arte, cidade, cinema, comunicação, costumes, frança, francês, música, Montmartre, paris, passado, passeio, praça, primavera, prosa, saudade, transcendência, tristeza, viagem, vida

Enquanto vou fechando: Charles Aznavour

Quem já se apertou num apartamento minúsculo, oprimido pela falta de luz e pelo frio glacial. Quem já flanou entre fachadas de pedra com placas de moradores ilustres. Quem já viu minguar a conta bancária e recebeu ameaças pelo correio. Quem já passou horas procurando pelo menu mais barato do bairro para almoçar mal…

Não fica indiferente a esta canção.

“E quando, em troca de uma boa refeição quente, um bistrô qualquer comprava uma tela nossa, recitávamos versos encarapitados em volta do aquecimento, esquecendo o inverno”.

Viva Charles Aznavour (ou, se preferir, Chahnourh Varinag Aznavourian), o homem que se aposentou 14 vezes e continua trabalhando. E também, claro, protagonista de uma das obras-primas de François Truffaut, Atire no Pianista:

Então viva Truffaut também, mas fica pra próxima…

Padrão
barbárie, Brasil, capitalismo, centro, cidade, comunicação, costumes, crônica, crime, descoberta, desespero, deus, direita, doença, economia, eleições, Ensaio, escândalo, esquerda, Filosofia, greve, guerra, história, hitler, humor, imprensa, ironia, música, modernidade, morte, obrigações, opinião, passado, passeio, pena, Politica, praça, prosa, reflexão, religião, sarkozy, saudade, São Paulo, tempo, transcendência, tristeza, vida

Tomar a potência, desinflar o poder

Começo a escrever na noite de sexta-feira anterior à Marcha da Liberdade marcada para a avenida Paulista, 28 de maio – dia que no futuro talvez seja nome de rua. Provavelmente só vou terminar de manhã, logo antes de partir para a referida marcha. Aliás, bem disse alguém por aí: não se deveria dizer “marcha”, mas alguma outra coisa, porque a liberdade não marcha, ela dança. (Voltaremos a isso.) Sábias palavras. Continuar lendo

Padrão
arte, barbárie, Brasil, capitalismo, centro, cidade, cinema, comunicação, costumes, descoberta, história, imprensa, ironia, jornalismo, literatura, livros, música, modernidade, opinião, Politica, prosa, reflexão, reportagem, Rio de Janeiro, São Paulo, teatro, trabalho, transcendência, vida

A classe mofadinha

Não posso deixar de compartilhar as citações abaixo, colhidas de entrevistas que fiz ao longo das últimas semanas para uma matéria sobre o consumo de cultura na classe C (a matéria saiu hoje). Elas deixam uma pulga atrás da orelha sobre o que é criar arte e cultura num país que redesenha sua pirâmide social:

Quem tem o volume de dinheiro dita as tendências. Hoje, o dinheiro está com a classe C. O que mais se vê agora são jovens louros, brancos e ricos usando ‘dreadlocks’ no cabelo. Os criadores de moda, de arte, de vestuário, de comportamento, passaram a vir de lugares que ontem eram guetos, não mais da elite.

Renato Meirelles, da consultoria Data Popular 

A arte do centro está escassa. Falta criatividade e originalidade de criação e promoção. A periferia encontrou, em diversos meios alternativos e acessíveis, uma forma de produzir, criar e promover com criatividade. Isso faz com que a arte da periferia ganhe respeito e espaço, para que os consumidores e produtores culturais se tornem capazes de pensar em novas formas de empreendimento artístico.

Marcão baixada, rapper
O ‘hype’ está em olhar o que está fazendo a classe C. A classe A está meio mofadinha e a classe B está deslocada. Não conseguem dialogar com as populações que estão subindo.  A barreira cultural está destruída. As classes abastadas dependem da nova classe média para viver. É o principal mercado consumidor e fonte de mão-de-obra. Não é mais possível fortalecer barreiras. A classe alta quer marcar sua diferença, mas essa diferença pode lhe fazer muito mal, isolando-a dos verdadeiros circuitos de produção de riqueza.
Ana Paula Kuroki e Laura Chiavone, publicitárias
Deixo os comentários a cargo de quem tenha algo a comentar.
Padrão
arte, música, transcendência, vida

Enquanto vou fechando: Nina Simone

Eu queria escrever uma postagem dedicada a ela.

Sobre como sua voz me perturba, tão suja e tão precisa ao mesmo tempo, e não permite uma audição desleixada.

Sobre como seu rosto impassível, duro, forte, corresponde à potência de seu fôlego, mas esconde o esforço. E como isso me perturba.

Sobre o porte altivo que freqüentemente desliza para a superioridade — e é melhor quando desliza.

Volto a Nina Simonde sempre que algo está desalinhado. Sempre há algo desalinhado.

Na falta de tempo e energia, em vez de um texto dedicado a Nina Simone, é melhor postar simplesmente Nina Simone.

Padrão
Brasil, cartola, Clara Nunes, costumes, crônica, direita, fotografia, história, imagens, línguas, música, opinião, passado, passeio, português, prosa, reflexão, Rio de Janeiro, saudade, São Paulo, tempo, tristeza, viagem, vida

Ao som do mar e à luz do céu profundo

É de manhã, vem o sol, mas os pingos da chuva que ontem caiu ainda estão a brilhar

É de manhã, vem o sol, mas os pingos da chuva que ontem caiu ainda estão a brilhar

Como todo mundo no Brasil, sempre fui de encarar as datas cívicas como desculpas para os feriados. Hoje, se estivesse em São Paulo, imprecaria contra os céus por encaixar o dia da pátria num domingo, quando não faz diferença e não dá para ir à praia.

Mas, bolas, nada como a distância para fazer de nossos cínicos uns sentimentalóides. Eis que me flagro com vontade de celebrar o sete de setembro. Nada grandioso. As patriotadas são coisa do passado ou de gente que sofreu a lavagem cerebral de uma educação anacrônica. Honestamente, me assustam, e fazem pensar no irracionalismo belicista de outros tempos e outras nações.

O sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo, e a natureza sorrindo, tingindo, tingindo

O sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo, e a natureza sorrindo, tingindo, tingindo

O verdadeiro patriotismo é coisa que praticamos com muita competência no Brasil, embora não pareça, embora nos tomemos todos por uns hipócritas entreguistas ou corruptos. É ter prazer em conversar em nossa própria língua, com nossos tantos sotaques. É salivar pelos pratos e quitutes de nossas culinárias, com intensidade particular, diferente do prazer em provar a comida dos outros. É admirar as paisagens, reconhecê-las e tirar delas lembranças e utopias. É conhecer uma infinidade de melodias e poemas, recitá-los, cantar junto.

Não porque, e isso é o mais importante, sejamos melhores do que os demais países em qualquer dessas coisas. Mesmo se, eventualmente, formos mesmo. Mas fundamentalmente porque são coisas nossas, são nossas coisas.

O verdadeiro patriota, portanto, deve entender que as maravilhas de seu país não caíram do céu, mas também ele não está condenado a seus defeitos.

Para o verdadeiro patriota, é sempre possível conceber seu país melhor do que é. O verdadeiro patriota pode imaginar, distante no futuro, a nação em outro patamar de civilização, sem que seus pares estejam autorizados a acusá-lo de desprezar o presente.

Por um motivo muito simples. O verdadeiro patriota é aquele que sabe que, para chegar aonde se deseja, há simplesmente que fazer por onde.

Um pouco de uma raça que não tem medo de fumaça e não se entrega não

Um pouco de uma raça que não tem medo de fumaça e não se entrega não

Padrão
arte, Brasil, calor, crônica, história, música, obituário, passado, pena, português, prosa, reflexão, saudade, tristeza, viagem, vida

A saudar Iemanjá

Mais uma jangada saiu pro mar. Vai navegando nela, provavelmente a assoviar uma de suas próprias canções, o homem que cantou a Bahia e as baianas. Cantou Doralice e Dora, rainha do frevo e do maracatu. Cantou Rosa, com a rosa no cabelo e o olhar de moça prosa. Cantou Marina, morena Marina, que ousou se pintar, ela que já é bonita com o que Deus lhe deu. Vai sumindo no horizonte a jangada do trovador Caymmi. Vai se despedindo de seus personagens, os trabalhadores do litoral, curtidos pelo sol. E quando a jangada voltar só, é porque, como ele mesmo já disse, o mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito.

