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A barbárie se acelera?

Chegamos a meados de 2022 e parece que já não é mais a cada poucos meses que somos confrontados com um novo episódio de barbárie em algum canto do Brasil – agora, poucas semanas separam o anúncio de um massacre no Rio, uma câmara de gás em Sergipe, um assassinato brutal na Amazônia ou no Cerrado, para citar só os mais midiatizados. São todos acontecimentos hediondos, à primeira vista sem conexão direta entre si, mas temos a impressão de que estão mais frequentes.

Viramos as páginas dos jornais – quem ainda faz isso – para a seção nacional ou de política e damos com um noticiário de outra natureza, mas igualmente perturbador. Ou melhor, igualmente bárbaro: a diferença é que o sangue não salta diretamente das páginas. Uma decisão como a do rol taxativo no STJ; a pressão dos militares sobre o processo eleitoral; os bilhões canalizados pelo orçamento secreto; os milhões gastos por municípios com concertos misturados a propaganda; a proposta, ou ameaça, de um estado de calamidade que permitiria desviar ainda mais recursos para fins eleitoreiros, e por aí vai. Desta vez, estamos falando de degradação institucional, mas a sensação é a mesma: o processo está se intensificando ou acelerando.

O que dizer desse sentimento de aceleração? Os golpes estão mesmo cada vez mais frequentes ou seria apenas um reflexo de nossa ansiedade com a aproximação de um período já normalmente tenso, como é o processo eleitoral? Ou ainda: se os episódios de barbárie e degradação institucional estiverem mesmo se precipitando, é justo imaginar que exista alguma coordenação entre eles, proposital ou involuntária? Se houver, realmente, algum mecanismo pelo qual uma causa comum leva à sucessão desabalada de iniciativas destruidoras, ele pode ser identificado?

Coloquei as perguntas nessa ordem porque uma das características do conflito assimétrico e informal, majoritariamente cibernético, que caracteriza nosso tempo é justamente torná-las quase irrespondíveis. Mesmo assim, creio que, se atravessarmos esse “irrespondível” e a confusão que o acompanha, podemos identificar um movimento que talvez seja proteiforme, mas é coeso. Lamento dizer, o que parece estar atrás da cortina é aterrador.

Chegamos a meados de 2022 e tudo indica que está em curso uma iniciativa de “guerra total” quase – veja bem, quase – espontânea, e por isso mesmo ainda mais potencialmente destruidora. Mas antes de começar qualquer tentativa de diagnóstico, é preciso recuar alguns passos e buscar um olhar um pouco mais abstrato, para que o cenário de fundo esteja minimamente acessível. Seja paciente.

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Começado pela última questão: a coordenação e a causa comum a todos esses episódios é indemonstrável, porque é desnecessária. Ou melhor, o que é desnecessário é um centro inspirador ou decisório único. Basta que exista alguma modalidade de comunicação – que pode ser um único sistema ou a conjunção de vários – capaz de alinhar o desejo de realizar determinada ação com a capacidade de levá-la a cabo. A única coisa indispensável para conseguir que algo se opere, tenha efeitos, é que os agentes mobilizados na ponta – digamos assim, os “terminais” ou “receptores” – obedeçam a motivações mais ou menos coerentes – ou seja, coerentes o bastante. Em outras palavras, não são as ações que precisam ser coordenadas, mas as motivações; aquilo que, cá e lá, dispara uma ação.

Ora, é precisamente essa questão comunicacional que conduz ao irrespondível das primeiras perguntas. Se ficamos ansiosos ao ser confrontados com a repetida barbárie, em sua versão sanguinolenta e em sua versão institucional, parte da razão é que as mesmas modalidades de comunicação que alinham motivações também semeiam ansiedade. Os mesmos estímulos emitidos constantemente, a mesma cacofonia, que galvaniza as ações de um lado, do outro geram confusão. A avalanche de imagens e mensagens é tanto paralisadora quanto mobilizadora, conforme a predisposição das pessoas espalhadas pelo território – os “terminais”.

Por isso, não faz sentido opor a sensação do horror intensificado e a realidade material que poderia sustentar essa percepção. Essa condição da comunicação reticular, entranhada no tecido social, provoca a impressão de que esses acontecimentos horríveis que testemunhamos podem ser postos em ação, um tanto paradoxalmente, por si próprios. Somos quase conduzidos a dizer que ninguém é responsável, mas, como já não conseguimos nem mesmo afirmar a realidade do complexo de eventos que estamos testemunhando, não chega a ser surpreendente.

Poderíamos contrastar essa nebulosidade, por exemplo, com o que aprendemos no caso Cambridge Analytica, em que agentes muito específicos manipularam indivíduos em um vasto território, com ferramentas discretas e disponibilizadas com essa precisa finalidade. Algo semelhante ocorreu em torno de 2018, com os disparos de mensagens e os robôs que todos conhecemos, a começar por Carluxo. Também dá para fazer um contraste com o episódio da invasão do congresso americano, em 6 de janeiro do ano passado. Também aí havia um centro emissor na figura de Trump, que colocou em movimento seus seguidores a partir da acusação de fraude eleitoral e o slogan, ou grito de guerra, “stop the count”.

Mas mesmo nesses dois casos, o que realmente disparou as atitudes, as ações, até mesmo as crenças – o que poderíamos chamar de sua “causa eficiente” – foi a disposição dos próprios receptores, cultivada ao longo de um extenso período e disponíveis para aquelas mensagens. O caso Cambridge Analytica é mais evidente, porque justamente aqueles com alguma inclinação a se conectar com as mensagens enviadas eram focalizados – e vendidos como alvos.

No caso da extrema-direita brasileira, a radicalização se deu por vias semelhantes, mas não idênticas. Ao inundar os dispositivos com mensagens que tocavam em todos os temores possíveis do brasileiro – raciais, sociais, religiosos, o que for –, era praticamente garantido que uma quantidade suficiente de pessoas seriam capturadas para uma rede de influência que se retroalimenta e se torna cada vez mais coesa.

Em tempo: não estou falando especificamente das tecnologias algorítmicas usadas no disparo de propaganda (explícita ou implícita), embora elas sejam, é claro, um elemento capital do problema. Mas elas se articulam com todo tipo de dispositivo que dissemina opiniões, impressões e convocações: dos púlpitos aos editoriais, das mesas de bar aos seminários, da sala de jantar aos intervalos entre aulas. Quanto mais modulações diferentes um estímulo lograr, melhor ele se embrenha no tecido social e se naturaliza.

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Entre contrastes e semelhanças, o que se passa hoje no Brasil tem suas singularidades, que me parecem determinantes para esclarecer a questão da aceleração do horror, a “guerra total” a que estamos submetidos. Em primeiro lugar, estamos falando de um complexo com ao menos duas dimensões, como já mencionei. De um lado, os atos de barbárie estúpida, espalhados por várias regiões e no quotidiano das pessoas; do outro, a degradação institucional no Congresso, nos tribunais, em determinadas autarquias, no Executivo federal e também nas esferas inferiores – menção desonrosa para as ditas forças de segurança, tanto as forças armadas quanto as polícias.

É preciso olhar um pouco para o cenário em que tudo isso se desenrola, ou seja, o contexto, a massa preparada com fermento para se tornar o bolo de destruição hoje se expandindo tão rápido.

Primeiro ponto: não é difícil remeter a barbárie quotidiana ao discurso funesto que se expandiu assustadoramente no país a partir de 2014, mais ou menos, e que explodiu com a candidatura e eventual vitória do atual ocupante do Planalto, quatro anos mais tarde. A “foice no pescoço da Funai”, o envio de adversários à “ponta da praia”, o “fuzilar a petralhada”, e assim por diante, são sementes que se espalham e, juntando-se a outras emitidas por personagens menos notórios – alguns deles, inclusive, hoje nominalmente de oposição –, criam um terreno de naturalidade para que atos de violência e crueldade emerjam conforme as circunstâncias.

Veja bem: criam o terreno, mas o potencial para a violência e a crueldade estavam disponíveis, já compunham a massa complexa do dia-a-dia brasileiro; caso contrário, não poderiam vingar. O caráter claramente racial de muita dessa violência; a tentativa de acelerar a eliminação dos povos indígenas, e dos biomas em que vivem, para avançar o extrativismo; o elitismo presente em alguns desses crimes; a virada opressiva e aniquiladora de certa religiosidade. Nada disso foi inventado em 2018. Foi, isso sim, realçado, em detrimento de tantas outras características igualmente presentes no quotidiano do país, das formas de solidariedade à disposição em abraçar o outro, o diferente – o que é mais que tolerância e, sim, pode estar em baixa hoje, mas é um traço bastante frequente no brasileiro.

O segundo ponto é um pouco mais difícil de tratar; tentei fazer isso neste texto de 2018. Hoje, já está em plena vista muito do que, naquele momento, ainda tínhamos que tentar demonstrar. É evidente que, ao menos desde meados de 2020, o atual governo só se sustenta porque funciona como uma espécie de mediador, um “buffer” para que forças políticas de dominação local – leia-se centrão – e grupos de interesse encastelados, a começar pelo latifúndio, ampliem seu controle já enorme sobre o Estado e os recursos do país. O que esses grupos identificam como principal inimigo? Muito simplesmente, o conjunto de todos os ganhos trazidos pela redemocratização e os anos seguintes. Ganhos institucionais, como o SUS e o controle sobre as decisões de agentes públicos (e aí se contam desde os tribunais de contas até a LRF, com todos os seus defeitos). Ganhos sociais, como os programas de distribuição de renda, a proteção de terras indígenas, as cotas no ensino superior. E, principalmente, tudo que possa ser um obstáculo a uma economia primária e dependente. Como previsto, vamos sair dessa lamentável experiência com um país ainda mais oligárquico, parasitário e paralisado.

Assim, quando sentimos que algo parece estar se acelerando, trata-se de uma conjunção, uma espécie de aliança informal (às vezes formal) entre os aspectos mais nefastos da nossa realidade social, realçados e coordenados por um sistema de comunicação quase orgânico, e os aspectos mais atrasados – e também nefastos, por que não dizer – da nossa realidade política. Se muitas vezes você pensou que o pior de nós está no poder, é porque está.

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Resta tentar explicar por que estou falando em “guerra total” para me referir à aceleração dos horrores, sanguinolentos e institucionais. Com o risco de estar cometendo uma “reductio ad Hitlerum”, algo ainda mais delicado em se tratando de grupos políticos que evidentemente têm o fascismo como princípio ativo em sua fórmula, acho que não é absurdo enxergar no que está se passando hoje no Brasil a atitude de quem vê o fim, aliás a derrota, se aproximando e, sem poder apagar o rastro de seus crimes, escolhe o caminho inverso: intensificá-los. Nesse caso, é difícil não fazer um paralelo com “der Totale Krieg” (guerra total).

Guardadas as devidas proporções, foi o que se passou a partir de 1943, quando Goebbels fez seu chamado ao “Totaler Krieg”, em discurso no Sportspalast de Berlim. Naquele momento, já era evidente que as chances de vitória do Eixo na guerra eram ínfimas. Duas semanas antes, o exército alemão havia sido humilhado em Stalingrado, a campanha no norte da África estava praticamente perdida, a economia germânica já não tinha condições de fazer frente às demandas do front. A derrota era certa.

Na camada mais superficial de seu infame discurso, Goebbels decretou que o país não aceitaria os fatos e que estava disposto à completa aniquilação, como se ainda houvesse uma vitória no horizonte. Na realidade, o que estava sendo formalizado era um suicídio coletivo: o nazismo exigia da população como um todo um sacrifício, para esticar por um par de anos a sobrevivência de seu grupo criminoso.

Mas este resumo não dá conta de descrever o que se passaria nos anos seguintes, com o arquiteto Albert Speer como ministro dos armamentos: a escravidão dos prisioneiros de guerra (e dos campos de extermínio) foi intensificada, levando à morte por inanição de milhares de trabalhadores forçados; adolescentes foram enviados ao front sem treinamento para missões inviáveis; populações inteiras foram deixadas sem comida; toda matéria prima possível foi desviada para a produção militar. As vítimas se contam aos milhões, não só entre os povos ocupados, mas também entre os próprios alemães. E o mais importante: quanto mais os soviéticos de aproximavam de Berlim, maior era a disposição para a infâmia suicida.

Como eu disse, é preciso “guardar as devidas proporções”. Não estou dizendo que houve no Brasil algo semelhante ao Sportspalastrede. Pelo contrário, sua ausência é o que mais me perturba, porque acredito, sim, que o princípio de radicalização suicida que mobilizou Speer está disseminado, mesmo sem um apelo direto. É por não precisar da convocação explícita à barbárie que o caso brasileiro é ainda mais insidioso. Ao contrário do que ocorria num sistema totalitário como o alemão, não é preciso moldar o conjunto da população para uma ação coordenada, em bloco, comandada a partir de um ponto singular. Basta multiplicar a emissão de estímulos, que se reproduzem de um jeito que parece orgânico; quando chegam na ponta, esses estímulos entram em consonância com motivações e convicções, gerando atos ao mesmo tempo isolados e conectados. E mais: não é preciso arregimentar a todos, como nas massas uniformizadas de Nuremberg. Basta que, cá e lá, a destruição emerja, faça seu dano e perpetue a angústia e a confusão. E o medo.

No plano mais propriamente institucional, a coordenação é um pouco mais explícita, principalmente porque há um evidente núcleo de tratoramento do princípio republicano. Tendo conquistado um poder quase irrefreável e com o Executivo na coleira, o enorme pântano fisiológico do Congresso procura consolidar sua posição e garantir que ela dure além do atual mandato. Os casos das emendas de relator e da execução impositiva, são cristalinos: deixarão qualquer governo futuro à mercê de deputados que controlarão um naco maior do orçamento sem responder a ninguém. O que serviu na origem, ao que parece, para comprar apoio a um governo inepto, torna-se assim um mecanismo de perenização de poderes despóticos. Ao mesmo tempo, pautas caras aos lobbies mais retrógrados avançam com urgência, como a mineração em terra indígena ou o “PL do Veneno”, sem falar em todos os projetos que almejam implodir a educação e a saúde no país.

Resumindo: a intensificação da barbárie, esse “totaler Krieg” a que aparentemente estamos submetidos, responde à urgência que certos grupos de poder provavelmente estão experimentando de obter o tanto de espólio que puderem até a implosão do governo ou do país como um todo – que país consegue aguentar tanta morte, tanta fome, tanta frustração? E se não ficou evidente como a cacofonia dos constantes estímulos se reflete nos avanços de bancadas predatórias, grupos fisiológicos e corporações burocráticas sobre os recursos e as leis do país, eu coloco em palavras: a velocidade de renovação das pautas – no sentido jornalístico e no sentido administrativo – favorece a aprovação das piores medidas, porque a resistência não consegue se organizar. Quantas vezes as oposições não comemoraram a vitória de bloquear uma votação aqui e outra ali, enquanto passavam outras tantas igualmente anti-republicanas?

Talvez o sintoma mais grave e de efeitos mais duradouros da sanha antidemocrática seja a apresentação do documento preparado por três assim chamados “think tanks” ligados aos militares, com um projeto de terra arrasada para o Brasil a ser implementado até 2035. Em que pese o tom delirante de algumas das análises e o teor regressivos das propostas de política pública, é mais um caso em que se consolida como normalidade as forças armadas se apresentarem como partido político, com fundo programático – no caso, “desprogramático” – e, no lugar da “força de lei”, a força de um cano de canhão apontado contra nossas têmporas. A presença do vice-presidente da República no evento de lançamento do tal projeto é, não custa repetir, um acinte. Somado à tentativa de intervir no processo eleitoral, temos aí mais um caso de agressão à sociedade civil – mas até aí, nada de novidade em tempos de bolsonarismo.

Na verdade, neste caso, vale atentar mais para a própria apresentação do documento, a fanfarra em torno dele, associada à insistência em intervir nas eleições, com envio de “sugestões” ao TSE e reclamação de falta de “prestígio”. Do ponto de vista institucional, esse tipo de atitude corresponde às bravatas do próprio presidente, suas repetidas “motociatas”, das quais a mais funesta é essa última, a de Manaus – metrópole da Amazônia sob ataque e da população sem oxigênio. Muito mais do que o conteúdo de qualquer dessas iniciativas, dessas imagens, desses memes, o que conta é o estímulo afetivo, para correligionários e para inimigos. Aos primeiros, o que se diz é: “vocês têm rédea solta!” E aos últimos: “confundam-se! Protestem para cá e para lá! Tremam de medo!”

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Nesse meio-tempo, lemos algo quase todo dia sobre o perigo de que a patota hoje encastelada no Planalto tente um golpe de Estado no sentido clássico, ou quase. O golpe se aproveitaria do questionamento ao resultado das urnas para semear o caos, recorrendo ao extenso apoio nas forças armadas e nas de segurança estaduais, além de grupos civis armados – esses mesmos cujo armamento vira e mexe é encontrado nas mãos de criminosos comuns. A partir dessa situação de descontrole, conforme a expectativa de golpe clássico, o governo teria uma desculpa para fechar o regime.

É uma preocupação legítima, considerando todas as manifestações dessa intenção nos últimos anos, o motim cearense de 2019 e a prévia de sete de setembro do ano passado. Isso para não falar no exemplo americano, a invasão do capitólio em 6 de janeiro, agora sob investigação no Congresso de lá. Mas essa perspectiva de golpe bolsonarista, em geral, deixa de lado um detalhe quase prosaico. Um golpe tramado às claras, à vista de todos, não é bem um golpe; é antes uma ameaça ou uma promessa. Por isso, traz consigo a perspectiva de um acordo, já que alguém ameaçado é colocado diante da possibilidade de escolher entre diferentes caminhos.

Por isso, do ponto de vista deste texto, é mais importante se concentrar no próprio fomento a essa projeção do possível golpe. Uma vez mais, ele serve tanto para estimular a sanha agressiva dos apoiadores quanto para intensificar a confusão e o medo dos opositores. Enquanto houver ameaça de que as eleições sejam meladas, a mensagem está no ar: toda barbárie é aceitável, para não dizer desejável. Há sustentação institucional, há garantias das lideranças políticas. A impunidade é certa. Tudo somado, parece que não é no sentido clássico que estamos diante de um golpe – ou dentro dele; mais parece um extenso período de exceção não declarada, mas sugerida nas entrelinhas e reafirmada a cada episódio de horror impune e sancionado por meias-palavras dos centros de poder.

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Dito isto, é difícil não lançar a pergunta mais incômoda, que, devo confessar, não tenho ideia de como responder. Como agimos, sabendo da radicalização em curso, da guerra total em que o inimigo somos todos nós? Como se comportar no dia-a-dia, como bloquear a barbárie, como escapar da espiral de angústia?

A maior dificuldade, na tentativa de dar uma resposta a essas perguntas, é que o problema comunicacional não é uma via de mão dupla. Para o funcionamento regular dos mecanismos de manutenção de uma certa estabilidade social e institucional, não há nada que corresponda à cacofonia de estímulos, esses que constantemente mobilizam e desmobilizam afetos. A democracia, no sentido formalizado em que a conhecemos, depende, ao contrário, de uma comunicação capaz de produzir sentido e relevância, não entropia e espasmos violentos; opiniões e ideias, e não pavor e ódio. Assim, não adianta ficar procurando estratégias para contrabalançar o bombardeio simbólico com um outro bombardeio, mas de anticorpos.

Já ajudaria bastante se pudéssemos escapar da armadilha que consiste em reagir individualmente, repetidamente, a cada novo episódio, correndo atrás dos estímulos e passando de exasperação a exasperação, de desespero em desespero. Tenha a impressão de que o que de melhor se pode conseguir é que o vínculo estreito e reticular entre esses sucessivos atos horrendos e decisões políticas regressivas seja reconhecido, e que nosso repúdio seja estruturado, voltando-se para o conjunto como um todo. Seria bastante desejável se pudéssemos reinventar os estímulos que poderiam trazer à tona a capacidade de organização coletiva, de solidariedade, daquilo que tem sido chamado de tolerância, palavra talvez um pouco fraca demais para o que realmente é necessário.

Mas falar é fácil. Estamos cientes, em maior ou menor grau, de como todos esses episódios e todas essas iniciativas estão conectados. Constantemente, repetidamente, denunciamos a normalidade, aliás a hegemonia, de uma linguagem regressiva, obscurantista, fascista, no dia-a-dia do Brasil, e associamos esse estado de coisas a personagens que detêm poder e incentivam o avanço da barbárie. Se isso não basta para murchar o estímulo à guerra total, talvez seja apenas a expressão de que esse discurso segue forte no país e essa bomba só possa ser desarmada em um prazo mais longo, para nossa infelicidade.

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O que conduz à última questão: basta derrubar essas figuras funestas para afastar de vez a cacofonia? Bastaria reagrupar uma “coalizão democrática” em torno de um novo governo a partir do ano que vem? (Melhor não perguntar se existe disposição para uma tal coalizão em nossos grupos políticos.)

Dificilmente. Não foi o caso em outros países e não deverá ser aqui. Um dos núcleos do problema é que esse discurso, com um pé no fascismo e outro na tradição colonial, se legitimou suficientemente na sociedade brasileira para se fixar. A cacofonia ainda reverbera, mesmo que seus pólos emissores desapareçam – aliás, não vão desaparecer, só vão perder alguns de seus dispositivos e uma parcela de seus recursos. Ou seja, devemos reconhecer que não vamos retornar tão cedo a uma condição que poderia ser considerada normal. A bem dizer, um olhar um pouco mais detido sugere que já não há mais sentido no termo “normalidade”, se quisermos aplicá-lo ao que vivemos nas décadas de 1990-2000.

Para ficar só naquilo que foi transformado por esses quatro anos de barbárie oficial, há vários problemas já fáceis de identificar. Sabemos que os grupos radicalizados permanecem, seguirão com a mesma radicalidade e alguma forma de coordenação, ainda que os atuais líderes acabem sendo substituídos por outros, talvez até mais sagazes e, portanto, perigosos. O caso do professor de cursinho para agentes rodoviários federais que, filmado, ensinou a improvisar uma câmara de gás, sem o menor constrangimento, é ilustrativo. É preciso um estado muito degradado da mentalidade em um país para que alguém se disponha a falar daquela maneira em público, sendo registrado ou não.

O perigo maior, neste caso, é que se os membros mais ativos desses núcleos se sintam traídos e prejudicados quando o golpe clássico não ocorrer, pelo menos não com intensidade suficiente para sacramentar o triunfo da barbárie. A partir daí, dois caminhos opostos são possíveis, e ambos são perspectivas assustadoras. Eles podem reforçar seus laços, renovando a coordenação fascistizante; ou podem se fragmentar em pequenos grupos violentos, atuando espalhados pelo território e mais presentes no dia-a-dia da sociedade. Com fácil acesso a armas e um ódio dirigido a categorias vulneráveis, não é absurdo esperar o pior, em ambas as hipóteses.

Também devemos nos preocupar, e muito, com a renovação da fantasia característica dos militares – e ao chamar de fantasia não estou querendo dizer que não possa ter impacto real – de que constituem um dos poderes da república, ou melhor, um de seus alicerces. O tal documento dos “think tanks” é, além de uma ameaça (mal e mal) velada a todos nós, um sinal de que essa auto-imagem falsa, perigosa e inconstitucional segue sendo cultivada nos quartéis.

Outro elemento importante é o expressivo apoio ao projeto regressivo e recolonizador no meio empresarial, inclusive depois que se tornou evidente o caráter fraudulento da imagem intelectual e gestora de Paulo Guedes. Olhando nome a nome a lista de empresários que mergulharam com mais gosto no universo do bolsonarismo, encontramos um perfil ligado a setores pouco produtivos, como o comércio de grandes superfícies e a alimentação rápida, ao lado de exportadores de soja e gado. Uma característica que reúne esses nomes é sua pouca dependência da estabilidade econômica, social e política do país. É diferente, por exemplo, do que foram as lideranças do setor privado no passado (pense em Roberto Simonsen, Horácio Lafer etc.). E também é diferente de quem investe em mercados altamente tecnológicos, como os setores ligados à chamada “bioeconomia” – por mais questionável que o conceito possa ser, do ponto de vista ecológico. Para esses empresários da baixa produtividade, embora possam perder receitas com a instalação do caos e da pobreza, suas empresas são capazes de absorver o choque, seja por meio de demissão e achatamento de salários, seja batendo na porta de um governo amigo em busca de ajudas diretas. Diferentemente de grupos industriais, ou mesmo de serviços, da fronteira tecnológica, não precisam se preocupar com a concorrência de companhias que atuam em ambientes de muito maior segurança institucional e são pouco afetados pelas variações exageradas do câmbio.

Resumindo: o enraizamento da mentalidade autoritária e obscurantista no país é duplo: está tanto no dia-a-dia dos conflitos sociais quanto no âmbito daqueles que de fato controlam o país – isto é, sua economia, sua política, sua comunicação. Duplo, mas, é claro, articulado, já que um lado se alimenta do outro e os “donos do poder”, como diria Raymundo Faoro, têm todo interesse em fomentar uma sociedade atomizada, conflituosa e desesperançada. Livrar-se dessa mentalidade vai ser tarefa difícil e para muitas décadas.

Para terminar em tom um pouco menos funéreo, quero repetir o que disse antes, e que em condições normais nem precisaria ser dito: o Brasil não é, de modo algum, “essencialmente” autoritário e obscurantista, até porque essas “essências nacionais” são tolice, coisa digna dos Le Pen deste mundo, e nada mais. O autoritarismo e a violência que reconhecemos no nosso dia-a-dia se desenvolveram com o passar das gerações; são reforçados sempre que se reproduzem as estruturas de dominação e exploração herdadas do período colonial e transformadas a cada etapa histórica. Mas em outros planos a mesma sucessão de gerações produziu muito de criativo, gregário, solidário, nos interstícios dessas estruturas. Não é à toa que os estrangeiros nos veem como um povo tolerante e acolhedor.

Não faltam organizações, grupos e indivíduos que reafirmam e se alimentam desse Brasil solidário e cooperativo; somos, sim, perfeitamente capazes de atrofiar a abjeta e obscura aliança do fisiologismo com a barbárie, do fascismo com a predação; temos mais do que o necessário para articular um sistema sólido de cooperação e democracia. O terremoto político do último decênio teve o efeito lamentável de desagregar muito dessa trama de organizações que constituem a sociedade civil, abrindo o caminho para a avalanche de cacofonia e ruído que nos colocou na atual situação catastrófica e potencialmente suicida. Mas desagregação não é desaparecimento. Cá e lá, surgem novos cristais e novas coalizões. Inclusive, alianças até ontem improváveis. São sinais de caminhos que se abrem.

As ilustrações são desenhos de Käthe Kollwitz
Padrão
arte, barbárie, Brasil, capitalismo, direita, economia, Ensaio, esquerda, história, modernidade, Politica, prosa, reflexão, Sociedade, trabalho

Do empobrecimento: um esboço

Não é fácil traduzir em palavras o quanto é ruim a situação do Brasil. Ainda mais difícil é admitir algo que talvez saibamos todos, no íntimo: a trajetória de longo prazo é catastrófica em várias frentes. Esse desconforto poderia explicar por que estamos tão presos em análises de conjuntura, formando um ciclo amargo de interpretações dos nossos desastres de curto prazo. Sim, a gravidade do momento e o efetivo encurtamento dos nossos prazos justificam esses esforços. Mas todas essas tentativas vão ficar pelo caminho até que aceitemos a necessidade de tomar um certo recuo; o que determina o nosso naufrágio, infelizmente, é uma tempestade prolongada.

Não é só por colocar na presidência um Bolsonaro que há algo de errado com o Brasil. Todo corpo social tem energias subterrâneas que carregam um forte potencial auto-destrutivo, se não houver dispositivos que as controlem e impeçam de explodir (ironicamente, nas máquinas a vapor o nome desse dispositivo, em inglês, é “governor”). Quando acontece uma explosão dessas, a pergunta não é “como isso foi acontecer?”, nem “vai durar?”, mas: “que forças eram essas que não queríamos ver?”, ou “o que deu errado com os dispositivos?”. E se sonhamos em reconstruir o sistema, mas com um funcionamento melhor e mais seguro, então temos que situar o fracasso segundo o conjunto das circunstâncias que levaram a ele, para poder estabelecer parâmetros novos e melhores.

Trocando em miúdos, o problema não está tanto em entender por que (ou como) o Brasil acabou elegendo alguém como Bolsonaro. É bem provável, infelizmente, que a resposta seja amargamente prosaica: foi porque todas as demais dinâmicas se esgotaram. E alguém poderia perguntar: mas ele vai se consolidar no poder? Em última análise, tanto faz. Isto é, a questão não está em saber se ele vai falhar tanto assim, a ponto de perder por conta própria em 2022. A questão é que nada indica que venha em seu lugar algo muito melhor.

É enganoso crer, por exemplo, que a emergência de uma figura de centro-direita (mais provável) ou centro-esquerda (menos provável), com um certo grau de respeitabilidade – e a esta altura, por contraste, já estamos achando qualquer pangaré, qualquer picareta, suficientemente respeitável – vá estabilizar o sistema político e trazer dinamismo para a sociedade e sua economia. Não vai, porque não há condições objetivas para tal no horizonte, a não ser que as circunstâncias mudem radicalmente (com o mercado de commodities, por exemplo). Na tendência corrente, mesmo que consigamos algo melhor para o próximo ciclo eleitoral, em pouco tempo sofreríamos uma nova derrocada – na eleição seguinte ou até antes.

Diante dessa perspectiva nada animadora, vale mais se concentrar sobre uma outra série de questões: o que significa dizer que todas as demais dinâmicas se esgotaram? Em que consiste esse esgotamento, que dinâmicas são essas, qual foi a causa da perda de dinamismo? Naturalmente, em se tratando de política e, mais especificamente, de política eleitoral, a primeira camada do problema está na incapacidade das demais forças, supostamente mais organizadas e estabelecidas, para responder a uma situação de crise prolongada. Nessa primeira camada, o que aparece, de cara, é que as esquerdas se perderam em disputas internas, cálculos de sobrevivência e pautas esfaceladas. As direitas, por sua vez, ou bem escorregaram para uma situação em que se tornaram linhas auxiliares desse nosso neofascismo de pernas tortas, ou bem reduziram seu discurso a um economicismo pretensamente libertário – ou, no mais das vezes, fizeram ambas as coisas.

Mas também aqui é preciso continuar cavando, porque a capacidade de organização e proposição dos partidos não surge por geração espontânea, mas se constrói a partir dos potenciais que vêm da conjuntura, da sociedade e, claro, das circunstâncias históricas.

1 – Um exercício: quatro tendências

Creio que muitos compartilham comigo a sensação de que o que estamos atravessando, e que Bolsonaro vem acelerar (para muitos, ele é causa, mas discordo), é não só uma decadência (termo que tenho ouvido bastante), mas principalmente um processo de empobrecimento. Sem querer soar cafona, a manifestação mais evidente é o empobrecimento espiritual de um país cujos representantes máximos são aproveitadores vulgares, incultos e grosseiros, sem a menor centelha de carisma, dinamismo ou visão.

Mas o que gostaria de tentar mostrar é que já estávamos empobrecendo quando chegamos a Bolsonaro e é provavelmente por causa do empobrecimento que as portas se abriram para ele e sua turma. Vou tentar defender essa ideia por meio de um exercício compartilhado com você que está lendo. Vamos pensar historicamente; o que o Brasil tem ou já teve como fonte de riqueza? E mais: o que o país tem como fonte de riqueza em potencial? Estou falando de riquezas de qualquer tipo. Pode ser renda nacional, produção cultural, bem-estar, “felicidade bruta”, prestígio, orgulho. Pode até ser uma mistura disso tudo.

Matutando a respeito, cheguei a quatro itens, definidos de modo bastante amplo. São eles:

1) No último século, o Brasil chegou a ter uma economia industrial razoavelmente avançada, competitiva em diversos setores e que integrava quase a totalidade das cadeias produtivas. Vale lembrar que este exercício de pensamento não é uma apologia. É possível ter críticas muito corretas à estratégia da substituição de importações, bem como ao protecionismo, aos subsídios, à relação promíscua que empresários industriais falidos e ineficientes mantiveram com o Estado, sobretudo na fase final da ditadura. É claro que havia insuficiências graves, tanto é que o edifício ruiu ao primeiro vento mais forte.

Mas devemos reconhecer que a manufatura chegou a estar em uma situação em que, com uma abertura mais bem planejada, investimentos em pesquisa e qualificação do pessoal, poderia dar um salto de competitividade global. Com indústria de base, bens de capital, bens de consumo duráveis e não duráveis, alguns com alto teor tecnológico para a época, como carros (a Gurgel chegou a fabricar um veículo elétrico, por sinal) e aviões, não era absurdo imaginar que subíssemos mais algumas etapas na escala da complexidade econômica.

Sem dúvida, perder a revolução tecnológica dos anos 80 foi um golpe e tanto. Os juros de Volcker e a crise da dívida nos pegaram de jeito, como amplamente documentado; a largueza de Delfim e dos PNDs certamente não ajudou. A renúncia a fazer as reformas de base, tampouco, já que a estrutura fundiária se manteve intocada e o impulso para universalizar a educação (e a cultura!) foi frustrado.

Mas deixemos as mazelas para depois. Por enquanto, só quero elencar os tais motivos de orgulho e fontes de riqueza. Dos problemas, podemos tratar depois.

2) Pode não parecer tão importante assim, mas o Itamaraty tem que entrar nessa lista. O Brasil desenvolveu ainda no período do Império uma diplomacia competente e profissional, que certamente trouxe benefícios consideráveis. O tamanho do território, com a ausência quase absoluta de conflitos de fronteira, é um exemplo, e o devemos sobretudo ao Barão de Rio Branco. A participação de Ruy Barbosa na 2a Conferência de Haia (1907) é uma fonte duradoura de prestígio. A atuação na OMC e outros foros globais não seria possível sem um quadro de profissionais qualificados. As políticas de aproximação com os vizinhos foram sempre um trampolim para a participação em tomadas de decisão mais amplas, na condição de liderança regional.

Se o prestígio diplomático não parece ser uma “fonte de riqueza” importante, basta voltar os olhos para a França, que manteve uma relevância no concerto de nações da Europa, após Waterloo, absolutamente desproporcional a seu poderio militar. Parabéns a Talleyrand e ao Quai d’Orsay. Ou mesmo a Alemanha, já que a possibilidade de reunificação do país foi inaugurada pelos esforços de Willy Brandt, contra o desejo de muitos compatriotas, para normalizar as relações com o Leste. O movimento incluiu um gesto, na época, polêmico (acredite se quiser): um pedido de perdão pelo Holocausto que incluiu prostrar-se de joelhos perante o memorial às vítimas, em Varsóvia.

Quanto a nós, com todas as mudanças de regime, o Brasil conseguiu manter razoavelmente intactos seus princípios de política externa, da autonomia das nações à não-intervenção – vale lembrar que um dos principais pontos de ruptura entre Kennedy e Jango foi a recusa do Brasil em participar da intervenção em Cuba. Até pouco atrás (digamos, dezembro de 2018), este gigante sul-americano era considerado confiável no concerto das nações.

Chega a ser engraçado que um porta-voz israelense (Yigal Palmor) tenha se referido ao Brasil como “anão diplomático” em 2014. Na verdade, a atuação diplomática do Brasil sempre foi desproporcional a seu ínfimo peso geopolítico e militar. O Brasil seria melhor descrito como um anão geopolítico, mas com músculo diplomático hipertrofiado.

Assim como no caso da indústria, também é possível apontar falhas e limitações, é claro. Como tanta coisa no país, a diplomacia, com seus altos salários e o prestígio que carregava, foi sempre uma instituição elitista. (Vale registrar que, nas últimas décadas, houve alguns esforços em direção contrária.) Pode-se argumentar que demorou muito a se preocupar em apresentar ao mundo um rosto que correspondesse ao país real. Consequentemente, seguiria o argumento, o Itamaraty serviu não só para perpetuar uma sociedade excludente, como também para favorecer decisões no plano internacional que reproduziam estruturas hierárquicas do mundo tal como era.

Seria um argumento válido, mas, outra vez, minha pequena lista tem outro propósito.

3) Pode ser um pouco esquemática demais a divisão entre “soft power” e “hard power” (Wall Street é soft ou hard?), mas serve para designar um dos principais ativos do país, principalmente porque é muito amplo e ajuda a manter minha lista curtinha. Aliás, “soft” é bem o termo para um país que atraía simpatia mundo afora por ser considerado (com ou sem razão) pacífico e alegre. Por não ter guerras, não ser agressivo na política externa, receber bem os turistas e por aí vai.

Mas é claro que não era só isso. “Soft power” não é só pacifismo. É também cultura, arte, comportamento pessoal. Houve, por exemplo, um tempo em que o mundo todo queria ver Pelé jogar. Seja com o samba, seja com a bossa nova, a cultura brasileira era ao mesmo tempo admirada e estimada. Até mesmo a construção de Brasília, que me parece um grave erro estratégico, serviu pelo menos para colocar o Brasil no mapa.

Jovens de todas as partes, de Johannesburgo a Hebrom, de Bobigny a Guadalajara, vestem a camisa da seleção brasileira até hoje, não só por causa de Rivellino, Romário e Ronaldo (para fazer uma aliteração geracional), mas também porque a magia canarinho representava o triunfo de um país pobre, miscigenado e periférico que vencia, cativava e acolhia. Sim, houve um tempo em que simpatizavam conosco. Talvez o mundo tenha acreditado demais (e nós também) no mito de exaltação da mistura de raças, até mesmo na “democracia racial” de Gilberto Freyre. Ainda assim, era um retrato inspirador que chegava às pessoas e lhes dava algo da ordem da esperança. Será que teriam consumido nossas novelas nos confins da Rússia, Grécia, Turquia, se já não tivessem uma simpatia pelo Brasil? Voltando ao tema da diplomacia, se foi possível em algum momento que o Brasil liderasse um movimento de aproximação estratégica do mundo subdesenvolvido (Sul-Sul), isto se deve em boa medida à imagem de país acolhedor, pacífico e ao mesmo tempo ambicioso.

Procuro resistir à tentação de argumentar um pouco mais por este ponto, que parece menos relevante e talvez menos convincente. Torno a dizer que essa imagem tão gentil do país não era um retrato lá muito fiel, já que esta sempre foi uma terra de exploração, genocídio, mandonismo, jagunçagem, tortura. Ainda assim, consolidou-se essa imagem, que algo de verdadeiro tem (talvez porque o olhar se voltasse ao explorado, não ao explorador); e essa imagem rendeu frutos. Por maior que seja o cinismo daqueles que souberam lucrar com a face mais luminosa do “homem cordial”, foi um ganho do mesmo jeito, e nos beneficiamos disso. Quando nem a imagem duvidosa conseguimos mais sustentar, algo está muito errado!

4) Este é sem dúvida o potencial mais evidente, e também o mais frustrado. Cá entre nós, também é um campo no qual o Brasil não tem mérito nenhum, propriamente falando. É uma circunstância histórica e geográfica: estamos sentados em cima dos mais extraordinários recursos naturais, e não estou falando de ferro, urânio ou, sei lá, nióbio. Hoje, o termo consagrado é “biodiversidade”, então que seja. Some-se a ela a abundância de água, a incidência de vento e sol (e raios, por que não?), a variedade topográfica, a extensão do litoral.

Se o futuro da economia está na sustentabilidade e na circularidade, o Brasil teria todas as condições de ser um dos grandes pólos econômicos do planeta. Se insumos e determinados produtos serão desenvolvidos a partir do código genético de plantas, fungos e animais, um gigantesco laboratório a céu aberto está cravado em plena América do Sul. Já em 1966, Celso Furtado entendeu que desenvolvimento e ecologia teriam de andar de mãos dadas. Hoje, porém, a verba do Plano ABC, por exemplo, é insuficiente.

Em parte por atavismo, em parte por preguiça, a economia que se pratica no Brasil é quase inteiramente oposta àquela que nos colocaria no caminho da riqueza, da influência e do bem-estar nas décadas vindouras. A monocultura de larga escala, a exportação de bois vivos, os minerodutos que emporcalham os pulmões dos capixabas, até mesmo o pré-sal; tudo isso pode até ajudar a equilibrar a balança de pagamentos. Mas praticamente não reverbera na melhora da vida das pessoas e na complexificação da sociedade. Exceções, claro, são a Embrapa e as pesquisas de engenharia de extração do óleo no fundo do mar, mas mesmo esses esforços poderiam estar sendo aplicados de maneira mais proveitosa.

*

Para continuar com o exercício, proponho agora examinar como estamos em cada um desses pontos. Confesso que atua aqui um certo “privilégio do autor”, já que sou eu que estou escrevendo e, por isso, pude escolher os itens que me pareciam ser os mais convenientes para manusear. Além de mais convenientes, são também quatro campos em que o governo atual está provocando uma hecatombe completa, com seu exército de lunáticos em posições-chave.

Mas não é disso que quero tratar, por enquanto. E, seja como for, se quiser estender o exercício para outros itens, fique à vontade. O que temos com esta minha seleção é o seguinte:

1) Não é segredo para ninguém que o Brasil atravessa um processo acelerado e avassalador de desindustrialização; para ser mais claro, cabe dizer que não se trata, como na Inglaterra, regiões da Europa e partes dos Estados Unidos, de uma perda de fábricas para a China, acompanhada de uma transição para uma posição ainda de vanguarda tecnológica na divisão internacional do trabalho. A economia brasileira está, como se diz, se “reprimarizando”; com isso, em geral se quer dizer que voltamos a nos especializar na exportação de soja, carne, laranja, açúcar, café, minério de ferro e petróleo. Talvez dê para acrescentar o nióbio nessa lista, não sei. Dizem que temos programadores e artistas gráficos muito criativos; é uma pena que tantos tenham que ir trabalhar no exterior, assim como tantos pesquisadores, engenheiros, artistas e demais representantes da economia que gera valor agregado. A perspectiva do jovem de classe baixa, ao entrar no mercado de trabalho, está hoje em trabalhos precários e com pouco horizonte de evolução pessoal. É sintomático como hoje, o personagem-símbolo do jovem trabalhador brasileiro é o entregador de aplicativo.

2) É preciso dizer algo sobre o que se passou com a diplomacia brasileira nos últimos dois anos? A transformação desse ativo construído com tanto esforço em uma máquina de cuspir abobrinhas e perder alianças figura entre aqueles crimes tão graves que mal nos damos conta. Que tenhamos sujeitado os interesses do país aos caprichos de um único líder estrangeiro é algo que pode deixar nossa imagem arranhada por bastante tempo. Ter um mandatário que balbucia mentiras delirantes na Assembleia Geral da ONU apequena o Brasil muito mais do que uma goleada sofrida em casa para a Alemanha (pelo menos eles terminaram como campeões!). Unir-se a ditaduras teocratas contra alguns direitos humanos básicos pode nos tornar párias por toda a eternidade.

No campo econômico, aliás, até agora não sei dizer se nossos governantes são a favor ou contra o acordo da União Europeia com o Mercosul. Chegaram, é verdade, a um texto definitivo (costurado antes, como se sabe); mas não só o ministro da Economia já vinha bombardeando o Mercosul antes mesmo de tomar posse, como depois da assinatura do acordo a diplomacia brasileira e o governo têm feito de tudo para garantir que ele não será ratificado pela contraparte europeia.

3) Também não é difícil perceber que nosso “soft power” está, para dizer o mínimo, bastante abatido. As imagens de animais carbonizados no Pantanal estão correndo o mundo. Em escala, alcance e importância bem menores, as declarações de Bolsonaro e sua entourage sobre Brigitte Macron fizeram o mesmo no ano passado. A negligência com o petróleo nas praias do Nordeste não passou despercebida.

Mas a perda de prestígio e portanto “soft power” não data das votações obscurantistas na ONU ano passado, nem do “golden shower”, nem do jogo de acusações cínicas sobre as queimadas. Tudo isso são bombas, é claro, que revelam ao mundo algo do que está por trás daquela máscara de país simpático. Mas o mundo já tivera, a essa altura, alguns aperitivos do que realmente constitui o modo de atuação do brasileiro.

Provavelmente a primeira ocasião tenha sido a Minustah, embora aquele ainda fosse um momento de otimismo e admiração com o Brasil, que tinha candidatura para sediar Copa e Olimpíada, presidente operário e ministro da Cultura tocando guitarra com Kofi Annan. Pois bem, ao mesmo tempo, os militares deste país deixavam de ser “médicos sem paciente” para encabeçar a desastrosa operação de paz no Haiti, onde não faltaram massacres, estupros, disseminação de doenças contagiosas e, ao final, claro, uma situação de violência e abandono praticamente sem alterações.

Há algo particularmente grave nesse caso, por sinal. Sabemos que as ditaduras latino-americanas tinham um gosto pronunciado por sumiço de cadáveres. No Haiti, porém, não só os soldados brasileiros foram instruídos a alvejar até mesmo quem se aproximasse dos corpos abatidos pelas tropas, para lhes dar sepultura digna. Para piorar, lideranças brasileiras da Minustah falam abertamente e com aprovação dessa ordem, tripudiando dos mortos.

Como dar a dimensão da imagem de horror que um país transmite quando age assim? O respeito aos mortos, mesmo inimigos, mesmo criminosos, é um elemento cultural quase universal. É tema de uma das principais tragédias gregas (Antígona). Pois bem, o Brasil fez papel de Creonte, o rei delirante que ofende os deuses e termina isolado em meio às ruínas de sua dinastia. Ao se decidir por esse papel, reencenando em escala reduzida o pecado original da Guerra do Paraguai, o país deu um primeiro passo para se tornar o que hoje já se consolida: alguém que não se importa de ser apresentado perante o mundo como abjeto, indigno de qualquer estima. Um país capaz de deixar terra arrasada e uma trilha de animais mortos pelo chão, só para vender gado e soja; capaz de premiar com a impunidade quem assassina rios com minério tóxico ou deixa adolescentes morrerem para economizar em alojamento. Uma terra que, por trás da aparente jovialidade, empilha atrocidades sem remorso e celebra os algozes de seus filhos.

Por quanto tempo aqueles tais jovens de Bobigny e Soweto ainda vão se dispor a simpatizar com um país desses? E que chefes de Estado vão aceitar a diplomacia brasileira como mediadora de seus conflitos? Que grande corporação vai ter interesse em colocar aqui a sede de suas operações regionais? Tudo isso são empobrecimentos, perdas que custarão décadas a reparar.

4) Por fim, parece bastante evidente que o país está renunciando a tratar seus recursos naturais com a devida seriedade. Além de tudo que já foi dito sobre o horror dos habitats destruídos, a aceleração de extinções, o risco de alteração perene, irreversível, do regime de chuvas, a intensificação da erosão, a perda de nutrientes, a destruição de modos de vida, o genocídio dos povos indígenas, devemos ter em mente que também é consumida pelas chamas a principal perspectiva de garantir a prosperidade, ou pelo menos o bem-estar da população nas próximas décadas. Tudo em nome do curto-prazismo de quem espera milagres da soja e do gado para manter um certo equilíbrio na balança de pagamentos. Sem falar, claro, no papel da especulação de terras na ocupação da Amazônia e do crime organizado na derrubada de madeira.

Vale dizer que a catástrofe da gestão ambiental no Brasil também precede Bolsonaro; quanto a isto, duas palavras bastam: Belo Monte. Vá lá, uma terceira: Samarco. A usina no Xingu, por sinal, se justificava com o pressuposto de que transmitir eletricidade da floresta amazônica para o sul serviria para garantir a segurança energética necessária àquela indústria que há muito já se decompunha. Por cínica e sinistra que seja a assim-chamada política ambiental deste governo, ela se estrutura a partir de uma matéria-prima amplamente disponível no país: o gozo da devastação.

*

Ficam de fora dos quatro itens muitos retrocessos que estamos vivendo, e que são pelo menos tão graves quanto os citados. A destruição dos mecanismos de transparência do Estado e de combate à corrupção, por exemplo, tem potencial para ser o legado mais duradouro do período bolsonarista – isto, é claro, se a destruição de biomas ora em curso não se tornar irreversível. A sabotagem à LAI, a sujeição do MPF, o aparelhamento do Judiciário e da PF, as tentativas de controlar o pensamento nas universidades e a informação na imprensa podem pôr a perder tudo que se conquistou desde 1988. Mas o objetivo do exercício não é mapear todos os nossos retrocessos, e sim apontar uma dinâmica de empobrecimento; e a esta altura ela me parece clara.

Podemos ver que, dos quatro itens destacados, o período com Bolsonaro só é plenamente responsável por causar a reversão ou a derrocada no caso da diplomacia. Nos demais, sem dúvida, esse caótico mandato provocou uma aceleração da piora, em quadros que já eram ruins, ou desequilibrou para o lado destrutivo situações até então ainda em aberto. Podemos colocar assim: estamos em queda-livre dentro de um abismo, mas antes já estávamos rolando em direção a ele. Assim sendo, Bolsonaro, longe de constituir um “choque externo”, é antes um sintoma de processos patológicos em curso no (digamos) organismo do país, ou uma perturbação que precipitou reações em cadeia já potencialmente dadas.

Sem dúvida, a aceleração de um processo destrutivo ou sua precipitação, por si mesmas, são desastres terríveis, já que achatam a possibilidade de reagrupamento, resposta, busca por alternativas. Mais perniciosa ainda é a capacidade que figuras como Bolsonaro têm de manter as atenções sobre si, ou seja, sobre o sintoma, e não sobre o processo e seus determinantes, e menos ainda sobre o que pode ser imaginado para além dele. Esta é, claramente, uma grande força; figuras assim triunfam porque compõem sumidouros afetivos e intelectuais que engolfam as atenções do país, reduzindo o debate político e o raciocínio estratégico a uma tática de confronto voltada, no máximo, para a próxima eleição. No caso dos políticos da era digital, é até pior, porque a munição é sempre esgotada escaramuça a escaramuça. A ansiedade com que acompanhamos as oscilações da popularidade do ocupante do Planalto é neurótica, mas principalmente no sentido de ser o signo de uma grande neurose coletiva.

Falando em neurose, o Brasil de hoje faz pensar em alguns esquemas psicanalíticos; é como se, de súbito, todos os seus monstros viessem à tona, de uma vez só. Mas ainda que coloquemos as coisas nesses termos, continuam sendo os nossos monstros, nossos velhos monstros. Por isso, é tentador atribuir o pesadelo que atravessamos a atavismos, ou seja, a formas recorrentes, talvez permanentes, da vida política do país, que residiriam numa espécie de inconsciente coletivo. Eu mesmo já adotei várias vezes essa estratégia e não considero que seja um erro, contanto que não se confunda o percurso mental com alguma descrição factual. Efetivamente, lógicas de exploração colonial, escravista e patrimonialista permanecem, se reproduzem e se adaptam ao longo da nossa trajetória, o que está visível, hoje, mais que nunca.

Um perigo dessa abordagem é recair no conformismo ou no fatalismo, como se houvesse um – me desculpe – destino manifesto. Acontece que algumas das monstruosidades são, de fato, atavismos. E sua característica de “reemergência de um passado” é tanto mais forte na medida em que o processo de empobrecimento é a perda de algo que chegou a ser ganho. Que o salário inicial de juízes, diplomatas e procuradores seja mais alto do que o rendimento no ápice da carreira dos professores titulares de universidades federais é, claro, um escárnio; muito mais, porém, é a expressão de um país bacharelesco e cartorial que nunca foi embora. Que magistrados tenham praticamente licença para cometer crimes (já que punições dignas do nome são impensáveis), idem: não deixamos de ser um país onde o acesso às esferas mais altas do poder público é um salvo-conduto para a infâmia. Os efeitos práticos dessas nossas distorções são diluídos em épocas de prosperidade, já que o bolo é maior; mas em tempos de retrocesso, são um veneno.

Por isso, as leituras do momento atual acabam oscilando entre dois pólos. De um lado, a análise de conjuntura – sendo que a conjuntura em questão muda violentamente a cada poucos meses (ainda mais este ano!). Do outro, a repetida denúncia dos vícios eternos a que estamos sujeitos como país, nossos “pecados originais”, por assim dizer. Mas há uma enorme conexão entre esses dois pólos – aliás, é isso que faz com que sejam, justamente, pólos de algo. Isto é que precisamos explorar: como esta conjuntura se produz, no contexto de uma etapa histórica em que a tradição de distribuição de poderes se manifesta de determinada maneira? Como se encadeiam as circunstâncias conjunturais, ou seja, como uma determinada configuração leva à seguinte? Que direções é possível tomar para produzir outro encadeamento, talvez até mesmo uma desconexão e uma ruptura com a referida tradição de distribuição e exercício dos poderes?

Em tempo: alguém poderia objetar que há, ou houve (quem dera!) uma onda internacional de vitórias eleitorais de líderes caricatos e, como se tem dito, populistas, o que não se explica pelo processo de longo prazo do Brasil, com seu empobrecimento. A objeção prosseguiria: a manipulação das massas por meio das redes sociais teve papel determinante na vitória de cada um desses líderes. De fato, essa onda existe; e o aparato técnico, comunicacional, informacional foi um instrumento importante para as tais vitórias. Mas é preciso entender que em cada um desses países, e também naqueles onde houve candidaturas igualmente populistas, mas derrotadas, foi necessário aos candidatos mobilizar afetos e dinâmicas já presentes. Um triunfo extremista não acontece do nada e não se alimenta de nuvens. O mesmo vale para as ferramentas digitais, que precisam de matéria-prima para trabalhar. Elas amplificam agitações latentes do campo social, porque lhe permitem constituir uma linguagem própria, uma estética, uma identificação, um mecanismo de disseminação que permite arregimentar, convencer, alinhar o discurso.

Assim, ao argumentar que o bolsonarismo acelera um empobrecimento já em curso, não estou negando sua participação nessa onda – o que seria impossível, dada sua mania de imitar Trump em tudo –, nem estou desprezando o peso das ferramentas digitais, “fake news”, “tio do zap” ou coisa assim. Ao contrário, o que ocorre é um ciclo vicioso, em que ao mesmo tempo esses dispositivos fazem de Bolsonaro o acelerador da derrocada e, no sentido inverso, o empobrecimento alimenta o estágio de vulnerabilidade que permite sua ascensão. É sua matéria-prima.

2 – Dinâmicas do empobrecimento

Vale a pena se concentrar um pouco no primeiro item do exercício, que contém mais elementos do que pode parecer à primeira vista. A questão da desindustrialização não está tanto na perda de fábricas, mas nas ondas de choque que a acompanham. Ao longo do meio século em que se tornou um país industrial razoavelmente relevante, o Brasil também se urbanizou, ainda que de forma desorganizada. As grandes empresas industriais fomentaram a diversificação do emprego, com maiores salários e exigências de qualificação do que havia na economia agrícola anterior. Não se trata só da emergência de um operariado consumidor, mas também a classe média urbana com suas funções de escritórios, de gerentes a advogados, publicitários a jornalistas. O acréscimo de produtividade financiou a expansão universitária do período, além da expansão da burocracia, para gerir essa sociedade mais complexa, e da emergência da célebre “burguesia nacional”, ou melhor, burguesia industrial, em torno da qual gravitavam os bancos e a trinca comércio/serviços/logística.

Não estou querendo promover aqui o elogio das sociedades industriais do século XX, que tiveram seu tempo e legaram muitos dos problemas gravíssimos, existenciais, que enfrentamos hoje. Nem quero obliterar todos os conflitos distributivos que se manifestaram nesse período, com efeitos muitas vezes trágicos e sujeitos ao “tunnel effect” de que falava Albert Hirschman: com conjunturas mais favoráveis, a transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos (na qual somos pós-graduados) aparecia como aceitável; nos momentos desfavoráveis, revelava-se um tanto menos aceitável, mas era mantida à força – isto, por sinal, não parece ter mudado.
O que estou tentando esboçar aqui, como contraste com o cenário atual, é a questão do que se costumava chamar de “excedente”. Grosso modo, trata-se da ideia de que as sociedades vão criando formas de agir, gostos e confortos, a partir do que são capazes de gerar além do estrito necessário para viver. Também é uma representação um pouco esquemática, já que faz parecer tudo que denominamos “cultura” como algo que emerge após a resolução do problema da subsistência, um pouco como na famosa pirâmide de Maslow. Mesmo assim, continua valendo a pena pensar o termo “desenvolvimento” desta maneira, aliás fiel à etimologia; não se trata de explorar mais e mais territórios, mais e mais recursos para continuar fazendo mais do mesmo, com os mesmos resultados. Trata-se de construir em cima do consolidado, encontrando modos de aproveitar as capacidades que vão se configurando para incrementar a vida. Caso contrário, o termo nem sequer faz sentido.

A questão é que aquela sociedade industrial não precisava só da tal “burguesia nacional” (não confundir com donos de lojas de departamento ou redes de hamburgueria), mas de uma classe de executivos, analistas, pesquisadores, engenheiros, juristas, comunicadores e gestores públicos, e assim por diante, todos capazes de antever os movimentos do sistema global de produção, circulação e financiamento. Caberia a esse vasto grupo de pessoas garantir que o sistema produtivo local se mantenha competitivo e em condições de se revolucionar internamente, na medida em que o próprio capitalismo vai se revolucionando. Tendo falhado em responder às demandas por maior investimento no célebre “capital humano”, além de uma série de outras falhas bem conhecidas, o Brasil perde justamente o impulso de produtividade que levaria adiante esse processo. Mais ainda, perde a capacidade de produzir o excedente que permitiria pagar por ainda mais complexificação, reforma urbana, investimento em educação e ciência etc. Ou seja, mais do que o problema da participação do setor secundário nas exportações e no PIB, a desindustrialização diz respeito, primeiro, à renúncia a continuar participando das transformações tecnológicas; já não participamos da dita “terceira revolução industrial” e nem sequer sonhamos em participar da quarta.

Resumindo, não tivemos nem uma Samsung, nem uma Huawei. Por sinal, nem mesmo uma Embraer temos mais condições de manter. E justamente essa renúncia vai reverberar nos demais itens da minha pequena lista: a perda de ambições diplomáticas reflete a degradação da materialidade dessas ambições. O ataque aos biomas e a ofensiva violenta do extrativismo se sustentam no ganho de poder relativo desse setor. Quanto ao “soft power”, que inspiração pode vir de um país que se entrega de corpo e alma, prostrado, à regressão?

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Um aspecto trágico desse processo de empobrecimento é que, na verdade, uma reversão ao estágio anterior não é possível. Tudo seria menos traumático, embora igualmente lamentável, se desse para simplesmente regressar ao estágio de pequeno país despovoado e agrário. Mas as ruínas de uma construção interrompida não são um terreno baldio. O cenário de um país que empobrece não é o mesmo do velho país pobre. As cidades estão todas aí, inchadas e deficientes em infraestrutura. Categorias sociais que se acostumaram a ter expectativas razoáveis não vão simplesmente recair na aceitação da miséria. Por mais incompetentes que sejam os gestores públicos (e nem sempre são); por mais mal desenhada que seja a lei de licitações (uma unanimidade!), nada disso basta para dar conta da degradação urbana, da logística defeituosa, da dominação territorial de facções criminosas, da desmontagem de equipamentos culturais. Estamos vivendo um processo ao mesmo tempo político e econômico (duas dimensões que se retroalimentam e, na prática, se confundem) que, ao promover empobrecimento e enfraquecer o cotidiano democrático, conduz a todos esses efeitos.

Daí decorre uma série de outros problemas, o primeiro dos quais está diretamente relacionado ao tema da biodiversidade e dos recursos naturais. Estarão na vanguarda das próximas décadas os países que forem capazes de fazer a transição para uma economia menos destrutiva e mais regenerativa. A capacidade de investir em materiais biodegradáveis e em energias não poluentes será crucial. Mas não é só porque biomas inestimáveis como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal estão sendo destruídos que o Brasil fica em péssima posição para essa corrida. É também porque as universidades e demais centros de pesquisa que poderiam ser os motores dessa dinâmica da transição, com invenções, patentes, práticas, estão sendo sufocados e vilipendiados. E porque os cérebros que se investe para formar acabam precisando se instalar em outros países, ou se ocupam aquém de sua capacidade – o famoso “brain drain”.

Este resumo também ajuda a entender um pouco melhor o fracasso da versão dilmo-manteguista do nacional-desenvolvimentismo, que foi artificial (projetando um apoio empresarial que há muito já não estava lá), anacrônico (favorecendo setores caducos e redundantes) e distorcido (reforçando, ao contrário do que pretendia, a posição degradada do país na divisão internacional do trabalho). O primeiro ponto a ressaltar é que, a esta altura, um esforço de reindustrialização não pode ser literal. A tarefa não é restabelecer as indústrias que o país já teve – que, afinal, eram adequadas à década de 70, ou melhor, ao salto que era preciso e possível dar naquele momento. Uma vez que se decidisse tomar a rota de um novo impulso para o desenvolvimento (a expressão que se usava era “superação do subdesenvolvimento”, que talvez devamos voltar a adotar), seria preciso encontrar as brechas pelas quais os setores produtivos instalados no país poderiam penetrar as cadeias de valor, progressivamente ampliando (o mais rápido possível, na verdade) o nível tecnológico da presença nessas cadeias. Nesse sentido, as fábricas de alumínio alimentadas por Belo Monte seriam praticamente irrelevantes.

3 – Esgotamento político

Ainda um tanto esquematicamente, poderíamos aproveitar essa noção do excedente para tentar explicar a crescente instabilidade social e política. Vale começar observando que, apesar de todos os avanços institucionais e da enorme melhora de muitos indicadores, todo o período da Nova República foi pontuado por crises econômicas pequenas e grandes, transições nem sempre harmoniosas de poder, escândalos de corrupção e improbidade, abafados ou não. Não me refiro só aos dois impeachments, ao aventureirismo que nos trouxe Collor e Bolsonaro, aos inúmeros programas de estabilização que precederam o real, às avalanches financeiras dos anos 90, à série de escândalos de corrupção, à recessão em 2015 e 2016, a junho de 2013 e a subsequente dominação das ruas por uma direita cada vez mais extremista.

Mesmo os momentos aparentemente mais tranquilos foram abalados por tensões graves. Em 1998, foi necessário o famoso “estelionato eleitoral” do câmbio para garantir a reeleição de Fernando Henrique; em 2002, a eleição de Lula não se deve apenas à articulação do PT, mas também à decepção da sociedade, em geral, com o desempenho econômico dos anos anteriores (lembrando que 2001 teve a crise energética); em 2006, o que parece hoje uma vitória de lavada de Lula sucedeu à crise do mensalão, em que a oposição fez a aposta (que se revelou equivocada) de “deixar sangrar” o presidente, em vez de tentar derrubá-lo (se é que teriam os votos necessários); comparada com 2014 e 2018, hoje nos parece que a eleição de 2010 foi um mar de sossego absoluto, mas foi até então o que de mais agressivo eu tinha visto, com um uso desavergonhado da (falsa) religiosidade que só faria se ampliar dali por diante.

É possível atribuir boa parte desses problemas ao recrudescimento do conflito distributivo (já mencionei isso antes) em tempos de produtividade estagnada e excedente idem. A relativa tranquilidade da era Lula, em que se dizia que, dessa vez, o Brasil ia “chegar lá” e “decolar” (lembra da Economist?), pode se explicar pela razoável folga, essencialmente financeira, ofertada por um mercado externo favorável. Não estou dizendo que a equipe de Lula é desprovida de méritos por seus sucessos, sobretudo na inclusão social – que, por sua vez, também alimenta o bom desempenho econômico –, e em uma série de avanços institucionais que, de fato, ajudam a justificar o otimismo. O que posso dizer, aí sim, é que nada disso teria sido possível durante um período de tormentas no plano externo e apertos no balanço de pagamentos. Com tudo isso, foi um período de câmbio sobrevalorizado, o que não favorece investimentos na produção local e serve, no mínimo, como indício de que, no fundamento, algo ia mal. Sem chegar a explicar predominantemente pela sobrevalorização do câmbio as agruras do setor produtivo e da economia como um todo, vale a pena se concentrar na ideia do câmbio valorizado como signo e sintoma. Não se trata de apontar que, para segurar a inflação, o dólar barato corrói a economia local; e que garante o consumo no curto prazo à custa de juros altos e produtos importados. A questão é que esse equilíbrio de curto prazo era mais instável do que parecia, reforçando a tendência a apoiar a estabilidade política numa certa engenharia econômica que, na verdade, não está garantida, e cujos alicerces vão se corroendo com a passagem do tempo.

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O problema é que muito da estrutura política com que estamos acostumados é tributária do período histórico em que ocorria a industrialização e a sociedade que se constituía a partir de suas dinâmicas. Se o Brasil chegou a produzir um partido de massas do porte do PT, é porque havia massas suficientemente fortes, coesas e organizáveis, com ambições políticas e influência social, ainda que desigualmente distribuída no país e, portanto, não tão forte assim. O PT começou com as greves do ABC, mas também com as demandas de uma classe média letrada e progressista, sobretudo nas grandes cidades. Ao mesmo tempo, se havia uma direita liberal capaz de compor com essas massas, ou meramente se opor a elas com possibilidade de mediação, é porque no dia-a-dia os grupos de classe média e alta que nela votavam tinham de incorrer em constantes negociações com as demais classes, ao mesmo tempo em que viviam em constante ligação com a vertente mais progressista de sua própria classe.

