta de energia para buscar outros caminhos.

Mas Bolsonaro é só um nome. Aqueles que repetem seus disparates e o chamam de “bolso-mito” estão projetando nele suas próprias frustrações, ou seja, estão expressando mais o “mito” que o “bolso”, ainda que muita gente estipule que os problemas do “bolso” levam as pessoas a recorrer a um “mito”… Isso não significa, em todo caso, que o ex-capitão/sindicalista seja carta fora do baralho, claro. Muito pelo contrário. Quanto mais o cenário de desalento se aprofundar, mais será lançada sobre figuras como essa a forma de uma resposta, rápida, simples, violenta, que dispensa reflexões.

E o ponto é bem esse: que justiceiros, sacerdotes, profetas, charlatães, tragam respostas que, embora não resolvam nada, insuflem um mínimo de desejo, de libido, no conjunto da população. Isso é o que faz um Bolsonaro da vida, com sua mensagem de violência. E não é só ele. Todo o discurso em cima da PM, dos grupos de extermínio, dos bandos de “justiceiros” dispostos a linchar, do saudosismo com a ditadura, toma apoio justamente nessa função que a violência opera: insuflar, estimular a produção de adrenalina, passar a impressão de que a passividade é ação e a multiplicação da morte é sinal de vitalidade.

E muito embora a gente se esforce para acreditar que está “do outro lado”, o mesmo vale para as grandes corporações do crime organizado que disputam mercados e poder (não que sejam coisas inteiramente distintas) Brasil afora, operando a partir das prisões. Para determinados grupos populacionais, o caráter de “solução” que essas empresas armadas até os dentes carregam é rigorosamente simétrico ao que outros grupos sociais esperam de violências amparadas pelo Estado ou pela opinião pública (e publicada). Do ponto de vista operativo, funciona do mesmo jeito.

Não é só a violência como proposta explícita que consegue atingir esse efeito, claro. O vazio deixado pelo desalento pode ser preenchido por um recurso à transcendência, como nas religiões. Mas também pode ser preenchido pela obediência a quem promete operar esse recurso, fazer acontecer a transcendência sem os ritos normalmente necessários. É o que perceberam alguns líderes que se aproveitam do sentimento religioso em benefício próprio (financeiro, político, de status social…).

A propósito, ainda me preocupa muito a questão da teologia da prosperidade em tempos sem prosperidade, que mencionei no texto de setembro. Que curso tomam as mensagens dos pastores nessas circunstâncias? Quando não é mais possível guiar (ou manobrar) os anseios, desejos, ambições de quem estava ganhando e agora está perdendo, como fazer para manter sua atenção e, principalmente, sua fidelidade?

Não é uma pergunta estéril. Quando alguns desses sacerdotes, tão bem treinados na oratória e na retórica, concluem que a melhor estratégia é designar um inimigo, sustentar um discurso de divisão social, tomar o caminho da política mais rasteira, seu potencial para fazer estragos é enorme. Pense nos Malafaias e Felicianos espalhados pelo país. Pense nos “gladiadores do altar”. Pense no acesso desses pregadores aos meios de comunicação. É provável que ainda não tenhamos visto a metade do mal que podem produzir.

https://geovest.files.wordpress.com/2013/04/tea-party.jpg?w=584

O terceiro elemento é, que ironia, mais messiânico ainda que aquele que se define abertamente como religioso e espera a volta do Messias propriamente dito (não confundir com o Bessias; se quiser, pode confundir com o Mises). Acho notável como o discurso que se faz passar por liberal hoje (não só no Brasil) lança aos ombros do empresário enquanto indivíduo, mas dotado de atributos um tanto quanto sobrenaturais, a tarefa de resolver todas as crises, todas as dúvidas, todos os impasses. Os horrores da política, por exemplo, se resolvem abrindo caminho ao empresário, ao “gestor”, que não está contaminado e pode simplesmente “fazer e acontecer”.

Se o mundo é sujo, difícil, nebuloso, traiçoeiro, então entregue-se o destino nas mãos de um deus ex machina, que, como os ditadores da República romana, não precisará dar ouvidos a ninguém, reintroduzindo a harmonia quase de imediato e sem traumas. E, como mostram os Trumps e os Dórias deste mundo, de fato essas panacéias encarnadas não dão ouvidos, fazem o que bem entendem.

Uma lógica miliciana, a manipulação pela fé, uma doutrinação pseudo-econômica que busca pintar o oligarca com as cores de um grande empreendedor. Uma trinca de peso, venenosa, que vem ocupando muito da nossa atenção nos últimos anos. E pensar que essa atenção poderia estar sendo dedicada à busca de alternativas concretas para construir uma sociedade pujante e pulsante no mundo difícil que será o século XXI!

E esses três papéis freqüentemente se fundam, como nessas jovens milícias que repetem a mensagem supostamente liberal mas se comportam como as SA alemãs e outros bandos de arruaceiros. Ou no mensageiro da violência pura que viaja até Israel para se converter a alguma dessas religiões neopentecostais. Ou nessa estranha idéia de que a Bíblia é um panfleto em defesa da grilagem e do bezerro de ouro de Wall Street (na verdade, um touro de bronze). Misturas perigosas, que tendem a se cerrar e inchar enquanto não houver respostas mais consistentes contra o desalento e a marcha segura das oligarquias.

* * *

Parece que não consegui encerrar o texto em tom menos pessimista. Afinal, uma virada para o otimismo me levaria a dizer duas coisas. Primeiro, que é preciso recuperar tanto a capacidade de ter esperança quanto a de ter medo. Ou seja, a capacidade de se mobilizar por algo que queremos, perante a tristeza que seria não atingi-lo. Segundo, que para chegar a esse primeiro estágio teríamos que conseguir, ainda antes, imaginar meios de reverter o processo, em curso há 30 anos, de retomada oligárquica. Teríamos que ser capazes de imaginar e delinear o caminho de uma nova idéia do que seria “desenvolver” um país como este. Mas teria que ser um “desenvolvimento” atento às três dimensões e livre dos vícios que envenenaram a idéia de “desenvolvimentismo” que nos levou à falência e ao ecocídio nesta década.

E como por trás de todas essas palavras pessimistas há um otimista inveterado (é mais forte do que eu), devo dizer que até acredito que, dentro de alguns anos, o desalento vai dar lugar a novos projetos e novas esperanças. Afinal, como eu disse, o retorno oligárquico é, em última análise, inviável. Além disso, muitas das idéias que fundamentam os terríveis discursos que se irradiam hoje pelo Brasil estão fazendo água no plano global: a desregulamentação irresponsável dos mercados, a guerra às drogas, a troca da deliberação política pela obediência cega a alguns illuminati do Vale do Silício.

https://abrilveja.files.wordpress.com/2017/02/violencia-greve-espirito-santo-vitoria-20170208-026.jpg?quality=70&strip=all&w=920

Mas eu me pergunto: e até lá? Enquanto estamos eletrizados por crises momentâneas como o julgamento da chapa Dilma/Temer de 2014, a possibilidade de que tal ou ta político “vá para a cadeia”, as tentativas de tirar Lula do páreo, será que achamos que o resto do mundo congela? Pois não congela. Os últimos meses nos deram mostras bastante sensíveis dos efeitos práticos que podem sobrevir nos próximos anos, quando os recursos que sustentam nosso ensaio de sociedade civil estiverem definitiva e constitucionalmente congelados. Motins de policiais, massacres em presídios, escolas e orquestras fechando, linchamentos, casuísmo na política e na aplicação da lei…

Não há motivo para acreditar que esse cenário vá melhorar no curto prazo, exceto se um “choque positivo” nos mercados globais insuflar uma nova lufada de otimismo, e de ilusão, nos pulmões do país. Mas seria só uma brisa passageira, que não tocaria na dinâmica de longo prazo. Então prossegue a pergunta: e até lá? Quantas vítimas não vão sucumbir? Quanta destruição não vamos ter que testemunhar, impotentes e desesperançados? O que vai ter restado de pé quando as energias da barbárie começarem a se dissipar?

Padrão
barbárie, Brasil, capitalismo, cidade, crime, desespero, direita, economia, eleições, Ensaio, escândalo, esquerda, greve, história, imprensa, junho, lula, manifestação, opinião, passado, Politica, Sociedade, tempo, transcendência

Os vencedores de sempre e o resto de nós

 

Edipo re

Já que a realidade é tão confusa – e a facilidade com que ela se presta a interpretações simplistas é sintoma dessa confusão –, vale a pena tentar tratá-la como se fosse um enredo ficcional. Digamos: como uma tragédia grega, um melodrama burguês ou um poema épico. Ainda não está claro em qual desses gêneros estamos vivendo, e isso vai depender de como agirão os personagens: são heróis trágicos? São bufões? São semideuses?

Houve quem visse qualquer coisa de divino, por exemplo, na postura de Dilma perante os senadores; os deputados, com seus votos disparatados, certamente transmitem uma impressão de ridículo; e aqueles que, de um modo ou de outro, se colocaram contra a conspiração, ainda que se opusessem aos governos petistas, assumiram uma postura – vamos dizer assim – de heróis trágicos.

Já os vilões, esses os temos de sobra.

O enredo ainda está sendo escrito, mas o que pode ser feito desde já é um esboço dos tipos gerais dos personagens, o que está longe de ser pouca coisa, dada a velocidade com que os eventos nos atropelam. Assim, grosso modo, eu diria que os personagens principais são os seguintes: os formalmente derrotados; os informalmente derrotados – e duas vezes; os vencedores que, quando pensarem melhor, vão se descobrir derrotados; os que, nunca precisando lutar, recebem de bandeja todos os espólios.

Fora esses, tem o coro, os extras, os figurantes, os bichos infláveis.

Odysseus

Essa estranha distribuição de papéis pode pelo menos servir para explicar em parte por que tantos de nós – aqueles que algum dia ousaram ter esperança de alguma coisa – estão se sentindo sem referências, imobilizados, pessimistas. Se não dá para negar, noves fora, que atravessamos uma crise “ao mesmo tempo política, econômica, social e moral”, como tem sido dito por quem quer parecer neutro, o que falta mencionar é que tudo isso são componentes de uma conjuntura crítica com jeito de existencial. Não, é claro, no sentido individual, embora cada indivíduo sinta os reflexos dessa crise; está em jogo não simplesmente uma idéia de país, ou a distribuição dos poderes, mas também o vetor dos próximos ciclos políticos.

A crise é tão existencial que está em jogo até mesmo o passado: qual é, afinal, o tamanho do ciclo que se fecha? 14 anos? 28 anos? 86 anos? A resposta para isso depende de respondermos: o que é que está acabando, de fato? O ciclo do PT, a Nova República ou o ensaio civilizatório do último século?

radeau

Como primeiro esboço – e tudo que segue abaixo são esboços em série –, a síntese mais precisa que consigo encontrar aparece na seguinte pergunta: “onde raios estamos?”, o que, claro, se desdobra em outras questões simples na formulação, mas enigmáticas nas implicações: “como raios viemos parar aqui?”, “como raios saímos desse atoleiro?”, ou então: “onde raios vamos parar?”.

São as perguntas de gente que navega sem bússola, flutuando a esmo. Não é por acaso ou por alguma falha moral que os debates em que temos nos metido são tão estéreis, além de fratricidas. É o debate dos desamparados. Também não é casual que movimentos e reivindicações sociais pareçam ter se tornado estéreis, tendo perdido as principais vias de entrada no sistema político, onde se dá a efetividade, do ponto de vista normativo. O poder, que vinha se fechando aos poucos, agora parece ter batido a porta de vez. Quanto esforço de reconstrução, quantos anos serão necessários, para que se abra novamente?

*

PARTE UM

Nosso drama

pt_es_05

Por enquanto, vejamos os personagens que mencionei acima, antes que sejam esquecidos. O formalmente derrotado é, claro, o petismo, ao menos o da cúpula, que buscou delinear um campo de embate e, nesse campo mesmo, foi fragorosamente batido, justo quando acreditava alcançar o sucesso absoluto. Em que pesem a dimensão da débâcle, o recurso (de parte a parte!) a táticas condenáveis, o transbordamento da ação política além de seu quadro jurídico, a derrota é formalmente clara porque se pode mostrar rigorosamente o que foi desejado, o que foi alcançado, o que foi perdido. No jogo das alianças e embates com as forças conservadoras da sociedade, o PT achou que levaria a melhor, primeiro nas alianças, depois nos embates. Pois bem, levou a pior em umas e outros. Assim, com o risco de soar cínico, sou obrigado a dizer: é do jogo.

Só que a derrota formal do PT é custosa e não só para seus líderes. Depois de chegar ao segundo turno em 1989, convergiu em torno do partido a imagem de uma esquerda capaz de vencer. Tendo vencido, convergiu ainda mais a imagem de um projeto bem-sucedido, grupo que soube compor com seus inimigos para obter transformações efetivas e duradouras no país.

O quanto havia de real nessa imagem – ou seja, o quanto as transformações são mesmo efetivas e duradouras, ou o quanto a tal composição com as forças retrógradas não foi, na verdade, uma simbiose – ainda está em aberto. Mas já se pode afirmar que a consolidação do PT no poder esvaziou a possibilidade de constituir outras mensagens, outros projetos, outras articulações, capazes de corresponder à diversidade enorme dos desafios que a sociedade brasileira enfrenta. No frigir dos ovos, para não entregar os anéis, o PT entregou os dedos de todo o campo progressista.

13226964_1723023497954769_7377327130863519984_n

À medida que as circunstâncias mudavam, no mundo, no país, na política, na sociedade, a paralisia provocada por um centro de atração tão irresistível foi se tornando cada vez mais perniciosa. Entre tantas outras chaves de leitura, junho de 2013 pode ser interpretado por esse ângulo: como foi possível um partido tão bem inserido nas cidades e nos movimentos sociais não perceber o transporte público (e seus oligopólios) como um dos problemas mais urgentes do país? Como pôde não aproveitar a oportunidade de investir contra um feudo (supostamente inimigo) tão bem defendido, logo quando havia uma rachadura na muralha? Como pôde se aliar à direita e entregar à própria direita, à mais tosca das direitas, a narrativa da indignação? Provavelmente estava olhando para o outro lado…

Caso diferente é o do personagem (informalmente) derrotado duas vezes. Enfio nesse saco arquetípico os segmentos sociais e os movimentos, grupos, indivíduos, que tentaram atuar à margem ou fora do sistema político institucional; que tentaram, muitas vezes, atuar através desse sistema, até mesmo por dentro dos partidos, dos ministérios. Que encabeçaram projetos e iniciativas emancipadores, só para vê-los rifados por exigência de tal ou tal aliança espúria. Sem sombra de dúvida, é preciso reconhecer que entram nessa categoria muitos petistas – alguns dos quais, hoje, ex-petistas. Foram derrotados, primeiro, pela estratégia de ocupação de espaços do PT, que depois se tornou uma estratégia de cessão de espaços; mais tarde, por se verem sujeitados a um governo de Michel Temer, Alexandre de Moraes e José Serra. Esses têm bem motivo para estar desanimados, porque o pouco que chegaram a efetivamente conquistar está mais ameaçado que nunca.

* * *

AD117E7ECCCAD897AF2683A81456402

O vencedor que vai se perceber derrotado é o eleitor inclinado para os tucanos, aquele que se considera um conservador esclarecido e ainda, até hoje, em pleno 2016, enxerga no PSDB o partido da modernização econômica, das “políticas econômicas sãs” – expressão que tenho ouvido ultimamente e que me soa bem divertida. Passou despecebido a esse personagem, que costuma ser muito trabalhador e, por isso, não tem tempo para examinar o mundo à sua volta com o devido detalhamento, o fato de que ele perdeu a viagem: aquela tal tucanagem… não existe mais. Ele pensa que ainda convive com Franco Montoro e Mario Covas, reencarnados em Marconi Perillo, Aécio Neves e Geraldo Alckmin. Pois sim.

Na verdade, era natural que um partido cuja imagem se associa às elites políticas e econômicas do país, em particular as do maior Estado da federação, se tornasse paulatinamente mais parecido com o grupo social que veio representar. Esse grupo, vale lembrar, não é composto por “empresários schumpeterianos” dotados de admiráveis “instintos animais”, mas por oligarcas, rentistas, patrimonialistas e tudo que tão bem conhecemos da história do país. Esse eleitor, achando que recuperou o governo para a vanguarda do capitalismo mundial, que é como até hoje ele enxerga o período FHC, não vai demorar a se descobrir em uma versão repaginada da República do Café – isto é, quando tiver tempo de prestar atenção ao que ocorre em volta de seu nariz.

rachadura

Gostamos de pensar no PMDB como o partido que está sempre no poder e se adapta às circunstâncias, numa representação que coloca o PT como esquerda institucional, o PFL como direita tradicional e o PSDB como direita mais moderninha. Essa representação esquece da tradicional imagem do tucano: aquele que está em cima do muro, esperando para ver qual lado vai se dar melhor e então pender naquela direção. Lembra disso? Recomendo lembrar. A bem da verdade, lamento, mas não existe, hoje, um partido que efetivamente represente alguma “vanguarda econômica” no Brasil, e nem poderia existir: no país do agronegócio latifundiário, do spread bancário e da especulação imobiliária, tal vanguarda não passa de fachada. Aliás, aí está uma especialidade brasileira: a fachada!

A charge foi publicada em inícios de 1907, cujo título é "Uma idéia do Zé para o carnaval: O Convênio de Taubaté". A legenda referente ao desenho é a que segue: " TIBIRIÇÁ: - Força, rapazes! Dos seis mil contos para comprar cafés baixos, quero 2.000 para São Paulo! JOÃO PINHEIRO: - E Minas não há de ficar no - 'ora, veja'! Puxa! ALFREDO BACKER: - Quem… teve Mateus que o embale! A União é mau de todos, e o Estado do Rio é um bom filho… Aguenta! Oh! Upa! ZÉ POVO: - Xi!!! Com que gana eles dão à bomba! Que valem economias, impostos, sela à barriga, se o 'melado' corre assim para os Estados?! E nunca mais volta!… Uma idéia: vou lembrar este quadro para um carro carnavalesco; mas faço questão de ser representado… por uma besta! "

Resta falar dos verdadeiros vencedores, aqueles que sempre saem por cima, os autênticos “donos do poder”, para usar a expressão de Raymundo Faoro. Esses não tiveram do que reclamar sob FHC, Lula ou Dilma; dominam o Judiciário sem grande oposição (com seus juízes que se ofendem quando lembrados de que não são Deus); disseminam tranqüilamente sua mensagem de ódio social e desprezo à sociedade. Prosseguem com a exploração predatória das terras e, por extensão, dos corpos. Controlam as polícias, mal pagas e formatadas para a brutalidade; ocupam o Legislativo em praticamente todos os níveis da federação (haverá talvez algum Estado ou município que conte como aldeia gaulesa?). Também dominam amplamente os meios de comunicação – a propósito, por esses dias o STF esteve para votar a posse de veículos de mídia por parlamentares; como andará a obrigatoriedade de publicação dos balanços, hein?

E agora podem também contar com a cúpula do Executivo Federal. Não custou muito: bastou uma conspiração contra gente incapaz de contê-la, sob os aplausos dos nossos “esclarecidos”.

Parabéns aos envolvidos!

* * *

1470483911_929958_1470487415_rrss_normal

Quase todo mundo sabe de cor e salteado que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, mas não parece estar claro o que isso implica em termos sociais e, principalmente, políticos. Fala-se em desigualdade como se fosse meramente uma questão de renda, poder de compra, acesso a bens. Por sinal, é sintomático que os avanços sociais da última década tenham estado tão concentrados justamente na questão do consumo – o que não significa que sejam ilusórios, como já mencionei em outros textos.

A manifestação pecuniária da desigualdade é um mero sintoma; não é nem causa, nem efeito, sobretudo em se tratando de um sistema social, em que a causalidade é circular. Miséria, doenças parasitárias, saneamento deficiente, analfabetismo, raquitismo, periferias supersaturadas, subemprego, violência, nada disso são “efeitos” da desigualdade; são seus componentes, suas faces, como as faces de um poliedro. O mesmo vale para a ostentação, a humilhação de subordinados, a corrupção, o desprezo à lei, a sonegação. Todos esses aspectos se alimentam e justificam mutuamente, compondo o quadro da desigualdade e da lógica política e social do Brasil. Esse quadro remete ao que há de mais decisivo para o que vem por aí: é o momento crítico desse retrato, com a oportunidade de recompor suas poucas rachaduras, que está em jogo para o grande vencedor.

art4076img1

Então poderíamos perguntar: como se relaciona essa distribuição de papéis na nossa dramatização nacional com aquilo que chamei, acima, de crise existencial? Em grande parte, a crise decorre do fato de que todos os segmentos sociais que efetivamente quiseram alguma coisa, que tiveram algum projeto de mudança, alguma idéia para o país, se não acabaram de mãos abanando, acabaram dando de cara com um paredão. Para usar uma imagem meio poética, meio cafona, podemos dizer que a parede em questão é o muro da fortaleza dentro da qual os verdadeiros “donos do poder” (“classe dominante”, “oligarquia” etc.) tomam seu champagne, guardados por Deus, contando o vil metal.

Parece que sempre foi possível contornar esse muro de alguma maneira, ocupar algum espaço do lado de cá, satisfazer um punhado de demandas com migalhas, fazer alguma composição, acomodar interesses, empurrar mais para adiante uma crise mais séria, possivelmente violenta: um verdadeiro confronto social. Agora, parece que isso não é mais possível. Ninguém vê mais uma saída como essa, porque não estamos nem nos anos 20, do tenentismo, nem nos 50, do juscelinismo, nem nos 60, das reformas de base, nem dos 80, quando se fundou o partido de massas que ora implode.

Ninguém parece enxergar nada que corresponda a essas nossas figuras históricas, exceto por pequenas fagulhas, como eventualmente o movimento secundarista do ano passado. Mas esse movimento, como qualquer outro, para ter mesmo efetividade, precisaria poder desaguar em estruturas mais firmes, concretizar-se de alguma forma. Essa concretização, que dependeria de articulações hoje indisponíveis, dada a implosão dos grupos mais progressistas oriundos da era da redemocratização (incluo aí os personagens tucanos), é o que as pessoas não têm conseguido enxergar. Isso justifica, ou ao menos explica, a pasmaceira, a angústia, o pessimismo, a crise existencial.

Explica, inclusive, a derrota próxima dos grupos que se crêem vencedores.

* * *

Assembleia+constituinte+88+fhc+lula+e+covas+5

Passando os olhos pelos diagnósticos do presente disponíveis na imprensa, na academia e na internet, posso dizer com razoável margem de segurança que qualquer análise que se pretenda séria – isto é, que seja mais do que torcida – enxerga nosso momento como algo que vai muito além do “empessegamento” de Dilma Rousseff. Assim, alguns dos nossos melhores observadores têm notado no derretimento político do país a marca dos estertores da Nova República, ou seja, aquela que se fundou com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Há vários artigos sobre o tema, mas o mais completo (e afinal, também o mais extenso) é provavelmente o de Marcos Nobre na revista Novos Estudos.

Em resumo, o argumento ressalta o fato de que o arranjo político do período, pelo qual uma bipolaridade PSDB/PT comandaria e controlaria um grande pântano de fisiologismo (essa é a descrição de Nobre), se desmilingüiu, na medida em que o petismo foi implodido por ataques externos e inapetência interna, enquanto o tucanato se tornou um apêndice um tanto caricato do pântano que acreditava ser destinado a controlar. Esse arranjo vai além das relações entre o Legislativo e o Executivo, está aí Gilmar Mendes que não me deixa mentir.

Por esse prisma, Sergio Machado tinha razão, parcialmente ao menos, ao dizer que “o mais fácil é botar o Michel”, em conversa com Romero Jucá sobre as tramóias que dariam cabo da operação Lava-Jato. Jucá, por sinal, deixa claro que era preciso trocar de governo, e isso foi feito. Assim, o esperado de um governo Temer é alinhar todos os poderes e todas as forças do patrimonialismo estamental, deixando de fora, primeiro, o PT (jogado aos leões?) e, em seguida, a sociedade (que, vamos convir, sempre esteve de fora e, em geral, não se incomodou). A tese da crise da Nova República, porém, afirma que essa tentativa implica mais do que um simples acordão para livrar nossos fisiologistas da Polícia Federal: implica o fim do arranjo político instaurado nas últimas três décadas. Resta saber: cria um vácuo? O que ocupa esse vácuo?

* * *

pt-fundação

Um detalhe interessante: se olharmos em retrospectiva, podemos dizer que cada governo eleito depois da Carta de 1988 teve como mote algum tipo de transformação profunda no país (traço também sugerido no artigo de Nobre). A começar pela própria CF, que recebeu o apelido de “constituição cidadã”, em certa medida porque estava expresso nela um desejo de consolidar, na letra fria das normas, a cidadania à qual os próprios cidadãos nunca puderam ter acesso efetivamente – e isso não é pouca coisa, como temos visto nos últimos anos.

Pensemos no governo Collor, que, conservador como era e oriundo das piores oligarquias, escancarou a economia como estratégia de transformação de um empresariado industrial dependente das reservas de mercado. O governo Fernando Henrique, mesmo se esquecermos o que ele escreveu, foi dedicado à modernização econômica e financeira do país, concorde-se ou não com o que significava essa modernização. Havia ali a idéia de transformar a gestão das finanças públicas em todos os níveis da federação, mesmo que à custa da asfixia dos governos estaduais – e essa asfixia também pode ser lida como estratégia para esvaziar coronelatos.

O governo Lula, por sua vez, ressaltava uma transformação social que ia muito além da transferência de renda e da valorização do salário mínimo; a criação de universidades, a instituição de cotas, os pontos de cultura, têm um papel importante aí. Já o governo Dilma tinha em seu início, não nos esqueçamos, uma promessa infelizmente frustrada de recuperação da taxa de investimentos, o que, se bem executado e somando-se às transformações anteriores, poderia mudar profundamente a dinâmica da economia brasileira. Poderia, a rigor, realizar a parte estritamente econômica do projeto de 1988. A péssima leitura das dinâmicas do capitalismo global condenaram o projeto, é claro, além da inabilidade política e do erro em crer que era possível uma verdadeira transformação sem quebrar a espinha dos “donos do poder”. Mas o que interessa a este texto é o discurso da transformação e do otimismo.

c6de43c325b308dcbd2028ac9e77cb52

O período que conhecemos como “Nova República”, precisamos ter isso em mente, carrega consigo algo como uma “missão histórica”, se é que existe tal coisa. Podemos chamar também de “ambição implícita” ou “possibilidade única”, se for o caso. Imaginou-se ali um Brasil para além da dominação oligárquica que nos persegue como república desde o 15 de novembro, apesar de todas as falhas.

Creio que uma leitura cuidadosa do texto constitucional, dos debates durante a constituinte e dos movimentos sociais ativos ao longo dos anos 1980 poderia chegar a uma demonstração de que a verborragia e as incongruências da Carta Magna cristalizam uma síntese do país, com todas as suas complexidades: o varguismo, as oligarquias, as demandas sociais de um povo desamparado – aqueles aos quais Collor iria se referir como “os descamisados”.

Foi com esse pano de fundo que se sedimentaram as referências do período, essas que agora racharam e fazem água. Tanto as tentativas de tornar realidade os dispositivos constitucionais como os ataques a eles (por exemplo, o parasitismo dos planos de saúde sobre o SUS) se organizaram dentro desse eixo.

* * *

VejaMarajas

Pois é a partir desse quadro que emerge um novo governo – até outro dia interino. Não tendo sido eleito (ou seja, seu projeto não tendo sido chancelado pelas urnas), esse governo não poderia ser simplesmente associado a uma etapa a mais na seqüência dos parágrafos anteriores (o governo de Itamar Franco, por exemplo, está ausente da listagem). Que sua chegada ao poder tenha se dado por vias tortas, claramente ilegítimas, golpe parlamentar ou não, só reforça seu caráter de tentativa de restauração, na linha do Congresso de Viena. Só o que faltou, no nosso caso, foi uma autêntica revolução anterior…

Colocada dessa forma, a imagem que emerge do governo Temer é a de um Executivo que, depois de quase 30 anos, não quer transformar nada, antes muito pelo contrário. Notemos uma coisa interessante: do “Avança Brasil” ao “País de Todos”, das “cinco metas” de 1994 à “aceleração do crescimento” e daí para a pouco sincera “pátria educadora”, nossos slogans das últimas décadas foram todos muito otimistas, refletindo o “momento singular” da Nova República. Pouco importa que também sejam artificiais e enganadores, pelo menos quando os comparamos ao tenebroso e pouco imaginativo “Ordem e Progresso” em que fomos parar – uma divisa positivista e superada, uma expressão do século XIX, para um governo afinado, precisamente, com o século XIX (resta ver sua relação com o próprio positivismo).

ciencias-humanas-sociais-ciencias-politicas-en-livros-universitarios-6615-MLB5089582413_092013-Y

É claro, há quem se iluda com a mensagem de “abertura aos mercados” que eventualmente o novo governo envia como sinalização para os segmentos encarapitados na Berrini. Essa mensagem é flagrantemente falsa, como se vê pelo déficit previsto para este ano, a simpatia pelo aumento do Judiciário e o estranhamento entre o PMDB e o PSDB, mantido, por enquanto, em níveis controláveis: não vai ser assim por muito tempo.

Se há pontos de convergência entre o interesse dos mercados (como os entendem os profissionais que neles atuam, não os que os controlam) e o das nossas elites oligárquicas, esses são pontos casuais, que geralmente dizem respeito ao controle direto sobre a distribuição dos benefícios da atividade econômica: previdência, negociações coletivas, saúde pública, infraestrutura. E acaba por aí: coisas que de fato tornariam o mercado mais eficiente, como aumento da concorrência, um sistema tributário mais equânime, uma lei de licitações mais competitiva, uma reforma do Judiciário, investimento em pesquisa e formação, vão ficar para as calendas gregas.

13239420_654783691346446_709596052423498458_n

Não foram poucos os acusadores que, reconhecendo a insuficiência das pedaladas fiscais como causa para a remoção de Dilma, trataram do “conjunto da obra”, referindo-se ao descalabro econômico, ou seja, alta da inflação, recessão, volta do desemprego (creio que a própria Dilma foi a primeira a usar a expressão). Está cheio de gente inteligente por aí achando que vem adiante um ajuste fiscal que reequilibre as contas públicas e nos leve ao nirvana econômico.

Lamento ser o portador de uma mensagem apocalíptica, mas um conhecimento mesmo parco dos mecanismos de retroalimentação inflacionária do Brasil anterior ao Plano Real deveria nos deixar com as barbas de molho. Ou alguém acredita que as promessas de Temer aos senadores e deputados, incluindo diretorias de bancos estatais, investimentos de ministérios e sabe Deus mais o quê, como pagamento pelo voto anti-Dilma, vão sair baratinho? Não se surpreenda se a inflação voltar à casa dos dois dígitos – e os juros reais também. Talvez aí os vencedores ilusórios se dêem conta de quem levou mesmo a melhor…

* * *

image_preview

De modo geral, se a crise existencial é o ponto em que estamos – não que isso responda a muitas das angústias existenciais que temos que enfrentar –, resta perguntar se é esse mesmo o ciclo que se fecha. Ou seja, se o que está em jogo é a imagem constituída na luta da redemocratização e, mal e mal, cristalizada na Constituição Cidadã. A Nova República.

Essa perspectiva já é mais ampla e mais tenebrosa do que a do mero fim do ciclo petista, é claro. São três décadas, não só uma década e meia. Mas se quem hoje se apropria da quase totalidade do poder é a oligarquia em estado puro, ou seja, os representantes de um modo de poder fechado para qualquer concessão econômica, social ou política, o que está em risco, o ciclo que pode estar se fechando, será ainda mais amplo. Será aquele que se inaugura quando o regime legal passou a tentar incorporar os conflitos distributivos, quando se abriu (um pouco) para uma sociedade mais ampla e mais complexa. O ciclo da década de 30, iniciado sob Vargas.

Isto não significa dizer, é claro, que o varguismo seja algum grande exemplo de progressismo – aliás, um erro das esquerdas no Brasil é continuar a mirar-se em idéias adequadas a quase um século atrás. Está mais do que documentado que o projeto encabeçado de Vargas diz respeito a uma acomodação das demandas das classes industriais e urbanas em expansão no Brasil do século XX. Acomodação a um sistema que jamais deixou de ser oligárquico no seu cerne; algo expresso na célebre frase do mineiro Antônio Carlos: “façamos a revolução antes que o povo a faça” – às vezes o Brasil consegue ser assustadoramente sincero, em especial quando é questão de desfaçatez…

42978141_7a03f69455

Ainda assim, o que a história do último século nos ensina sobre o varguismo é que ele foi, ao mesmo tempo, insuportável e insuperável para seus oponentes (para seus defensores, me parece que virou um fetiche, mas isso é tema para outra hora). Esse duplo caráter deve significar alguma coisa e precisaria ser estudado com mais afinco. Senão, vejamos: o modelo de Vargas, ou mais especificamente seu modo de regular as relações de trabalho, era o alvo central nas crises políticas de 1954-55, 1960, 1961 e 1964.

Quando enfim tomaram o poder com o golpe civil-militar, as forças mais conservadoras do país miraram na figura de Vargas e em seus herdeiros políticos. Depois de poucos anos no poder, viram que teriam de deixar para lá o projeto de implodir o legado varguista, sobretudo a CLT. A tal ponto que, quando se despediu do Senado em dezembro de 1994, quase uma década depois do fim da ditadura, Fernando Henrique se comprometeu, mais uma vez, a encerrar definitivamente a era Vargas. Privatizações à parte, não o fez – para falar a verdade, também não se esforçou tanto assim.

Insuportável: precisa ser eliminado. Insuperável: não se pode escapar dele. Não ousaria tentar uma resposta a esse problema aqui. Mas acho que o esclarecimento dessa questão-chave na crise existencial que atravessamos passa por entender que, com efeito, as leis trabalhistas são imperfeitas e, em alguns pontos, cruéis. O trabalho no Brasil é regido por dispositivos com intenções que passam longe do benefício ao trabalhador, como o FGTS, que foi desenhado para criar uma poupança forçada que financiasse a industrialização. Sem falar em questões previdenciárias; em favorecimento, por exemplo, ao setor militar, em benefícios extra-salariais que provocam ainda mais transferência para grupos de renda mais alta – magistrados em particular – e outras distorções, que vão muito além da CLT e das “relações entre patrão e empregado”.

getulio_vargas_5_IMGUN1409254111

Nesse contexto, não é difícil ver como a reforma trabalhista que deseja o conservadorismo brasileiro nada tem de “modernização” ou “atualização”. Observe-se, por exemplo, que os principais projetos no Congresso em torno do trabalho dizem respeito à terceirização de atividades-fim, negociação individual e prevalência do negociado sobre o legislado, que são, grosso modo, as mesmas reformas que a troika tenta empurrar goela abaixo dos países da zona do euro, para deprimir os salários e “ganhar competitividade” na competição global com países onde o trabalho é quase escravo. Detalhe: nesses países europeus, os salários são muito mais altos que no Brasil; lá, o risco é a perda de poder de compra. Aqui, é a recaída na miséria.

Projetos de lei que de fato combatessem distorções das leis brasileiras do trabalho, ninguém sabe, ninguém viu. Essas leis afetariam uma camada da população, em boa parte composta por funcionários públicos e militares, que ironicamente é muito conservadora e se considera liberal (quando interessa). Com essa gente, um governo conservador brasileiro nunca vai mexer, já que são um de seus principais esteios urbanos. São as pessoas que tanto espernearam, por exemplo, quando trabalhadores domésticos passaram a ter direitos iguais aos seus…

brizola-e-getulio

A questão não está na superação do modelo varguista, bem se vê. Está na manutenção das distorções, que são redistributivas, mas na direção regressiva, de exploração da base. Sempre que se dá conta de que terá de mexer onde não pode, ou seja, nos privilégios de seus apoiadores, o governo conservador recua e as leis do trabalho distorcidas seguem impávidas. Insuportável… e insuperável. Um governo fisiologista como esse que começa agora não vai ser diferente, exceto se as circunstâncias forem diferentes: será que são?

*

PARTE DOIS

Até aqui… e daqui por diante.

Captura de tela 2016-09-04 13.41.00

Das muitas circunstâncias envolvidas na determinação dos nossos destinos (como raios chegamos aqui; onde raios vamos parar), creio que duas mereçam maior realce. Primeiramente (sim, sim, fora Temer etc.): precisamos entender melhor como, desde o instante em que se anunciou o resultado das urnas em 2014 (tanto para o Legislativo no primeiro turno quanto para o Executivo no segundo), no horizonte do segundo governo Dilma havia um governo Temer, literal ou figurativamente. Note-se: “um” governo Temer, e não “o” governo Temer.

Isso significa que, mesmo enquanto Dilma esteve no poder, o fisiologismo e o retrocesso foram tomando conta de cada vez mais espaços, naquela sucessão insana de ministros tétricos. Não podemos, hoje, estar surpresos quando simplesmente terminam o serviço tomando conta do que faltava, ou seja, a cadeira presidencial. Ao longo desse processo paulatino de corrosão, as forças que poderiam se opor a ele estavam ocupadas demais seja na defesa, seja no ataque a um governo que não tinha mais chances.

20150913NextPage

Segundo, apesar dos pesares e do controle quase inconteste que o patrimonialismo estamental sempre exerceu no país, essa concepção de Brasil que o entourage de Temer pretende cristalizar, nem que seja a ferro e fogo, pode já ter se tornado inviável. Seja em razão de mudanças demográficas ocorridas ao longo de muitas décadas, seja graças a avanços obtidos desde a promulgação da constituição (e particularmente nos governos tucanos e petistas), as expectativas e as condições de funcionamento da sociedade brasileira talvez não permitam mais o tipo de dominação e exploração pressuposto por esse regime, e essa pode ser uma janela de esperança. Talvez os grandes vencedores acabem perdendo, afinal.

É por isso que, ao analisar a ascensão da dupla Temer/Cunha, é preciso pensar para além da Nova República. O que está em jogo ultrapassa o estancamento dos avanços civilizatórios introduzidos em 1988. E ultrapassa em muito a mera derrubada do PT.
Vejamos mais calmamente cada um desses dois pontos.

* * *

12924421_1026420927427368_5813371497607776132_n

Primeiro: o que significa dizer que no horizonte do segundo governo Dilma havia um governo Temer? O atual ministério que nos governa (e assusta) estava implícito de que maneira no ministério do governo petista que o precede? Hoje, finalmente está claro que a eleição de 2014 foi uma derrota completa para o PT, uma derrota para a qual a conquista do Executivo foi nada menos do que um agravante. A energia despendida para garantir um segundo turno contra Aécio Neves, em vez de Marina Silva, escorreu por caminhos inesperados (o que não significa que fossem imprevisíveis), indo concretizar-se na eleição dos piores tipos possíveis para o Congresso, seja qual for o critério.

O Executivo teria de se ver desde o início com uma base frouxa e uma oposição empolgada, além de vingativa, já que, desde 2011, a tentativa de enfraquecer o PMDB dividindo o fisiologismo com a ajuda de Kassab deu o resultado que não poderia deixar de dar: fracasso completo. À incapacidade articulativa de Mercadante e sua turma ainda viria se somar (Opa! Em tempos de Temer devemos dizer: somar-se-ia) o fortalecimento de Eduardo Cunha, ainda mais depois da tentativa amadora de evitar sua eleição à presidência da Câmara. Este último, como já advertia o perfil do então candidato a vice-presidente na Piauí em 2010, é “cunha e arne” com o atual presidente-usurpador-que-não-admite-ser-chamado-de-golpista.

Só uma esperteza política muito acentuada poderia evitar a metástase fisiológica sobre o governo daquela que havia começado com a “faxina” dos ministérios.

12974489_10154127876463464_8656802661343450208_n

A rigor, a única coisa que poderia acontecer de ainda pior do que os eventos deste ano seria a perpetuação do processo de dissolução do governo Dilma. Nesse caso, em 2018 elegeríamos com certeza um Congresso ainda mais retrógrado do que o atual; e o presidente poderia sem sombra de dúvida ser alguém cujo nome não merece ser pronunciado. Nesse caso, o processo seria perfeitamente legítimo e não teríamos nem mesmo o consolo de acusar um golpe. Este era, a rigor, o “horizonte” propriamente dito. O impeachment precipitou a queda desse céu sobre nossas cabeças, com um ar burlesco, uma perspectiva de muita repressão e a nesga de esperança de que seja possível resistir.

Voltando o olhar um pouco mais para o passado, poderíamos dizer que as primeiras nuvens, ainda indivisáveis, desse horizonte temerário começaram a se acumular quando emergiu a figura do próprio Temer. O “mordomo de filme de terror” de ACM ascendeu após “bons serviços prestados” na presidência da Câmara; e apesar da falta de brilho eleitoral próprio, sabe manter a coesão da alcatéia e mereceu por isso a indicação como vice-presidente na chapa montada para 2010.

* * *

6905

Foi o momento em que se consolidou uma escolha no planejamento estratégico petista, atraindo as oligarquias que, pela história de sua fundação, esperávamos que combatesse. O período coincide com a preferência acentuada pelos mamutes (perdão, os campeões nacionais) na economia – na esteira da crise de 2008 – e com o papel inchado de um BNDES incapaz de questionar o sentido da letra “D” no próprio nome. Foi o período em que se apostaram todas as fichas no motor chinês e na condição de fornecedor para os asiáticos do material bruto que alimentava a máquina. Foi o período em que se tentou seduzir a bancada ruralista – em parte, funcionou, como vemos pela tenacidade com que a senadora Kátia Abreu defendeu o mandato de Dilma. Não funcionou o bastante.

Seria coincidência que o país escolheu assumir na divisão internacional do trabalho um papel semelhante ao da Primeira República ao mesmo tempo em que o governo se decidia pela aliança com figuras políticas que remetem a esse mesmo período? Seja como for, ali se substituiu a aliança com o empresariado “pé-de-chinelo” (no bom sentido: gente que rala…) encarnado na figura de José Alencar por uma rendição às oligarquias patrimonialistas do PMDB e quetais, para constituir a “supercoalizão”, aquela contradição em termos cujo único propósito era eleger Dilma e cujo destino inescapável era a implosão.

ULYSSES

Por esse prisma, as ambições formais do governo Dilma eram inviáveis desde o princípio. Com a o fracasso da redução da Selic e da política (improvisada) de desonerações, foi relegada ao milagre do pré-sal e a delírios de empreiteiras – na verdade, “para” empreiteiras, como a Copa, a Olimpíada e, sobretudo, Belo Monte ¬ a ambição que em 2011 tanto se repetia, de elevar a taxa de investimento acima de 20% do PIB. (Ironicamente, o outro presidente que assumiu falando especificamente em elevar a taxa de investimento acima de 20% também falhou: trata-se de Fernando Henrique, que mencionou esse objetivo no mesmo discurso de dezembro de 1994 em que se comprometeu a encerrar a era Vargas.) Mas a variação do preço do petróleo e as investigações contra empreiteiras lançaram a pá de cal nesse último projeto.

É evidente que alinhar-se com a direita em 2013 foi a cereja do bolo, um erro crasso. Desde então, as pessoas mais próximas ao governo se esmeram em marcar aquele momento como a ascensão da extrema direita no país. Um esforço tão bem-sucedido que não podia ter outro desfecho senão confirmar-se. Ou melhor, concretizar-se: a “idéia” realizada no concreto… Será que faz tanto tempo assim que a cúpula petista passou das ruas para os gabinetes, a ponto de esquecer como funcionam as polícias no Brasil? Era tão difícil enxergar o perigo de repetir o discurso de Alckmin, televisões et caterva, taxando toda aquela gente de baderneiro, vândalo, black bloc, fascista e por aí vai? Era mesmo impossível se dar conta de que uma lei anti-terrorismo cairia como uma luva de ferro para a mão pesada de nossa pior direita? Não era evidente que, uma vez aberta a via das ruas e bloqueado o acesso para movimentos populares, a rua não poderia ser tomada por ninguém outro senão a direita? Certamente tudo isso era perceptível já em 2013. Afinal, muita gente percebeu. Mas os nossos personagens, hoje “formalmente derrotados”, preferiram não ver.

* * *

 

skaf pato

Cito isso tudo para ressaltar duas coisas: primeiro, que a excepcionalidade do momento que estamos vivendo é menor do que pode parecer. Que eventualmente as oposições e o fisiologismo tenham se aliado, decidindo passar além do quadro institucional para retomar o poder, continua sendo terrível e ainda aponta para uma ruptura muito mais grave do que apenas o golpe contra uma presidenta. Mas esse evento era algo inscrito nos caminhos possíveis desde 2014 e mesmo antes, por dentro do governo até mais do que por fora, já que não teria havido manifestações tão massivas contra Dilma sem que atores políticos importantes as tivessem fomentado. (Aliás, por onde anda Paulo Skaf?)

É forçoso admitir, e isso não é nem de longe uma justificação, que o poder transborda a política e a política transborda a lei. Se assim não fosse, um gigantesco algoritmo político-legal daria conta de todos os recados. Temos de ter isso em mente ao fazer a leitura das incongruências dos políticos, de seus acordos, suas alianças e suas interpretações não raro absurdas do texto legal. Um político profissional geralmente reconhece esse dado; aos primeiros sinais de transbordamento, recua, se ajusta, se acomoda. Perante a iminência de ser derrubada, como tem sido dito e com razão, Dilma foi tenaz, foi heróica, foi realmente admirável. É incrível como ela só fala bem sob intensa pressão. E foi tudo isso porque agiu de um jeito como nenhum político agiria. Dilma, que cresceu no aparelho do Estado como burocrata (no bom sentido), não como política eleita, não tem os mesmos compromissos que teria alguém com a ambição de ser mandatária para o resto da vida. A grandeza de Dilma perante os senadores foi, precisamente, a grandeza que o político jamais pode ter. Graças a ela, vimos “em tempo real” o que ocorre quando a política e o poder transbordam a lei. Não é bonito.

A segunda coisa que eu queria ressaltar é que a derrocada do governo Dilma expõe o quanto a arquitetura política da Nova República é – ou era – frágil. Como se diz, o chamado presidencialismo de coalizão induz à contaminação dos governos pelo fisiologismo, mais cedo ou mais tarde levará à compra de votos, garante que os projetos mais urgentes de reformas para o país nunca sejam de fato julgados. A seguir a descrição de Nobre sobre o condomínio fisiológico administrado por um ou outro dois rivais mais – supostamente – programáticos, arraigados realmente em algum extrato social, é preciso que pelo menos um desses “partidos administradores” esteja forte e articulado. Também é preciso que tenha convicção de sua conformação programática.

lama-desastre-mariana

Quando esses partidos não conseguem exercer esse papel, o que temos é uma espécie de barreira da Samarco. Se o PSDB se torna um apêndice arrogante das oligarquias e o PT vira as costas para os movimentos sociais para tornar-se um edifício de burocratas, não há nada mais que segure a lama. Inundados, soterrados, sufocados, podemos até manifestar surpresa, mas teria bastado um sobrevôo para perceber que, enquanto tocávamos a vida nas últimas décadas, a sujeira se acumulava. A lama sempre esteve lá, a lama é a normalidade. A vida limpa e tranqüila dos vales é que era a ilusão. O arranjo quase progressista da Nova República se rompeu, ao que parece, mas foi por pressão acumulada, não por alguma intervenção externa.

Os estragos dessa inundação de rejeitos políticos podem ser bem vistos com um enquadramento mais aberto. O grande vencedor, como sabemos, é esse ministério velho, branco, masculino e investigado por corrupção, de que tanta gente já falou. Um retorno à República Velha, eu diria, mas acrescentando: se é que a República Velha chegou a ser superada, realmente. É bem possível que ela tenha simplesmente sofrido mutações, acomodações, rearranjos, para manter-se como paradigma da política brasileira.

Afinal, esse vencedor não precisou de grandes sacrifícios, porque, no fundo, o país sempre foi seu. Bastou uma pequena conspiração e o beneplácito de quem controla nossos oligopólios, no campo, na indústria, nas finanças, na mídia, na pirâmide socioeconômica. A seu lado, o pobre coitado do pretenso vencedor, o iludido, que espera recolher as migalhas que lhe atirarem os oligarcas, contente por trabalhar feito um camelo tendo como único benefício a possibilidade de humilhar alguém que trabalha ainda mais, ganhando muito menos. Alguém que espera do governo fisiologista que faça um ajuste fiscal duradouro…

Captura de tela 2016-09-04 13.42.12

Cabe citar, também, que esse arranjo tem seus próprios mecanismos de escape, suas válvulas, por assim dizer, que permitem ao poder das lideranças políticas sobrepujarem o próprio desenho do sistema político e sua fundamentação legal. Em outras palavras, algo intrigante no sistema político da Nova República, e que – importante – coincide com sistemas adotados em países vizinhos, é que ele comporta a possibilidade de que haja golpes que não derrubem o sistema como um todo e sejam traumáticos apenas para quem o próprio sistema quer expelir.

Os cientistas políticos Mariana Llanos e Leiv Marsteintredet cunharam a expressão “presidential breakdown” para se referir ao fato de que, antes de Dilma, eram 17 os presidentes latino-americanos derrubados, de modo mais legítimo ou menos legítimo, desde a onda de redemocratização dos anos 1980. A nossa ex-presidenta é a décima oitava. Criou-se um sistema pelo qual as elites, ou seja, as oligarquias, neste subcontinente tão oligárquico, conseguem golpear e expelir quem não lhes interessa, mas garantir a perenidade do arranjo, ou seja, fechando a válvula. Daí a dificuldade em identificar a presença de um golpe de Estado: a lógica que leva a esse golpe já é enxertada no próprio sistema.

secos_molhados_capa_cd

O informalmente derrotado duas vezes continua gritando, quando tem forças, e agora precisa decidir como reagir à volta do formalmente derrotado ao campo da oposição. Essa é uma decisão difícil: passar os próximos meses exigindo retratações? Abraçá-lo em nome de algo maior, a luta contra o regime fisiológico? Segui-lo no projeto pouco sagaz de reconduzir Lula ao poder em 2018? Não é à toa que, hoje, esse seja o grupo que mais está batendo cabeça.

Por fim: o formalmente derrotado é aquele que fracassou porque, acreditando-se progressista, acabou sendo meramente governista. No frigir dos ovos, nenhum governismo é progressista, exceto em contraste com algo muito mais tenebroso… como um golpe.

* * *

Resta ainda o segundo ponto, que é o mais importante, referente à questão de “para onde raios estamos indo”. É preciso se perguntar se o Brasil que os oligarcas, os fisiologistas (que não são rigorosamente o mesmo grupo, atenção) e o governo Temer têm na cabeça é viável. Como já adiantei, creio que não. Acredito que nem a estrutura produtiva, nem a distribuição demográfica permitem mais o nível de dominação, repressão e arbitrariedade ao estilo da Primeira República que os personagens que emergem com Temer representam. Também não é mais possível o nível de instabilidade social que se verificou nas décadas centrais do último século, porque não há mais dezenas de milhares de migrantes internos fugindo da seca, o índice de analfabetismo é muito menor, embora ainda alarmante, o crescimento urbano não é mais tão acelerado, as massas da periferia não são mais tão desamparadas, desesperadas e desconectadas.

0326 P 2008 Masp_0190

O Brasil do século passado, mesmo durante a industrialização e o dito milagre, era um país praticamente em equilíbrio malthusiano, caracterizado por subnutrição, analfabetismo e doenças endêmicas típicas de ambientes miseráveis. Além das taxas de natalidade e mortalidade muito altas. Era um país rural e pouco conectado – literalmente: estou falando de estradas e ferrovias, telefones e agências dos Correios. Um quadro perfeito para as formas mais brutais e toscas de dominação.

Embora os avanços tenham sido bem aquém do que precisávamos que fossem, estamos longe desse equilíbrio malthusiano. A mortalidade infantil e a incidência das “doenças da pobreza” caíram rapidamente, sobretudo graças ao SUS. O país é urbano, camadas cada vez mais amplas da população têm acesso a serviços públicos e, com todas as suas limitações, à educação.

Quando alguns Estados perdem 20% ou 30% de sua população (como exclamou Maria Bethania), quando as rodoviárias das metrópoles recebem centenas de milhares de migrantes internos todos os anos, é possível, é até fácil, explorar esse enorme contingente humano até o esgotamento. Os retirantes que, entre os anos 50 e 80, chegavam nas cidades em busca de qualquer trabalho que os mantivesse alimentados eram corpos plenamente disponíveis, sem aspirações, sem ambições.

Quando surgiam bairros e favelas novos nas periferias, eram áreas sem identidade próxima, sem conexão comunitária, sem meios para exigir infraestrutura. Quando milhões de pais e mães achavam um luxo seus filhos saberem ler e escrever, não ambicionavam o ensino universitário, um trabalho melhor do que o pior qualificado, uma casa melhor do que um barraco. Quando as pessoas não tinham nenhum poder reivindicatório, eram obrigadas a suportar se a polícia matasse a esmo nos subúrbios. Esse é o Brasil de “O Homem que virou Suco” e “Bye-bye Brazil”, em que se sentiam tão confortáveis os Temer deste mundo, e no qual até hoje se espelham.

Outra coisa é o Brasil de “Que Horas Ela Volta” e “O Som ao Redor”. Uma parte importante da crise, do ponto de vista social, mais do que político, é que existe um descompasso entre as condições objetivas do país e o modo como ele ainda é administrado, seja na cúpula, seja no dia-a-dia. Aqueles ajuntamentos periféricos surgidos às pressas no século XX são hoje bairros constituídos, embora deficientes, onde vivem pessoas nascidas e crescidas ali, a segunda e até terceira geração. As reivindicações são outras: saneamento, asfaltamento, segurança, equipamentos urbanos (de lazer, saúde, educação, transporte…). Nas quebradas, essas mesmas onde a polícia continua soltando chumbo, pululam as associações de bairro, os coletivos artísticos, os saraus poéticos, os bancos comunitários.

149803889_ed08fc49cc

A mera demografia tem um papel. Não nascem, nem morrem, tantos novos corpos disponíveis para a exploração: pelo mero fato de estar vivo, o brasileiro de hoje vale mais, aos olhos do capital, que seus pais ou avós. A exigência, agora, é pelo direito a ambicionar: qualificar-se, educar-se, galgar degraus na escala social. O jovem urbano brasileiro, o pobre, não entende por que deveria ser um mero corpo disponível para a exploração: doméstica, porteiro, frentista etc. O jovem rural, por sua vez, tem o direito de se imaginar cultivando aquelas terras com dignidade pelo resto da vida, fazer benfeitorias, negociar sua produção no mercado, obter financiamento agrícola; tudo isso, apesar do avanço do latifúndio e apesar das secas.

É claro que não se trata de meros efeitos secundários de uma evolução “natural” das populações. A economia mais estável, os programas de instalação de cisternas, a redistribuição de renda, a ampliação do ensino fundamental, a valorização do salário mínimo, a implantação de universidades em áreas até então isoladas, tudo isso também fez muita diferença e vai continuar fazendo. Por sinal, uma das causas da nossa crise existencial é que teria sido necessário continuar nessa direção, principalmente quando começaram a vir os sinais de que a sociedade estava madura para quebrar algumas barreiras. Não faltaram reportagens sobre as ambições da “classe C”, artigos sobre como os avanços eram só no consumo, só dentro de casa; que lá fora as cidades continuavam atrasadas, que as condições sociais eram um terror. Seria necessário dar o que chamei de “segundo passo”, mas a cúpula burocrática do PT não percebeu e foi formalmente derrotada.

Os sinais se tornaram cada vez mais claros e é perfeitamente evidente que aí está uma das raízes de junho de 2013, que a burocracia petista preferiu ler como geração espontânea de black blocs (avaliação idêntica à de Alckmin e da mídia conservadora, por sinal) e fascistas. No entanto, a maior lição de 2013 deveria ter sido constatarmos o abismo entre esse país em paulatina mutação e as modalidades de exercício do poder. Afinal, mesmo antes daquela explosão afetiva, já se liam cá e lá expressões do problema do acesso à cidade, da qualidade dos serviços públicos e da caducidade dessa nossa extrema desigualdade (que é de renda, de patrimônio, social, racial, de gênero, tudo misturado – não são muitas desigualdades, são muitas dimensões da mesma desigualdade, como eu disse no começo deste texto).

{FF99EC1D-2AA0-45BC-971D-265565FB2D7E}_imagem29

Infelizmente, tem um outro lado que precisa ser mencionado. Não está claro, pelo menos para mim, como essa tendência social se comporta perante uma outra tendência muito forte, em sentido contrário, que é a da desindustrialização. A parcela dos manufaturados na economia brasileira, e particularmente nas exportações, está diminuindo aos poucos desde os anos 80. Foi agravada pela abertura de Collor e, depois, pelo uso irresponsável do câmbio para segurar a inflação sob FHC, Lula e Dilma.

A desindustrialização teve efeitos graves sobre a capacidade de mobilização dos sindicatos no Reino Unido e dos partidos trabalhistas de toda a Europa. Não é um acaso que hoje eles sejam uma caricatura, com figuras como Tony Blair na Inglaterra, François Hollande na França e Sigmar Gabriel na Alemanha. No Brasil, o sindicalismo que sobrou é basicamente pelego, inclusive com o curioso fenômeno dos pelegos de oposição – ou melhor, que eram de oposição, como a turma do sr. Paulinho.

Fala-se de vez em quando em greve geral, mas a probabilidade de que ocorra algo assim é ínfima. Não existe mais aquela concentração de trabalhadores como a do ABC de fins dos anos 70. As forças que tradicionalmente se mobilizaram neste país e em outros estão desoxigenadas porque seu poder de barganha, o trabalho industrial, está desvalorizado. O trabalho, hoje, é mais atomizado e disperso, com menor acesso ao controle do maquinário. Ao que parece, o que vamos ter é só mais uma greve de bancários…

13076708_10206425769468343_261397982865605124_n

O que parece estar despontando à distância é uma outra forma de mobilização, extra-sindical, que ainda é embrionária, mero rascunho. No que vai dar, ainda vamos ter que ver. Quanto tempo vai demorar para ter alguma efetividade, quem pode dizer? Infelizmente, essa é a situação que está posta e o que resta é torcer para que as circunstâncias precipitem a busca por novas articulações. Sem falar no risco de que não dê em nada…

Resumindo: o ministério, o Congresso e a mentalidade que ora se instalam na direção do país (e que já vinham tomando conta, pouco a pouco, com o beneplácito involuntário de quem fetichizava o controle do Executivo) representam a tentativa de não apenas esquecer, mas negar esse abismo e a caducidade da nossa renitente República Velha. Um Brasil do “Jeca Tatu” ou dos filmes do Mazzaropi. Não vai dar certo.

natural-de-itirapina-sp-ulysses-guimaraes-entrou-duas-vezes-em-uma-corrida-presidencial-em-1974-o-opositor-apresentou-sua-anticandidatura-contra-o-militar-ernesto-geisel-em-1989-foi-a-vez-de-1380990337626_956x500

* * *

Talvez passemos alguns meses muito estranhos, até mesmo calmos, enquanto a sociedade absorve o golpe, quero dizer, sua nova realidade. Uma vez que as lideranças oligárquicas e fisiológicas vão dar um sumiço das denúncias da operação Lava-Jato (tendo fazer o mais fácil, que era “colocar o Michel”, e tendo esvaziado a legislação anticorrupção), o assunto pode vir a sumir dos jornais, dos táxis, dos almoços de fim-de-semana.

Um possível lado bom é que essa falsa calma talvez tenha o poder de desinflar a paranóia de extrema-direita que tem se disseminado país afora nos últimos anos. Afinal, o único traço de união entre a alta burguesia dos Jardins, o fundamentalista no púlpito de Bangu, o taxista do Tucuruvi e os filhotes da ditadura país afora é o ódio ensandecido ao PT. Mais precisamente, a algo que, sei lá por qual razão, lhes parecia ser um diabólico governo proto-comunista que queria estatizar toda a economia, botar todo mundo para fumar maconha nas praças, promover abortos ao som de Molejo e preparar a criançada das escolas públicas para apresentar shows de drag na Paulista ao crescer. É possível que o período de interinato do usurpador corresponda a uma boa parte dessa fase.

livro-napoleo-o-pequeno-victor-hugo-19987-MLB20180223632_102014-O

Seja como for, não vai durar muito. Gosto de comparar os fenômenos multitudinários de 2011 (no mundo) e 2013 (no Brasil) com as revoluções frustradas de 1848. Aquelas agitações, tão ambiciosas, foram derrotadas, pelo menos no curto prazo, como ocorreu com a Primavera Árabe e com as reivindicações de direito à cidade no Brasil. Michel Temer talvez seja nosso Luís Bonaparte, a versão cafeeira do sobrinho de Napoleão, que tomou o poder cercado de picaretas e defendido por brutamontes conhecidos como “dezembristas” – a propósito, aquela frase de Marx que andam citando por aí, da história que se repete como farsa, é sobre ele.

Sinais do que vem pela frente já eram visíveis desde o interinato, com a posse de um ministro da Justiça (ó, ironia) que representa o que há de pior no governo Alckmin em São Paulo e o uso de armamentos violentos, já no dia da posse (interina). Cabe lembrar, também, da intimidação pela Polícia Federal a estrangeiros que participaram de manifestações. No pouco tempo desde a consolidação do impeachment, já tivemos olhos furados, gente atropelada, presos sem explicação, câmeras destruídas. Particularmente chocante é o vídeo de um policial dizendo, com desdém: “pode filmar”. Agora a violência tem carta branca e será atribuída pela mídia aos bons e velhos “vândalos, baderneiros, infiltrados, black blocs”, como bem sabemos.

13615489_1107024416032189_6109560255980100570_n

Esses sinais apontam para um esforço de rapidamente afirmar-se no poder, à base da dispersão e do silenciamento da dissidência. Some-se a isso o fato de que, para muitos agentes da repressão, mesmo quando agiam em nome e sob as ordens de governos petistas, sempre viam em toda mobilização social uma iniciativa de “petistas”. Tendo triunfado sobre os petistas na cúpula, e com a provável presença de efetivos petistas nos protestos, nas ruas quem vai apanhar é todo mundo mais – aqueles que, acima, chamei de “derrotados informalmente duas vezes”.

* * *

Resta saber o que vai acontecer com a resistência, ou seja, que cara ela vai ter, como vai ser sua dinâmica, quanta força terá. Sou cético quanto aos primeiros momentos. Ainda há muita associação entre a rejeição a Temer a o apoio a Dilma e ao governo petista em geral, o que deixa muita gente tímida e provoca verdadeira rejeição em quem foi “derrotado informalmente duas vezes”, e que muitas vezes apanhou, foi chamado de vândalo e assim por diante. A estratégia anunciada de recorrer a Lula para 2018 não ajuda em nada, já que o problema é preparar o futuro, em vez de tentar recuperar um passado já estilhaçado.

ET2b-Kylix

Mas muita água vai passar debaixo dessa ponte. Os conflitos sociais e distributivos, as disputas de poder e as aporias do regime não têm outro caminho a tomar que não seja se intensificar e se tornar muito claros, uma vez que batam de frente com as condições demográficas e socioeconômicas que descrevi acima. Há um limite para o quanto a população pode aceitar de retrocesso uma vez que tenha aspirações.

Mesmo todo o proselitismo religioso que testemunhamos ao longo do processo do impeachment não pode atropelar os sonhos dos fiéis, sobretudo nas igrejas ligadas à “teologia da prosperidade”. Como essa teologia lidará com retrocessos sociais? É isso que vamos descobrir agora, e não posso me impedir de ter um medo enorme da resposta que vamos receber… Porém, fora isso, o uso de uma retórica pseudo-religiosa para estigmatizar o governo perde boa parte da eficácia uma vez que o governo em questão deixa de existir.

Um ponto importante sobre o governo Temer é que sua única chance é agir como recomendava Maquiavel: fazendo todo o mal de uma só vez. O primeiro motivo é evidente: é preciso passar o pacotão de retrocessos enquanto não há uma oposição articulada – e ela vai acabar surgindo, mais cedo ou mais tarde. O segundo motivo é um pouco menos evidente, mas nem por isso indivisável: vencida a batalha contra o inimigo comum, o fisiologismo começa sua autofagia, ou seja, as disputas em torno dos espólios e da ocupação dos espaços do poder.

m_180828620_0

Não sei quanto tempo isso leva, mas já ouvimos de Ronaldo Caiado que ele vai ser “independente” do governo usurpador, o que significa, obviamente, que sua ação vai ser pautada por fazer o governo, tanto quanto possível, dependente dele. O PSDB, coitado, acha-se ainda muito importante. Faz ameaças, enche o peito, exige um ajuste fiscal mais rigoroso. Só que tem uma bancada insuficiente para influir de fato, com meros 55 deputados. Daí o ministério temerário ter só três tucanos, um deles posto para cuidar de um assunto que não entende e no qual não pode atrapalhar o mordomo de filme de terror; sim, estou falando do Serra. O tal ajuste, já se vê, não virá. ou melhor: virá na superfície, e em seguida vai se desmanchar no ar como o pó de pirlimpimpim.

É interessante como, de vez em quando, opositores do usurpador se referem a ele como “neoliberal”. Ora, Temer não é um neoliberal. Ele não é nem sequer liberal. É pemedebista, um porta-voz das oligarquias, um ponta-de-lança do fisiologismo e nada mais. Sem dúvida, haverá neste início de seu lamentável governo uma série de medidas do mais puro liberalismo-Malan. E não faltarão analistas, a grande maioria economistas (essa gente com visão tão estreita) para dizer que é um governo com “boas intenções”.

coroneis definitivo

* * *

Essa gente parece não saber que a tal da “Ponte para o Futuro” divulgada em outubro, nome oficial do ajuntamento de idéias que passa por projeto de governo, destinado a acariciar as consciências das nossas lideranças empresariais, é só para inglês ver. O arquivo, como pode perceber quem o procure no Google, tem o singelo nome de “Release Temer” (confira no quadro vermelho abaixo). Em outras palavras: o grande projeto do PMDB para o país não passa de um “release”, ou seja, uma mensagem de divulgação para a imprensa, um documento de propaganda. E não do partido, mas do próprio Temer. Foi um mero passo da conspiração, desprovido de qualquer preocupação em concretizar-se como programa de governo. (Já não lembro quem foi a pessoa que me apontou esse detalhe, mas fica aqui o agradecimento.)

foto release temer

Não é difícil perceber que as prioridades de Temer passam longe da estabilização da economia, da “união do país” ou qualquer coisa assim. Não é à sociedade como um todo que ele deve a faixa presidencial que indevidamente porta, mas a quem barganhou os votos necessários para colocá-lo na cadeira presidencial. Temer, em seu governo de conciliação e “salvação nacional”, seja lá o que isso for, terá oligarcas, oligopolistas e demais sanguessugas econômicos a agradar. A primeira vítima vai ser a boa vontade dos iluminados conselheiros do livre-mercado, que, uma vez mais, vão ficar a ver navios, escorados em suas convicções de livro-texto. É bem provável que, em poucos meses, o poeta paulista tenha se transformado numa cópia do romancista maranhense José Sarney. Inclusive na economia.

Pobres “vencedores que vão se descobrir derrotados”… Fazem pensar em Carlos Lacerda, o iludido paradigmático da República, que vendeu a alma ao demônio marcial pensando que seria eleito presidente em 1965. Não houve nem eleição em 1965 e o pobre do Lacerda acabou cassado, tendo que se aliar com aqueles que passara os anos anteriores vilipendiando: Juscelino e Jango. Cuidado, amigo tucano, há um Lacerda no seu horizonte.

D8B05BC690274D371E0BA8B58FBECFB5F0BDFC0B0E4E346E1ADA47A5F73A8A01

Também não vai demorar até que as lideranças de Piratininga queiram preparar a cama para seu próprio candidato, seja Alckmin (cruz credo), seja Serra (alho, por favor!). Afastado o grande inimigo comum, o “polvo petista”, as baterias da Paulista e do Jardim Botânico tendem a se virar contra nosso latinista do Jaburu (agora do Alvorada). Em outras palavras, o capital e a mídia vão romper com o governo do usurpador quando puderem começar a pôr em prática seus próprios projetos para 2018. Como eu disse: autofagia.

Mas talvez seja tarde demais. Quem tem a caneta, hoje, são os fisiologistas; suas armas são pelo menos tão fortes quanto as dos bravos bandeirantes de paletó riscado.

As disputas intra-oligárquicas parecem sempre farsescas, vistas daqui de fora. Como foi a crise que culminou na revolução de outubro de 1930, aquela que foi feita antes que o povo a fizesse. Mas elas existem e deixam brechas por onde podem passar mudanças substanciais, ainda que sempre mantidas aquém do que seria necessário para um salto civilizatório no país – aquele muro de que falei acima. Enquanto nossos barões e nossos coronéis disputam o controle da máquina estatal, ou seja, dos métodos de extração de renda fundados na exploração dos nossos corpos, caberá ao resto de nós reconstruir articulações, produzir uma nova leitura da situação, coordenar movimentos, estabelecer uma resistência.

Republica+do+Cafe+com+Leite.+Caricatura+de+Oswaldo+Storni,+sobre+as+eleições+presidenciais+de+1910.

À medida que essa resistência de fato se articule, é fácil de prever o recrudescimento da repressão. E hoje, quando termino o texto, a última frase já deixou de ser previsão. Enquanto a cúpula fisiológica e oligárquica em Brasília avança nos retrocessos (que hora para brincar com oximoros!), dá para esperar uma disseminação da indignação, das lutas e do desencanto daquela camada despolitizada que hoje está embevecida pelo discurso ultra-reacionário.

Nessas duas tendências, ouso dizer que a tática de terra arrasada não tem mais espaço. Com a complexidade que o país atingiu, não é mais possível suprimir por completo os desejos e as aspirações. Não é mais um país de massas frágeis e corpos disponíveis para a exaustão. Os gargalos e nós que já se acumulavam há anos e vieram à tona em 2013 não foram sanados – do direito à cidade expresso na tarifa de transporte até a precariedade da educação – e mal foram considerados. Os secundaristas de São Paulo, Goiás, Rio e outros Estados dão testemunho disso.

Passada a catarse do ódio a Dilma, a Lula e ao PT, a brutalidade policial contra protestos deixa de ser encantadora para a opinião pública. Por mais que o brasileiro tenha um enorme fascínio pela violência e tenda a apoiar a repressão, existe um ponto de inflexão a partir do qual ele se vira contra a barbárie institucional. Aconteceu em 2013, aconteceu no ano passado. Resta ver o que acontece a partir daí.

*

(IN)CONCLUSÃO

oedipus

Levei muitos dias para escrever este texto e comecei dizendo que a realidade é confusa. De lá para cá, bem… a realidade se tornou um pouco menos confusa. Estamos entrando em um período em que as máscaras começam a cair. Editoriais e capas de jornal deixaram de lado a sutileza, mostrando que o mea culpa que tiveram de fazer em 2013 passou longe de ser uma “lição aprendida”: foi, sim, uma concessão forçada, que até hoje os barões não engoliram nada bem. O verniz de espírito democrático perdeu completamente o lustre. E, pelo que tenho ouvido nos círculos que se consideram mais iluminados da elite paulistana, só tende a piorar.

Ao mesmo tempo, claro está que o afã investigativo na República passou. Alguns dos bem-intencionados indivíduos que passearam com patos infláveis pela Paulista no ano passado ainda acham que o juiz Sergio Moro vai fazer milagres contra os poderes intocáveis da República. Mas mesmo esse desejo ingênuo vai ser suplantado pelo esquecimento, já que o noticiário vai ter mais do que falar e a urgência de espancar gente na rua porque “é vermelho” será muito maior.

Com isso, tristemente, parece que o jogo volta à estaca zero; e a estaca zero é a República Velha. Mas é claro que não é rigorosamente uma estaca zero, pelos motivos que elenquei acima: as expectativas, no país, são outras. Além disso, a República Velha propriamente dita dizia respeito a um tempo em que o país se compunha de núcleos esparsos, vagamente conectados, de atividade econômica: eram oligarquias estaduais, até então mal e porcamente vinculadas entre si sob o Império. Hoje, o sistema econômico é de fato nacional, a população é conectada, os movimentos podem articular-se entre si. É outra história: o sistema político, sim, é que continua sendo um arcaísmo. As oligarquias são um arcaísmo.

gilmar-MENDES

Se comecei comparando nossa realidade a algum enredo, com gênero ainda indefinido, acho que devo terminar no mesmo tom. O que vão fazer nossos personagens? Como vão se relacionar os derrotados, formais e informais? Como vai reagir o falso vencedor, quando descobrir que as batatas estão na mão de outro grupo? E nossos figurantes amarelinhos, nossos raivosos adoradores da brutalidade, como vai ser a vida deles quando a coisa começar a degringolar na economia?

São cenas dos próximos capítulos…

Enquanto acompanhamos a história, com grande apreensão, as cenas vão se sucedendo, cheias de peripécias e falsas pistas. Com a derrocada dos principais partidos da Nova República, vemos algumas novas agremiações surgindo, em vários segmentos do espectro político. Será que a próxima inflexão política brasileira surgirá no âmbito deles? Difícil dizer, mas mesmo isso deve demorar um bom tempo para tomar forma.

Nem imagino, também, quanto tempo vai levar para que vejamos emergir uma nova etapa de transformações no plano da própria sociedade. Pode até não ser tanto tempo assim, haja vista a pluralidade de formas de reivindicação, físicas e virtuais, que aparecem cá e lá. Seja como for, não tenho a menor dúvida de que, nesse meio-tempo, os subterrâneos ferverão. Mesmo enquanto, de nossos apartamentos, lamentamos mais uma oportunidade perdida.

88f5912a1f1ee0d585a354e5e58ac99d

 

Padrão
arte, barbárie, Brasil, calor, capitalismo, crime, desespero, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, história, modernidade, morte, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, tempo, trabalho, transcendência, vida

Naturam expellas (parte 5)

[N.B.: esta é a quinta parte de um texto sobre a velha questão “homem/natureza”, inspirado no ecocídio de Mariana-MG e que está destruindo um dos nossos mais importantes rios – e agora também o mar! Nas partes anteriores, tratei de como foi conceitualizada a natureza no pensamento moderno, entre Bacon e Marx.  Depois, lidei com os desconfortos que a relação entre natureza e técnica causou no século XX. É sempre bom lembrar que “natureza” é um termo polissêmico, que se presta a muita manipulação: por isso, entro agora na parte que trata daqueles que tentam pensar esse conceito por um ângulo completamente diferente.]

Leia também a PARTE 1.

Leia também a Parte 2.

Leia também a Parte 3.

Leia também a Parte 4.

hokusai ondas e barco

A Inarredável

Com tudo isso, é preciso passar à segunda resposta possível para o sentido da impossível expulsão da natureza, retorcendo um pouquinho a idéia de que ela volta “triunfal”, “irrompendo vitoriosa contra o seu tolo desprezo”. Para tanto, vai ser necessário deixar de seguir Horácio e, principalmente, de navegar pela superfície desses discursos ocidentais clássicos. Aqui, não é mais questão de que a natureza “volta”. É questão de que a natureza simplesmente nunca foi embora.

Pode-se expulsar a natureza com um ancinho, com um ar condicionado, com um rigoroso planejamento logístico? Não, não se pode.

De certa forma, esse ponto fica subentendido, de um jeito ou de outro, em todas as doutrinas discutidas acima, mesmo quando elas tentavam teorizar a natureza como externa, expulsa, subjugada, sem direito de cidadania. A propósito, é bastante natural que, ao se exercitarem, as doutrinas sejam levadas a expelir com o suor os elementos que não conseguem absorver e, por isso, lhe aparecem como toxinas. O mesmo vale para qualquer sistema, a começar pelo sistema econômico…

Com isso, vemos que sempre existe algo de dúbio, como a liberdade que se constrói “por cima” da necessidade; ou o trabalho indispensável de nomear aquilo sobre o qual se exercerá um poder; ou ainda, a duplicidade em última instância insuperável das “naturezas”, primeira e segunda. Também fica evidente a impossibilidade de sustentar a cisão radical entre o “nosso” e o natural pela própria polissemia do termo: “natureza” às vezes se diz, inclusive, como sinônimo de “essência”, de modo que a cultura aparece como uma “segunda natureza”.

Cúmulo da dificuldade expressiva: seguindo por essa linha, pode-se afirmar até mesmo que “é da natureza” do ser humano… destruir a natureza.

Maurice Merleau-Ponty consagrou três cursos inteiros, entre 1956 e 1960, ao problema do conceito de natureza, na tradição filosófica e nas ciências. Seu objetivo, com tanto tempo dispensado a esse assunto, era incorporar à fenomenologia a necessidade de pensar de maneira integrada a linguagem, a natureza e, como ponto de convergência de ambos, o corpo.

Hoje, trabalhos como o de Bruno Latour, Isabelle Stengers e Michel Serres se dedicam a desmontar essa armadilha do, digamos assim, “dualismo natural” que vê na natureza o “outro” do humano. Especificamente para Stengers, essa assimetria (tomo aqui emprestado o termo de Latour) é fruto de verdadeiras catástrofes. Mais precisamente, essas que estamos vivendo.

E, por outro ângulo, pode-se enxergar também no perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro outro movimento que põe em xeque a certeza de que o Espírito (para usar o termo hegeliano por motivos que vão ficar claros em seguida) é que tem uma experiência formativa da realidade humana. Uma das coisas que aprendemos com o antropólogo carioca é que se para o europeu a civilização, a atividade humana, é da ordem do espiritual, e a natureza da ordem do “meramente” material, para o ameríndio ocorre o oposto.

Uma anedota que o antropólogo conta e em que particularmente achei graça (no sentido de prazer e interesse) é aquela que diz que, enquanto os espanhóis discutiam se os índios tinham alma, na famosa controvérsia de Valladolid (lindamente transformada em espetáculo teatral por Jean-Claude Carrière), os ameríndios afogavam espanhóis para descobrir se seus corpos eram reais e, conseqüentemente, apodreceriam.

* * *

davinci turbulencia1

Como podemos lidar com isso, do ponto de vista dos versos latinos de Horácio? Ora, tudo vai depender de como olhamos para “a natureza”, como empregamos este termo traduzido ao latim como natura (essa que aparece em Horácio) da já longínqua noção grega da physis. A natureza de energias, relações, potenciais, daquilo que cresce (phuo, o verbo de que deriva o termo “física” e também a palavra feto) e engendra. Mexer com a natureza é mexer com potências e intensidades, e não meramente com uma divindade plenamente individuada.

Assim entendido, o conceito de natureza é da ordem do que necessariamente se expande, se transforma, do que não é nada em particular, mas cada coisa e mais as virtualidades em que cada coisa está implicada. O virtual, o pré-individual, a intensidade. Construir a casa da qual se expulsarão as folhas (“a natureza”…), com ancinho ou sem, exige um trabalho (no sentido físico) com o peso dos tijolos, por sua vez feitos de um barro molhado e aquecido, fazendo passar o dinamismo do calor pela potência da argila e da água, tudo isso dentro de um molde de madeira ele mesmo dotado de seu próprio dinamismo…

Antes de mais nada, a turbulência. Antes da matéria, a energia. Antes do real, o virtual. Ninguém entendeu isso melhor do que Leonardo da Vinci, que passava horas e horas de seus dias a desenhar os diferentes turbilhões que surgiam na água de acordo com as barreiras que ela encontrava – e também de acordo com os encontros fortuitos (clinamen?) de suas próprias moléculas em fluxo. Ninguém representou isso melhor do que o grande gênio de Hokusai, o artista japonês. (Cuja influência, por sinal, é bastante visível na obra de Van Gogh, uma espécie de Leonardo da Vinci do pós-impressionismo.)

Modular, e não moldar, dirá Simondon, que também dá o exemplo da marcenaria que corta as tábuas segundo a estrutura energética da própria madeira, sob pena de fazer um corte completamente errado. Natureza contra natureza, potência diante de potência, só nesse cruzamento se dá a ver o objeto que, com certa leviandade, tomamos como unidade constitutiva do real (da natureza…).

Com isso, o momento singular da ação técnica (a expulsão com o ancinho, por exemplo) não é tanto um agenciamento do homem com a natureza, mas de dois momentos, dois fluxos, duas intensidades, ambos da natureza (ambos dinâmicos, capazes de crescer e engendrar), ainda que se possa apontar a presença de um deles na figura da madeira (entendida como natural porque não é humana) e a do outro no humano que performa o gesto.

Ou ainda o exemplo metalúrgico de Deleuze e Guattari (já que estou tratando de um recente desastre no setor econômico que extrai metais): a têmpera, o fogo, conduzindo o metal a seu estado de menor forma e maior potência, maior virtualidade, maior fluxo; a forja, em que esse fluxo é confrontado à dinâmica de outras forças, quais sejam, a do forjador: o objeto metálico como fruto do agenciamento entre dinâmicas intensivas de um corpo e de uma matéria com quase infinita virtualidade.

* * *

times square

Em suma, o gesto que produz o lixo e o gesto que ilumina Times Square não são capazes de conduzir a uma cisão pela qual de um lado está a natureza e, de outro, estamos nós. Ou, para falar como a linhagem alemã tratada em parágrafos anteriores, um lado para a necessidade e a vida animal, o outro para a liberdade e a ação propriamente humana.

Ou ainda, para que sejamos “como mestres e possessores” da natureza, porque, afinal de contas, como perceberam com muita perspicácia Adorno e Horkheimer, para isso é necessário que nos tornemos mestres e possessores… de nós mesmos! O que nos conduz, necessariamente, a alguma forma de totalitarismo, ainda que imperceptível.

É claro que os mestres da Escola de Frankfurt tinham outra coisa em mente, mas não podemos deixar de enxergar esse processo em várias das iniciativas de biotecnologias, simbiose homem-máquina, inteligência artificial e assim por diante, que estão se desenvolvendo atualmente sob a égide da subsunção a um imperativo venal e financeiro com conseqüências potencialmente muito funestas…9

A barreira rompida em Mariana não era um ancinho que expulsava a natureza, mas uma força que continha outra força, um agenciamento de um determinado tipo, que precisa ser tratado em mais detalhe. O problema é que nos acostumamos a vê-lo exatamente assim, como um ancinho mágico nas mãos do aprendiz de feiticeiro que leu errado o livro do mestre, pensando que era um livro de registros contábeis.

Extraímos bens valiosos das entranhas da terra, mas controlamos as “externalidades negativas” (não tenho palavras para descrever meu ódio a essa expressão, a mais funesta fórmula mágica dos tempos que correm). Com isso, perpetua-se uma ilusão, que vai nos corroendo por dentro: nossa alienação à própria potência técnica que molda nosso mundo é como um gigantesco tumor e a metástase, bem se vê, está disseminada. Essa alienação técnica é também, indissociavelmente, uma alienação quanto ao sentido dessa palavra que tanto usamos: “natureza”…

* * *

metalurgia

O que há de mais interessante no ponto que estou tentando levantar talvez seja esse descolamento entre o plano da interação e agenciamento entre energias e o da capacidade expressiva do que ocorre efetivamente. As forças da matéria rejeitada pela mina, em nome de uma seleção de forças cujo imperativo estava longe dali, acumularam-se cada vez mais intensamente no lago, como se não existissem, como se estivessem fora, expulsas de alguma maneira.

Mas é claro que não estavam expulsas coisa nenhuma. O que estavam era agenciadas de modo deturpado, iludido, perverso, porque a potência técnica que presidiu sobre esse processo estava ela mesma iludida e pervertida. Resta mais uma pergunta para nossa coleção, e que está relacionada a essa dupla alienação: como é possível deturpar os agenciamentos, se não existe a priori uma finalidade para o que devam ser esses agenciamentos?

Antes de tentar alguma resposta, mais um exemplo: afinal, o que vale para a mina de Mariana vale também para o gás carbônico que se acumula na atmosfera, e que dispõe rigorosamente da mesma potência de todo gás carbônico que jamais houve no universo. Mencionemos três delas: refletir os raios do sol; participar da fotossíntese; formar-se a partir da explosão de determinados combustíveis. (E mil outras poderiam ser lembradas.)

Pois, justamente, ao queimar os combustíveis em nome da potência das máquinas, avaliando-a e medindo-a por seus efeitos sobre as imagens simbólicas que compõem o PIB e o índice Dow Jones, a atividade técnica de nosso ancinho paradigmático não expulsa a natureza, mas seleciona e reorienta muitos de seus potenciais. Sem perceber, faz com que outros de seus potenciais se tornem tóxicos a ponto de inviabilizar nossa própria vida.

Não que “a natureza”, esse ente mítico e hipostasiado, esteja particularmente preocupada com a possibilidade de que nossa vida se torne inviável no planeta. Mas nós estamos… e se fomos capazes de hipostasiar um ente de nome “natureza”; se fomos capazes de enxergar nesse ente uma intencionalidade e uma profunda teleologia – ou, melhor dizendo, se fomos capazes de projetar nele nossa própria intencionalidade e propensão às teleologias –, então deveríamos ser capazes de entender que “deste jeito não dá mais”.

* * *

castelo de kafka

Em outras palavras, imaginemos uma visão de profundo cinismo; alguém querendo pensar para além de um ser humano que já estaria condenado à destruição que ele mesmo causou. Com essa visão, alguém poderia afirmar que, do ponto de vista da natureza ela mesma, com sua virtualidade, suas potências e sua ancoragem no pré-individual, essa destruição do humano não faz a menor diferença. Ou, melhor dizendo: que “tanto faz” – o ser humano “está sobrando” ou “só atrapalha”.

Acontece que esse cinismo todo nos joga numa espécie de círculo, porque, afinal de contas, a mesma potência figurativa e especulativa que nos leva a hipostasiar a natureza, projetando nela nossas próprias intenções, é uma virtualidade do corpo e, portanto, da natureza; e é também aquela que eventualmente nos conduz a esse cinismo.

Por isso, uma alternativa mais fecunda seria perguntar-se o que é que nos leva a estabelecer essa camada de desentendimento, de verdadeira alienação, que faz com que os agenciamentos singulares e reiterados, quotidianos e institucionalizados, que produzimos no mundo moderno, entre diferentes potencialidades e virtualidades da natureza (como physis), sejam auto-destrutivos, isto é, coloquem em risco nossa própria existência. Por que é que estamos rodando sem rumo, perdidos, iludidos pelas imagens de felicidades e bens que já sabemos destinados ao fracasso…

Um claro exemplo está na oposição que se faz entre a responsabilidade pelo meio ambiente (guardemos essa expressão enquanto não aparecer outra mais precisa) e a responsabilidade pela vida social, expressa na idéia de que, se formos resguardar o planeta abandonando determinadas atividades econômicas parasíticas, muitos empregos vão ser perdidos. Exemplo concreto é este que se vê em Minas Gerais: defensores das mineradoras envolvidas já admitem que elas são culpadas, mas, embora tenham que pagar pelo estrago que fizeram, isso tem que dar-se de uma maneira que não resulte em demissões.

Não se pode quebrar o município, apenas cobri-lo de arsênico, mercúrio e sabe-se lá que outras substâncias nocivas.

* * *

hephaistos e aquiles

O problema aqui está na estranha, até mesmo absurda oposição entre os “meios de vida” (o salário, diga-se) e a própria vida. Uma determinada atividade mata. Mas paga salário. Salário, uma soma em dinheiro que permite responder às exigências por outras somas em dinheiro: imagens cristalizadas, fenecidas, mortas, do desejo, da atividade, das relações contratuais. Então a escolha que está colocada é ao mesmo tempo simples e inverossímil: para manter-se vivo, é necessário provocar a morte – no limite, a própria morte.

Tome-se o exemplo da indústria petrolífera: ela é indispensável para uma gigantesca cadeia de produção, então não pode ser abandonada, para não comprometer os assalariados e, claro, toda a coletividade que vive dos impostos recolhidos. Mas ela provoca desastres como o da BP e, mais ainda, o próprio aquecimento do planeta: para não comprometer a economia global, é preciso sacrificar o globo…

É evidente e, de certa forma, já é assunto um tanto batido, a inversão das finalidades. Abra qualquer manual de economia e, nas primeiras páginas, você lerá que aquela doutrina (ciência, dirão seus apologetas) trata da alocação de bens e serviços, dada a limitação dos recursos. Você lerá também que as imagens monetárias que sustentam essa alocação são um auxiliar, um meio, um símbolo que permite comparações.

Mas abra qualquer jornal de economia e estará evidente que a relação é inversa: a atividade econômica e a alocação de bens servem para gerar as divisas. São, afinal, as divisas que pagam as dívidas, remuneram os acionistas, garantem as estatísticas, evitam as crises… A dimensão da atividade cristalizada, o dito “valor”, a imagem mortificada de um universo da virtualidade quase infinita, orienta os gestos que, ao redor do planeta, adulterarão por obra dos “mestres e possessores” o próprio universo da infinita virtualidade: a natureza.

Mestres e possessores alienados, subjugados ao sistema de suas próprias imagens-símbolos, organizados sob a égide de uma racionalidade instrumental da qual não conseguem se livrar, embora não entendam para além de uma formação cada vez mais restrita a uma “área de excelência”. Possessores, com certeza. Agora… “mestres”?

Mais uma vez, palmas para Adorno e Horkheimer, mas também palmas para Rousseau. O problema semiótico, a camada de linguagem mal colocada, reaparecem em todo seu fulgor. Estamos diante, mais uma vez, de uma limitação da capacidade de expressar aquilo que se efetiva. A estrutura do expressável, em outras palavars, não acompanha sua paralela, a estrutura do realizável. São agenciamentos mancos que se produzem aqui, acoplamentos empobrecidos.

Keynes, em seu célebre texto sobre a riqueza de seus netos (que é uma geração hoje na terceira idade, diga-se de passagem), demonstra preocupação com o fato de que um “amor desmedido ao dinheiro” (e Keynes não era nem monge, nem bolchevique) impeça a realização de sua visão utópica de pouco trabalho e muito lazer. Mas, ora, amor é da ordem do desejo e dinheiro é da ordem do símbolo: natureza e expressão.

* * *

beijing neblina

Ainda sobre natureza, expressão e também técnica, no mesmo texto em que tratam da metalurgia, Deleuze e Guattari escrevem algo que deveria segurar por um tempo nossa atenção:

(…) há uma relação essencial entre as ferramentas e os signos. É que o modelo trabalho, que define a ferramenta, pertence ao aparelho de Estado10. Com freqüência se disse que o homem das sociedades primitivas não trabalhava propriamente, mesmo se suas atividades eram muito coercitivas e regradas (…). O elemento técnico devém ferramenta quando se abstrai do território e se assenta sobre a terra enquanto objeto; mas é ao mesmo tempo que o signo deixa de inscrever-se sobre o corpo, e se escreve sobre uma matéria objetiva imóvel. Para que haja trabalho, é preciso uma captura da atividade pelo aparelho de Estado, uma semiotização da atividade pela escrita. Donde a afinidade de agenciamento signos-ferramentas, signos de escrita-organização de trabalho.

A dupla está apontando o dedo para a subsunção daquilo que poderíamos chamar generalizadamente de “atividade técnica”, agenciamento de corpos e territórios, gesto desejante, por uma “semiotização” que hierarquiza e controla. É a transformação dessa atividade em trabalho, orientando-a para finalidades que estão no horizonte, não no próprio desejo ou no próprio corpo.

Como diz Simondon, o trabalho é um caso particular da técnica, e não o contrário, mas construímos toda uma estrutura interpretativa para a atividade humana que nos faz crer exatamente no oposto: trabalha-se e esse trabalho contém técnicas.

Trabalha-se para quê, então? Diríamos, com Horácio, e lançando um olhar reprovador aos alemães que lemos acima: para “expulsar a natureza”, criar um reino impossível e ilusório de liberdade. Trabalha-se em nome da semiotização, dos nomes que demos às coisas por cima delas mesmas e das declarações performáticas que realizamos em seguida: “isto é meu”, “isto vale tanto”.

A linguagem chegou a um ponto em que está toda contaminada com essas fórmulas do trabalho, do tornar-se “mestre e possessor”, do ancinho iludido. Li por esses dias no jornal que o Brasil já não é mais um “mercado emergente”, mas um mercado “submergente”; por causa da crise, você sabe. Mas em nenhum momento alguém parece ter estranhado que se identifique assim tão facilmente um território habitado por pessoas que falam a mesma língua a “um mercado”.

Já não se diz mais “o mercado brasileiro” para designar a atividade econômica que ocorre no Brasil ou entre o Brasil e outros países (digo, outros mercados). Agora se diz: “o Brasil é um mercado… outros mercados estão crescendo mais / crescendo menos”; e por aí afora. É o mesmo vício de linguagem que nos leva a dizer que a Samarco é “vítima” do rompimento da barragem porque seus lucros vão ser prejudicados, ou que o importante é “não colocar em risco os empregos”. Quem está soterrado pela lama não tem emprego, ora.

* * *

fritz lang trabalhadores

Também é por isso, em grande medida, que parece tão difícil chegar a algum acordo nas cúpulas do clima, mesmo para a já altamente arriscada meta de um aquecimento global de “apenas” dois graus. A transição energética não pode acontecer rapidamente o suficiente sem comprometer “o crescimento”, que por sua vez, no discurso oficial, comprometeria “o emprego” de bilhões de pessoas.

Mas não é só isso: afinal, a maioria dos países envolvidos têm compromissos com dívidas públicas (e privadas, diga-se) que se tornariam inviáveis sem “o crescimento”, de modo que parece mais confortável rumar para o suicídio do que comprometer o sistema de signos e contrações do tempo em que consiste o sistema de dívidas, investimentos e ações.

Simplesmente, o acoplamento desse sistema semiótico, enquanto potência de figuração, racionalidade e imaginação, com as dinâmicas do carbono, dos metais e da atividade dos corpos (sob a forma de trabalho), está conduzindo a um agenciamento climático que, no longo prazo, exclui a presença da humanidade, tal como a conhecemos.

Aquele sujeito imaginário, de atitude cínica, que mencionei acima como exemplo, poderia dar de ombros e simplesmente esperar a chegada da morte, como na música de Raul Seixas. Mas esse também seria um caso de linguagem e imagens em rota de abolição com o desejo, porque o desejo, como tal, é potência de vida e não se presta a esperar a morte chegar.

E é isso que traz a reflexão toda para o último problema: haveria outros agenciamentos possíveis ainda disponíveis para nós? Maneiras de promover a cópula de diferentes potências, de dinâmicas físicas, porções de natureza, que não envolvessem essa alienação do trabalho, essa subsunção a uma linguagem hierarquizante do valor e da propriedade?

Continua na Parte 6.

Notas

vangogh turbulencia

9. No Brasil, a obra de Laymert Garcia dos Santos é recheada com bons exemplos a esse respeito. Recomendo em particular a coletânea de título Politizar as Novas Tecnologias (Editora 34).

10Uma breve advertência: é bom lembrar que quando a dupla fala em aparelho de Estado, não estão se referindo àquilo que hoje se tornou comum, a dicotomia entre “o Estado” (sinônimo de governo) e “o indivíduo” ou “o mercado”. Estado, aqui, designa uma forma de organização, controle, disciplina e poder que é vertical, rígida, edipiana. Portanto, inclui aquilo que os auto-intitulados libertários denominam “o mercado”, reino de uma liberdade definida de maneira um tanto quanto ad hoc.

Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, cidade, costumes, crime, desespero, deus, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, história, modernidade, morte, opinião, passado, Politica, reflexão, religião, Sociedade, tempo, transcendência, tristeza, vida

Naturam expellas (parte 2)

[N.B.: esta é a segunda parte de um texto sobre a velha questão “homem/natureza”, inspirado no ecocídio ocorrido semana retrasada em Mariana-MG e que está destruindo um dos nossos mais importantes rios.]

Leia também a PARTE 1.

Na linha do patriarca

josé bonifácio 500 mil reis

Na primeira interpretação, fazemos como José Bonifácio: tentamos criar um mundo em que a natureza está fora e a civilização está dentro, exceto pelos jardins de que cuidamos bem e de algumas reservas naturais em que fazemos turismo e evitamos a extinção de nossas espécies preferidas. Mas se tem algo que aprendi com a leitura (na verdade, releitura exaustiva) de Simondon é que qualquer realidade se conhece pelas suas franjas, suas membranas, ali onde ela é obrigada a reafirmar-se na interação com o que passa por seu meio associado.

E, justamente, o meio associado é aquilo que, estando fora, é constituinte de qualquer idéia de interioridade.

Assim, a civilização contemporânea, no que tem de mais próprio, não se revela nas filas de castanheiras do jardim das Tulherias, nem na ordem-que-se-finge-de-caos (ou o contrário) de Times Square, nem na aparentemente milagrosa melhora dos índices de expectativa de vida ou ocorrência de doenças, registradas pelas estatísticas dos últimos dois séculos. A civilização contemporânea define-se pelas paisagens da Indonésia em chamas, dos tar sands canadenses, da dita “fronteira agrícola” do Mato Grosso, dos subúrbios de Altamira, mas também da Baixada Fluminense, e das barreiras que estouram em Minas Gerais.

Afinal, é ali que ela define o que vai deixar “de fora” e o que vai laboriosamente incorporar “para dentro de si”. Aqui é onde os dados são lançados: no gesto constante de expulsar a natureza para ter Times Square e bons indicadores socioeconômicos; na atividade infatigável de extrair a substância valorada e entregar rejeitos; na mania neurótica de produzir lixo, lixo e lixo.

(Sobre o lixo, ouça-se o que diz Peter Szendy NESTE LINK – tem legendas.)

Eu disse que ia tratar da primeira forma possível de interpretar a idéia do “naturam expellas furca”, mas já abro revelando toda a minha discordância dela. São vícios argumentativos, não consigo evitar. Afinal de contas, a idéia de expulsar a natureza, deixando-a do lado de fora do ambiente em que nós mesmos vivemos nossas vidas – a cultura, a civilização, o que for –, à parte um certo número de mediações (arrancar alimentos do seio da terra, calafetar embarcações, cuidar da saúde, aquecer ambientes), tem qualquer coisa de hipostasia.

Como se a natureza fosse um ente bem delineado e concreto, que pudesse ser expulso de um outro ente delineado e concreto, algo que identificamos como nossa verdadeira habitação, a cultura, a civilização. Como se aquele que expulsa não fosse sempre também alguém que, bolas, não pode se arrancar do que ele mesmo considera natural e externo a si próprio! Como se o óleo que alimenta os carros da avenida Paulista, as lâmpadas de Times Square e a jardinagem das Tulherias não misturassem teimosamente o artifício e o natural, o cultural e o físico.

* * *

calor na índia

Mas parece que já naturalizamos esse modo de pensar. Com o passar dos séculos, nem mesmo nos lembramos do quanto se teve de argumentar para passar a crer na idéia de que fosse necessário colocar a natureza para fora do nosso mundo (nosso mundo, veja você). Talvez a formulação mais cruel dessa idéia esteja em Hobbes, quando ele diz que a vida no “estado de natureza” não tem “artes, letras ou sociedade”, então é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”2;. Aqui, o mesmo poder que funda uma sociedade – civilizada, poderíamos acrescentar – é aquele que extrai o humano da natureza: a natureza é guerra, diz Hobbes. Guerra, medo, ameaça.

Tal cisão radical entre o agente da expulsão (nós, a rigor) e a natureza que é expulsa pode ser identificada, em maior ou menor grau, em todas as descrições – míticas, a propósito, embora não possamos admiti-lo abertamente – que empregam a idéia de um estado de natureza que se oponha à civilização, ao mundo social, político, o que for3. Algo parecido pode ser lido no Discurso sobre a Desigualdade, de Rousseau – esse malandro que vira o contratualismo de Hobbes de cabeça para baixo. Muito embora ele o afirme em tom de denúncia, quando enxerga na origem da propriedade privada o gesto autoritário do primeiro a dizer “isto aqui é meu”.

E é preciso levar a sério essa fórmula. Pois determinar que algo – um terreno, por exemplo, e de fato a posse da terra é uma dimensão de primeiríssima importância, como mais tarde vai mostrar com brilhantismo Karl Polanyi a respeito do nascimento do capitalismo – é “de alguém” contém sempre um caráter de despotencialização. Uma parte da autonomia existencial (se posso falar assim) do objeto ou da porção de terra é perdida em nome de uma submissão ao artifício, à simbolização, à linguagem.

Masaccio expulsão do jardim do éden

A terra que era superfície (termo importante!) do planeta, sede da gênese de mundos, ambiente de circulação de entes vivos – humanos aí inclusos –, passa a ser “o terreno de alguém”. O gado que pasta e muge é “o rebanho de alguém”. Objeto de direito comercial. Patrimônio. O que esse ancinho performático faz é expulsar a natureza do plano do discurso, ao recobrir aquilo que era supostamente natural com uma superfície de determinações outras: culturais, financeiras, simbólicas. Um outro tipo de expulsão, como se vê, e igualmente ilusória.

A propósito da questão discursiva, veja só como é interessante o lado religioso da questão – e não se pode deixar de fora a narração religiosa, que sempre manteve um diálogo de alta proximidade com outras narrativas totalizantes, em particular as metafísicas. No Gênesis, ao homem é dado o direito e a função de nomear todas as coisas, mas isso enquanto ele ainda está no Paraíso, isto é, dentro de algo que poderíamos ler como uma natureza intocada e perfeita, criada por Deus para o usufruto daquela criatura feita à sua imagem e semelhança.

Mas intervém o pecado original e o homem é expulso – note-se: não a natureza – do Jardim do Éden, obrigando-o a viver do suor de seu trabalho e a reproduzir-se com a dor do parto – mas mantendo seu caráter de imagem encarnada do Criador. Daí por diante, aquele que nomeou quando integrado ao Paraíso passará a enfrentar as adversidades de um vale de lágrimas: seria daí, então, que vem a reviravolta nada dialética, a peripécia pela qual torna-se ele mesmo um agente de expulsão da natureza? Será que é por isso que, com o perdão da piada infame, “Paraíso” no mundo dos humanos foi reduzido a um bairro de São Paulo não particularmente mais agradável do que o resto da cidade?

* * *

Encyclopedie-Diderot

Seja como for, o ápice dessa mitologia que começa a se elaborar em paralelo à modernidade, e tem um caráter ao mesmo tempo titânico e masturbatório, pode ser encontrado (para variar) em Descartes, o estrito dualista das certezas claras e distintas. É no Discurso do Método que ele afirma, sem maiores pudores, que o conhecimento (adivinhe: claro e distinto…) de como funciona a realidade natural poderá fazer do ser humano “como o mestre e possessor da natureza”4. Aqui, não se expulsa, mas se domina, subjuga e usa, “não só para gozar sem pena de seus frutos, mas sobretudo para a conservação da saúde”…

Que ironia, hoje, pensar como o usufruto “sem pena” dos frutos da natureza resulta em enormes penas, de furacões a rios de lama, de enchentes a queimadas, de secas a cidades submersas… Cúmulo da ironia: tal domínio e tal usufruto chegaram a um tal nível que a “conservação da saúde” se tornou quase impossível: pense nisso quando estiver em São Paulo e precisar tomar um gole de água carregada de metais pesados.

Mas há duas coisas a notar nesse trecho de Descartes: a primeira é, evidentemente, sua paráfrase do “knowledge is power” de Bacon, autor que ele evidentemente havia lido. Mas Descartes diz algo mais interessante ainda: o conhecimento sobre determinada dimensão da realidade permite ter poder sobre essa mesma dimensão. E o filósofo francês é prudente: não corre o risco de dizer abertamente o que está implícito em seu texto. Afinal, para a mentalidade de seu tempo a natureza já tem um “mestre e possessor”, que atende pelo nome de “Aquele que É”: Deus.

golfinhos

O mesmo que, como vimos, entrega à sua criatura dileta o poder de nomear todas as coisas: mas, ora, se a linguagem é performática, então nomear é uma forma de saber. E se saber é controlar, já se pode vislumbrar aonde estamos chegando. Assim, para contornar os riscos de críticas oriundas da cúria – e tais críticas na época poderiam comprometer a vida de alguém até o talo –, Descartes diz abertamente que, ao colocar a natureza como objeto do conhecimento (isolado, portanto) e também da ação, o ser humano está brincando de Deus. Não será o último a fazer essa comparação…

Segundo ponto, que já antecipa o que vou tratar um pouco mais adiante: Descartes quer que conheçamos “a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus” tão distintamente como conhecemos “os diversos metiês de nossos artesãos”, de modo a podermos “empregá-las do mesmo modo a todos os usos a que podem servir”. O trabalho da natureza sendo como o trabalho do artesão, a técnica deste último deverá tratar de colocá-la sob seu controle, fazendo com que ela sirva a seus próprios desejos e interesses.

Mas aqui é que entra uma questão importante que vai aparecer repetidamente neste texto: se fosse possível ter um conhecimento efetivamente exaustivo dessas forças todas, será que seria possível controlá-las? Se estivermos nós mesmos submetidos a elas, será que podemos reproduzir com sinal invertido o processo de expulsão do Paraíso, saindo nós mesmos dessa infinitude intensiva de forças, a ponto de tê-las sob nosso controle?

Não poderíamos dizer, ao contrário, que toda convicção de que podemos controlar os potenciais naturais é um indicador de conhecimento faltoso e, por extensão, em se tratando de forças selvagens, arriscado e ilusório? Será essa disputa entre saber e poder, de fato, necessariamente, a relação que se pode nutrir entre a técnica e as forças “do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus”?

* * *

Goethe Faust und der Pudel Ramberg

Chegamos, assim, à origem do problema que, graças a Goethe, passou a ser chamado de faustiano. Foi Goethe que tornou o mito de Fausto algo capaz de abarcar todas as vertentes daquilo que convencionamos nomear modernidade e que já aparece em germe naquilo que discuti nos parágrafos acima. O âmbito religioso, em que o desejo de controlar (ou expulsar) a natureza aparece como pacto com o demônio, voltando-se contra a potência de nomear tal como presenteada por Deus. O desejo de conhecimento como poder para tornar-se “mestre e possessor”. A imposição de valorações de cunho financeiro (e, por extensão, venal) por cima tanto do que se considera uma realidade social quanto do que se considera uma realidade natural.

Marshall Berman, autor do espetacular Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar, tem razão ao chamar atenção para o fato de que as seis décadas necessárias para redigir o Fausto (Goethe começou com 21 anos de idade e só terminou com 82; no ano seguinte, morreu) são o que faz desse gigantesco poema a obra-prima por excelência da modernização. Da década de 1770 aos anos 1830, enquanto o Fausto de Goethe vinha ao mundo, todas as idéias e todas as técnicas que fizeram do ser humano “como mestre e possessor da natureza”, ao menos a seus próprios olhos, vieram ao mundo, a ponto de tirar o fôlego de quem observasse. Foi o tempo da industrialização, do colonialismo, das revoluções burguesas, da derrubada de monarquias – as eras citadas nas obras-primas de Eric Hobsbawm.

Foi também o tempo em que se engendrou a justificativa para todo esse desejo faustiano de dominação e desenvolvimento (eis aí, aliás, um termo capcioso, e que tem sido empregado no Brasil para justificar as maiores atrocidades; sem meias-palavras: crimes!). Para além das relações deus-e-diabo que se lêem na epopéia de Goethe, obras fundadoras como a de Locke afirmam o direito àquela mesma propriedade que Rousseau denunciara, sobrepujando o que poderia ser dito, de maneira não muito rigorosa, mas bastante eficaz, um direito inerente a qualquer objeto: o de ser o que se é. Ou seja, de não receber aquela camada suplementar de simbolização jurídica e linguística que vimos na fórmula do genebrino.

Com esse gesto fundador, político, metafísico e semiótico, torna-se um princípio da dita lei natural que a voz do humano (aquele que nomeia todas as coisas…) sobredetermine a essência de um pedaço de terra, uma porção de matéria modificada pelo engenho, um rebanho de animais…

E como Locke justifica esse direito à propriedade? Pelo trabalho, seja diretamente, seja mediado pela circulação de uma outra força simbólica, o dinheiro que é capaz de contratar (e comandar trabalho, dirá mais tarde Adam Smith, fundando a noção de “valor relativo ou de troca”). Trabalho, técnica, linguagem, um trio poderoso capaz de fazer do ser humano aquele ser “terrível” (deinon) de que fala Sófocles5, porque é capaz de, ao mesmo tempo, “expulsar” a natureza (do plano do discurso, como já mencionei) e, tendo-a expulsado, tornar-se “como mestre e possessor” dela.

Continua na parte 3

Leia também a parte 4.

Leia também a parte 5.

Leia também a parte 6.

Notas

2. “During the time men live without a common power to keep them all in awe, they are in that conditions called war; and such a war, as if of every man, against every man. To this war of every man against every man, this also in consequent; that nothing can be unjust. The notions of right and wrong, justice and injustice have there no place. Where there is no common power, there is no law, where no law, no injustice. Force, and fraud, are in war the cardinal virtues. No arts; no letters; no society; and which is worst of all, continual fear, and danger of violent death: and the life of man, solitary, poor, nasty, brutish and short.”

3. Uma exceção notável está em Spinoza, com a distinção entre natureza naturante e natureza naturada. Outra excepcionalidade está em sua dedução do direito civil por dentro do direito natural: “seja ele insensato ou sábio, o homem é sempre uma parte da natureza, e tudo aquilo pelo qual ele é determinado a agir deve ser relacionado à potência da natureza enquanto ela pode ser definida pela natureza de tal ou tal homem”. Por sinal, Spinoza é exceção em muitas coisas! Ainda assim, a diferença entre o direito natural e o direito civil é uma de barração de uma espécie de “direito de todos a tudo” (segundo a potência de cada um em sua natureza) que é na verdade um direito a nada (porque a potência de cada um limita a potência dos demais) que se aproxima bastante do estado de guerra de Hobbes.

4.“Mais, sitôt que j’ai eu acquis quelques notions générales touchant la physique, et que (…) j’ai remarqué jusques où elles peuvent conduire, et combien elles diffèrent des principes dont on s’est servi jusques à présent, j’ai cru que je ne pouvois les tenir cachées sans pécher grandement contre la loi qui nous oblige à procurer autant qu’il est en nous le bien général de tous les hommes: car elles m’ont fait voir qu’il est possible de parvenir à des connoissances qui soient fort utiles à la vie; (…) on en peut trouver une pratique, par laquelle, connoissant la force et les actions du feu, de l’eau, de l’air, des astres, des cieux, et de tous les autres corps qui nous environnent, aussi distinctement que nous connoissons les divers métiers de nos artisans, nous les pourrions employer en même façon à tous les usages auxquels ils sont propres, et ainsi nous rendre comme maîtres et possesseurs de la nature. Ce qui n’est pas seulement à désirer pour l’invention d’une infinité d’artifices, qui feroient qu’on jouiroit sans aucune peine des fruits de la terre et de toutes les commodités qui s’y trouvent, mais principalement aussi pour la conservation de la santé, laquelle est sans doute le premier bien et le fondement de tous les autres biens de cette vie (…).”

5.Deinon, como aparece no coro de Antígona:

Há muitas coisas terríveis e assustadoras (deinon), mas nenhuma / é tão terrível e assustadora quanto o homem. / Ele atravessa, ousado, o mar grisalho, / impulsionado pelo vento sul / tempestuoso, indiferente às vagas / enormes na iminência de abismá-lo; / e exaure a terra eterna, infatigável, / deusa suprema, abrindo-a com o arado / em sua ida e volta, ano após ano, / puxados por seus cavalos. / Ele captura a grei das aves lépidas / e as gerações dos animais selvagens: / e prende a fauna dos profundos mares / nas redes envolventes que produz, / homem de engenho e arte inesgotáveis. / Com suas armadilhas ele prende / a besta agreste nos caminhos íngremes; / e doma o potro de abundante crina, / pondo-lhe na cerviz o mesmo jugo / que amansa o feroz touro das montanhas. / Soube aprender sozinho a usar a fala / e o pensamento mais veloz que o vento / e as leis que disciplinam as cidades, / e a proteger-se das nevascas gélidas, / duras de suportar a céu aberto, / e das adversas chuvas fustigantes; / ocorrem-lhe recursos para tudo / e nada o surpreende sem amparo; / somente contra a morte clamará / em vão por socorro, embora saiba / fugir até de males intratáveis.

china usina de tres gargantas

Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, crime, desespero, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, modernidade, morte, obrigações, opinião, Politica

Naturam expellas (Parte 1)

[Nota: o ecocídio no Rio Doce me motivou a retomar um texto que vinha tentando escrever desde setembro. O resultado segue aí abaixo, embora esteja ainda apressado e com ar de rascunho. Mas é rascunho mesmo, respirando com a pressa que o tema exige. Esta é a primeira parte de um raciocínio que ficou mais longo do que o usual. Por isso, resolvi postar em fascículos, para não me cansar, nem ao leitor. Calculo que poderei postar cada parte com um intervalo de dois dias. Eu não poderia fazer diferente, dada a gravidade do assunto.]

Mariana (MG) - Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco (Antonio Cruz/Agência Brasil)

Naturam expellas furca tamen usque recurret

et mala perrumpet furtim fastidia victrix.

Horácio (Quintus Horatius Flaccus, 65aC-27aC)

Talvez seja uma barbaridade tratar de uma tragédia criminosa e desmesurada evocando um poema da antiguidade clássica. Mas acho que essa estratégia pode pelo menos servir como um recurso para tentarmos pensar à frente, quando nos damos conta de que, lá atrás, alguém já avisou, já deu a real, e a gente segue se estropiando por conta da nossa própria irresponsabilidade e cegueira.

Diz o poeta, escrevendo em 50 a.C.: “você pode expulsar a natureza com um ancinho, ela volta cedo ou tarde / irrompendo vitoriosa contra o seu tolo desprezo”. Nos últimos anos, enquanto subia a temperatura e descia a Cantareira, tomei gosto por esses dois versos da epígrafe. A estrofe a que eles pertencem compara a vida nas cidades e no campo.1 Mas para nós, claro, a imagem adquire um sentido bem mais urgente.

Há um mês, lia-se que o Rio Doce não está mais chegando até o mar no Espírito Santo. E agora, para piorar o que já era trágico, o que vai chegar ao oceano é uma enxurrada de metais pesados e tóxicos, depois do rompimento da barreira em Mariana. É bom lembrar que a barreira em questão é pertencente a uma empresa de nome Samarco, subsidiária de duas das maiores mineradoras do mundo: a anglo-australiana BHP Billiton e a nossa conhecida Vale do Rio Doce – empresa que, grosseira ironia, tira o nome do próprio rio que agora destrói. Morreu gente, morreram peixes, morrerão tartarugas, agriculturas ficarão inviáveis. Não há como exagerar no horror.

No mês passado, um naufrágio no porto de Vila do Conde, em Barcarena (Pará), matou boa parte de uma carga de cinco mil bois. Muitos deles afundaram junto com o barco e suas carcaças estão apodrecendo no leito do rio. Milhares de corpos inchados, milhares de esqueletos, no fundo de uma das principais bacias hidrográficas do mundo. Simplesmente porque precisamos exportar mais e mais toneladas de carne – e soja, e minério de ferro, e alumínio… – para cobrir um déficit de conta corrente que, como sabemos com maior ou menor grau de consciência, não pode ser coberto. Escândalos que se somam a escândalos.

Lamento ter que dizer isso: o mais provável é que esses sejam só os primeiros de muitos desastres que seremos obrigados a testemunhar nos próximos anos e, temo, décadas. Não tenho dúvida. Logo se vê pela reação dos responsáveis e das autoridades: livrando a barra da Vale, falando apressadamente em “desastre natural”, recorrendo a doações da população mais bem intencionada, evocando a importância econômica da atividade mineradora no Brasil, embora um breve raciocínio baste para mostrar que esses benefícios econômicos todos são uma enorme e perversa ilusão.

Indonesia

Eu poderia dizer que hoje a Vale se tornou a nossa BP (petrolífera ex-estatal britânica responsável pelo vazamento catastrófico do golfo do México em 2010). Mas não dá para ignorar que, pela frouxidão com que tratamos o tema ambiental – leia-se, o tema do território, do chão em que pisamos, da comida que comemos etc. –, caminhamos rumo a uma proliferação de casos semelhantes. Pelo andar da carruagem, seremos o país das mil BPs. Falando nisso, foi inspirada pelo desastre no golfo do México que Naomi Klein escreveu em 2014 o livro This Changes Everything; no caso do Brasil, o máximo que posso me dispor a dizer é: “I hope it does”. Mas continuo cético.

Com isso, podem dormir na santa paz de Deus as outras mineradoras, petrolíferas, empreiteiras, incorporadoras, bancos, latifúndios, usinas e por aí vai, que doam os bilhões de nossas campanhas eleitorais para poder esgotar o território (florestas, cidades, campos, mares, rios, subsolos…). Quando o mundo vier abaixo, tudo estará bem para esse pessoal, e mal para o resto de nós, com o beneplácito de todo o espectro político, incluindo a imprensa e os sindicatos. Ainda não entendemos a gravidade da ameaça que ronda nossas cabeças, e não é simplesmente uma crise pertencente aos ciclos produtivos. Essas passam.

E se o assunto é “expulsar a natureza”, parece que essa é uma fixação atávica que nós temos. Já no primeiro reinado, eis o que relata o pintor francês Jean-Baptiste Debret, que retratou algumas de nossas verdades mais desconfortáveis:

Pintor de teatro, fui encarregado de nova tela, representando a fidelidade geral da população brasileira ao governo imperial, sentado em um trono coberto por rica tapeçaria estendida por cima de palmeiras. A composição foi submetida ao ministro José Bonifácio, que a aprovou. Pediu-me apenas que substituísse as palmeiras naturais por um motivo de arquitetura regular, a fim de não haver nenhuma idéia de estado selvagem. Coloquei então o trono sob uma cúpula sustentada por cariátides douradas (…).

Desde o berço, o brasileiro desenvolveu essa mesma relação que temos hoje com o solo em que pisamos e aquilo que nele cresce: há que esconder-se a natureza! Substituí-la por “um motivo de arquitetura regular”! Expulsá-la da representação do que seja o Brasil, naquele que é um de seus símbolos fundadores, a coroa estilizada do primeiro monarca. Nada de palmeiras! A natureza não está aí porque ela não existe. Ou seja: não temos natureza, o que temos são recursos naturais, matérias-primas… Riquezas que fazem nossa pujança e grandeza, como querem nos fazer crer.

debret35a

O que mais me desanima é o quanto tudo isso é evidente. Lembro bem dos meus primeiros anos em São Paulo: verões mais ou menos amenos, invernos frios, com temperaturas de um dígito – exceto em uma ou duas semanas do chamado “veranico”, palavra que caiu em desuso, já que hoje podemos vivenciar um mês de setembro como o deste ano, cujo calor, em pleno inverno, me dava dor de cabeça.

Naquele tempo nem tão distante, tempestades de verão eram impensáveis em setembro. Neste ano, tivemos exatamente isso, embora o mês, de modo geral, tenha sido seco como têm sido quase todos os meses há coisa de dois anos. E se eu cruzar com alguém na rua se referindo a “veranico”, não dá para evitar, sangue vai correr. Tivemos algumas semanas chuvosas em São Paulo em outubro e as pessoas já vêem afastar-se a famigerada crise hídrica (que, para parafrasear uma declaração atribuída a Darcy Ribeiro, parece não ser crise, mas projeto). Mal sabem elas que aqueles pés d’água de outubro mantiveram o mês abaixo da média histórica, apesar de tudo…

E falando em correr sangue, se a coisa continuar nessa toada, já se vê que dezembro, janeiro e fevereiro vão ser meses mortíferos. Basta lançar um olhar para o subcontinente indiano, onde 4500 pessoas foram ceifadas por uma onda de calor em maio e junho. E como já se fala em um “Super El Niño” para este verão – já li até a expressão “um El Niño Godzila” –, é de se esperar que setembro pareça ameno em comparação com o que vem pela frente. Mas nenhum desses sinais basta para que o país, como um todo, a começar por suas elites sociais e econômicas, para não falar nas lideranças políticas, coloque esse tema nas primeiras posições da pauta.

E no entanto é um problema que ultrapassa o Brasil, embora o atinja em cheio, na condição de país continental que é. Desastres mortíferos, água acabando, queimadas generalizadas na Indonésia, ciclones mastodônticos no México. No contexto mais amplo, leio notícias de que 2015 baterá o recorde de 2014 como ano mais quente da história (“literalmente território desconhecido”, diz um comentarista, ao compartilhar o gráfico da evolução de temperaturas este ano).

Soubemos também recentemente que a Volkswagen, malandrinha, andou falsificando uns testes de poluição; que o Reino Unido não vai conseguir atingir sua meta de redução de emissões de carbono; que as metas brasileiras “ambiciosas” para reduzir desmatamento, anunciadas por Dilma na ONU em setembro, de ambiciosas não têm nada. Que a China está mais uma vez coberta de poluição.

A boa notícia do ano foi o anúncio de que Obama rejeitou a construção do oleoduto conhecido como Keystone XL, que carregaria petróleo de Alberta, no Canadá, até o golfo do México (pobre coitado…) no Texas. Um ligeiro vento de esperança, mas dado o esforço que movimentos como o 350.org tiveram de despender para conseguir essa vitória, é uma lufada realmente ligeirinha, facilmente engolfada pelo temor com o que há de vir.

O ancinho e nós

Quintus_Horatius_Flaccus

Por essas e outras, não tem como não admirar a fórmula sucinta de Horácio. Dia após dia, estamos tentando expulsar a natureza, com qualquer coisa que faça o papel do tal do ancinho. Por exemplo: como se abrigar desse calor todo? Ora, comprando um ar-condicionado. Mas se a temperatura fresquinha é conseguida aqui dentro graça a um dispêndio brutal de energia, que vai aquecer o resto do mundo lá fora, cedo ou tarde o abafado volta. Talvez não diretamente aqui, mas em algum lugar.

E se está quente na rua, é melhor ir para qualquer lugar de carro – com o ar condicionado ligado, claro, reproduzindo mais uma vez o problema, em duas frentes: a poluição do motor e o gasto energético da refrigeração. Tudo isso para não falar do consumo de energia elétrica, obtida seja com barragens (que andam com reservatório baixo), seja queimando carvão. E assim por diante, até a irrupção vitoriosa daquela que quisemos expulsar.

Mas é certo que a culpa não é do pobre diabo que ativa o ar-condicionado da sala para aliviar o sofrimento dos filhos. Para evitar esse tipo de leitura culpabilizadora e moralista, tratemos Horácio como o autor de uma enorme metonímia: cada ar-condicionado vale por milhões de aparelhos no mundo; o ancinho é o arquétipo de tudo que já se usou para obter essa magra vitória sobre o mundo natural. Assim sendo, já está evidente para qualquer um com um mínimo de boa vontade que a humanidade foi, mais do que arrogante, verdadeiramente frívola ao pensar que “com um ancinho” (muitas vezes traduzido como “violentamente”) poderia “expulsar a natureza”, e que ela não voltaria, mais cedo ou mais tarde, “furtim fastidia“.

A observação de Horácio, porém, é só a primeira das respostas possíveis. Ah, sim, diz o poeta, ela volta e volta triunfal: “recurret victrix”. Vitoriosa, vingativa, violenta. Nessa resposta, ela passa por cima de tudo e retoma o que era seu – o que sempre foi seu, talvez. No plano de um poema que compara a vida urbana à campestre, como é o do autor romano, o sentido dessa idéia é que o dia-a-dia de quem tenta se livrar da natureza é ocupado em varrer, lavar, pintar paredes, consertar telhas, podar árvores, eliminar mofo, jogar fora frutas podres, matar ervas daninhas.

A woman wearing a mask walk through a street covered by dense smog in Harbin, northern China, Monday, Oct. 21, 2013. Visibility shrank to less than half a football field and small-particle pollution soared to a record 40 times higher than an international safety standard in one northern Chinese city as the region entered its high-smog season. (AP Photo/Kyodo News) JAPAN OUT, MANDATORY CREDIT

No plano de um mundo ultra-industrial, financeirizado e cego para suas próprias condições de existência, como é o nosso, a interpretação é bem mais sombria: quanto mais labutamos, quanto mais esforço fazemos, quanto mais desenvolvimento para mandar a natureza para longe, mais irresistível ela vai ser quando voltar, engolindo a todos nós. Quanto mais barragens de rejeitos tóxicos, mais enxurradas. Quanto mais usinas atômicas à beira-mar, mais Fukushima. Quanto mais for viável economicamente arrancar o petróleo do leito marítimo, mais desastres no Golfo do México. Quanto mais for necessário expandir a fronteira agrícola para garantir a expansão de cadeias de junk food, mais queimadas fora de controle na Indonésia.

A imagem que temos ordinariamente da mudança climática ilustra bem essa perspectiva apocalíptica, com sua justeza e também seus exageros. Os mares subirão, as cidades serão engolidas, as florestas se tornarão desertos, as lavouras morrerão, metano jorrará (ou já está jorrando) de enormes crateras na Sibéria. Cada um por si e Deus contra todos. A natureza no papel de Conde de Monte Cristo, eliminando pouco a pouco e fazendo sofrer aqueles que a traíram. Quem é que não está cansado de ler alertas assim?

Mas poderíamos explorar uma outra resposta para a mesma fórmula da natureza que tentamos expulsar só para vê-la retornar vitoriosa. Nesta resposta, o problema de querer enxotar a natureza não está simplesmente em sua arrogância frívola, mas acima de tudo em seu caráter de cabo a rabo ilusório. Assim, os desequilíbrios naturais provocados pelo modo de atuação do ser humano “sobre” a natureza – mas na verdade “na” natureza – se situariam não na interação alienada e extravagante entre um dentro (da casa, da cultura, da civilização, da economia, da humanidade) e um fora (a natureza que foi expulsa, as “externalidades negativas” geradas pela atividade humana, econômica em particular), mas por todos os lados, ou seja, na manutenção da própria idéia de uma “casa” que estaria isolada da natureza; na contemplação de uma natureza que está para lá das paredes; no gesto ele mesmo pelo qual cremos estar (violentamente) expulsando a natureza; por fim, no próprio instrumento que usamos para realizar essa pretensa expulsão: o “ancinho”.

Pretendo, daqui para baixo, demarcar as diferenças entre essas duas respostas possíveis, essas duas leituras rivais dos versos de Horácio tal como transplantados, sem considerações sobre o contexto, para nossa realidade. São diferenças cruciais, bem entendido. Como veremos, todos os termos que aparecem nos versos podem ser lidos diferentemente e, com eles, a maneira como nos relacionamos com essa realidade que nos toca – tão urgente, cada vez mais urgente. E com conseqüências profundas, ainda por cima.

Continua na PARTE 2

Leia também a Parte 3

Leia também a Parte 4

Leia também a Parte 5

Leia também a Parte 6

morte dos bois

Notas

1. Pouco antes desses dois versos, há estes outros dois também lindos: “purior in vicis aqua tendit rumpere plumbum / quam quae per pronum trepidat cum murmure rivum?”, que costuma ser traduzido assim: “A água que nas ruas da cidade luta para estourar os canos de chumbo / é mais pura do que aquela que trepida e murmura por um rio?”

Padrão
barbárie, calor, capitalismo, crime

Da série citações: cientistas perante o inconcebível

glaciers

“Há mais de trinta anos, os cientistas do clima têm vivido uma existência surreal. Um volume de estudos vasto e em constante expansão aponta que o aquecimento global tem seguido a evolução da presença de gases de efeito estufa exatamente como seus modelos previam. Os indícios físicos se tornam a cada ano mais dramáticos: o recuo de florestas, os animais que migram para o norte, as geleiras que derretem, as temporadas de incêndios florestais que se estendem, maiores taxas de secas, inundações e tempestades – cinco vezes a mais nos anos 2000 do que nos anos 1970. (…) A mudança climática induzida pelo ser humano é real – as temperaturas nos EUA subiram entre 1,3 e 1,9 graus [Farenheit, suponho], principalmente desde 1970 – e a mudança já afeta a agricultura, a água, a saúde humana, a energia, o transporte, florestas e ecossistemas. Mas isso não é o pior. As temperaturas do ar no Ártico estão subindo duas vezes mais rápido do que no resto do mundo – um estudo da marinha dos EUA diz que o Ártico pode perder por inteiro sua cobertura de gelo do verão no ano que vem, 84 anos antes do que previam os modelos – e os indícios de pouco mais de um ano atrás sugerem que a cobertura de gelo do Oeste da Antártica está condenada, o que vai acrescentar entre 20 e 25 pés ao nível do mar. Os 100 milhões de pessoas que vivem em Bangladesh precisarão de outro lugar para viver e cidades costeiras em todo o mundo serão forçadas a se deslocar, uma tarefa dificultada pela crise econômica e a fome que virão – com o interior dos continentes secando, (…) um bilhão de pessoas vão se ver passando fome dentro de 20 ou 30 anos. Ainda assim, apesar de alguns desenvolvimentos na área de energia renovável e algumas conquistas da liderança internacional, as emissões de carbono continuam aumentando regularmente, e os próprios cientistas (…) foram alvo de ataques incansáveis e bem organizados que incluíram ameaças de morte, convocações por um Congresso hostil, tentativas de conseguir suas demissões, assédio legal (…), tudo amplificado por uma propaganda incansável financiada descaradamente pelas empresas de combustíveis fósseis. Pouco antes de uma reunião de cúpula decisiva em Copenhagen em 2009, milhares de seus e-mails foram hackeados em uma operação de espionagem sofisticada que nunca foi esclarecida – embora as investigações oficiais da polícia não tenham revelado nada, uma análise de especialistas técnico-legais revelou o caminho dos ataques a partir de servidores na Turquia e em dois dois maiores produtores de petróleo do mundo, a Arábia Saudita e a Rússia.”

A citação aí acima foi retirada de uma matéria da Esquire (sugiro fortemente a leitura). Quem recomendou foi a Camila Pavanelli, que até há pouco publicava o indispensável Boletim da Falta d’Água. (Obrigado, Camila.) A extensa reportagem trata de cientistas que, vendo em primeira mão os dados sobre o desastre ambiental, ou seja, o colapso do planeta na medida em que é capaz de suportar a existência dos humanos, entram em desespero. Alguns buscam alternativas para a vida depois do colapso final, outros simplesmente abandonam o trabalho, outros entram em depressão profunda. Uma das cientistas, inclusive, começa a estudar psicologia para tentar entender como é possível que a humanidade ainda não tenha se dado conta de que é preciso mudar radicalmente de vida – caso contrário estaremos todos perdidos.

Foi esta última personagem que fez Camila lembrar-se de um texto que escrevi em janeiro, e que também trata desse estado de negação, esse verdadeiro bloqueio psíquico, que nos faz continuar vivendo como se… bom, como se houvesse amanhã, para colocar de um jeito meio musical. Escrevi em janeiro, quando São Paulo estava estorricando, faltava água, e o pessoal continuava preocupado com o PIB ou com o fim-de-semana em Bertioga. Pois bem, agora é agosto; as pessoas estão preocupadas com o PIB, o campeonato brasileiro, o impeachment e o fim-de-semana em Bertioga. E São Paulo está estorricando.

Tudo isso porque, repito: o colapso é algo que conseguimos dizer, mas não exatamente pensar. É O Inconcebível.

Bem; talvez esteja na hora de conceber.

Padrão
barbárie, Brasil, costumes, crime, doença, escândalo

Faits divers à brasileira

fait divers

I

Saiu na semana passada a notícia de que morreu o prefeito de um determinado município de Minas Gerais. Seu avião caiu enquanto ele sobrevoava um acampamento do MST, que ocupava uma fazenda de sua propriedade.

Os acampados dizem que esse e um outro avião davam rasantes sobre os barracos para assustar as famílias. Também segundo os sem-terra, coquetéis molotov eram jogados dos aviões. Um bombardeio, em suma.

O advogado do prefeito morto disse à imprensa que tinha apenas pedido que o falecido mandatário fotografasse a área invadida, para poder entrar com um pedido de reintegração de posse.

Seja um bombardeio, seja um reconhecimento aéreo, o motivo para o próprio prefeito estar lá, e não um fotógrafo contratado – ou capangas, seria o caso de dizer, em se tratando de um bombardeio – é coisa que não se explica racionalmente. Seria preciso recorrer a uma explicação afetiva: o gozo do sadismo, talvez.

Não se sabia, da última vez que li a notícia, se o avião foi abatido ou caiu sozinho. Já o outro piloto, que não nasceu ontem, se mandou e não se falou mais nele. Pelo menos na imprensa.

II

Em 30 de abril de 1981, uma bomba explodiu no colo do sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, dentro de um automóvel de marca Puma, no estacionamento do Riocentro, que naquela época ficava longe pra burro de tudo.

Dentro do centro de convenções, um espetáculo que reunia 18 mil pessoas comemorava o Dia do Trabalho. No horário da explosão, Elba Ramalho estava no palco.

A bomba tinha sido preparada para explodir no meio do show, matando sabe-se lá quantos espectadores. O objetivo dos conspiradores, como tantas outras vezes na história, era colocar a culpa em movimentos contrários à ditadura (ou, simplesmente, comunistas). Com isso, achavam que podiam barrar a redemocratização.

Não deu certo e o único cadáver nessa aventura acabou sendo o de um dos criminosos. Só em 2014 a Justiça aceitou a denúncia contra os demais militares envolvidos. Até então, o Judiciário considerava que esse crime entrava no âmbito da lei de anistia, de 1979.

III

O artista plástico Cildo Meirelles relata, em documentário sobre sua obra, a história do seu pai, que foi afastado do Serviço de Proteção ao Índio depois de fazer uma denúncia grave: na região conhecida como Bico do Papagaio, no norte do que hoje é Tocantins, fazendeiros massacravam índios lançando mão de algo que pode perfeitamente ser considerado guerra biológica.

Roupas contaminadas com o vírus da gripe eram atiradas de aviões sobre aldeias. Os índios, ainda não contactados pelo “homem branco”, não tinham anticorpos contra a gripe, essa doença de origem europeia.

O raciocínio lembra de maneira perturbadora o do prefeito mineiro morto na semana passada. Mas naquela ocasião, até onde sei, não caiu nenhuma aeronave. Com isso, morreram algo como 40 mil índios. Dos sobreviventes, diz Cildo, muitos tiveram um colapso mental diante do extermínio de toda a sua aldeia.

O pai do artista conseguiu levar o caso à Justiça. Mas só: o corrompido Serviço de Proteção ao Índio tinha mais interesse em proteger os criminosos e relegou seu incômodo funcionário a funções burocráticas. Algo que não lhe permitisse atrapalhar.

IV

Em 1968, antes mesmo do AI-5, o brigadeiro João Paulo Burnier arquitetou um plano mirabolante para tornar o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) uma organização terrorista no sentido mais literal possível. A idéia de Burnier era usar pára-quedistas para explodir diversas bombas no Rio de Janeiro, a mais destruidora delas Gasômetro de São Cristóvão, às 18h, matando centenas de milhares de pessoas, de uma vez só.

O objetivo – adivinhe! – era acusar as oposições à ditadura, comunistas em particular, claro, e produzir um furor nacionalista sanguinolento como o que gangrenou a Indonésia poucos anos antes.

O plano só não foi adiante porque o pára-quedista Sérgio Macaco se recusou a cumprir a missão e, ainda por cima, entregou tudo à imprensa: o plano foi publicado no hoje extinto jornal Correio da Manhã e, em conseqüência, abortado.

O que resultou dessa aventura genocida? Uma sindicância militar: Burnier, nosso aspirante frustrado a Bin Laden, foi inocentado. Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, que salvou a vida de uma multidão de cariocas, foi expulso da corporação.

V

bolso_deppropriopunho

Em 1987, uma matéria da revista Veja – que, os mais jovens talvez não acreditem, naquela época era considerada uma fonte digna de informação – dá conta de que um capitão do exército de nome Jair planejava explodir algumas bombas, uma delas numa adutora do Guandu, que abastece o Rio de Janeiro.

O jovem e irresponsável Jair, prossegue a reportagem, pretendia abalar a confiança no ministro do Exército indicado por Sarney. Tudo por causa de disputas em torno do soldo de oficiais. Um croqui da bomba chegou a ser desenhado pelo capitão e publicado pela revista.

Mesmo assim, com evidências feitas pelo próprio punho do conspirador, o episódio de terrorismo planejado não impediu o militar de encetar uma notória carreira política, arrastando consigo boa parte de sua família.

Como sabemos, o tal de Jair não amadureceu muito de lá para cá.

VI

Em 2009, foi premiado no festival de Gramado (e em muitos outros) o filme Corumbiara, de Vincent Carelli. O filme conta a história do “outro” massacre de Corumbiara. Sobre o massacre de sem-terra na mesma região de Rondônia, ocorrido em 1995 e mais conhecido, o jornalista João Peres acaba de lançar um livro.

O massacre do filme de Carelli ocorreu dez anos antes do caso do livro de Peres. Um completa 20 anos, o outro completa 30. Pelo visto, os massacres no Brasil são tantos que os nomes já começam a se esgotar.

Em 1985, uma aldeia inteira de índios de etnia desconhecida foi varrida do mapa por fazendeiros locais, que ali preferiam ver bois a pessoas. Vinte anos depois, os indigenistas conseguem voltar à área e encontram vestígios do crime. Jagunços e policiais tentam bloquear o trabalho – defendendo criminosos, mais uma vez. A população tem medo de falar.

Com a passagem do tempo, é impossível saber quantas pessoas foram assassinadas em nome do latifúndio.

E cito este caso apenas porque ele é pontual: seria exaustivo e não acrescentaria nada ao argumento listar os abusos cometidos quotidianamente Brasil afora contra populações autóctones.

VII

A semana passada também conteve uma, digamos assim, efeméride. Completaram-se dois anos desde que policiais da UPP da Rocinha, no Rio de Janeiro (mais de 20 policiais) seqüestraram, torturaram e assassinaram o auxiliar de pedreiro Amarildo Dias de Souza. O cadáver desapareceu e provavelmente nunca será encontrado.

Acho que quem leu até aqui se lembra bem da fórmula “Cadê o Amarildo”, que marcou a esperança de que esse tipo de crueldade, sadismo e barbaridade oficial, em nome da “boa sociedade”, fosse erradicado e superado no Brasil. Esperança frustrada, mais uma vez.

Mas esse é apenas o caso mais emblemático. No começo deste ano, policiais militares da Bahia mataram 12 jovens, a grande maioria sem passagem na polícia. Foi a chamada “chacina do Cabula”. A primeira reação do governador, o petista Rui Costa, foi comparar a ação da polícia a um gol.

Só a mobilização da população local levou à mudança da narrativa.

Os casos semelhantes são muitos e não vou me alongar.

* * *

PS: Na verdade, vou me alongar, sim. Na primeira versão deste texto, onde deveria estar “chacina do Cabula”, escrevi por descuido “chacina da Chatuba”. Mas não seja por isso: em 2012, houve uma chacina na Chatuba, em Mesquita, Baixada Fluminense. Seis jovens mortos por traficantes.

Padrão
alemanha, barbárie, capitalismo, centro, cidade, costumes, crime, direita, economia, eleições, Ensaio, esquerda, Filosofia, frança, greve, guerra, história, hitler, madrid, manifestação, modernidade, opinião, passado, Politica, praça, reflexão, Sociedade

A aposta de Varoufakis

syntagma 2

Uma frase de Yanis Varoufakis grudou na minha cabeça logo no começo do ano, quando o Syriza venceu as eleições e o economista-motoqueiro se tornou ministro. Com o tom confiante que lhe é peculiar e uma linha de raciocínio que denuncia sua formação em teoria dos jogos, ele assegurou que, dentro de alguns meses, um acordo seria alcançado com a troika. Um acordo muito melhor do que o que estava na mesa, bem entendido – e obviamente infinitamente mais favorável aos gregos que o resultado final que agora conhecemos.

Como ele tinha tanta certeza? Os negociadores, dizia Varoufakis, estavam plenamente conscientes de que, se esse acordo não fosse alcançado, o governo do Syriza na Grécia cairia. E o próximo grupo – digamos assim – heterodoxo com que os credores europeus teriam que se sentar para negociar seria o Front National francês. É evidente que a democrática Europa não gostaria de correr o risco de ter um partido proto-fascista no poder de um de seus principais países, não? Um partido ultra-nacionalista, xenofóbico e, para horror da boa sociedade, ferrenhamente eurocético!

Essa declaração ficou ruminando na minha cabeça porque, desde o início, me pareceu um pouco ingênua. Quem garante a Varoufakis que essa abstrata entidade que (não) atende pelo nome de “troika” – e que agora tem sido chamada de “as instituições” – está mais disposta a aceitar um consórcio de grupos de esquerda nominalmente radical, mas na prática bastante moderado, do que um agrupamento de gente proto-fascista? O que a história tem a nos dizer sobre isso? Já adianto: o oposto. Com efeito, entrevistado pela revista New Statesman, Varoufakis revelou seu assombro com a despreocupação da aristocracia continental quanto à radicalização do ambiente político. Mas volto ao assunto mais abaixo. Continuar lendo

Padrão