Com ele, aprendemos sobre o canoeiro que joga a rede no mar, puxa a corda, colhe a rede. Com ele, aprendemos que quem não tem balangandãs não vai ao Bonfim, e olha que quem vai ao Bonfim nunca mais quer voltar. Aprendemos também que o pescador tem dois amores: o bem da terra, o bem do mar. O bem da terra é aquela que fica na beira da praia, que chora e faz que não chora quando ele sai. O bem do mar é o mar, que carrega nas ondas pra ele pescar. Em poucas palavras, aprendemos que tudo na Bahia faz a gente querer bem.

Dorival, depois de muito matutar em sua rede, concluiu que era hora de levantar e partir para uma outra Maracangalha, de uniforme branco e chapéu de palha, para encontrar Anália e os velhos amigos, Tom Jobim, Jorge Amado, Vinícius de Moraes. Alguém, depois de tanto esperar, deve ter cobrado. “Ei, Dorival! Deixa de lado essa pose e vem pro samba! Vem sambar, que o pessoal está cansado de esperar!” E ele, que não é ruim da cabeça, nem doente do pé, levanta e vai, copo na mão e o corpo mole, que é assim que o samba deixa a gente. Ora, quando se dança, todo mundo bole, é ou não é?

Tudo isso, então, por saudade dos amigos. Ah, insensato coração! Mas se ter saudade é ter algum defeito, como em outros tempos Dorival teve da Bahia, então que lhe reservem o direito de ter alguém com quem se confessar. Se confessar e conversar, claro, sobre as sacadas dos sobrados da velha São Salvador, com as lembranças de donzelas de outros tempos, e tudo mais que há naquela terra, o vatapá, o mugunzá, o caruru. Realmente, a Bahia tem um jeito que nenhuma terra tem.

Muita gente quis conhecer a areia e a morena de Itapoã, mas voltou decepcionado. Eu mesmo ardia de curiosidade pela lagoa escura do Abaeté e fiz muxoxo diante de um lago urbano perfeitamente normal, arrodeado de areia não tão branca, nada branca. Na minha estultície, demorei a entender o óbvio. Que não é aquela a Itapoã de tantas saudades, nem o Abaeté onde lavadeiras se benzem ao ouvir a zoada do batucajé. Como a Pasárgada de Bandeira, as paisagens de Dorival Caymmi não são referências geográficas, mas poéticas. Não existem sobre a terra, só no vento dos versos e em nenhum outro lugar. Melhor assim, claro. Muito melhor assim.

Foram precisos 93 anos para apagar a voz límpida, de clareza ímpar, grave como poucas, enorme desafio para os operadores de som do último século. Da boca que emitia as vibrações intermináveis, mas suaves, vinha sempre também o sorriso amistoso de quem está de bem com a vida, não teria por que não estar. Era alguém que sabia dos momentos na vida em que, se a noite é de lua, a vontade é contar mentira e se espreguiçar. Dorival Caymmi nasceu pequenininho, como todo mundo nasceu, depois tornou-se o porta-voz de uma Bahia que deixa saudades em seus filhos. E de trabalhadores que se arriscavam no mar, enquanto suas negas rezavam pra ter bom tempo e faziam suas caminhas perfumadas de alecrim.

As composições de Dorival tinham um despojamento calculado que associamos normalmente à Bossa Nova. Não à toa, claro. Foi um dos primeiros autores a merecer gravações na batida inovadora de seu quase conterrâneo e também gênio, João Gilberto. A música corria com tanta força no sangue desse baiano pacífico da cabeleira branca, que jorrou em notas sobre toda a descendência. Eis aí a dinastia formada e firme, tantos bons músicos, Dori, Nana, Danilo.

Está certo o compositor, é impossível estacionar aqui para sempre. Muita coisa boa, muita coisa a fazer, a aproveitar, a cantar, pois é. Mas não há bem que não se acabe. Assim adormece esse homem que nunca precisou dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo do que a sua terra. Foi assim que mais uma incelença entrou no paraíso. Adeus, mestre, adeus. Até o dia do juízo. E que descanse bem, porque é doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar.

