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Da série Citações: Aldous Huxley para George Orwell

Há algum tempo, circulou pela internet uma comparação entre as previsões distópicas desses dois autores, Huxley em Admirável Mundo Novo (de 1932) e Orwell em 1984 (de 1949). A conclusão era de que o universo previsto por Huxley era mais parecido com o mundo como ele é hoje do que o imaginado por Orwell.

No mundo de Huxley, a sedução, a hipnose e o prazer (em suma, a alienação) seriam os elementos nodais da dominação totalitária definitiva. No de Orwell, seriam a vigilância, o controle, o pavor. A diferença de datas de publicação não deixa de carregar uma parte da explicação para tamanha disparidade. Ao escrever, Huxley acompanhava o desmoronamento dos anos loucos anteriores à Grande Depressão, era do Fox Trot e dos americanos em Paris. Já Orwell, ao escrever, acabava de saber da existência de Auschwitz. Atroz seria escrever um livro depois de Auschwitz, a não ser que fosse 1984?

Na comparação que rodou a rede, o consumismo, a indústria cultural e a maior parte da internet eram apresentados como demonstrações do acerto de Huxley. Esse lance de terror, opressão e vigilância tinha ficado para trás, derrotado em Stalingrado e na Normandia.

Aí veio Obama, o homem dos drones e do Prism, o Bush de fala macia. E embaralhou tudo de novo. Minha tentação é dizer: ambos previram bem, mas parcialmente. Fazendo rodopiar incestuosamente a opressão e a sedução, o baile está garantido para o dominador.

E no meio disso tudo, encontro a carta que vai aí abaixo. No lançamento de 1984, Orwell pediu ao editor que mandasse um exemplar do livro para seu outrora professor de francês, Aldous Huxley. E Huxley respondeu. É interessante aprender de onde ele tirou a referência de sua sociedade da sedução, do Soma, do hedonismo Ikea. No mínimo uma curiosidade, enfim.

Wrightwood. Cal. 21 October, 1949

Dear Mr. Orwell,

It was very kind of you to tell your publishers to send me a copy of your book. It arrived as I was in the midst of a piece of work that required much reading and consulting of references; and since poor sight makes it necessary for me to ration my reading, I had to wait a long time before being able to embark on Nineteen Eighty-Four.

Agreeing with all that the critics have written of it, I need not tell you, yet once more, how fine and how profoundly important the book is. May I speak instead of the thing with which the book deals — the ultimate revolution? The first hints of a philosophy of the ultimate revolution — the revolution which lies beyond politics and economics, and which aims at total subversion of the individual’s psychology and physiology — are to be found in the Marquis de Sade, who regarded himself as the continuator, the consummator, of Robespierre and Babeuf. The philosophy of the ruling minority in Nineteen Eighty-Four is a sadism which has been carried to its logical conclusion by going beyond sex and denying it. Whether in actual fact the policy of the boot-on-the-face can go on indefinitely seems doubtful. My own belief is that the ruling oligarchy will find less arduous and wasteful ways of governing and of satisfying its lust for power, and these ways will resemble those which I described in Brave New World. I have had occasion recently to look into the history of animal magnetism and hypnotism, and have been greatly struck by the way in which, for a hundred and fifty years, the world has refused to take serious cognizance of the discoveries of Mesmer, Braid, Esdaile, and the rest.

Partly because of the prevailing materialism and partly because of prevailing respectability, nineteenth-century philosophers and men of science were not willing to investigate the odder facts of psychology for practical men, such as politicians, soldiers and policemen, to apply in the field of government. Thanks to the voluntary ignorance of our fathers, the advent of the ultimate revolution was delayed for five or six generations. Another lucky accident was Freud’s inability to hypnotize successfully and his consequent disparagement of hypnotism. This delayed the general application of hypnotism to psychiatry for at least forty years. But now psycho-analysis is being combined with hypnosis; and hypnosis has been made easy and indefinitely extensible through the use of barbiturates, which induce a hypnoid and suggestible state in even the most recalcitrant subjects.

Within the next generation I believe that the world’s rulers will discover that infant conditioning and narco-hypnosis are more efficient, as instruments of government, than clubs and prisons, and that the lust for power can be just as completely satisfied by suggesting people into loving their servitude as by flogging and kicking them into obedience. In other words, I feel that the nightmare of Nineteen Eighty-Four is destined to modulate into the nightmare of a world having more resemblance to that which I imagined in Brave New World. The change will be brought about as a result of a felt need for increased efficiency. Meanwhile, of course, there may be a large scale biological and atomic war — in which case we shall have nightmares of other and scarcely imaginable kinds.

Thank you once again for the book.

Yours sincerely,
Aldous Huxley

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O povo é uma rainha da Inglaterra

Princípio de 1651. Um respeitado editor, de nome Andrew Crooke, discute com um de seus autores o desenho que vai figurar no frontispício de um ainda inédito livro de filosofia política. O sujeito, fazendo esboços e gesticulando muito, quer representar a sociedade civil (ainda não existia a distinção entre a dita cuja e o Estado, como hoje) na figura de um monstro bíblico: o soberano seria a cabeça; o povo, o corpo.

Eles discutem e discutem. Desenhos são feitos e deitados fora. Finalmente, Thomas Hobbes consegue o frontispício que quer para seu Leviatã (ou “Matéria, forma e poder de uma comunidade eclesiástica e civil”). Lá está o soberano, com uma fisionomia que lembra vagamente Cromwell, o rei Charles II e até, de longe, Jesus. Tem longos cabelos ondulados e bigode, porta uma coroa na cabeça, segura com firmeza a espada na mão direita e o cetro na esquerda.

E eis também o curioso torso, formado de corpos que dão as costas ao leitor: o povo tem os olhos voltados para o rei (porque o soberano, aqui, é indiscutivelmente um rei), como se caminhasse em sua direção. Abaixo, o campo e a cidade, bem governados como no painel de Lorenzetti exposto em Siena. Mais abaixo ainda, os símbolos e os meios do poder: as armas, a religião, a razão, as leis. Hobbes, numa época em que os emblemas imagéticos eram de rigor, insistiu enormemente nesse frontispício, porque lhe parecia a melhor representação possível de sua teoria do contrato social. De fato, a imagem se tornou um ícone nodular da política: quando alguém quer falar em absolutismo, ou mesmo em governo grande demais, logo crava: “Um Leviatã!”.

Princípios de 2012. Penso no publicitário que bolou o projeto reportado neste link (pra quem não tem paciência de clicar: são crianças fazendo autorretratos para formar a imagem da rainha Elisabeth, em celebração de seus 60 anos de reinado). E me pergunto se ele tinha em mente o frontispício de Hobbes. É claro que não. Também me pergunto em que medida ele conhece essa imagem. Provavelmente não se lembra dela, provavelmente não sabe de onde veio, mas sem dúvida, sendo inglês, passou os olhos por ela quando estudante. É um elemento cultural importante naquele país, para o bem e para o mal, queira ou não queira o publicitário.

Ou seja, o Leviatã não é uma referência para ele (espero que não; só se for um louco), nem é uma citação. O mais provável é que ele esteja navegando – bem preguiçosamente, diga-se de passagem – a onda de capas de revista e painéis de artistas plásticos que repetem esse procedimento. Mas, por uma dessas voltas que gosta de dar a história, essa rainha dos redemoinhos e dos destroços, eis que aquela outra rainha, a da Inglaterra, se vê representada quase da mesma maneira como o foi um dia o paradigma dos monarcas absolutos. Senão como um monstro marinho saído da Bíblia, ao menos como um mosaico de súditos.

Posso estar exagerando, mas não estou. Pelo menos no sentido de que os chefes do publicitário em questão deveriam ter percebido que essa associação era possível. Ou então, o mínimo que se poderia esperar era que os funcionários da monarquia britânica alertassem para comparações que eventualmente, ou certamente, viriam. Nem que fosse em algum rincão do mundo infestado de mosquitos, como aquele Brasil de PIB avantajado como nádegas de mulatas. Para ser honesto, não consigo evitar de associar esse silêncio a uma decadência cultural.

Falando em decadência: houve um tempo em que a rainha da Inglaterra era a pessoa mais poderosa do mundo, em particular uma rainha de nome Victoria. Hoje, “rainha da Inglaterra” é uma expressão que conota justamente o oposto: uma figura que não manda em ninguém. “Fulano é uma rainha da Inglaterra”: tem um cargo, ganha um dinheirão, mas é só um nome com um título pomposo, nada mais.

Impossível não prosseguir no paralelo, enxergando na brincadeira do Jubileu da Rainha algum tipo de metáfora com a situação da Europa, particularmente naquele que foi seu pais mais poderoso, a ponto de nem mesmo se considerar parte do continente. Inglaterra, o povo que esnobou o euro, mas nem por isso deixa de estar na merda… Agora tenta recuperar seu amor-próprio representando sua rainha da Inglaterra – a original, não aceite imitações – da mesma maneira como outrora representou o ápice da potência monárquica. Triste ironia, não?

A brincadeira está boa, então que prossiga. Será que dá para fazer alguma metáfora a partir do fato de que são crianças que estão preparando o retrato da rainha com seus próprios rostos? Sim, claro que dá. Certa vez, entrevistaram um sujeito que vive na Côte d’Azur e seria o herdeiro do trono russo se os bolcheviques não tivessem dado cabo do czarismo em 1917. Perguntaram ao tal sujeito com que olhos ele via a população russa, que até hoje não manifesta o menor desejo de restaurar os Romanov, mesmo 20 anos depois da queda do comunismo. Resposta, de bate-pronto: “eles são meus filhos” – assim mesmo, categórica, sem deixar margem a questionamentos.

A imagem paternal (ou maternal, no caso) dos reis é um velho topos monárquico. Aliás, não é significativo que um poder absoluto e orientador, mas não aristocrático, como o imaginado por George Orwell em 1984, seja representado não como um pai, mas como um “grande irmão”? O fato é que as nações, em outras eras, eram representadas como famílias, tendo o monarca como figura paterna. Ora, a imagem de um rei como pai traduz o princípio de que ele deve proteger, orientar, defender e até, em certas circunstâncias, sustentar seus súditos.

É claro que uma parte dessa imagem desbotou com a progressiva instalação de monarquias constitucionais. Mas sobrou alguma coisa, particularmente o aspecto simbólico da paternidade, (ou seria do patriarcalismo?), que de vez em quando reaparece em filigrana no discurso monárquico. “A Bélgica só não se esfacelou porque tem a figura unificadora de um rei”, “Juan Carlos garantiu a democracia na Espanha com a força de sua pessoa”, “Charles não pode ser rei porque não transmite a moralidade britânica”…

E eis que agora a presença de uma crise, mais do que econômica, sócio-histórica, associada à dificuldade em manter as ralés quietinhas, reúne as duas pontas da noção de realeza. Por um lado, as criancinhas, metonímia para o brioso ex-império, unindo forças para buscar alguma resposta – nem que seja uma auto-imagem pixelada – em sua grande-mãe, ícone da resistência, da identidade nacional, do poder inquebrantável e inamovível. Por outro, a constatação difusa, inconsciente, desconfortável da perda de soberania. Ali mesmo na coroa intrépida do Commonwealth, enfraquecida não pelo triunfo das instituições transnacionais, mas pelos imperativos da City, que selam um destino iniciado com as guerras coloniais e imperialistas da belle époque.

Já que enveredei por essas metáforas visuais, vou até o fim. Colocando-se na posição de criancinhas, de filhos, de corpos inocentes, desamparados e – eis a parte crucial – disponíveis, os ingleses tentam reconstruir, sem saber, a figura que melhor conhecem para representar uma soberania sólida, resistente, visível. Como quem molda um Golem, o inconsciente coletivo da velha Albion espera que a imagem sorridente de Elizabeth absorva a energia das criancinhas, assuma seu posto de Leviatã e esmague os inimigos, isto é, a crise, a decadência, os microscópicos esporos de rebelião que ameaçam constantemente se espraiar pelas ruas. Não deixa de ser, modus in rebus, uma mensagem de esperança…

Voltando um pouco a Hobbes: um outro livro seu oferece uma concepção mais nuançada da soberania e dessa assustadora figura do Leviatã. É o Cidadão, ou De Cive. Nesse texto, encontramos o seguinte trecho, ousado como poucos que já li, sublinhando a necessidade de distinguir entre o povo e a multidão para associar o poder civil de decidir e agir à própria existência de um povo:

“O povo é algo uno, com uma vontade una, e a quem se pode atribuir uma ação. Nada disso pode ser dito da multidão. O povo rege em todos os governos. Até em monarquias o povo comanda, porque a vontade do povo é a vontade de um homem; mas a multidão são os cidadãos, ou seja, os súditos. Na democracia e na aristocracia, os cidadãos são a multidão, mas a corte é o povo. E na monarquia, os súditos são a multidão, e, por mais que soe paradoxal, o rei é o povo. (…) Fala-se no ‘grande número de homens’ como sendo o povo, ou seja, a cidade; dizem que a cidade se rebelou contra o rei (o que é impossível) e falam em vontade do povo, em vez de súditos descontentes que, passando-se por povo, agitaram os cidadãos contra a cidade, isto é, a multidão contra o povo.” (Capítulo XII – VIII)

Sem subscrever a Hobbes, o que aparece aqui é que o Leviatã do outro livro, que representa a soberania, não o Estado, pode ter múltiplas configurações, contanto que produza a unidade da legislação civil que salvaguarde a cidade do tão perigoso direito natural. Hobbes vê na monarquia absolutista o caminho mais certo, não necessariamente o único, para chegar a isso.

Hoje, os mecanismos legais são outros e ninguém precisa mais concordar com Hobbes, pelo menos quanto ao único caminho realmente viável que ele enxerga. Mas a imagem de que a sociedade consiste em formar um corpo uno em vontade e ação nunca foi inteiramente abandonada pela imaginação política, ao menos na tradição ocidental. Volta e meia algo assim é evocado: “governo de união nacional”, a “pátria indivisível” e assim por diante. O que varia é a estratégia para lidar com o dissenso, prova incontornável de que o estado de natureza está sempre aí, no coração de qualquer configuração civil (algo que Hobbes, por exemplo, nunca vislumbrou).

Montar um retrato da rainha com milhares de rostos de crianças, desenhados por elas mesmas, não deixa de ser a expressão de um tal desejo de unidade: “somos todos parte dessa nação”, “pertenço a algo que é maior do que eu” e assim por diante. Talvez seja o caso, porém, de destacar a diferença entre o retrato de Elizabeth e o frontispício do Leviatã. Afinal, um corpo não é um rosto e Hobbes deixou isso bem claro ao desenhar o soberano com a fisionomia de um rei e relegar o povo à configuração das entranhas e dos membros.

A idéia de que a multidão indistinta possa formar a própria cabeça, o ápice da soberania (palavra usada por Hobbes em sua própria tradução para o latim, bem como pelos demais autores da época: imperium) e do poder, é bem posterior a Hobbes e data do surgimento da tal “sociedade de massas”: a virada do século XIX para o XX. Essa tal “sociedade de massas” poderia ser um oximoro, ainda mais se levamos em conta a distinção que Hobbes faz aí acima entre o povo e a multidão. De fato, em toda a tradição do pensamento ocidental até fins do século XIX, o povo e a multidão (depois massa) eram conceitos opostos e conflitantes.

Quando surgiu a “sociedade de massas” (leia-se sociedade industrial, com produção e consumo de massa), foi preciso repensar essa distinção. Surgiram duas vias, falando grosseiramente. A primeira, não cronologicamente, eu diria, mas para a ordem desta exposição, é a via democrática, em que sobressaem a noção de opinião pública e os graduais esforços de organização da sociedade civil para ampliar o acesso a direitos – ou seja, à cidadania, a “ser povo” na acepção de Hobbes.

A segunda é a via autoritária, que vale sublinhar aqui. Nela, tenta-se reconquistar a unidade desejada por Hobbes não pela ampliação dos campos contemplados pela vida civil, mas pela fusão das massas no bojo do seu próprio comando. Não é à toa que todos os regimes extremamente autoritários do último século se apresentavam como “do povo” ou “dos trabalhadores”, fossem “de direita” ou “de esquerda”. O mais importante a frisar aqui é que, na grande maioria dos casos, foi a própria população que, a partir de um estado de desespero, buscou essa via autoritária, pediu por ela, entregou-se com um gozo às vezes catártico a sua figura de liderança absoluta.

Longe de mim dizer que o Reino Unido está à beira de um regime como as ditaduras que presenciamos no século XX. Mas o desejo seminal está lá. O “ovo da serpente”, digamos, está expresso na reação violenta aos saques do ano passado e na fusão de milhares de faces de crianças na imagem da rainha: ingleses infantilizados dissolvendo sua própria pele para entregar suas feições a um único e gigantesco rosto real.

A rainha da Inglaterra que continue sendo uma rainha da Inglaterra: seus traços aristocráticos não deixam de ser o arquétipo de qualquer monarquia, qualquer estrutura de comando através de um paradigma de unidade, qualquer Leviatã com cetro, coroa e espada. Mesmo enquanto ela inocentemente caça perdizes em Windsor, exercendo sua rainha-da-Inglaterra-ice, a fisionomia real serve plenamente de vetor para todos os outros elementos: o desespero, o orgulho ferido, o desejo de unidade, a necessidade de traçar fronteiras entre o de dentro e o de fora, a disposição em abrir mão de um pouco mais de individualidade – e de liberdade – em troca de um pouco mais de segurança. Enfim, a disponibilidade para fazer parte de uma grande família.

Exagerei no paralelo? Certamente, mas garanto que o possível, o potencial, éão bem mais real do que seu opaco caso particular: o efetivo. Até porque a efetividade, sendo a concretização de um potencial, às vezes, dependendo das circunstâncias, pode atualizar os mais extremos dos potenciais. Basta, para isso, que as próprias circunstâncias sejam extremadas. Eventualmente acontece.

Atualização: leia este artigo no site do Guardian.

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É uma crônica, mas pode chamar de Brasil

A história do texto que segue copiado aí abaixo é, vamos dizer assim, tortuosa. Na semana passada, alguém achou na internet o conteúdo da nota de rodapé, essa da imagem, e o espalhou por aí. Achei o caso bem curioso e tratei de procurar a origem.

Resulta que era o livro de crônicas Verdades Indiscretas, de Antônio Torres. O dito Torres, autor mineiro e eventualmente diplomata, era um rival de João do Rio na imprensa carioca do início do último século. Eis uma biografia do referido. Continuar lendo

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O leitor, terrorista internacional

Aconteceu duas vezes. Primeiro em Copenhagen, depois em Guarulhos. O sinal: bagagem ou casaco na esteira do raio-x, olhos apertados e sobrancelha alçada na pessoa de uniforme, a exigência de separar o objeto suspeito para um exame mais próximo, com direito a luvas de borracha e tom de voz imperioso. Até segunda ordem, o viajante é um terrorista em potência ou, na melhor das hipóteses, um mísero traficante internacional.

Algo ali chamou a atenção dos “agentes de segurança” aeroportuários. São os responsáveis por evitar que a Al Qaeda risque os céus, mas também por manter constantemente vivo na consciência de cada passageiro a lembrança de que a Al Qaeda existe e a sensação de que está por todo lado. Aos olhos do poder, principalmente os funcionários mais baixos do poder, a Al Qaeda está por todo lado. Por todo lado. E, noves fora os americanos velhos de guerra, ninguém está mais seguro disso do que os dinamarqueses.

Uma palavrinha sobre os dinamarqueses. Continuar lendo

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Readymade e work in progress: esboço de pesquisa

Eu organizava meu material, colocando em caixas e decidindo o que vai na mudança e o que fica para ser reciclado, quando encontrei uma pilha respeitável de artigos sobre um mesmo tema: o readymade. Foi como provar uma madeleine: eram textos de apoio a cursos de estética e história da arte que segui há três ou quatro anos[i], e de cuja existência já tinha até esquecido. De repente, vieram-me lembranças de como o readymade é a manifestação da arte, ou do artifício humano, que provoca as reações mais instigantes nos professores e pesquisadores, fato que muito me chamou a atenção durante os cursos. É como se tudo que eles têm para dizer da arte, como um todo, fosse só uma desculpa para discorrer sobre esses objetos do cotidiano, isolados e expostos, com plaqueta de identificação abaixo, à direita.

Veja que divertido: Duchamp faz de um suporte de garrafas vazias obra de arte, por mero desígnio de sua vontade. E o que consegue com isso é instigar pesquisadores de gerações e gerações, ao redor do mundo, a produzir páginas intermináveis de especulações. Tenho para mim, como regra geral, que o assunto mais interessante é aquele que nos faz gaguejar, porque, afinal de contas, é um campo brumoso, em que tentamos avançar sem conhecer o caminho. Se não gaguejamos, é porque temos certeza e segurança no que dizemos, ou seja, estamos só repetindo algo de adquirido, conhecido, concretizado, …, velho. Juro que já vi professores gaguejando ao falar do readymade, essa centenária instituição. Houve um que chegou a parar no meio de uma frase, levar a mão à cabeça, manter essa posição por alguns eternos segundos, depois prosseguir com outro assunto, como se nada tivesse acontecido. Inesquecível. Em que pese o embaraço para uma pessoa que passou a vida estudando esse mesmo tema, mas gagueja, é prova de que a iniciativa de Duchamp dá pano pra manga: as laudas todas gastas com o readymade são como uma gagueira coletiva. Continuar lendo

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Série citações, III: Borges

Já faz um tempo que li a notícia de que os ingleses querem explorar petróleo nas suas Falklands, ilhas tristemente célebres, dignas de laudas e mais laudas sobre a história dos últimos séculos. (Será a BP a ficar responsável pela prospecção?) Aconteça o que acontecer, o fato é que esse ouro negro reabre velhas feridas, mais uma vez…

O episódio me fez lembrar de um livro interessante que li há alguns meses, chamado “Guerra Santa nas Malvinas”. O livro não é um primor de edição, mas é interessante mesmo assim: quatro bons jornalistas contam o episódio da Guerra das Malvinas de acordo com as reportagens que puderam ou não puderam fazer. São eles Marcos Wilson, Hugo Martinez, Roberto Godoy e Antônio Cabral, e algumas passagens são realmente iluminadoras. Continuar lendo

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Os bastidores da Apollo 11

Um diálogo curto, para dar um pitaco na efeméride do momento: homem na lua.

É que Neil Armstrong sempre me pareceu meio reticente ao pronunciar sua famosa frase. Como se ele não estivesse muito contente com o que dizia. É evidente que o astronauta não pensou o texto na hora, nem foi ele que o preparou. Mas até que ponto ele concordava com o famoso “it’s one small step for a man, one giant leap for mankind”? Talvez lhe parecesse cafona.

Imagino Neil na cafeteria, de manhã bem cedinho, tomando seu chafé com bacon e ovos, discutindo detalhes da missão com Buzz Aldrin e the other guy. Eles estão se fazendo de relaxados, rindo nervosos, contando piadas ruins. Entra um homem jovem, engravatado e engomado, carregando uma pasta. Ele dá bom-dia a todos, todos respondem em tom arrastado: “Bom dia, Al”.

Ninguém gosta desse Al. É um almofadinha.

Al coloca a pasta sobre a mesa e tira uns papéis. Pergunta aos três: quem vai ser o primeiro? Buzz e the other guy apontam para Neil, que ergue o dedo, fingindo que seu orgulho é fingido. Al, timidamente, se dirige a ele e lhe passa uma folha.

– Seu discurso está pronto.

Neil faz cara de amuado, mas toma o papel e um gole de chafé, cada um com uma mão, e lê o que está escrito.

– Você não quer que eu diga isso, quer?

– Nossos melhores redatores passaram semanas preparando o texto.

Incrédulo, Neil retoma a leitura:

– “Um pequeno passo para um homem…” que ridículo! Vai estar na cara que é ensaiado.

– Não faz mal.

– Eu vou me sentir um idiota.

– Não faz mal.

Naturalmente, o futuro primeiro homem na lua se exalta. Está afogueado e os perdigotos que solta atingem Aldrin e the other guy.

– Como é que é?
– É pela América. Os vermelhos vão ver só. Você é nosso herói, man!

-Pela América, my ass!

O herói nacional levanta-se. Al dá um passo atrás. Os outros dois astronautas ficam preocupados.

-É uma frase para a história, Neil.

-É, Neil, fica frio! (é a tradução que daria a dublagem da Globo.)

– Pra história, é? Então é pra falar com voz empostada? Um pe-que-no pas-so pa-ra um ho-mem… é isso?

– Vai ficar horrível.

– Vai ficar horrível de qualquer maneira. Deveria ser meu dia de glória! Pisar na lua! Buzz, não quer ser o primeiro?

– Tô fora! Você acha que eu vou fazer o discurso cafona?

– Al, por favor…

– Houston já decidiu. Agora, se me dão licença…

Al faz uma curta reverência e se retira. De costas, os astronautas não vêem seu ar triunfal, como o de um garotinho que acaba de fazer uma travessura. Mal sabe Neil, aquele presunçoso, quem foi que inventou a tal frase. Atrás dele, ainda dá para ouvir os impropérios do primeiro homem na lua:

– Goddamn!

Buzz Aldrin intervém, preocupado:

– Olha as suas coronárias, Neil…

The other guy está alarmado. Corre para o telefone:

– Houston, we have a problem

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Como é fácil executar tarefas…

(Coloquei este vídeo porque não sabia como encabeçar este texto e porque achei incrível o quanto ele confronta o antigo e o novo. Sarkozy ainda está na era Bush e não entendeu nada sobre o futuro. Obama dá-lhe uma chinelada. Mais comparações entre os dois, pensando bem, são cabíveis e valem mesmo um texto só para si…)

Meu lado futurólogo começou a formigar, alguns dias atrás, quando vi duas notícias desconexas, em veículos que pouco ou nada têm a ver um com o outro, mas que, colocadas lado a lado, dão um diagnóstico claríssimo do impasse que rege este nosso instante curtinho da história. Acontece que tentei ser prudente. Tentei abafar meu instinto visionário. Fechei as janelas do navegador com as notícias tão logo as vi, segurando como pude a vontade de lançar minha aposta sobre o seguimento do século XXI. Com isso, agora que desisti, não encontro mais nenhuma das matérias, e só sei que uma era da BBC e a outra de uma revista eletrônica americana: Slate, Salon, algo assim (ou o CSM? Sei lá). Se as referências que darei ajudarem alguém a lembrar onde estão essas minhas fontes, peço que me avise, para que eu possa colocar aqui um raiperlinque. Senão, que baste a descrição do conteúdo.

A primeira matéria comentava a facilidade que os estudantes têm de encontrar respostas para o que procuram, contanto que tenham a enorme habilidade de digitar um punhado de palavras no Google ou, bem raramente, em algum outro buscador. Com isso, lamentava-se o jornalista, nenhum aluno precisa mais se esforçar para fazer um trabalho na escola. Basta-lhe procurar na internet a resposta para o que quer o mestre, imprimir e entregar. