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Imagens que não fizeram história (4): a Brasília estourada

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Faz bastante tempo desde a última vez que me deu ganas de vir aqui para falar de imagens que “não fizeram história“. Quase dois anos. E por um desses acasos que acabam virando significação, quando volto ao tema é para tratar de uma fotografia de Brasília. No terceiro artigo desta série, comentei uma fotografia de Brasília, justamente. Eram índios debaixo de chuva, à frente do monumento conhecido como “aos candangos” (chama-se, na verdade, Os Guerreiros). Agora, é questão de uma fotografia de candangos visitando o Palácio do Planalto; e com o Congresso ao fundo.

A imagem tem essa potência notável de produzir seus próprio relatos, principalmente quando ultrapassa seu enquadramento particular e abraça outras imagens. Elas demarcam todo um território imagético, atravessando continentes ou gerações. Para além do aspecto indicial da imagem fotográfica, o “isto aconteceu” de Barthes, temos de reconhecer um outro caráter, mais assertivo, que diz “isto está acontecendo” ou “isto ainda acontece”. Um efeito de ilusão, direis, e pode ser mesmo. Mas é muito mais uma reverberação afetiva, sem a qual a fotografia provavelmente só valeria pelo seu caráter documental e não circularia pelas coletividades; ou pelas redes, como tem sido com esta.

Por isso, quando as pessoas se deparam com essa família (seus olhares de admiração, o modo apurado como se vestiram, a patente humildade debaixo dos monumentos de concreto), sentem algo suficientemente forte para deter o olhar. É algo sobre o passado, certamente, mas é na mesma medida, ou até mais, algo sobre o presente: isto ainda acontece, isto ainda está acontecendo, esta foto está sendo tirada agora. Está sendo tirada a cada vez que olho para ela. É graças a esse efeito, essa dobra nas décadas que Einstein não menciona, que esta imagem de René Burri pode se conectar com a dos índios, que circulou em 2015, ou com tantas outras tiradas em Brasília. Ou até em outras cidades, dependendo do território espaço-temporal que queremos delimitar.

* * *

E no entanto não foi nada disso que chamou minha atenção de imediato, ao ver pela primeira vez essa imagem, que apareceu um dia desses nas redes, nem sei bem por quê. A primeira coisa que me saltou aos olhos foi o fundo ligeiramente estourado, bem no centro do quadro, apagando os detalhes de alguns andares do prédio do Congresso e o pé da coluna do palácio. Acontece que René Burri, fotógrafo suíço morto em 2014 com um portfólio contendo retratos de Niemeyer, Fidel, Le Corbusier, De Gaulle e muitos outros, tirou centenas de fotos de Brasília. Não só durante a construção, mas também em 1977, em plena ditadura. Um bom número com caráter essencialmente documental; um bom número explorando a geometria modernista; outras tantas, como esta, lembrando a presença daqueles que de fato construíram a Novacap e que nem sempre são mencionados.

Fiquei encantado com esse ligeiro estouro, mas preciso dar uma breve informação: fui ao site da agência Magnum, que exibe em versão pequena todas as fotografias do livro de Burri sobre Brasília. A imagem, tal como a apresentam ali, não está tão estourada, mas também não tem tanto contraste e os rostos estão na penumbra. Não sei se a versão da agência foi “corrigida” ou se alguém resolveu aumentar o brilho ao postar a foto na internet. Cá entre nós, prefiro a versão com estouro, pressupondo que, de todos os seus cliques, o experiente fotógrafo suíço tenha escolhido este para deixar uma nesga de luz excessiva, chapada como é a luz, no meio do dia, em pleno planalto central deste país tropical.

Faço essa pressuposição, confesso, porque me convém, tanto pela narrativa que quero sobrepor à fotografia quanto pelos demais territórios que ela pode traçar. O que acontece é que lidar com a luz inclemente e brilhante demais, com sombras tão escuras que o contraste pode não ser administrável, sempre foi um problema para quem queria retratar esta parte do mundo. Ainda mais se tivesse no fundo da cabeça os padrões de luminosidade da pintura europeia. A maior parte das representações de paisagens brasileiras que conhecemos de séculos anteriores, de Franz Post a Debret, foram executadas pacientemente no começo da manhã ou no fim da tarde, dizem os livros de história da arte, para aproveitar uma luz mais suave e saturada. A grande exceção está na obra de João Batista da Costa, que fazia paisagens em pleno meio-dia justamente para marcar as diferenças das grandes áreas de cor. (Mais detalhes neste link.)

Refletindo sobre tudo isso, acabei pensando em Albert Camus. Nos textos do célebre existencialista pied-noir, as referências ao Mediterrâneo, Argélia em particular, sempre falam da luz ofuscante. Meursault menciona o sol opressivo e o reflexo cegante na praia diversas vezes, durante a narração que leva ao assassinato do árabe, em O Estrangeiro. No texto teatral O Mal-Entendido, a motivação declarada das assassinas é deixar o frio e passar a viver sob o sol. A imaginação européia sobre a luminosidade tropical é extensa e fértil. Posso mesmo imaginar a insolação que os primeiros exploradores tiveram ao desembarcar das caravelas.

Por isso me chamou a atenção esse pedacinho de luz estourada na fotografia de René Burri, que, afinal de contas, era mesmo um fotógrafo europeu, como Rugendas, Eckhout e Taunay foram pintores europeus. Na minha cabeça, Burri tinha se decidido a gravar a luz tal como é, em vez de procurar compensações, esconder o reflexo do sol atrás do corpo de alguém, algo assim. Como se fosse um comentário de fundo, de natureza técnica, para seu retrato da família, de natureza temática; como se quisesse sublinhar o fato de não estar apenas documentando, mas revelando algo sobre o que viera documentar.

É sempre inspirador testemunhar um encontro entre o tema e a técnica como este. Burri, afinal, deu de cara com o quê quando fotografou Brasília? Seu álbum tem inúmeros cliques de Niemeyer trabalhando, tem Juscelino em reunião com seu arquiteto, tem esqueletos de edifícios que sobem, tem vistas dos prédios prontos contra um território ainda dominado pelo barro, tem vistas dos acampamentos de peões. Tem até imagens de trabalhadores estrangeiros na obra, algo que eu nem sabia que tinha acontecido (são espanhóis). O que ele ouviu de cada grupo desses? Como avaliou o que diziam os políticos, os engenheiros, os jornalistas, os militares, os peões, suas famílias?

Talvez esta imagem revele um pouco disso: que postura tinha o fotógrafo diante daquilo que viera documentar. De quando veio acompanhar uma gigantesca obra de engenharia, com motivações políticas, neste país onde a luminosidade é tanta que se pode ter luz estourada e sombras profundas na mesma composição.

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Em quase todas as fotografias, e também nos vídeos, da inauguração de Brasília, vemos gente vestida em sua melhor roupa. A mais famosa dessas fotografias, que tem inclusive uma versão colorida, é aquela em que Juscelino, com lenço na lapela, agita seu chapéu, sorrindo para além das próprias gengivas. Há também registros da esquadrilha da fumaça, de ginasiais fazendo demonstrações (talvez sejam colegiais, pouco importa), de tropas que desfilam, dos deputados tomando seu assento pela primeira vez (ou, pelo menos, oficialmente pela primeira vez, para as câmeras). Ninguém nessas imagens está vestido de qualquer jeito, ou com a roupa com que vai trabalhar no dia-a-dia.

Esta imagem de Burri não é exceção: também a família humilde (e a legenda, no site da Magnum, acrescenta: “worker from Nordeste”) está com sua melhor vestimenta, sua “roupa de domingo”. Vale a pena se deter nesse detalhe. A esposa do candango carrega, inclusive, um guarda-sol, que, além da óbvia utilidade prática (ainda mais para quem tem um bebê no colo), é um tradicional signo de elegância. O marido veste paletó claro, algo que, pelo visto, perdeu o direito de existir nas nossas cidades, apesar de todo o sol. Talvez a única coisa que destoe seja o colarinho do trabalhador, que não usa gravata. Curiosa ausência.

Em nome do contraste, pense nas imagens que temos dos operários que ergueram aquela cidade (enganosamente) austera no meio do nada. Algumas são tomadas à contra-luz, agigantando suas figuras de heróis anônimos de uma pátria pujante (etcétera e tal). Outras são tomadas distantes, mostrando-os como pontinhos frenéticos de um formigueiro, para expressar a grandiosidade de uma obra em que a figura humana chega a desaparecer. Há ainda as imagens mais jornalísticas, poderíamos até dizer de denúncia, mostrando caminhões apinhados que chegam ao Planalto Central, despejando gente no Areal ou em Ceilândia, ou ainda as instalações em que viviam os candangos. O álbum do próprio Burri fornece exemplares de ambos os tipos.

O que temos nesta imagem é outra coisa. O fotógrafo suíço acompanha a família, e não é uma tomada de surpresa; há outra foto em que eles aparecem por trás, caminhando. Eles exploram as construções monumentais e ainda nuas, não só no sentido físico de não estarem sendo usadas, ocupadas por escritórios e repartições, mas também no sentido simbólico: não carregam o peso das atividades que se desenrolarão ali dentro, e que o visitante ou espectador atual não pode se prevenir de ficar imaginando quando contempla cada uma dessas construções. Sabemos que o grupo está de pé no Palácio do Alvorada por uma única das colunas, que se ergue atrás deles com dimensões acachapantes. Aos olhos de quem se acostumou a ver essas colunas nos últimos 50 anos, associadas a todo tipo de evento triste, traumático e cruel, essas dimensões não podem ser tomadas como mero acaso.

Burri toma a foto ligeiramente de baixo, o que normalmente aumentaria as pessoas, daria a elas dimensões mais fortes e agressivas. Não é o caso de quem está debaixo dessas colunas, também alongadas pelo ângulo de tomada. O que temos são figuras um pouco deslocadas, todas olhando para cima, um pouco intimidadas, com exceção do bebê que dorme, indiferente; logo ele, que vai conviver com a imagem desses edifícios por uma parcela maior de sua vida…

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Mesmo assim, é uma família que se vestiu com o melhor de suas roupas e saiu para passear. Estão ao largo das grandes cerimônias, mas nem por isso menos aprumados. Depois de um longo período de dificuldades, de trabalho duro, o descanso, o lazer. E, claro, a admiração, a reverência, diante das edificações monumentais  – erguidas ao longo de um eixo que carrega o mesmo nome.

A reverência diz muito. Pode-se ver que o operário e sua família têm respeito pelo palácio, em grande medida pelas próprias dimensões da obra arquitetônica, mas também pelo contexto em que foi feita, um contexto carregado de promessas e expectativas. É bem possível que também tenham orgulho da energia física e do “dispêndio de músculo e nervo” (uma definição marxiana para o trabalho) necessário para produzir aquele monumento. Certamente há um componente de esperança, que era o que prometia todo o projeto de desenvolvimento de Juscelino.

Seja lá de onde vem esse “worker from Nordeste”, ele não teria saído de casa se não imaginasse um incremento nas condições de vida em outra terra. Mesmo que, na verdade, ele tenha sido expulso, seja por um grileiro, seja pela seca, seja por ambos. O que quer que tenha acontecido, ele provavelmente nutria a esperança de que a Novacap representasse um país melhor. E isso quer dizer, de seu ponto de vista: um país onde se viveria melhor. Conhecemos uma boa parte da história, no entanto: atraídos pela possibilidade de fugir da miséria, retirantes “from Nordeste” como este trabalhador largaram o que restava de suas terras para tentar a inclusão na civilização, na sociedade de massas, ou de consumo, chame como quiser. Foram tratados como sempre são tratados os pobres, os mestiços, os trabalhadores no Brasil.

Por sinal, quando compartilhei esta fotografia nas redes sociais, uma amiga de cliques contou uma história familiar que não vou reproduzir aqui, porque cabe a ela contá-la, e não a mim. Mas é um relato que contém tudo que conhecemos da história do Brasil ao rés-do-chão: grilagem, jagunços, escravidão por dívida, golpes, violência e morte. Não dá para descolar a história da construção de Brasília da história das secas, das oligarquias, do arrasamento do território e de seus habitantes. Tanto quanto ressoa com a fotografia dos índios de 2015, a imagem de René Burri também ressoa com a pintura de Cândido Portinari, cuja Os Retirantes data de 1944.

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Repetindo o que eu disse no início, a fixidez da imagem lhe confere a característica curiosa de adquirir significações em retrospecto. Como captura de um intervalo no mais das vezes ínfimo, de uma fração de segundo, a fotografia pressupõe necessariamente o tempo que a precede e sucede. E se, nesse instante raptado graças à luz que refletiu, o filme (ou o sensor) foi impressionado com formas prenhes de sentido, pode pressupor ainda mais, muito mais. O operador que tem um dedo no disparador e outros dois na abertura do diafragma tem consciência de algumas dessas possibilidades, mas certamente não de todas. O autor é poderoso, mas a obra tem seus poderes também, que ele simplesmente não pode alcançar. E deve se alegrar por isso.

Mesmo que nada do que eu imaginei acima esteja correto e o Burri de 1960 quisesse apenas fotografar uma inauguração, o Burri de 1977, que retornou a Brasília num momento em que a ditadura já rateava, provavelmente tinha outra idéia. E é bem possível que tivesse outra idéia também sobre suas fotos de 1960. No fim da vida (ele morreu em 2014), talvez tivesse ainda mais uma outra idéia sobre o que portavam de significativo essas imagens de Brasília. É como se os personagens se movessem debaixo das colunas, na medida em que elas vão sendo impregnadas do significado histórico do que acontece entre elas e em volta delas. É como se, ainda hoje, quem passa por aí carregado de pastas (se é que por aí passa alguém) esbarrasse nos candangos extasiados.

Assim, para nós, hoje, esta imagem provavelmente evoca ilusões e desilusões, enganos e engodos, decepções, traições. Penso no bebê que dorme no colo da mãe e cujos pais talvez o imaginassem livre da miséria e da opressão, educado, trabalhando em bons empregos (públicos, talvez). Onde terá crescido essa criança? No Núcleo Bandeirante? Na Candangolândia? Teve acesso às benesses da civilização? Recebeu uma educação emancipadora? Teria idade para escapar dos eventos relatados em Branco Sai, Preto Fica, de Adirlei Queiroz? O que você acha? O que te parece mais provável?

O respeito que o operário tem pela construção, ou por quem a encomendou, dificilmente será recíproco. Depois de Getúlio, depois de Juscelino, depois de Lula, uma das coisas que podemos dizer sobre o Brasil, e que transparece nesta imagem e em tudo que ela pode nos dizer em retrospecto, é que todas as vezes que se vendeu a idéia de um grande impulso adiante para o país, caímos, depois de alguns anos, em retrocessos. Ou melhor, caímos na real. E tudo para descobrir que o grande impulso, o grande facho de esperanças e expectativas estava incompleto, porque continha muitas propostas e poucas rupturas; muita acomodação, muito acordo, e pouca revolução.

As imagens desta família, esta em particular, mostram um instante silencioso (porque, afinal, algumas fotografias, como muitas pinturas, têm som). O evento ocorre em um espaço praticamente vazio. O contraste que se impõe não diz respeito apenas às multidões estridentes que freqüentarão a Novacap daí por diante, preenchendo os ministérios com concursados, terceirizados e comissionados, as casas parlamentares com eleitos, assessores e jornalistas, os palácios com lobistas, solícitos líderes políticos e seus funcionários a servir café.

Mais ainda, o ambiente em que a família visita essa Brasília ainda quase mágica contrasta com o alarido da inauguração oficial, a festa de diplomatas e burocratas, o desfile de Nonô e os discursos de senadores e deputados. Terá sido no dia (e na noite) anterior? Pela ordem das fotografias, é o que parece. E vou admiti-lo, mais uma vez, porque convém à minha narrativa.

Lendo os relatos da época, a inauguração de Brasília foi a marcha triunfal de um país que vencia, batia na porta do clube dos civilizados, demonstrava ser capaz de qualquer coisa, mesmo os planos mais ousados e absurdos. Um país com os olhos voltados para o futuro. Quero dizer: o país do futuro, nada mais e nada menos. Mas quem assistia, das bancadas do plenário ou das galerias, ou mesmo pela televisão, um bem de consumo ainda relativamente raro em 1960, eram aqueles que garantiam os pés do país (eu deveria dizer: “da nação”) muito bem fincados na derrota, no passado, no fracasso, no clube dos expropriados.

René Burri mostra com esta família o dia seguinte desse alarido tão confortável, ou melhor, o silêncio em que se esconde aquela esperança quando recomeça o dia-a-dia. E mostra esse espaço dúbio, ambivalente, da maneira como divaguei até aqui. Com a luz ligeiramente estourada de um ambiente subtropical que não se deixa simplesmente apagar assim tão fácil (nem com os aparelhos de ar-condicionado dos ministérios). Com uma perspectiva de baixo para cima, paradoxalmente reduzindo os personagens ao amplificá-los. E com a constatação de uma reverência humilde perante as colunas em que Oscar Niemeyer revelou um naco de seu gênio (e de sua utopia).

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Como sabemos, quatro anos depois de todo o alarido, nessa mesma cidade, Auro de Moura Andrade declarava vaga a presidência da República, que pouco depois seria tomada pelos militares e sua máquina de tortura, censura e retrocesso. Não consta que a família do “worker from Nordeste” tenha visitado o Alvorada nesse período. Pelo menos não tem fotos disso. Consta, por outro lado, que as tentativas fracassadas de estabilizar a economia depois das despesas com a construção do referido palácio e demais novidades da Novacap foram um fator determinante na queda de Jango e da democracia. É difícil imaginar uma fotografia que represente esse vínculo, exceto pelas imagens de arquivo mostrando Celso Furtado com olhar de cansaço, ou melhor, de derrota. A não ser que tentemos fazer da luz estourada no fundo deste clichê de René Burri uma espécie de alegoria dos estouros em geral, inclusive os estouros de orçamento. E por que não?

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Imagens que não fizeram história (3): candangos e índios

A terceira fotografia da série de “imagens que não fizeram história” – e eu aqui pensando que iam ser só duas! – talvez cause um certo estranhamento; afinal, é uma fotografia muito recente, que nem “fez história”, nem deixou de fazer. Posso tentar contornar esse estranhamento dizendo que a imagem “ainda” não “fez história”, mas fará, por tais e tais motivos. Então este texto é uma aposta? Não faz mal, que seja. Estou disposto a apostar de vez em quando.

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Por outro lado, tudo gira em torno dos jogos que se possam fazer com essa fórmula: “fazer história”, que é dúbia e ainda mais maleável quando a usamos no negativo: “não fez”! Seja como for, quando dizemos que uma imagem “fez” história, geralmente estamos ressaltando seu caráter icônico, ao sintetizar nosso conceito de um determinado período ou acontecimento, esse sim “essencialmente” histórico. A imagem em questão é, portanto, a imagem visual referente a uma imagem mental de valor coletivo. A imagem que efetivamente “fez” história é aquela que aparece nos manuais escolares, nas retrospectivas dos telejornais, nas páginas não-numeradas, impressas em papel mais caro, de livros editados décadas depois, mas só para reforçar uma outra imagem e uma outra narrativa, da história que “se fez”, retratada ou não.

Então “fazer história”, no fundo, significa nada mais do que reaparecer a cada vez que alguém quer pontuar a memória social e, para isso, recorre ao ícone mais à mão. “Renúncia de Jânio”; “Guerra do Vietnã”; “Exército Soviético em Berlim”: para cada um desses sintagmas, imediatamente aflora na mente do leitor uma determinada imagem. E dificilmente vou perder dinheiro se apostar, para cada caso, que imagem será essa.

Se a fotografia que escolhi, como imagem, não fez história ainda, porque acabou de ser tirada; mas intimamente sentimos que está em sua essência um certo “fazer história”, será que estamos falando do mesmo caráter icônico?


Valter Campanato, da Agência Brasil, é o profissional responsável por esta peça tão linda. Na terça-feira, a manifestação de 1500 lideranças indígenas contra a PEC 215, no eixo monumental, acabara de ser interrompida por um temporal. Temporais, como sabemos, não são exatamente o evento mais corriqueiro em Brasília. Mas este grupo de índios (algo entre 12 e 14) continuou a fazer a dança ritual que estava fazendo como parte do protesto.

O fotógrafo capturou a dança na chuva bem quando ela passava diante do Monumento aos Candangos, que parece reverberar, na vertical, a marcha dos índios. O pé d’água, que borra as figuras, deixa impassível o bronze do monumento, mas aproxima ambas as formas por realçar seus contornos e esconder os detalhes. Passam a ser índios tão abstratos quanto aquelas duas figuras estilizadas, supostamente representando os construtores da “novacap”, tantos deles vítimas fatais do delírio de ocupação do Planalto Central…

Os candangos que empunham cajados; os índios que empunham armas. Alinhados em cruz, como se buscassem sinalizar uma simetria histórica. Com isso, a própria composição se torna o vetor pelo qual a imagem lança seu apelo ao passado e situa-se na história, fazendo-se perante a história e, se não propriamente “fazendo história”, pelo menos fazendo da história alguma outra coisa.

Ou melhor, para ficar menos enigmático, talvez seja o caso de inverter a exposição: enquadrados diante da simbologia presente de figuras do passado (o Monumento aos Candangos), os índios trazem o que “já foi” para junto do que “está sendo”, fazendo-os colidir, transformando-os em uma terceira coisa.

Uma constelação, como diria Benjamin?

Afinal, o que é um candango? O que é um índio? Em mais de um sentido, o candango (não o morador de Brasília, bem entendido, mas seu construtor) é o paradigma do lugar reservado ao índio, e não só a ele, no projeto nacional brasileiro. A mão-de-obra precária, depauperada, aculturada (esse talvez seja o traço mais essencial), disposta a deslocar-se em péssimas condições pelo território, na medida do avanço do extrativismo e demais atividades que reproduzem sua lógica. Disposta a morrer por acidentes de trabalho, por doenças que resultam da insalubridade, por violência.

É o mestiço, mas não segundo a perspectiva brilhosa de um amalgamento das raças ou coisa que o valha, e sim pelo esvaziamento das identidades (étnicas, raciais, lingüísticas) do colonizado e/ou escravizado. Esvaziamento que se opera enquanto é barrado o acesso à identidade do colonizador: o branco, europeizado, herdeiro de Dom Antônio de Mariz. É o “pardo”, aquele de cujo rosto não se desenham nem se esculpem os traços, como no monumento que o homenageia na Praça dos Três Poderes. A imagem nítida da construção de Brasília, que guardamos como ícone no fundo da memória, é a do rosto sorridente de Juscelino Kubitschek, acenando à frente de um Congresso cercado de andaimes.

Já o índio é o oposto disso: o obstinado caiapó, ashaninka, tukano, ianomâmi. É o muro em que esbarra o projeto nacional, naquele momento surpreendente em que alguém insiste na autodeterminação. É o desmentido de Rondon. É o rosto cujos traços a chuva pode borrar numa fotografia, mas o escultor não borrará no monumento. Se lá atrás o bronze dos candangos pesa sobre a Praça dos Três Poderes, com seus oito metros de altura – como uma sentença, podemos dizer –, aqui na frente a dúzia, pouco mais, de índios a atravessa, com a leveza realçada pela chuva.

Talvez seja esse o motivo pelo qual muita gente fica tão horrorizada e perturbada quando vê um índio de bermuda ou com a camisa do São Cristóvão. Ali está, materializada, a assinatura da aculturação. Então por que a recusa em admiti-la? A bermuda não é, nesse raciocínio, objeto de uso, mas mercadoria; não pode ser vista como concessão do mundo civilizado, só como porta de entrada ao sistema produtivo e à cultura que passou a lhe servir de penduricalho. O renitente índio que aceita a bermuda mas não aceita ser “pejotizado”, que continua empunhando seu arco mas não quer ir para a favela empunhar um .38 contra a polícia, está enfiando seu tacape bem no meio da engrenagem dos tempos modernos. Ou seria dos Tempos Modernos?


Mas… se é possível enxergar na fotografia um vetor de conexão cronológica, nada impede de procurar nela também um vínculo topológico, afirmando que a imagem é capaz de operar uma amarração que ressignifica a geografia. E se fizer isso, ela também dá um novo sentido ao território, com seus conflitos internos e seu enraizamento no planeta, do qual aparentemente não é tão fácil escapar. Acho que é possível ler essa imagem assim, mas vai ser necessária uma certa dose de sarcasmo. Não que isso me incomode!

O olho treinado pela televisão – que é o meu e, muito provavelmente, o seu também – quase certamente fará a imediata associação entre índios avançando em grupo debaixo de um toró e a expressão “dança da chuva”. Para o olho treinado pela televisão, o que é um índio? Ora, é alguém que faz uma dança da chuva. Porque quem dança “na” chuva não é o índio, é Gene Kelly, mas só porque tem uma câmara na frente, a chuva é de mangueira e a cantoria vem em playback.

Sem essa tecnologia toda, prossegue o raciocínio, o índio convoca a chuva dançando. E assim o reconhecemos como índio, com nosso olhar formado pela televisão. Digna de nota é a poesia embutida na idéia de convocar a chuva com uma dança: o moderno, o branco, o tecnológico, o civilizado, convoca a chuva bombardeando nuvens. Um bombardeio, pois: notória invenção do moderno, branco, tecnológico, civilizado.

Mas às vezes nem o bombardeio funciona, então é preciso recorrer… à dança? Parece ser o que fez o governo de São Paulo – moderno, branco, tecnológico e civilizado – no fim do ano passado, quando, a crer na imprensa local, entrou em contato com a Fundação Cacique Cobra Coral para ver se fazem chover em São Paulo. A fundação em questão não é indígena; é espírita, mas parte da premissa de que sua presidente recebe o espírito do cacique Cobra Coral (do qual temos poucas informações, senão que seu espírito também teria sido [sic] o de Galileu Galilei e Abraham Lincoln, o que me deixa intrigado, porque não vejo a relação desses dois senhores com a chuva). Pois esse cacique “tem poderes para interferir em fenômenos meteorológicos”, ou seja, faz chover.

Trocando em miúdos: enquanto o grupo de índios dava uma de Gene Kelly (que era moderno, branco, tecnológico, civilizado) e dançava “na” chuva, o branco e nem tão moderno, vagamente tecnológico e nada civilizado governador de São Paulo convocava uma dança “da” chuva.

Eu disse que seria preciso sarcasmo, e acho que esse sarcasmo começa a partir de agora. Afinal, São Paulo define-se como o “Estado bandeirante”, como testemunham os nomes de tantas de suas ruas e rodovias, sem falar na estátua de célebre mau gosto na avenida Santo Amaro. Mas o que é um bandeirante, senão um brutamontes descalço que leva a vida a se embrenhar pela mata para escravizar índios – e matar, estuprar…? Senão aquele cuja função histórica era limpar o terreno para a emergência de uma população aculturada e depauperada, ou seja, destinada a se tornar alguma das variantes daquele fenômeno do candango, homenageado no monumento de Brasília?

Que divina ironia! O líder político do “Estado bandeirante” recorre ao espírito de um índio para ter a chuva, enquanto os índios que conseguiram escapar à escravização e à proletarização, na capital do país, interrompem um protesto pela própria sobrevivência por causa… da chuva! E passeiam nela, dançam nela, e parecem mesmo estar se deleitando, esses maledettos nietzscheanos!


Está bom de ironia? Calma que tem mais. Se estou tratando de uma imagem e das conexões que ela é capaz de fazer, não posso deixar de citar um dos maiores marcos do “bandeirantismo” do Estado em questão. É também uma escultura, como o Monumento aos Candangos: o mais que famoso cartão-postal paulistano, o “empurra-empurra”, que pretendia ser conhecido como “Monumento às Bandeiras”.

Lá está ele, no meio do engarrafamento, retratando os maiores heróis do genocídio em traços enrijecidos, angulosos, um descarado flerte de Victor Brecheret com a estética fascista que florescia em seu tempo (há muito disso em São Paulo, a começar pelo Pacaembu). E não é que, debaixo do toró, os índios de 2015 lembram vagamente o formato da escultura-símbolo da ressecada capital paulista? De um lado, os corpos vivos, com membros flexionados; do outro, a postura marcial e os corpos de pedra.

De um lado, o protesto pela sobrevivência; do outro, a conquista do território e das populações. De um lado, o toró; do outro, o volume morto.

Em constelação, como diria Benjamin?

Resta ainda uma última questão, que não consegui identificar, com meus olhos formados pela televisão: de que etnia são esses índios? Vêm de que parte do Brasil? Sei que em Brasília, nesta semana, estiveram índios dos quatro cantos do território. Mas e esses em particular? Por sorte, posso ser preguiçoso e recorrer a meus olhos formados pela televisão, repetindo com meus confrades de televisionismo: “se é índio, deve ser da Amazônia”.

Então, em nome da poesia que pode haver nas imagens, vou simplesmente pressupor que o olhar formado pela televisão está certo, desta vez, e que os índios em questão são de uma etnia amazônica. Simplesmente porque isso convém à minha retórica: se eles vêm da Amazônia, então vivem na região do país de onde saem os rios voadores que irrigam com chuvas abundantes grande parte do resto do país… a começar por São Paulo.

Assim sendo, o que a imagem mostra é uma espécie de dança triunfal que sintetiza as contradições fundamentais do Brasil, tal como elas se manifestam hoje: o índio que protesta para garantir a sua sobrevivência e a de sua terra também é aquele cuja terra fornece o elemento indispensável à sobrevivência de todos os demais. E notadamente dos que querem forçar a aprovação da PEC que põe em risco o território dos índios. Como pano de fundo, temos a informação de que a demarcação de terras indígenas é um poderoso instrumento para frear o desmatamento, cuja consequência mais imediatamente visível para metade da população, que vive longe da floresta, é a paulatina diminuição das chuvas.

A história que se faz quase por conta própria nesta fotografia pode ser descrita como a materialização de uma anti-história do Brasil, em que o primeiro plano apresenta aqueles que são ao mesmo tempo anti-candangos e anti-bandeirantes em plena procissão triunfal, justamente no instante em que mais estão ameaçados. E quem é que vem fornecer as condições para que tudo isso seja sintetizado num único enquadramento, numa composição com basicamente dois elementos, muito pouco contraste de cor e uma simplicidade formal deliciosa? Ora, ninguém menos que a chuva. Terá sido mandada pelo cacique Cobra Coral, em resposta à convocação dos paulistas?

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Da série Citações: Aldous Huxley para George Orwell

Há algum tempo, circulou pela internet uma comparação entre as previsões distópicas desses dois autores, Huxley em Admirável Mundo Novo (de 1932) e Orwell em 1984 (de 1949). A conclusão era de que o universo previsto por Huxley era mais parecido com o mundo como ele é hoje do que o imaginado por Orwell.

No mundo de Huxley, a sedução, a hipnose e o prazer (em suma, a alienação) seriam os elementos nodais da dominação totalitária definitiva. No de Orwell, seriam a vigilância, o controle, o pavor. A diferença de datas de publicação não deixa de carregar uma parte da explicação para tamanha disparidade. Ao escrever, Huxley acompanhava o desmoronamento dos anos loucos anteriores à Grande Depressão, era do Fox Trot e dos americanos em Paris. Já Orwell, ao escrever, acabava de saber da existência de Auschwitz. Atroz seria escrever um livro depois de Auschwitz, a não ser que fosse 1984?

Na comparação que rodou a rede, o consumismo, a indústria cultural e a maior parte da internet eram apresentados como demonstrações do acerto de Huxley. Esse lance de terror, opressão e vigilância tinha ficado para trás, derrotado em Stalingrado e na Normandia.