Padrão
arte, Brasil, cartola, música, obituário, passado, pena, prosa, saudade, transcendência, vida

Vista assim do alto (1913-2008)

Mangueira seu cenário é uma beleza
De madrugada, o diálogo que ninguém escutou.
– Me levar? Como assim, me levar? Não vai me levar coisa nenhuma.
– Desculpe, Seu Bispo, temos que ir.
Seu Bispo não quis saber. Fechou a cara e cruzou os braços. Turrão daquele jeito, ninguém poderia obrigá-lo a fazer o que não quisesse. Aliás, todo mundo sempre soube disso.
Só que dever é dever.
– Vamos, Seu Bispo, está na hora.
– Você me respeite. Eu sou pai de família. Tenho noventa e cinco anos e não sou obrigado a ouvir desaforo!
E Seu Bispo enterrou o queixo no peito, franziu o cenho, afundou os ombros no travesseiro verde-claro que as enfermeiras vinham trocar a cada manhã.
Quietos ficaram, imóveis, os interlocutores. O impasse era um triunfo para o velho orgulhoso, mesmo na doença, mesmo preso ao leito da clínica. As carnes negras do rosto, mais que cansadas, lhe caíam pelas bochechas. Por baixo, ele tentava disfarçar um sorriso. Mais uma vez, seu famoso mau humor haveria de prevalecer.
De pé, paciente como são os de sua estirpe, o belo anjo negro se contentava em ser o último a encarar os lábios que sorriam. Aquela magnífica boca que, durante tantas décadas, preenchera o ar dos salões onde casais dançavam de rostos colados, e depois fora animar as multidões na avenida, a voz encorpada pairando acima dos três mil tambores.
Pois a voz soou de repente, imperativa e irresistível:
– E vai me levar pra onde?
Um pouco intimidado, apesar de imortal, o anjo só respondeu apontando para o alto.
– Pro céu? Mas não vou.
– Seu Bispo…
– Que papo é esse? Obrigado se vocês lá em cima pensam que eu sou uma boa pessoa, mas não vou. Fico por aqui mesmo.
– Olha, infelizmente não é possível…
– Aqui, que não é possível! Uma hora, estou com uns probleminhas no rim, na bacia, derrame, coisa e tal. Na outra, já vem neguinho querendo me levar pro céu. Vê se pode…
Tudo isso, José Clementino dizia ainda com os braços cruzados, a papada negra esparramada sobre a camisa branca, a cara amarrada.
– Não, não.
O anjo adocicou ainda mais a voz. Aquele não era qualquer mortal, era alguém que, chegando ao céu, receberia no mesmo instante um lugar de destaque entre santos e orixás.
Nada de ferir seus sentimentos.
– Desculpe, Seu Bispo, eu não posso esperar mais…
– Quer parar de me chamar assim? Ninguém nunca me chama assim!
– … Seu Jamelão, estão esperando o senhor para puxar uns sambinhas em homenagem a seu Angenor e seu Natal.
A explicação teve efeito contrário ao desejado pelo anjo. Uma falha inaceitável, para um ser eterno e que sabe de tudo. Jamelão quase rolou para fora do leito. Explodiu, abriu os braços, berrou com uma força difícil de conceber em um homem tão velho e tão fragilizado.
– Quantas vezes vou ter que falar? Eu não sou puxador de samba! Puxador é maconheiro ou ladrão de carro!
Desorientado, o anjo tentou contemporizar. Levou as mãos aos ombros do cantor e o empurrou de volta para o travesseiro, com toda sua delicadeza de anjo.
– É que, lá em cima, está todo mundo com saudades do senhor. Cartola, Paulo da Portela, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, todo mundo quer ouvir a sua voz. Estão preparando uma roda lá em cima, com vista para a Mangueira e o Rio. O senhor sabe, Seu Jamelão, a cidade, vista assim do alto, mais parece um céu no chão…
O cantor já parecia mais calmo. Talvez fosse o esforço que o cansasse, ou a lembrança dos amigos.
– E os daqui, seu Jamelão, ainda vão poder escutar os seus discos.
Jamelão fechou os olhos. Sua respiração era um fio, a expressão no rosto era tranqüila, nada parecida com a cara de poucos amigos quase tão célebre quanto a voz enorme.
– Vem comigo, dá a mão, vem…
Ao amanhecer deste sábado, o Brasil soube que Jamelão não era mais.

Padrão
arte, Brasil, cinema, escândalo, história, música

A voz de um personagem trágico

Cartaz de documentário sobre Wilson Simonal
Estou cada vez mais convencido de que os documentários brasileiros merecem mais aplausos que a ficção. Não sei se é por causa da influência nefasta de algum monopólio, ou se é culpa de regras de financiamento que favorecem o banal em detrimento do ousado, sei lá por que é. A verdade é que são eles que me deixam mais entusiasmado. Nada contra o pessoal da ficção, mas somos, vamos convir, o país de Eduardo Coutinho, João Moreira Salles, Sílvio Tendler, João Batista de Andrade.

Na última semana, tive uma overdose de documentários brasileiros, a tal ponto que estou de cama com 39 graus de febre. Claro que eu poderia culpa a chuva, as mudanças do clima, o álcool, mas seria falso: foi excesso de cinema. Entre autênticas porcarias e maravilhas, alguns filmes se destacaram claramente. Eduardo Coutinho, por exemplo, deixou bem claro por que é o rei do documentário brasileiro. Jogo de Cena é sua obra-prima, acima de Edifício Master e Cabra marcado para morrer.

Mas tenho a vida inteira para escrever sobre Coutinho. Hoje é dia de falar de Wilson Simonal, cuja biografia fechou o festival. Chamo de biografia por comodidade, mas o documentário (chama-se Simonal: ninguém sabe o duro que dei) se concentra em seu sucesso sísmico e na tragédia que acabou com sua carreira e, sem exagero, sua vida. “Tragédia” é bem a expressão que se aplica, como tentarei explicar mais abaixo no texto.

Eu sabia muito pouco da história. Conhecia algumas de suas músicas por noitadas no segundo andar do Sapore di Rosi, em São Paulo, mas muitas vezes nem sabia que eram dele. Soube vagamente da acusação de delação, mas não tinha idéia do ponto a que a coisa chegava. O documentário derrapa em diversos momentos, já expostos por gente mais competente do que eu. Mesmo assim, afirmo que ele consegue abordar o tema com uma profundidade rara, nesses nossos tempos de revisionismo e raiva infantil. Simonal é retratado como um alegre vozeirão apanhado no turbilhão de uma década que não perdoava.

Eis onde entra a questão da tragédia. O próprio do gênero trágico, acima de tantas outras características, é um certo paradoxo da responsabilidade. A maldição que se abate sobre o herói é, sim, resultado de erros seus, sobretudo a famosa hybris (ὕϐρις), o excesso trágico. Mas, ao mesmo tempo e com o mesmo direito, o herói parece ser vítima de circunstâncias muito além de seu controle, mesmo de sua concepção. O exemplo perfeito, para variar, e mais próximo de Simonal, é Édipo. Mas o mesmo sucede a Prometeu, Agamemnon, Fedra, Creonte, Antígona.

Não vejo por que eu não deveria alçar Wilson Simonal à condição de herói trágico. Guardadas as devidas proporções, é o que ele foi. Nos erros e nos acertos, nas qualidades e nos defeitos. Nós, que crescemos no século XX, fomos criados com a ideia de que um herói é um ser perfeito, imaculado, um Batman. Quando o heroi tem um pouco mais de personalidade, logo o classificamos como anti-heroi. É porque a DC Comics, a Marvel e a Disney fizeram de nós uns ingênuos. O heroi trágico é cruel como qualquer um, e até mais, a ponto de sacrificar uma filha para vencer uma guerra ou vingar a morte do pai assassinando a própria mãe, como Orestes. Ele é um semideus ou, pelo menos, parece ser.

Simonal, no retrato do filme, parecia mesmo um semideus. Atingiu o auge graças a um carisma espantoso e uma voz deliciosa. Gravou de Carlos Imperial a Moacyr Santos, cantou com Elis e Sarah Vaughan, roubou a cena, vendeu mais do que vendia Roberto Carlos. Mas, embevecido com o sucesso, não sentiu a mudança dos ventos. À beira da falência, reagiu como tanta gente na célebre classe média brasileira: chamou um policial amigo para dar uma lição no contador. A entrevista com esse contador é o ápice do filme. Numa cena, o entrevistador chega à residência do homem e é recebido com uma cara de surpresa e medo que resume 40 anos de história do Brasil.

Simonal, como Édipo, cavou a própria cova, eis o detalhe que não pode jamais ser negligenciado. Acontece que o meganha seu amigo era um agente do DOPS. Simonal, que no filme é retratado como um sujeito bastante alienado (como o pessoal de hoje em dia, vamos dizer assim), talvez nem tivesse consciência do que era, de fato, o DOPS. A coisa já estava ruim o suficiente para o lado dele, mas não seria tudo. Sua alienação, associada à arrogância de quem veio de baixo, muito baixo, e venceu num mundo hostil, entrou em ação. Por mera bravata, ele assinou a própria sentença ao se declarar amigo do regime e delator do SNI.

Mentira, provavelmente. Simonal não era dos mais politizados e provavelmente não teria nem a quem delatar. Mas os tempos não estavam para brincadeira. No auge da linha-dura, o cantor foi soterrado por uma campanha de apagamento. Não é difícil entender o que aconteceu: se o inimigo é imbatível, como o era a mão de ferro dos militares, o fogo se concentra por inércia no que há de mais próximo. O elo mais frágil, bem se sabe, é sempre o primeiro a romper. Nesse caso, foi um artista que falou mais do que a boca. Foi uma estátua que acreditou ser a divindade que retratava. Foi um heroi trágico que caiu no erro da hybris.

Simonal passou o resto do regime militar bebendo muito além da conta, magoado e atordoado com seu destino infeliz. Provavelmente, não entendia muito bem de onde partira o raio que o atingiu. Com os civis de volta ao Planalto, o pobre cantor começou um périplo para provar sua inocência. Conseguir, conseguiu, mas aí já ninguém mais queria saber dele. Estava ultrapassado, quase esquecido, velho, estragado pelo alcoolismo. Ao contrário do malfadado Édipo, sua pele enrugada não carregava nenhum valor simbólico. Apresentava-se para dúzias de pessoas, ele que outrora ensandeceu o Maracanãzinho. Só programas de televisão de quinta categoria o recebiam, levando na mão trêmula o atestado, emitido pelo governo federal, de que ele jamais fora um delator.

Era tarde demais. Como se vê, um regime que escarra no rosto da democracia não vitimiza apenas os que se levantam contra ele. Salvo os espertos de sempre, toda a nação sofre e se desestrutura. Wilson Simonal é o exemplo mais perfeito e mais trágico. Restabelecido o regime civil, dito democrático, nenhum de seus acusadores de outrora ergueu a voz para redimi-lo, nem em seus momentos de maior sofrimento, como o documentário se apressa em sublinhar. Por outro lado, os amigos tampouco vieram eu seu socorro. Mas isso, por algum motivo, não parece ser do interesse dos diretores.

Que três cineastas (Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal), trinta e cinco anos mais tarde, cavouquem e exponham a sorte de Simonal é um sinal interessante. Não deixa de ser, como se tem dito, um passo importante na recuperação do nome de alguém que, em condições normais, ficaria conhecido apenas como um grande artista e um mau administrador. Para a compreensão do que aconteceu com nosso país na geração de nossos pais, ainda é um passo pequeno.

No meio disso, está o grande mérito do filme, que é a descoberta de um personagem riquíssimo, complexo, que se pode igualmente amar e odiar com intensidade, segundo as conveniências: era carismático e pusilânime, belo e fútil, genial e covarde. Escolha suas características preferidas e faça seu retrato de Simonal. Mas, para lá das conveniências, está o reconhecimento de que as tragédias não foram escritas por acaso. Elas acontecem de verdade.

Mais sobre Simonal aqui, aqui e aqui.

Padrão
arte, Clara Nunes, crônica, música, prosa

A vida emoldurada

Torres Azuis Bizarras Noite San Giminiano
Ia andando pela rua dos fundos, atrás de um qualquer coisa que pudesse passar por jantar. Descia uma chuva de alfinete, vagarosa e desagradável. Ainda não era bem noite, mas já fazia escuro e parecia que a cidade se escondia. Todo mundo foge da temperatura que cai bruscamente; em vez de visitar os amigos ou a família, vale mais terminar o domingo com um filme da televisão. No meu caso, foi a necessidade que deu a última palavra. Comer é preciso. Saí. Para me proteger da água e das lâminas do ar, a manta grossa e, principalmente, a música que os fones de ouvido sussurravam.

Quando fiz a curva e embiquei pela rua maior, a faixa mudou. Os acordes em staccato de um cavaco e a voz de Clara Nunes fazendo um aperto de saudade no seu tamborim: Tristeza e Pé no Chão. No mesmo instante, deu-se alguma coisa. Fui invadido por um desconforto que não podia explicar, como se minha cabeça entrasse em conflito consigo mesma. Ou melhor, como se meu corpo visse o mundo à sua frente, mas se reconhecesse em outro canto, outro plano, outro universo. Estranha sensação, caminhar tremendo de frio por uma rua deserta e brilhosa, com tantãs e ganzás como trilha sonora, gingando na celebração de uma voz divina.

Culpa do aparelhinho que me atirava a música direto nos tímpanos. Quem segue seus caminhos ao som da pura realidade, buzinas, berros e motores desregulados, talvez não me entenda. Mas, palavra, é assim. Quando inventaram o walkman, o diskman, o celular que capta FM, o toca-fitas de carro e o famigerado iPod, inventaram ao mesmo tempo a vida com trilha sonora. Para muita gente, o próprio fato de existir passou a ser pontuado pelas emoções que melodias transmitem e batidas impõem.

Tanta gente no metrô com cabos pendurados, caindo pelos lados do pescoço como madeixas de plástico! São garotos, não têm a habilidade de controlar o volume. Um vagão inteiro submetido ao bate-estaca. Seus olhares se perdem no desprezo pelo universo, nem consigo supor que imagem podem ter do mundo, da cidade, das pessoas, enquadrados pela batida agressiva das pistas de dança. Não pode ser a mesma face que eu vejo, por trás de minha música diferente.

Meu caso começou como fuga. Tinha pânico dos vendilhões da Paulista, precisava de um pretexto para não escutar suas vozes, não precisar grunhir um “não” a cada passo. Certo dia, captei a Rádio Cultura pelo celular; examinar os rostos suados e sérios ao som do Stabat Mater de Pergolesi me incutiu a certeza de que todos à minha volta eram infelizes. Compreendi a profunda desgraça de todo aquele ambiente e quis escapar. Claro, a culpa não cabe inteira à música, mas ela tem parte.

Onde foi que li? Um ensaio sobre como mudou nossa relação com a música no último século. Pode ter sido Adorno, o do contra, ou Nikolaus Harnoncourt, ou qualquer outro. Primeiro foi o fonógrafo, que deu à humanidade o controle sobre as harmonias. Qualquer caixinha poderia tocar como uma orquestra. Depois, o rádio espalhou pelo mundo as mensagens sonoras determinadas por alguém em algum lugar, seja lá quem for. Pois era um certo encanto que se quebrava. Tirar melodias de um objeto inanimado perdeu seu verniz de mágica. A música, daí por diante, seria outra.

O golpe de misericórdia foi dado, com certeza, pelo cinema falado. “O grande culpado da transformação”, já dizia Noel Rosa, filósofo malgré soi. Na tela, a música enquadrou a vida real. O herói enlaça a mocinha ao som dos violinos, o assassino dá suas estocadas com um fundo de trítonos secos. O público se deixa envolver. O público somos nós. Nós acreditamos. E transferimos a necessidade de trilha sonora para nossa própria existência. Sem querer.

Daí meu estranhamento, na noite de domingo, enfrentando o frio e a chuva embalado pelo surdo, a cuíca e a voz de Clara Nunes. A máquina que eu trazia no bolso não entende nada. Não sabe escolher o fundo que se adequa por natureza a cada ocasião. Era momento para o quase silêncio de Eric Satie, as lamentações de Robert Johnson ou a cantilena da quinta Bachiana Brasileira de Villa-Lobos. Lágrimas na avenida, um desfile marcado para a quarta-feira? Impossível.

Só fui capaz de retornar ao corpo quando abandonei toda pretensão a uma trilha sonora. O mundo se recompôs, terrível como é: um silêncio de cripta gótica, motores à distância, o eterno chiado urbano que nunca sei de onde vem. Crueza e crueldade do ar que não vibra segundo o acordo das vozes. O ar desobediente que existe além dos meus fones.

Padrão