É claro que este retrato é parcial. As configurações que as mensagens políticas vão assumindo ao longo do tempo são complexas e não se encaixam perfeitamente em divisões como esta, porque são moldadas de acordo com as particularidades do país. Por exemplo, à esquerda o trabalhismo chegou a ser comandado por latifundiários e se confundiu muitas vezes (aliás, continua se confundindo) com um certo corporativismo do médio funcionalismo público. À direita, as tentações gêmeas do udenismo e do malufismo (aqui, estou tomando Maluf como representante mais longevo do que um dia foi o “ademarismo”), muitas vezes vitoriosas, mais de uma vez deixaram entrever, por baixo do moralismo e do discurso de ordem por meio de violência estatal, raízes mais profundas na exclusão e opressão de classes inferiores.

Ainda assim, as recorrentes recaídas do país em governos autoritários, tradicionalistas, opacos, quando analisadas à luz do que se acreditava ser o processo histórico que o país atravessava, entravam na conta do “atraso”. Ou seja, pareciam representar o triunfo (temporário) de um bloco que se movimentava “mais lentamente” em direção “à modernidade”, um resquício de algo que ficaria inevitavelmente para trás. Hoje, podemos desconfiar de que havia dinâmicas mais vivas nesses episódios, e que a modernidade assim concebida tinha algo de quimérico, mal e mal calcada no modelo euro-americano. Em todo caso, vale observar que, além dos fenômenos mais recentes da política brasileira, o bolsonarismo também conjugou ambas as tendências regressivas das direitas (udenismo e malufismo); estamos longe do tempo em que, por exemplo, Covas e Maluf eram antagonistas virulentos.

Ao mesmo tempo, dizer que o surgimento de um partido como o PT foi possível graças à estrutura social do período não significa, é claro, que foi nessas condições que ele chegou ao poder, nem que se sustentou assim quando era governo, muito menos que seja assim hoje. A trajetória do partido é bem contada no livro de Lincoln Secco e as transformações de sua base de apoio geraram a expressão “lulismo”, destrinchada por André Singer. A burocratização é um fenômeno razoavelmente esperável; no mais, as transformações do PT são perfeitamente explicáveis pelo que se passou no mundo, no Brasil e no cenário político. O que resta a trazer à luz é como essas dinâmicas de transformação, tendo tomado impulso por conta própria e com a inércia de um transatlântico, tornaram o PT incapaz de responder às agitações dos últimos anos. Mais ainda, desconectado de sua base popular – ou seja, privado da base que chegou a ter –, tornou-se uma casca vazia, que se alimenta do mecanismo eleitoral que chegou a montar (como nenhum outro) e do prestígio que mantém graças à memória de tempos melhores e um certo número de quadros ainda bastante respeitáveis.

“Casca vazia”, aliás, descreve bem o destino dos principais partidos da nova democracia brasileira. Além do que já foi dito sobre o PT, o que foi que transformou o partido de Montoro e Covas nesse arremedo representado por João Dória? Cuja maior esperança de voltar ao proscênio é uma figura tão limitada como Luciano Huck? Por muito tempo, quando pensamos em centro-direita no Brasil, a imagem que vinha era a do PSDB. Hoje, é um grande vazio. Parte disso é porque, quando pensávamos nos votos “da Faria Lima” (leia-se “mercado financeiro”), também pensávamos no PSDB, mas hoje temos o Novo, um partido que se diferencia do bolsonarismo sobretudo porque preferia Paulo Guedes na cabeça da chapa. À parte isso, não tem lá muitas ideias, quando justamente estamos precisando de ideias.

Todo esse movimento tem bases mais profundas, me parece, do que a mera “desilusão” com os tucanos na esteira da Lava-Jato.

Afinal, como sabemos, o sistema político como um todo caiu em desgraça perante a opinião pública depois da Lava-Jato, que centrou fogo no PT, é verdade, mas respingou nas oposições e justificou o discurso do “ninguém presta”. Mas não devemos atribuir peso demais a Moro, Dallagnol e associados. O sistema já vinha murchando, como um balão escanteado, muito antes dos escândalos. A direita tradicional se colocou na areia movediça antes mesmo da esquerda petista, provavelmente por estar na oposição, a tal ponto que Dilma se reelegeu quando já estava mal avaliada, já que o candidato da oposição era profundamente insatisfatório.

Assim, é preciso ter claro que um dos motivos pelos quais os tucanos e demais representantes da direita tradicional embarcaram na arriscada estratégia do impeachment (quando se começa, nunca se sabe onde vai terminar), paralela ao projeto de cassação da chapa Dilma-Temer, é a constatação de que já vinha falhando em se apresentar como alternativa desde muito antes. Em 2014, com o governo Dilma já em frangalhos, ainda assim o PT pôde apostar na destruição da campanha de Marina Silva, porque se sentia seguro de que venceria contra Aécio Neves.

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Já deve ter ficado claro que estou tentando transmitir a ideia de que a perda de potência das forças políticas – principalmente os partidos, mas não só – reflete, ou pelo menos acompanha o empobrecimento generalizado do país. Em traços gerais, era disso que eu estava falando quando me referi ao esgotamento de todas as forças políticas relevantes, abrindo espaço para combinações teratológicas como a que estamos testemunhando. Ou seja, elas são sobretudo consequência, embora sejam capazes de intensificar o problema e criar problemas novos. Mas ao mesmo tempo é preciso enxergar que mesmo as formas teratológicas, em última análise, se mantêm a partir de uma estrutura de poder que de novidade não tem nada. A implosão das legendas de maior renome desnuda os mecanismos desse poder, por meio da proliferação de partidos novos ou com nomes mudados, e que na verdade são meros vetores para as categorias que sempre foram as mais poderosas no Brasil: latifúndios, cartórios, estamentos, sacerdotes. Com a derrocada de PT, PSDB, PMDB, PFL, o que cai é a cortina. O palco segue agitado como um formigueiro.

Sendo assim, podemos estimar que a incapacidade das esquerdas em propor alternativas viáveis não se deve nem a um emburrecimento generalizado, nem à calcificação burocrática do petismo, nem ao desaparecimento das pautas históricas. Se as correntes da oposição se perdem em brigas paroquiais e patrulhamentos estéreis, é porque não conseguem compor um projeto coerente de avanço social e econômico que contemple o conjunto dos setores que, a princípio, se sentiriam representados por plataformas de esquerda. Seria preciso recompor com esses setores, se isso for possível, ou desenvolver modos novos de compor com o que há. Voltar à prancheta, aprender outras linguagens. Ocasionalmente aparecem algumas sugestões de como isso poderia se dar, mas ainda há muito chão a percorrer.

Também podemos atribuir ao estreitamento do excedente o que parece ser uma limitação da efetividade dos movimentos sociais, em diversas frentes. Populações indígenas, por exemplo, estão basicamente na defensiva, embora tenham obtido vitórias importantes ao garantir demarcações e evitar retrocessos. Mas a perspectiva continua sendo de que os retrocessos precisem ser evitados, e nem todos serão – aí estão as queimadas como um sinal de alerta. Também a ocupação de espaços de decisão por pessoas negras ainda não reflete a expansão de sua presença em universidades, embora um certo número de empresas já tenham reconhecido a urgência de um esforço concentrado pela diversificação e o combate ao racismo. Houve ganhos nas pautas das mulheres, da violência policial, do direito à expressão (notadamente nas artes), na moradia. Podemos colocar nessa conta, também, o auxílio emergencial da pandemia, surgido da mobilização da sociedade civil organizada.

Mesmo assim, a sensação generalizada é a de que esses ganhos não conseguem criar raízes. Sentimos que as próximas ameaças serão sempre maiores. Todo dia, lemos notícias dizendo que policiais expulsos por sua relação com milícias serão readmitidos; que mesmo depois que se garantiu a uma criança estuprada o direito de interromper a gravidez, forças obscurantistas instaladas dentro do aparelho de Estado trabalham para intensificar as perseguições; que há dezenas de milhares de pessoas ameaçadas de despejo e nenhum interesse do poder público em evitá-lo; que vozes críticas ao governo têm sofrido assédio de instituições como o Ministério Público.

4 – Balanço

Nada disso deve ser entendido como negando que houve muitos avanços nas últimas décadas. Pelo contrário, o que realmente vale a pena apontar, e sempre, é o caráter crítico da tensão entre avanços sociais e institucionais, de um lado, e suas condições concretas, de outro; uma tensão que vai se intensificando e pode levar a sabe-se lá quais peripécias no futuro próximo. Como já mencionei em outro texto, muito do que ganhamos nos últimos tempos, devemos ao que se costuma chamar de “espírito da Constituição Federal de 1988”, o que pode soar um pouco místico, talvez idealista, mas faz sentido se pensamos que a Carta é fruto de um momento histórico particular e da atuação daquelas gerações que tinham grandes esperanças e expectativas. Resumindo bem, de gente que via a redemocratização como um retorno aos trilhos da modernização – que, como se tinha percebido sob a ditadura, não podia se limitar a ser a quimera da “modernização conservadora”.

Gostamos muito de lembrar dos defeitos da Constituição, seja por dar garantias pouco realistas do ponto de vista fiscal, seja por conter uma infinidade de penduricalhos (resultado da estrutura de votações da Constituinte), mas é bastante evidente que, de lá para cá, houve melhora substancial em diversos indicadores. O serviço público ganhou muito em organização, profissionalizou-se claramente. Os mecanismos de participação social foram muito fortalecidos. Este ano deixou claro como o SUS é indispensável; além disso, instrumentos como o Fundeb, por exemplo, são fundamentais para fortalecer a sociedade civil e elevar o grau de exigência com o poder público. Para dar só um exemplo, quando observamos quantas vezes o latifúndio teve de investir contra leis ambientais e terras indígenas, muitas vezes saindo derrotado, podemos constatar que temos um ordenamento jurídico que serve de anteparo contra as investidas das forças empobrecedoras (e cretinizadoras) do país. Resta ver, é verdade, até quando as normas constitucionais serão capazes de resistir. Não é tanto com eventuais reformas do texto constitucional que estou preocupado. Me causa muito mais frio na espinha a perspectiva de que efetivos poderes de uma conjunção de forças reacionárias e obscurantistas lhes permita simplesmente passar por cima do que está escrito aí ou em qualquer outro canto, lançando mão da pura brutalidade.

É fabuloso como as ferramentas desenvolvidas no período pós-redemocratização deram um bom fôlego à vida civil nas últimas décadas. De fato, a sociedade civil foi e continua sendo muito atuante, de maneira cada vez mais profissionalizada e conseguindo comunicar com o público. Já mencionei, de passagem, as articulações cada vez mais fecundas do movimento negro, feminismo, secundaristas, moradia urbana, quilombolas, indígenas, agricultura familiar. Vejo com aquela ponta sempre agradável de esperança a emergência de novas lideranças políticas, com muita energia e tocando no âmago de algumas das nossas maiores contradições, isto é, nos mais arraigados e funestos dos nossos elementos constitutivos.

A grande preocupação é que, em todo esse período, as condições concretas da transformação social a que essas mobilizações podem almejar, e que não são poucas, foram sendo minadas por debaixo de seus pés. Apesar de todas as vitórias, os avanços não chegaram a tomar uma dinâmica própria a partir de sua recente base institucional, porque ocorria simultaneamente uma degradação estrutural invisível; só agora podemos ver com clareza como bastava um baque para pôr muito (não tudo!) a perder. No cabo-de-guerra entre os movimentos emancipatórios e as forças do retrocesso, estas últimas parecem estar com um jogo mais forte, apesar de toda a persistência, de toda a luta. Por quê? Porque as transformações sociais precisam se apoiar em condições efetivas pelas quais elas possam ser incorporadas e vividas. Assim, por exemplo, quando forças políticas se valem de um certo tipo de religiosidade em benefício próprio, é verdade que estão remexendo alguns recônditos culturais bastante profundos, que remetem tanto ao papel das religiões na ocupação do território quanto ao uso de mão-de-obra sequestrada e forçada. Mas há algo a mais: para que esses elementos estejam tão disponíveis e em tanta abundância, é preciso que as populações tenham perdido outros fios de esperança. É preciso que essas mensagens, que são exigentes e muitas vezes inverossímeis, encontrem o terreno fértil de uma população à procura de respostas. Estamos perante o mesmo fenômeno de esgotamento de dinâmicas com que este texto se abriu.

Apesar de todos os desentendimentos que se seguiram, é preciso tratar a aliança de ocasião entre militarismo jagunço e religiosidade distorcida, que foi instrumental no triunfo do bolsonarismo, não só pelo aspecto (verdadeiro) da manipulação dos afetos políticos, mas também como sintoma do estreitamento de horizontes na vida quotidiana do país. O desejo da carnificina floresce quando a perspectiva de uma vida social satisfatória se torna inconcebível: a adoração cega às tropas como Rota e Bope é simplista e recorre ao que há de obscuro em todos nós, mas seu combustível é uma realidade encurralada e degradada, familiar a boa parte da população.

Ao mesmo tempo, lembro que, quando a maré começou a virar na economia brasileira, há coisa de seis anos, eu me perguntava, um tanto angustiado, o que aconteceria com a dita “teologia da prosperidade” depois que a tal prosperidade se esvanecesse. Sem surpresas, estamos vendo agora que o que aconteceu foi um recrudescimento de outra abordagem afetiva frequentemente encontrada, mas em geral secundária, em fenômenos religiosos: passou-se a investir em uma versão crescentemente paranóica do moralismo, onde a culpa pela situação econômica cada vez mais difícil recai sobre o comportamento acusado de extremamente pecaminoso dos outros. Um pouco como se o castigo para Sodoma e Gomorra não fosse fogo e enxofre, mas recessão e desemprego.

Não quero dizer com tudo isso que a expansão de formas agressivas, obscurantistas e excludentes de religiosidade seja um fenômeno restrito à população mais vulnerável, ainda mais empobrecida pela perda de renda dos últimos anos (vale lembrar que mesmo o parco crescimento depois da recessão esteve sempre abaixo da taxa de reposição populacional). Inúmeras camadas de classe baixa e média compartilham do mesmo sentimento de risco social e financeiro, já que uma proporção considerável da população precisa se desdobrar para pagar as contas (só o endividamento das famílias está em 67%, consumindo 30% da renda, o que não é pouco). Não ajuda nada que este seja um país onde o acesso a escola, saúde e mesmo transporte privado é um ponto de distinção (ou seja, que mesmo as famílias mais sufocadas financeiramente estejam dispostas a fazer de tudo para não ter de andar de ônibus e para que seus filhos não estudem em escola pública).

Ninguém se surpreenderia, portanto, ao constatar que são esses mesmos sentimentos que fomentam o fascínio pelos uniformes e os gatilhos leves – afinal, é a imagem de um pouco de ordem irrompendo na bagunça – e, por fim, a figura de Bolsonaro. Este último, embora objetivamente não esteja à altura de qualquer uma dessas vertentes (foi um militar fracassado, é moralmente repreensível em todos os níveis), conseguiu reunir todas elas e aproveitar sua dinâmica em benefício próprio. Paradoxalmente, embora fosse uma dinâmica de morte, era a única dinâmica realmente viva disponível no país. No momento em que escrevo, parece que há uma certa dissonância (além da cognitiva) entre os diferentes grupos que apoiaram Bolsonaro e seguem apoiando o, digamos, “espírito do bolsonarismo”. Assim como já havia acontecido quando da saída de Moro do ministério e em outras ocasiões, com a indicação de Kássio Nunes para o STF voltam os gritos de “traição” e coisa pior. Na revista Piauí, por sinal, podemos ler sobre como batem cabeça aqueles que não sabem bem definir se “são liberais” ou “são conservadores”, com essa tocante ingenuidade da identificação individual, tão característica do nosso tempo. Mas prestando atenção ao problema das dinâmicas vivas e mortas, recomendo não se animar com a barulheira: na primeira ocasião, ainda que com outro nome, malufistas, udenistas, militaristas, extremistas religiosos, fascistas “de facto” e aproveitadores de todos os matizes vão caminhar de braços dados novamente.

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Como caracterizar uma situação dessas? A resposta habitual tem sido discutir se o bolsonarismo é um tipo de fascismo; isso me parece quase uma obviedade, mas não vejo como avançar muito a partir daí. Talvez valesse mais a pena subir um degrau e perguntar que tipo de momento faz com que os fascismos, de qualquer tipo, emerjam de suas sombras habituais. Melhor ainda, poderíamos perguntar: mas o fascismo é um tipo de quê? Tudo isto nos traz mais para perto do problema, com sua dinâmica própria, do que a mera tipificação; classificar não é o nosso problema, superar a tendência catastrófica ao empobrecimento é.

Agora, se o tipo de vinculação afetiva que conduz aos fascismos e ao bolsonarismo é algo que, como afirmei no início, permeia o campo social em toda parte, emergindo nos momentos de dinamismo esgotado e conflitos incontroláveis, então cabe a todo não-fascista, a todo democrata, buscar modos de constituir dinâmicas mais fecundas e construtivas, devolvendo as pulsões de morte aos cantos obscuros onde costumam viver, de onde causam menos danos.

Nosso desafio imediato é esse mesmo em que temos nos concentrado, ou seja: vislumbrar como se pode sair do buraco. É enorme a vontade de acreditar que só é preciso melhorar a organização das forças políticas, com ou sem frente ampla; ou ainda, que basta a população tomar consciência de que está no buraco, para que pelo menos o país viva suas crises intermináveis sem a dose diária de vulgaridade oficial. Mas acho que, no fundo, sabemos todos que não vai ser assim.

Se os antecedentes servem para algo, neste caso vai ser para nos deixar com as barbas de molho. Nas outras ocasiões em que dinâmicas destrutivas e opressivas chegaram a constituir governos, foram bem mais estáveis do que se poderia apostar, ainda que graças a fortes doses de violência e corrupção. Dinâmicas mórbidas geram insatisfação mesmo em quem as apoiou (e passa a se dizer traído). Mas tomam corpo, conseguem disseminar sua própria lógica, se tornam o ritmo hegemônico da vida. Sim, os fascismos podem ocupar o centro de nossas vidas, a ponto de não encontrarmos nenhum ponto comum de ancoragem melhor do que se declarar “anti-fascista”. Ora, mas ser anti-fascista é o mínimo! O que temos a oferecer à população além de “sair do buraco”, se nem somos capazes de descrever o que existe para além do buraco?

Desconfio que só sairemos desta enrascada quando enfrentarmos a questão do processo de empobrecimento – que é, repito, multidimensional, envolve a perda de prestígio, de sofisticação, de diversidade, de perspectiva, até mesmo de esperança. E em que consiste enfrentá-lo? Antes de mais nada, o enfrentamento teria que passar longe do saudosismo (espero não ter soado saudosista neste texto!); teria que se alimentar das aspirações de fato presentes no campo social, e que são muitas. Teria que ressoar com os desafios e possibilidades abertas hoje, em nosso tempo.

Neste ponto, os quatro itens do exercício da primeira parte podem servir de guia (sem querer ser presunçoso); mas se buscamos interromper a reprimarização, se não queremos que o território seja definitivamente uma enorme monocultura pontuada de minas, então o que aspiramos a produzir? E se não desejamos ser párias, que rosto esperamos mostrar ao mundo? O quarto item talvez seja o mais fecundo, considerando o peso da crise ambiental para o futuro da humanidade. Temos condições técnicas, intelectuais e financeiras para refundar nossa economia em bases completamente diferentes: descolonizada, sustentável, regenerativa, equitativa. Existem, portanto, bandeiras disponíveis e caminhos a seguir. O que nos cabe, então, é redirecionar nossos afetos, sufocar as tendências mórbidas dos fascismos, amplificar as dinâmicas férteis.

Padrão
barbárie, Brasil, desespero, direita, economia, eleições, esquerda, guerra

Uma guerra à sociedade civil

Mesmo que nestas eleições não aconteça o pior, parece ter se formado o consenso de que nos próximos anos vamos continuar mergulhados no caos político, no conflito social e na estagnação econômica. É evidente que o triunfo do picareta protofascista torna tudo pior e instala o caos imediatamente. Mas mesmo se o próximo presidente for um dos candidatos do campo democrático, o sistema político está tão bagunçado e o tecido social tão esgarçado, que dificilmente um governo terá a estabilidade necessária para governar sem sustos.

Esse consenso é explicado, no mais das vezes, por dentro do próprio sistema político. A trajetória do PT, tanto no governo quanto fora dele, tentando garantir a hegemonia no campo da esquerda e forçando a candidatura de Lula. As atitudes dos tucanos, que promoveram a tese da derrubada de Dilma logo depois da eleição e estimularam o crescimento da direita raivosa. A falha de Marina Silva em capitalizar seus bons desempenhos eleitorais de 2010 e 2014. Os oligarcas e os fisiológicos que buscam se preservar de todo modo, mesmo que isso signifique jogar o país nas mãos da barbárie.

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Um segundo elemento de explicação muitas vezes levantado é internacional, lembrando da vitória de Trump e do Brexit, além do crescimento da extrema-direita em países como França, Alemanha, Itália, Polônia. Muitos lembram da influência de Steve Bannon, que colocou o laranjão na Casa Branca e pode agora colocar o amarelão no Planalto.

Tudo isso é fato; mas a melhor comparação é com países de renda média, mais semelhantes ao Brasil: Filipinas, Turquia, Hungria, Venezuela. São países que já caíram nas mãos de regimes autoritários ou com tendência ao autoritarismo, nas mãos daqueles que os anglófonos chamam de “strongmen”.

Frágil como é o Brasil – socialmente, politicamente, culturalmente –, não chegará a ser surpreendente se algo semelhante acontecer por aqui. É um risco constante, que não surgiu ontem. E, a seguir o exemplo desses países, não vamos demorar para ter perseguições generalizadas a jornalistas, artistas, políticos de oposição, livre-pensadores.

(Nem preciso dizer, mas demorei a conseguir a energia para sentar e escrever algo, de tanto que temo pela minha própria segurança. E de tão triste, desalentado, que fiquei ao descobrir pessoas que supostamente gostam de mim apoiando a instalação de um regime que poderá me matar.)

Países com perfil parecido com o nosso conseguiram escapar dessa tendência ao obscurantismo, inclusive alguns vizinhos: México, Chile, Colômbia e até a Argentina, com seus megaprotestos e penúria econômica, parecem estar a salvo, ao menos por enquanto. Ainda rezo fervorosamente para que também seja o nosso caso.

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Mas acho que há mais do que a mera explicação política ou internacional para o que está se passando entre nós e para a tendência amplamente percebida de que a ainda há muito a piorar. Essa é, de fato, a dinâmica que está colocada na sociedade e no sistema político: não necessariamente a implosão da democracia frágil e incompleta que construímos nos últimos 30 anos, mas seguramente algum tipo de ruptura, seja com a estrutura de partidos, seja com as formas de lealdade.

Explico (se conseguir): o país está sendo conduzido por duas dinâmicas divergentes, já ativas há pelo menos duas, talvez três décadas, mas que vieram à luz em 2013. Mais cedo ou mais tarde, seria necessário chegar a uma decisão: ou bem uma ação política concreta e consciente para ajustar essas dinâmicas entre si, ou bem deixar chegar à desconexão completa, ou seja, o momento em que o país se torna definitivamente inviável em seu desenho institucional corrente. O que podemos concluir do que aconteceu nos últimos cinco anos é que o sistema político e a sociedade, cada um à sua maneira, estiveram bem aquém do desafio.

Ai de nós.

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A primeira dinâmica é a da inclusão e da diversidade. O lado bom da Constituição de 1988 (e das leis que vieram em sua esteira) é que ela prevê e promove o combate aos nossos maiores males históricos: obriga os três níveis da federação a investir em educação, saneamento, saúde, segurança, infraestrutura. Contém, tanto quanto consegue, a sanha extrativista, latifundiária, sanguinária, de nossas velhas oligarquias patrimoniais. Tudo isso vem de muito antes do governo mais lembrado em termos de inclusão, que foi o de Lula, mas é bem verdade que esse período intensificou os esforços, introduzindo métodos que, inclusive, fogem à lógica da Constituição, como o programa Bolsa-Família.

É evidente que essa inclusão é incompleta e falha em muitos aspectos. Basta pensar em termos de segurança, grande fracasso da Nova República. Para conseguir os ganhos que existiram, insuficientes como foram, foi necessário um sistema político ineficaz, lento, caro, facilmente capturável pela corrupção (se é que se pode falar de captura, quando o objetivo de muitos dos atores envolvidos era justamente promovê-la). O sistema tributário é caótico e regressivo. A geração de receitas para cumprir com as aspirações da Carta Magna é insuficiente (torno a isso depois). Muitos privilégios corporativos foram mantidos e ampliados, notadamente no que diz respeito ao Judiciário. Tudo isso é bem conhecido e documentado.

Mesmo assim, a melhora dos indicadores sociais é patente. Mortalidade infantil, matrículas do ensino fundamental, expectativa de vida, IDH. Não são apenas as ações afirmativas, por exemplo, que garantem a introdução de categorias até então excluídas (a população negra e periférica em geral, sobretudo) nas universidades e principalmente no debate público como um todo. Ao contrário, é porque movimentos sociais se robusteceram que foi possível fazer a pressão necessária para que pudesse haver ações afirmativas.

Se algumas melhorias urbanas incrementais são feitas cá e lá, é porque a população adquiriu energia e poder de pressão suficientes para colocar o poder público em movimento. Se moradores de favelas conseguem obrigar uma prefeitura como a do Rio de Janeiro a abandonar projetos faraônicos em nome do saneamento, agradeça à mobilização social e às normas constitucionais. O Brasil segue sendo um país terrivelmente desigual e injusto, mas é muito menos homogêneo do que há trinta anos. Nesse sentido, a Nova República foi um sucesso.

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A segunda dinâmica é a da derrocada econômica. Já não somos aquele país industrial que chegamos a ser em meados dos anos 70. Este foi um tema que já tratei em outras ocasiões, mas vale dizer que as consequências da mudança de perfil da estrutura produtiva, intensificada, mas não causada, pela ascensão da China e sua gula por soja e minério de ferro, tem impactos graves sobre a capacidade de continuar cumprindo as aspirações da Nova República e de sua Constituição.

O complexo agroexportador e o extrativismo mineral geram pouco valor agregado, pouco emprego, implicam uma cadeia produtiva de baixíssima complexidade. O tão incensado setor agrícola corresponde por algo como 6% do PIB e, mesmo que dobre de tamanho (não vai acontecer), não é capaz de sustentar um desenvolvimento nem sequer próximo ao que precisamos.

Se os empregos criados nas áreas urbanas são quase todos em serviços simples e na construção civil, a renda e os impostos gerados não são suficientes para garantir o fornecimento dos serviços públicos necessários a essa mesma população. E estamos falando de cidades muito grandes, inchadas, como são as brasileiras. Não é por acaso que são cidades feias, violentas, travadas, fábricas de mal-estar e sofrimento psíquico.

O breve, inócuo e atrapalhado plano de incentivo à indústria do governo Dilma é uma das causas próximas do desastre econômico de 2015-2016; mas suspeito que não teria tido um sucesso muito maior se fosse extenso, eficaz e organizado. É preciso mais do que o impulso a certos setores para promover a sofisticação de um parque industrial; é preciso saber se situar, em paralelo ao setor empresarial, na divisão internacional do trabalho.

Mas isto é tema para outro texto (e outro autor). O que quero reter dessa dinâmica é o fato de que toda a lógica da Nova República, com seu espírito inclusivo e diversificador, requer o solo fértil de uma economia que se sofistica, moderniza, complexifica, diversifica. Só assim é possível gerar o valor agregado necessário à realização das aspirações daquele Brasil que retornava à democracia – ou assim acreditava.

No caso do século XXI, isto é algo completamente diferente do que foi nos anos 1950, tempo da substituição de importações, da atração de multinacionais automobilísticas e da expansão da fronteira agrícola. Estamos em era de antropoceno, de modo que é necessário sofisticar o investimento em tecnologias e energias limpas. Mas isto também é assunto para outro texto (esbocei aqui).

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A continuação da primeira dinâmica exige uma transformação da segunda dinâmica. Sem que isso aconteça, e até agora não aconteceu – muito pelo contrário –, o que teremos é a segunda corroendo, canibalizando, a primeira. É o que temos vivido: na tentativa de “equilibrar o orçamento”, de “fazer a Constituição caber no PIB”, o país está abrindo mão de tudo aquilo que aos poucos o vem tornando um pouco menos injusto, um pouco mais diverso. É o caso das universidades, do ensino médio, da ciência e tecnologia, do desenvolvimento territorial.

Mas aquela primeira dinâmica ainda existe e é capaz de expressar sua força. Ela não vai desaparecer só porque as condições objetivas não são mais as mesmas. É por isso que está sendo tão atacada. O conservadorismo “dos costumes”, que logo se traduz em ódio racial, misoginia, homofobia etc., é uma forma de abafamento dessa dinâmica social como um todo. O importante é regredir às antigas distinções da sociedade.

Mencionei um “momento de decisão” e sugeri que ele pode estar se arrastando desde 2013. Nesse caso, não é tanto um “momento” e, como nada foi decidido, não é “de decisão”. Mas o fato é que nem chegamos ainda à ruptura, nem conseguimos instaurar a ação política que sintonizaria as aspirações republicanas ao desempenho econômico. Em outras palavras, o sistema político não se mostrou à altura do país. Não se mostrou à altura da sociedade, por certo.

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Isto é o que traz de volta à tentativa de explicação do nosso possível desastre, agora, neste outubro de 2018. Não vou entrar em detalhes neste texto (outro mais longo se prepara), mas dá para ler as decisões tomadas por todas as forças políticas a partir dessas duas dinâmicas divergentes e da incapacidade de corresponder à necessidade de decisão, perante um esgarçamento que se radicaliza.

Resumindo bem, o esforço do PT em manter a hegemonia no campo da esquerda reflete a perda de sua base, não só aquela de que fala André Singer ao discorrer sobre o lulismo, mas também a rarefação do proletariado industrial, de onde vem o próprio Lula. Tendo perdido as classes médias urbanas, só o que lhe resta é ser um partido burocrático interior ao sistema, que tem a oferecer aos demais atores um forte apoio na população mais desfavorecida. Parece ter funcionado até 2014, sobretudo porque o partido controlava boa parte da máquina estatal e podia cooptar alianças. Agora já não basta.

Os tucanos, que se crêem por algum motivo representantes do Brasil mais lúcido e moderno, erraram feio ao apostar sua sobrevivência política na aproximação com as oligarquias e na radicalização à direita. O PSDB acabou se fundindo com as oligarquias e não conseguiu convencer a direita radical, que prefere inventar seus próprios nomes. Sendo um partido de caciques, vai morrendo pela segunda vez – a primeira foi em 2010, até que em 2014 o PT o ressuscitou para conseguir um segundo turno polarizado.

Já a conjunção entre oligarquias, fisiológicos e outros aproveitadores da política está nadando de braçada. Que perigo corre a bancada do boi, da bala, da bíblia? As dinastias políticas que há séculos dilapidam o Estado conseguiram aprovar uma reforma eleitoral destinada explicitamente a mantê-las no poder. Aqueles que não podem concorrer por estarem presos mandam seus rebentos. É o caso de Eduardo Cunha e Sergio Cabral. O Supremo e o TSE estão majoritariamente alinhados com eles, como ficou evidente com a entrevista irregularmente concedida pelo candidato protofascista à televisão do dono de igreja, que não teve reação dos tribunais.

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Esse grupo – que coincide razoavelmente com o “centrão” da constituinte e pode ser chamado assim – encontrou o candidato presidencial perfeito para seus propósitos. Foi pinçar no Baixo Clero, aquele grupo de aproveitadores sem relevância política, que estão no Congresso só por se dar bem, geralmente graças a um discurso eleitoral mentiroso e populista, uma figura facilmente moldável e desprovida de qualquer escrúpulo.

É algo como um novo Severino Cavalcanti. Desta vez, tem boas chances de colocá-lo no Planalto. Nesse caso, pode-se dizer que é um novo Collor, mas muito piorado, porque retira sua energia política das energias mais destrutivas e reativas que há na sociedade. A candidatura protofascista é a realização lógica do grande acordo anunciado por Romero Jucá e Sérgio Machado: com o Supremo, com os generais, com tudo.

Assim, a candidatura protofascista não é primariamente uma arma na guerra contra a esquerda, o PT, o globalismo ou o que for. Não é primariamente um elemento a mais nas ditas “guerras culturais” que tomaram conta de sociedades mundo afora, e que têm a ver com direitos de mulheres, gays, imigrantes, negros etc. Essas são as energias, facilmente convocáveis neste país moldado pela escravidão, de onde as oligarquias e o fisiologismo retiram sua força para realizar a principal guerra em que está metido.

Trata-se da guerra contra a sociedade. Mais especificamente: a guerra contra a dinâmica de fortalecimento e diversificação da sociedade civil, que poderia colocar em risco sua posição histórica. O Brasil atrasado está em vantagem nessa guerra porque a dinâmica social, sua inimiga, tem necessidade daquele solo de sofisticação econômica que está se desfazendo no país. A dinâmica histórica está a favor do atraso, do patrimonialismo, da oligarquia, e contra a sociedade civil.

A candidatura protofascista é uma ofensiva de grande envergadura contra a sociedade civil.

*

Que a democracia está em risco, poucos ainda duvidam. Mas de que vale a democracia para esses agentes? Desde quando oligarcas gostam de democracia? Grupos que foram favorecidos por ambas as nossas ditaduras, e que já se beneficiaram em outros períodos de exceção, por que se preocupariam em manter um regime que dá espaço para a sociedade civil, se ela só atrapalha seus desígnios?

Para ficar no exemplo do bispo dono de igreja que apoia o protofascista, recordo que, em alguns textos publicados em 2016 e 2017, lancei a seguinte pergunta: o que acontece à teologia da prosperidade (essa que sustenta algumas das igrejas recentes que se espalham pelo país) quando deixa de haver prosperidade? Ou seja, quando o crescimento econômico, que até 2014 trazia respostas divinas aos anseios dos fiéis (carro novo, casa própria, ascensão social), vai por água abaixo, deixando em seu lugar a penúria, o fracasso, as dívidas?

O próprio bispo dono de igreja trouxe a resposta: alinha-se imediatamente à repressão pura e simples, à tirania anunciada. E vale dizer: uma tirania anunciada nunca deixa de se realizar, quando tem a chance.

*

Abri o texto dizendo que talvez não aconteça o pior neste mês. E que, mesmo não acontecendo, ainda estaremos enredados numa crise em que o risco de ruptura com o regime democrático é real. Apesar da tendência de regressão econômica e social, tudo vai depender da capacidade de mobilização que a sociedade civil será capaz de criar, tendo passado por um susto tão terrível.

Se, por outro lado, acontecer o pior, tudo dependerá da força que a sociedade civil terá para resistir à sua própria destruição. Ainda acredito que essa força seja bastante expressiva, apesar da perda de dinamismo nas últimas décadas. Mesmo que a resistência provoque do outro lado um aprofundamento repressivo, com todas as atrocidades que teremos de testemunhar, não me parece que será suficiente para quebrar a espinha de uma sociedade tão variada e complexa como a brasileira.

Talvez seja excesso de otimismo. Ou um último esforço para ter algum otimismo. Seja como for, os ventos são desfavoráveis, mas ninguém, nunca, está obrigado a sucumbir ao horror – e muito menos se unir a ele.

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A aposta de Varoufakis

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Uma frase de Yanis Varoufakis grudou na minha cabeça logo no começo do ano, quando o Syriza venceu as eleições e o economista-motoqueiro se tornou ministro. Com o tom confiante que lhe é peculiar e uma linha de raciocínio que denuncia sua formação em teoria dos jogos, ele assegurou que, dentro de alguns meses, um acordo seria alcançado com a troika. Um acordo muito melhor do que o que estava na mesa, bem entendido – e obviamente infinitamente mais favorável aos gregos que o resultado final que agora conhecemos.

Como ele tinha tanta certeza? Os negociadores, dizia Varoufakis, estavam plenamente conscientes de que, se esse acordo não fosse alcançado, o governo do Syriza na Grécia cairia. E o próximo grupo – digamos assim – heterodoxo com que os credores europeus teriam que se sentar para negociar seria o Front National francês. É evidente que a democrática Europa não gostaria de correr o risco de ter um partido proto-fascista no poder de um de seus principais países, não? Um partido ultra-nacionalista, xenofóbico e, para horror da boa sociedade, ferrenhamente eurocético!

Essa declaração ficou ruminando na minha cabeça porque, desde o início, me pareceu um pouco ingênua. Quem garante a Varoufakis que essa abstrata entidade que (não) atende pelo nome de “troika” – e que agora tem sido chamada de “as instituições” – está mais disposta a aceitar um consórcio de grupos de esquerda nominalmente radical, mas na prática bastante moderado, do que um agrupamento de gente proto-fascista? O que a história tem a nos dizer sobre isso? Já adianto: o oposto. Com efeito, entrevistado pela revista New Statesman, Varoufakis revelou seu assombro com a despreocupação da aristocracia continental quanto à radicalização do ambiente político. Mas volto ao assunto mais abaixo. Continuar lendo

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Pauta difusa e derrota, mais uma vez

Para finalmente dar meu palpite sobre o furacão que passou no Brasil nas duas últimas semanas, adotei dois princípios: pensar em termos conceituais, em vez de impressionistas, e começar do começo. Os motivos, espero, vão ficar claros ao longo do texto.

No começo, isto é, entre a porradaria geral da polícia e a primeira manifestação realmente gigantesca, a interpretação geral era de um “aqui também”. Até então, o país que realmente estava fervendo era a Turquia. Lá como cá, o primeiro vetor invocado para explicar a súbita capacidade de motivação foi o acesso às redes sociais. Ou seja, a Turquia e o Brasil seriam algo como um segundo tempo do animado ano de 2011, que teve Primavera Árabe, Occupy Wall Street, indignados na Espanha, manifestações em Israel, Chile e mais tantos outros países.

Mas eis que veio 2012, o ano da decepção: a Espanha, como o resto da Europa, seguiu com suas políticas de austeridade; na Grécia, o neonazismo ganhou terreno. No mundo árabe, os países sortudos se viram com governos religiosos e conservadores; os azarados, com guerra civil. O Occupy teve de se contentar em descobrir que não só Obama baixou a cabeça para Wall Street, como, no que tange aos direitos civis, estava na mesma linha de Bush. Derrotas, ao que parece.

Agora, 2013. Novos países entram na dança. Além da Turquia e do Brasil, Índia e Indonésia, além de, mais uma vez, os bravos chilenos, se colocam em movimento. Como sempre acontece, comparações pululam com o famoso maio de 1968, quando a greve geral francesa, somadas às manifestações dos estudantes franceses, se espalharam para o Leste Europeu, o México, o Brasil, antes de resultar em derrota e apatia.

Algo nessa comparação, porém, não se encaixa. Em 1968, o que houve de efetivo, como a greve que, sem eufemismos, parou a economia da França, foi comandado pelos fortíssimos sindicatos da época, um tempo de mobilização industrial e partidos de esquerda poderosos. Os caminhos para se chegar aos objetivos, fossem quais fossem as pautas de cada grupo social envolvido, à exceção provável dos estudantes, estavam bem traçados, até onde podiam divisar os envolvidos.

Hoje, não há nada disso. Em 2011, os árabes queriam derrubar seus ditadores. E depois? Os espanhóis queriam mandar embora o neoliberalismo… e mais o quê? Os novaiorquinos eram contra a plutocracia, como quase todo mundo. E assim por diante. No Brasil, as manifestações mais ou menos pequenas contra a cara de pau do transporte público se expandiram da noite para o dia numa maçaroca de gente despolitizada que protesta contra conceitos abstratos como a corrupção, mas não quer saber de questões concretas como… a corrupção do oligopólio do transporte. Com isso, as mesmas críticas endereçadas aos indignados e ao Occupy voltaram: as pautas são difusas, as pessoas não propõem nada de concreto. Continuar lendo

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A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

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O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

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Língua, etnia, origem, cor

Acho que ainda encarava com inocência as armadilhas da língua, quando reagi com naturalidade: “Você não vai ter problemas para renovar o visto”, disse o rapaz do guichê, em tom da mais natural constatação, “porque, bom, você é ocidental”. E eu assenti com a cabeça, querendo indicar que entendia o que ele queria dizer, mesmo que não concordasse. Só têm problemas com a polícia e o visto, traduzi mentalmente, as pessoas que vêm de países islâmicos, interpretados logo de cara como terroristas em potência. Aqueles que, por aqui, são chamados de “orientais” (esse termo designa os oriundos do Islã, grosso modo. Nossos “orientais”, aqui, são “asiáticos”.) Brasileiro pode ficar tranqüilo nesse ponto. Povo bacana, pacífico, alegre, fonte inesgotável de sorrisos, mulheres, dribles e gols. E, na minha cabeça, também ocidental, a julgar pelo que eu tinha entendido da afirmação do rapaz do guichê.

Mas, que o quê, eu não tinha entendido era nada. Primeiro, fui entender que o conceito de Ocidente passa longe, muito longe do Brasil. Quando ouvir um europeu se referir ao “Ocidente”, esteja certo de que os países em questão são os da Europa, ora, ocidental, a que se somam os Estados Unidos e o Canadá; em certas circunstâncias, até um australiano pode receber o título, embora seu país esteja cravado no outro hemisfério. Em outras palavras, aquela velha idéia de dividir o mundo em dois hemisférios é conversa fiada. O mundo, para o europeu, é segmentado numa meia-dúzia de compartimentos: Ocidente, Oriente, África, Ásia, russos e quetais. O brasileiro, nesse esquema, tem de se contentar com o carimbo de latino-americano. Mas é importante frisar que esta não é uma identificação cultural ou geográfica. Para o europeu, ela resulta da mais autêntica ontologia.

Agora, se é assim, como se explica o fato de que, para o digníssimo sujeito do outro lado do guichê, eu seja um ocidental, se ele sabia perfeitamente que sou brasileiro, “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes” (TM Belchior)? Tenho certeza de que pelo menos um de vocês dois que estão lendo o texto já tem a resposta na ponta da língua, mas vou enrolar um pouquinho mais.

Um último episódio (último nada, quem dera) veio confirmar minhas suspeitas. Um lauto jantar, bem à francesa, de gastronomia refinada e a nata do vinho nacional (piada velha). À mesa, um cândido rapaz, quase diáfano, contava sua traumática experiência de visitar uma periferia bem ao norte de Paris. Deve ter sido terrível caminhar por ruas desconhecidas e numeradas, em vez de nomeadas. Tantas janelas, tantas crianças, tantos olhares desconfiados. E o mais assustador, ele concluiu: “para qualquer lado que eu olhasse, não encontraria um único ocidental”.

Eis aquela palavra, mais uma vez. E agora entendemos o que ela quer dizer, na boca de um indivíduo civilizado e de mente aberta da Europa. “Ocidental”, afinal de contas, nada mais é do que um sinônimo para “branco”. O que me disse o funcionário público que comigo conversou no guichê, afinal de contas, foi que a polícia francesa não colocaria empecilhos à minha permanência em seu território porque sou branco. Tenho a pele, a cabeleira e o par de olhos ideais do Ocidente.

Ou seja, a língua não é nada inocente. Inocente era eu. A justaposição da classificação geográfica sobre a étnica (ou racial, para dar um tom mais agressivo ao contexto) alivia a carga pesada e negativa de sentir-se um discriminador. O europeu não quer mais ser racista. A lembrança de crimes como a “Solução Final” (que é como os nazistas chamavam o extermínio de judeus), a escravidão e a guerra da Argélia ainda é muito próxima no inconsciente coletivo. É preciso ser civilizado, pois esses são os ditos “valores ocidentais” – e eis que reaparece a fatídica palavra. Não se deve julgar e, na seqüência, rejeitar alguém pela etnia. Um indivíduo democrático, justo e civilizado da Europa não faz esse tipo de coisa. Certo?

Acontece que lutar contra as próprias inclinações impõe algumas dificuldades. Quando os netos de quem outrora oprimiu vêm viver em seu país e pedir para compartilhar de sua nacionalidade; pior, quando já nascem no solo da antiga metrópole, do antigo império, e têm direito imediato a se considerar um cidadão; ou ainda, quando a pronúncia, a música e a indumentária se alteram radicalmente em plena capital do país, haja força de vontade para o ocidental não se sentir acuado, ameaçado e, falemos abertamente, ofendido. Para reerguer a barreira, mas sutilmente, sem recaída fascista, nada mais adequado que a terminologia bem escolhida.

Resultado, consegue-se estabelecer a fronteira entre o “nós”, que se refere aos que, a pele denuncia, descendem dos bárbaros que colonizaram esta terra, e o “eles”, todo mundo mais, com uma preferência acentuada pelos magrebinos e árabes em geral, além dos negros (desculpe, africanos). Só que, como toda estratégia, essa também tem seus furos, por onde esguicha com violência uma água corrosiva. Concebida para afastar os povos menos nobres do banquete da riqueza européia, corre o risco de funcionar bem demais. Seria como se, vamos supor, os serviçais desaparecessem da saturnal levando a comida, os talheres, a louça e a toalha da mesa.

Há coisa de duas semanas, a seleção da Tunísia veio jogar na França. Começou a tocar a Marselhesa e, suprema surpresa, supremo acinte, milhares de adolescentes começaram a assoviar e vaiar. Foi o caos. A imprensa se rasgou nos editoriais. O onipresente Sarkozy ameaçou: da próxima vez, não vai ter jogo. Os intelectuais, sempre atentos, aproveitaram para encher laudas e laudas de perguntas sobre o significado do evento. Nas escolas dos subúrbios, os professores foram instruídos a verificar com a garotada se eles se sentiam franceses. Muitos disseram que não. Preferem se identificar com o país dos pais, mesmo sem jamais terem posto o pé por lá.

Esse é o grande furo da estratégia lingüística de discriminar sem segregar. Há um mundo para além da língua, ao contrário do que pode crer uma parcela bastante significativa das correntes de pensamento do último século. Ao criar, no coração da região que escolheu chamar a si própria de Ocidente, uma legião de cidadãos que não são ocidentais, o ocidental que se considera herdeiro dessa cidadania corre o sério risco de berçar um contingente incontável de ocidentais que nem aspiram a ser cidadãos. E, como nós, brasileiros, sabemos muito bem, quem se vê privado em definitivo da cidadania sente que não tem obrigação nenhuma para com a sociedade.

PS: Eu pretendia continuar com uma comparação com o problema da discriminação social e racial no Brasil, porque, afinal de contas, meu país me interessa muito mais do que os dos outros. Mas ia ficar grande demais, então prefiro continuar em outro artigo, que deve chegar nos próximos dias. Se você tiver um bom coração, me diga que o aguarda com ansiedade. Nem que seja só para me agradar…

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What if…

Eu tentava há dias formatar na cabeça um texto sobre aquilo que chamo de “o paradoxo europeu”, se me permitem sair batizando problemáticas. Mas, como sabe quem leu a postagem anterior, minha cabeça não se encontrava no estado mais propício para formatar o que quer que fosse. Além do mais, um tema com nome tão pomposo quanto “o paradoxo europeu” exige um texto à altura, rigorosamente argumentado, cheio de sutileza e argúcia, palavras difíceis, o escambau. Mas, se é para colocar em poucas palavras, posso dizer o seguinte:

Quando vim morar na França, tinha uma idéia que, se não chegava a convicção, parecia fazer muito sentido. Acreditava eu que, depois de tanto sangue e tantos crimes, tantos traumas, tantas guerras, o continente europeu, obrigado a encarar a decadência e o crescimento político e econômico de suas antigas colônias, teria aprendido a tornar-se cosmopolita, tolerante, definitivamente civilizado. Antes que me tomem por um pobre ingênuo, aviso que essa forma de ver não estava tão equivocada assim.

Os europeus têm uma tendência ligeira mas perceptivelmente menor do que nós, americanos (falo do continente, por favor) para entrar em farras e modismos como foi, por exemplo, o falecido Consenso de Washington. Antes de cometer suas enormes besteiras, eles debatem muito, se questionam à exaustão, entojam uns aos outros com conceitos e teorias adquiridos por meio de leituras exaustivas dos autores mais qualificados e presunçosos. Os europeus, apesar de ainda se considerarem o centro do mundo (atire a primeira pedra…), se interessam pelas culturas mais distantes, não raro se apaixonam por uma culinária, língua ou dança muito exótica (para eles; e no meio dessa salada está a nossa). Verdade seja dita, o europeu médio, e em particular o francês, toma esse interesse (muito simpático, por sinal) como um selo de autoridade para definir, em poucas palavras, o que é ou deixa de ser tal ou tal país. Infelizmente, porém, eles não aceitam ser desmentidos nem mesmo por alguém que nasceu e cresceu no lugar em questão. Mas, nesses momentos, o melhor a fazer é contar até dez e mudar de assunto.

Mas é claro que não seria esse elogio mitigado que inspiraria o texto que eu ruminava na semana passada. Não sou de distribuir elogios gratuitamente. A triste realidade é que há tempos ficou claro que o aprendizado desse povo teimoso ficou muito aquém do necessário. O holocausto mal conseguiu abafar um antisemitismo renitente, que transparece em pequenas frestas dos discursos de todos e na quase indiferença com que se tratam os repetidos ataques a sepulturas judaicas, entre outras pequenas barbaridades. A flutuação interminável das fronteiras, o muro que rasgou Berlim, a Cortina de Ferro que, pela enésima vez, cindiu radicalmente o continente, nada disso serviu para que as populações abraçassem com honestidade a idéia de uma União Européia digna do nome. E mal adianta explicar que países pequenos como os europeus tendem à irrelevância, se continuarem se estranhando, num mundo altamente competitivo e de grandes blocos. Para encerrar, pergunte se alguém por aqui sente remorso pelos inúmeros genocídios cometidos por seus ancestrais em três continentes: a resposta será um ar se surpresa e algo como um “nunca pensei nisso”…

Até aqui, tratei no máximo de anedotário, curiosidades pitorescas, embora às vezes irritantes. O que há de verdadeiramente triste é constatar que o repertório de grandes tolices que os europeus têm para praticar ainda não está esgotado. Movimentos obscurantistas de bloqueio ao avanço da integração continental; a incrível volta do fascismo na Itália, patrocinada por ninguém menos do que Silvio Berlusconi, que dispensa apresentações, e implementada por pequenos governadores e prefeitos que culpam imigrantes e turistas pela notória e exagerada falta de educação dos italianos; o abandono de séculos de cultura e civilização, em nome de uma admiração cega e infantil pelo famoso american way of life, patente no estilo fashion victim de Sarkozy, talvez a figura mais medíocre e molenga da política mundial; a incapacidade, incrível numa terra tão cheia de sábios, de aparecer com respostas sensatas a problemas como a pirataria pela internet ou o afluxo interminável de imigrantes, o que resulta em medidas claramente antidemocráticas e discriminatórias. Se, no século XIX, EUA, Brasil e Argentina tivessem agido assim, os Europeus teriam comido uns aos outros, um enorme continente de Ugolinos. Eis meu “paradoxo europeu”. Esse, sim, é um aspecto que me surpreende profunda e negativamente numa terra com uma história tão conturbada quanto a européia.

Mas a cereja do bolo é aquele que me deu o ensejo de finalmente escrever este texto e, ainda por cima, inspirou a idéia do “E se…” do título. Jörg Haider, que morreu neste fim-de-semana ao enfiar seu carro num poste a 140 km/h, era provavelmente a figura mais preocupante de todas, ao menos para as consciências democráticas. Muito mais do que Jean-Marie Le Pen, que, com o perdão da falta de respeito, não passa de uma múmia gagá. Haider, ao contrário, tinha um carisma raro, parecia fisicamente (e se comparava a) Tony Blair, era jovem, conhecia os caminhos da política. Não gostava nada de imigrantes, considerava os europeus não-austríacos como rivais, admirava as Waffen SS e não considerava particularmente condenáveis as coisas que aconteceram em seu país entre 1938 e 1945 (chegou a chamar os campos de extermínio, como Auschwitz, de “campos de punição”…).

Muita gente o considerava uma espécie de novo “você sabe quem”; mas o compatriota mais famoso de Haider fez seu nome na cena política alemã numa época em que a injustiça do tratado de Versalhes, a hiperinflação e a Grande Depressão fizeram da terra de Goethe um país de gente ressentida e sedenta por vingança. Mesmo assim, cabe lembrar que o NSDAP não conseguiu mais de 35% dos votos limpamente. Para tornar-se partido majoritário, teve de incendiar o parlamento (Reichstag, um edifício lindo, por sinal) e jogar a culpa nos comunistas. Já Haider andava na casa dos 11% com sua Aliança para o Futuro da Áustria (nome que levanta desconfianças, não?), o que, somando os votos se seu antigo partido, também de extrema direita Partido da Liberdade da Áustria (antigo partido de Haider), dá aos obscurantistas e revisionistas algo como um quarto das cadeiras e um lugar na coalizão que governa. Trocando em miúdos, era uma força política cada vez maior, por incrível que pareça.

Mas eis que morreu Jörg Haider, aos 58 anos, figura mais emblemática do retrocesso europeu. É claro que o eleitor reacionário não vai mudar de posição, mas a perda de uma figura tão carismática é sempre um golpe duro. Andam dizendo que os dois partidos extremistas talvez consigam reatar, sem a figura acachapante de Haider, o que os tornaria, aí sim, de fato fortíssimos na cena nacional austríaca. A ver-se. Mas eu, de minha parte, lendo sobre o assunto, não consegui evitar a lembrança de uma mania tipicamente americana, que aliás é título (ou era, as coisas mudam tanto) de uma série de revistas em quadrinhos da Marvel: “What if…

Várias vezes, já me perguntei o que teria sido do mundo se, por exemplo, Marco Aurélio tivesse conquistado as terras ao norte do Danúbio. Se os portugueses não tivessem conseguido expulsar Villegagnon da Guanabara. Se os ingleses tivessem consolidado seu domínio na França, durante a Guerra dos 100 anos. Se Amaury Kruel não tivesse mudado de lado na última hora e 1964 marcasse não um golpe, mas o início de uma guerra civil. Se os alemães tivessem atacado para valer em Dunquerque e aniquilado o exército britânico. Se, e isso seria ainda mais engraçado, quando se escolheu a língua oficial dos EUA, em vez de dar inglês por um voto contra o alemão, fosse o contrário. E por aí vai.

Mas a questão mais terrível que se coloca é a seguinte: e se o jovem Adolf Hitler tivesse sido abatido quando era cabo do exército austríaco na Primeira Guerra Mundial? Se ele jamais pudesse escrever Mein Kampf, queimar livros e exterminar minorias? Não teria havido Segunda Guerra? Não teria existido a catarse suicida da Europa, bombardeios e carnificinas mútuos? O que teria sido a história do século XX sem Muro de Berlim, sem Comunidade Européia, sem Plano Marshall? Israel jamais teria sido fundado, provavelmente. Toda a reflexão, todo o sentimento de culpa, toda a vergonha pela colaboração com o nazismo, forte em todos os países que a Alemanha ocupou e mesmo em alguns que seguiram livres, nada disso teria acontecido. A maneira de pensar elitista e, sem dúvida, racista do século XIX, que até o holocausto nunca tivera necessidade de esconder o rosto, ganharia mais um bom meio século de hegemonia escancarada. Certamente, menos sangue teria sido derramado no período infernal do domínio de Hitler. Mas também cabe se perguntar quanto sangue a mais não teria sido derramado depois. E eis uma pergunta mais difícil, porém talvez mais importante: a bomba, não tendo estourado em 1939, demoraria quanto tempo a mais para estourar? E teria estourado mais forte, com armamento atômico já desenvolvido?

Ninguém sabe, é claro. Mas sabemos, isso sim, que hoje, no início do século XXI, uma outra bomba está armada. Desta vez, o crescimento das hostilidades é mais lento e mais disfarçado. O mundo é outro, mais global, mais competitivo, mais exausto por uma exploração predatória e irresponsável. Há mais gente para se sentir injustiçada, há mais gente para empobrecer com a crise. Mas a idéia de que haja inimigos espalhados pelo mundo inteiro está voltando à moda. Jörg Haider, a figura emblemática, na Europa, deste tipo de pensamento, acaba de morrer. Talvez os ânimos se acalmem um pouco por enquanto, ao menos na Áustria, na falta de um grande líder irresistível.

Mas e depois? E se (what if…) surgir um outro? E nem precisa ser aqui. Os Estados Unidos, que não têm a mesma história, nem a mesma cultura, nem os mesmos problemas, nem o mesmo “paradoxo” da Europa, estão loucos, mal se segurando nas calças, para entrar pelo mesmo caminho de sandices. E já que atravessamos o Atlântico, por que não estender as perguntas: e se Obama não for eleito? E se for eleito, mas não puder assumir? E se…

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Panela de pressão apitando em desespero

Guerre
A Europa carrega nas costas o peso dos crimes da História; senão todos, pelo menos quase. Isto pode ser verificado em todas as catedrais e castelos, bulevares e cafés. A beleza das árvores no outono pode emocionar, mas sussurra constantemente no ouvido a memória do colonialismo, do fascismo e da Inquisição. O Louvre, além da Vênus e da Gioconda, ainda tem nas paredes, mesmo fenecidas, as manchas de sangue da noite de São Bartolomeu. O Duomo de Florença é no fundo um compêndio da ganância dos Medici, assim como a Praça de São Pedro reflete a história para lá de profana do papado. E o museu do Prado, para não esquecer a Península Ibérica, acima de todas as suas telas de Velásquez e El Greco tem penduradas as vítimas hereges e judaicas, como os espectros que rondam o Tiergarten de Berlim.

Mesmo os crimes cometidos na África, na América e na Ásia são reflexo da crueldade dos europeus, esses seres pálidos de terras frias e escuras, que venderam, geração após geração, suas almas em troca de ouro e glória. Os crimes dos americanos no México, no Caribe, na Coréia, no Vietnã, no Iraque, também ecoam, ainda hoje, a sede de sangue dos conquistadores europeus. É a ação do chamado Ocidente (um conceito obscuro capaz de incluir todos os habitantes de países ricos que não têm pele escura ou olho puxado).

Toda essa sanha destrutiva custou caro ao continente. Eles chegaram à beira do abismo mais de uma vez, a última delas há pouco mais de meio século. Perderam grande parte de sua riqueza, suas colônias, sua predominância internacional. Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, Áustria, Portugal. Todos eles, países que chegaram a se considerar donos de um belo naco do mundo – ou de todo ele. Centros de cultura, comércio e poder. Todos submetidos ao jugo de sua ex-colônia norte-americana e, por algum tempo, a seu antigo patinho feio, a Rússia.

* * *

O que restou do banho de sangue foi um continente fascinante, pelo que tem de cruel e pelo que tem de admirável. Ao contrário do que disse o Otto Lara Resende (ou será que foi o Nelson Rodrigues, se fazendo passar pelo Otto? Isso acontecia…), não é uma burrice aparelhada de museus, mas o museu vivo das burrices e dos brilhantismos que nem sempre se distinguem claramente. É o continente que inventou o humanismo com as ferramentas do Terror e da retórica esnobe. Foi a primeira parte do planeta a romper aristocraticamente com a aristocracia, a disseminar tiranicamente os valores democráticos, a abrir a sociedade às mulheres, sem abrir mão do patriarcalismo. Neste rabicho da Eurásia surgiu a idéia de que todo indivíduo tem direito à educação: os ricos e os pobres, os brancos e os imigrantes; educados, os trabalhadores puderam render melhor nos momentos da espoliação. A Europa investiu mais do que ninguém em transporte de massa, que leva seus subjugados para subúrbios desumanos como os nossos – bom, talvez não como os nossos.

A amplitude das contradições chega a ser fantástica. Se for para comparar com o Brasil, eu diria que nossas contradições são mais comportadas, reproduzindo na ponta dominada uma imagem de tamanha incompatibilidade. Note-se a civilidade, e quão brutal essa civilidade pode ser: quando há um problema, e Deus sabe que há muitos, eles sentam, discutem e resolvem como der. Nem que isso envolva ameaças de aniquilação e fantasmas de guerras passadas. A cultura européia, com toda sua arrogância e xenofobia, e talvez até mesmo por causa dela, é mais aberta do que a nossa. Como pode? Apesar de uma infinidade de atitudes de segregação e desrespeito que se vêem quotidianamente nas ruas de Paris, ainda assim os franceses se dedicam a iniciativas de aproximação com outras culturas, religiões, civilizações, bem mais que os brasileiros.

No Brasil, quando se discute qualquer assunto, a comparação é inevitável: “no Brasil é X, na Europa (ou nos EUA), é Y”. Já o europeu discute assim: “Aqui X, no Egito é Y, em Madagascar, Z, no Japão W, no México…”. O mais notável é que na verdade eles estudam geografia mais ou menos como nós, mas não acham que seja perda de tempo. É um exercício pelo qual reafirmam para si próprios, e para os periféricos deste mundo, sua superioridade moral (já que a econômica e a bélica, não dá mais). Assim, absorvem aquilo que é útil para eles e elevam à categoria de descrição fiel do universo. É autoritário e, ao mesmo tempo, aberto.

Mesmo assim, parece que o momento atual está fazendo transbordar isso tudo. Devo dizer que estou assustado, sem querer soar sensacionalista. Há um ódio latente que é difícil não notar, e que tem justificado um desejo de retornar a narrativas bem mais fechadas (e tão autoritárias quanto). Aqui há olhares de desprezo, acolá de agressividade. De um lado há sobrenomes tradicionais da Provença ou de Champagne, do outro filhos do Maghreb e da Costa do Marfim. Houve por algum tempo uma ilusão de integração e assimilação que exala uma certa beleza. Por sinal, chegou a ser verdade alguns casos. Por exemplo, durante um curso da faculdade, estudantes de origem islâmica debatem com o professor no tom mais aberto e intelectualmente honesto possível.

Fora da sala de aula, isso não acontece dessa maneira. Os grupos islâmicos estão se tornando mais herméticos e muito se fala em ressentimento. Há famílias que recusam a entrada de médicos e bombeiros em seus enclaves, sentindo-os como se fossem imposição de um império colonial. Não admitem estudantes não-islâmicos em suas escolas, e chegam a expulsar famílias que colocam seus filhos em escolas públicas, e portanto laicas. Afastam-se de todo contato com o país em torno. A descrição é desagradável, mas o mais desagradável é perceber que por muito tempo não acontecia assim… e agora está acontecendo.

* * *

A explicação pode estar no lado inverso, e é por isso que ele me assusta mais. É mais ou menos normal que populações imigrantes procurem buscar segurança no próprio seio (claro, com um certo bom senso), principalmente quando são grupos excluídos socialmente e economicamente desfavorecidos. O que observo, porém, é um recrudescimento do ódio nos europeus, esses mesmos que há algumas gerações desenvolveram os conceitos de tolerância, humanismo, igualdade e assim por diante, pincelados acima. As comunidades muçulmanas se fecham sobre si próprias e os próprios europeus se fecham também, não só para os muçulmanos, mas para os próprios conceitos que formam o, digamos assim, lado mais admirável dessas contradições européias. Andam ressuscitando ideais de pureza e violência que se acreditavam sepultados e superados. A presença de um “outro”, na verdade um semi-outro, já que sua história é intimamente vinculada à história dos europeus nos últimos séculos, justifica a a firmação de uma identidade que também é mutilada e grosseira. Nada de bom pode sair daí.

Vê-se a tensão em cada canto, como uma panela de pressão que apita em desespero. Muçulmanas com véus tão apertados quanto possam, coloridos, de frente para moçoilas de mini-saia e maquiagem, que as encaram com ar de desdém. Rapazes de barba e pele escura olhando como quem quer briga para colegas pálidos que se barbeiam provavelmente duas vezes por dia, e não retornam o olhar de maneira menos agressiva. As posturas estão cada vez mais demarcadas, distantes, herméticas. Os cursos universitários de cultura islâmica têm pouquíssimos interessados, a grande maioria de estudantes muçulmanos, quase nenhum não-islâmicom querendo se aprofundar em outras formas de pensar e enxergar o mundo. Quando o provável próximo presidente chama uma parcela da população de escória, não é à toa. Não há diálogo, senão marginalmente, entre pessoas “de boa vontade” mas um pouco sonhadoras.

Não há como deixar de ver um certo risco de uma guerra civil, quiçá religiosa, na Europa. Nada, claro, como o que se passa no Brasil. Não é questão de ser assaltado na frente de um policial que finge nada ver. É algo um pouco mais, digamos, sério. Seria a concretização do “choque de civilizações” de Samuel Huntington? Talvez, mas o que se choca são, na verdade, vizinhos que têm o mesmo passaporte, votam nos mesmos candidatos, usam a mesma linha de metrô.

Os valores que salvaram o continente, infelizmente, não são tão fortes quanto chegaram a se afirmar (e não poderiam se firmar sem afirmar-se como tais, talvez até mesmo sabendo que era blefe). Não será de estranhar se esses antigos monumentos forem testemunhas de mais um banho de sangue. Talvez o que falte a esses valores seja nutrir-se da própria dialética e entender o quanto há de contraditório neles. Afinal, se havia o ideal de uma integração, que integração é essa que necessariamente apaga quem vem a se integrar? Se de fato a imigração enriquece a cultura que a recebe, qual é o nome que se dá a um enriquecimento que relega a subúrbios esquecidos a fonte dessa mesma riqueza?

Há uma falha trágica, pelo visto, na própria integração, e que vem completar as falhas dramáticas do integrismo dos brancos e do comunitarismo dos árabes. Muito de criação poderia passar no meio desses buracos, desses vórtices supersaturados de energia. Mas caminhando pela cidade e por alguns de seus subúrbios, conversando com jovens e velhos, franceses “de souche” e filhos de magrebinos, o termo que flutua por entre as frases, quando o interlocutor faz a pausa para retomar a respiração, é ressentimento, como o apito da panela de pressão.

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