Aí veio Obama, o homem dos drones e do Prism, o Bush de fala macia. E embaralhou tudo de novo. Minha tentação é dizer: ambos previram bem, mas parcialmente. Fazendo rodopiar incestuosamente a opressão e a sedução, o baile está garantido para o dominador.

E no meio disso tudo, encontro a carta que vai aí abaixo. No lançamento de 1984, Orwell pediu ao editor que mandasse um exemplar do livro para seu outrora professor de francês, Aldous Huxley. E Huxley respondeu. É interessante aprender de onde ele tirou a referência de sua sociedade da sedução, do Soma, do hedonismo Ikea. No mínimo uma curiosidade, enfim.

Wrightwood. Cal. 21 October, 1949

Dear Mr. Orwell,

It was very kind of you to tell your publishers to send me a copy of your book. It arrived as I was in the midst of a piece of work that required much reading and consulting of references; and since poor sight makes it necessary for me to ration my reading, I had to wait a long time before being able to embark on Nineteen Eighty-Four.

Agreeing with all that the critics have written of it, I need not tell you, yet once more, how fine and how profoundly important the book is. May I speak instead of the thing with which the book deals — the ultimate revolution? The first hints of a philosophy of the ultimate revolution — the revolution which lies beyond politics and economics, and which aims at total subversion of the individual’s psychology and physiology — are to be found in the Marquis de Sade, who regarded himself as the continuator, the consummator, of Robespierre and Babeuf. The philosophy of the ruling minority in Nineteen Eighty-Four is a sadism which has been carried to its logical conclusion by going beyond sex and denying it. Whether in actual fact the policy of the boot-on-the-face can go on indefinitely seems doubtful. My own belief is that the ruling oligarchy will find less arduous and wasteful ways of governing and of satisfying its lust for power, and these ways will resemble those which I described in Brave New World. I have had occasion recently to look into the history of animal magnetism and hypnotism, and have been greatly struck by the way in which, for a hundred and fifty years, the world has refused to take serious cognizance of the discoveries of Mesmer, Braid, Esdaile, and the rest.

Partly because of the prevailing materialism and partly because of prevailing respectability, nineteenth-century philosophers and men of science were not willing to investigate the odder facts of psychology for practical men, such as politicians, soldiers and policemen, to apply in the field of government. Thanks to the voluntary ignorance of our fathers, the advent of the ultimate revolution was delayed for five or six generations. Another lucky accident was Freud’s inability to hypnotize successfully and his consequent disparagement of hypnotism. This delayed the general application of hypnotism to psychiatry for at least forty years. But now psycho-analysis is being combined with hypnosis; and hypnosis has been made easy and indefinitely extensible through the use of barbiturates, which induce a hypnoid and suggestible state in even the most recalcitrant subjects.

Within the next generation I believe that the world’s rulers will discover that infant conditioning and narco-hypnosis are more efficient, as instruments of government, than clubs and prisons, and that the lust for power can be just as completely satisfied by suggesting people into loving their servitude as by flogging and kicking them into obedience. In other words, I feel that the nightmare of Nineteen Eighty-Four is destined to modulate into the nightmare of a world having more resemblance to that which I imagined in Brave New World. The change will be brought about as a result of a felt need for increased efficiency. Meanwhile, of course, there may be a large scale biological and atomic war — in which case we shall have nightmares of other and scarcely imaginable kinds.

Thank you once again for the book.

Yours sincerely,
Aldous Huxley

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Enquanto vou fechando: Nina Simone

Eu queria escrever uma postagem dedicada a ela.

Sobre como sua voz me perturba, tão suja e tão precisa ao mesmo tempo, e não permite uma audição desleixada.

Sobre como seu rosto impassível, duro, forte, corresponde à potência de seu fôlego, mas esconde o esforço. E como isso me perturba.

Sobre o porte altivo que freqüentemente desliza para a superioridade — e é melhor quando desliza.

Volto a Nina Simonde sempre que algo está desalinhado. Sempre há algo desalinhado.

Na falta de tempo e energia, em vez de um texto dedicado a Nina Simone, é melhor postar simplesmente Nina Simone.

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A minha nova inscrição

Desde que me instalei de novo em São Paulo, estive duas ou três vezes no Cidão, minúsculo bar de Pinheiros onde, às quintas, eu costumava ouvir tocar João Macacão e seu grupo. Claro, também ia em outros dias e vivi ali bons momentos (maus também). Mas João, para meu desgosto, não toca mais lá. Em seu lugar, músicos que não conheço e não me cumprimentam à entrada. O lugar que eu adorava se tornou hostil. Assim mesmo, num estalo.

O tempo não passa, ele despenca das alturas. Continuar lendo

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FHC entre o povão e a contradição

Como é pobre a celeuma em torno do artigo de Fernando Henrique! Debater se o homem propõe ou não que o partido dele “abandone o povão” e se concentre na classe média, como se fosse algum absurdo haver partidos de classe média… Um texto inteiro poderia ser dedicado à preferência do brasileiro pela polêmica mesquinha, até mesmo na política, onde as discussões deveriam ser mais penetrantes e corajosas diante da aporia inescapável (sim, a política, enquanto arte, é o bailado numa pista de aporias). A algazarra em torno do texto fernandino é um claro exemplo dessa mediocridade escolhida. Valeria bem mais a pena, por ora, destrinchar o artigo, porque ele expõe o impasse em que se enreda, com muito gosto, o partido de que o autor é presidente de honra. Façamo-lo.

Nosso ex-presidente entende seu texto como um raio-x das insuficiências da oposição, especificamente o PSDB, e uma proposta de reorientação. Entre circunlóquios, lugares-comuns e interpretações bem livres da história recente do país, FHC acaba dizendo, um pouco sem querer, algumas coisas bastante verdadeiras. Se fossem ditas por querer, seriam talvez dolorosas demais para os tucanos e seus correligionários, porque revelam em filigrana que as diretrizes peremptórias que FHC delineia para seu partido, ora, são simplesmente o que o partido, tal como se organiza hoje, não poderá nunca realizar. Em outras palavras, Fernando Henrique atirou no que viu e acertou no que não viu. Só que, como estamos falando de política, o “ver” significa “querer ver”­ – é uma maneira de recortar a realidade de um universo político, tornando-a um discurso coerente, mas coerente segundo determinados pressupostos – e o “não ver” significa “recusar terminantemente, a ponto de não poder ver”. Continuar lendo

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As maravilhas de domingo

Este fim-de-semana foi pródigo em leituras excelentes na blogosfera. Minha avó dizia que diante da voz da sabedoria, o esperto escuta e o tolo responde. Subscrevo, acrescentando que na era dos links, além de escutar, podemos passar adiante. Pois! Seguem aí os melhores posts que li nesses dias.

(O fato de ter comentado em alguns deles faz de mim um tolo, na acepção da minha avó?)

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Cesar Kiraly, em seu Modos de Fazer Mundos, às vezes posta filosofia, às vezes poesia. Mas tem dias em que ele resolve fazer as duas coisas de uma vez só. Aí não tem quem segure. Uma imagem pontiaguda da visibilidade das revoluções e a singularidade deste nosso zoon politikon.

Se Godard, como diz o texto, cria sentidos sobre as imagens do cinema, sobre um cinema criador de imagens, Rodrigo Cássio se cria em cima de Godard.

A revolução no mundo árabe é um evento profundamente singular. Sem isso, não seria revolução. Eu gostaria de desenvolver um pouco essa ideia, mas isso se tornou desnecessário: quem viu de dentro essa sigularidade, como Mohamed Bamyeh, já deixou isso suficientemente claro.

Hugo Albuquerque explicita que, se viver em São Paulo é infernal, não o é à toa.

Esta carta aberta de Ana Maria Gonçalves a Ziraldo já fez bastante barulho internet afora. Merece um pouco mais. Esses (muitos) parágrafos me deixaram com vergonha do texto que escrevi para o Amálgama sobre O Presidente Negro, achando que estava fazendo uma crítica ao Monteiro Lobato. Há! Pobre de mim.

Este texto é mais velhinho, mas aproveito o ensejo. Carlos Magalhães abre a cortina do nosso cenário escravocrata, em plena urbanidade pós-moderna e assim por diante.

Este aqui, de Fabiano Camilo, é mais velho ainda. Que importe? Tem de ser lido. Sobre a visibilidade do homossexual na televisão brasileira e, por extensão, no Brasil.

E paro por aqui,

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Lula, o sortudo

Parece estabelecido um consenso na imprensa e nos meios formadores de opinião, ao menos do eixo Rio-São Paulo, de que o sucesso do governo recém-encerrado é fruto de um grande lance histórico de sorte, sem o qual teríamos assistido a um fracasso – retumbante, como se diz de todos os fracassos. A tal sorte consiste, segundo esse raciocínio, num aumento espantoso e duradouro (mas não sem precedentes) do preço dos insumos básicos que o Brasil exporta, de minério a grãos, de carne a frutas. Ou seja, acredita-se oficialmente que o bom desempenho econômico dos últimos anos não passa de uma rebarba da expansão chinesa.

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A volta é uma morte entre tantas

Tarólogos de cinema têm um prazer excepcional em virar a carta da Morte e esbugalhar os olhos. “¡La muerte, señor!” E entra um acorde dissonante. Mas nos filmes o herói quase sempre debela o perigo mortal que vai persegui-lo até o triunfo… O subtexto é que o herói, com tudo que ele representa (e pensar que Indiana Jones, no fundo, não é diferente de qualquer mito “primitivo”), é mais poderoso que as forças ocultas, as estrelas, os deuses. O herói, que acerta um tiro no vilão quando o revólver só tem uma bala e o inimigo parecia fora de alcance, nos redime, como espectadores e membros do grupo, de nossa própria mortalidade, do medo de ser aniquilado. Um medo que nos define, que compartilhamos todos, e que dá forma aos heróis que admiramos.

Mais profundamente: a carta do tarólogo – normalmente uma taróloga com véu de cigana – não é exibida para o personagem, quer dizer, o herói. Ao aparecer em close na câmera, o esqueleto dançante é posto cara a cara com o público. O herói está fora do plano e, nesse ponto, tranmuta-se em espelho para as fantasias do espectador. Quem encara a morte é o representante, não o representado, até porque este último é ficcional. ¡La muerte! e ponto. Mas mesmo que alguém morra mesmo no filme, o que eventualmente acontece, o rolo está sempre lá, disponível, para ser revisto e revivido, acompanhando o ciclo de quem acompanha o enredo, eternamente. Às vezes tentamos fugir à evidência, mas a morte é uma fixação generalizada. Continuar lendo

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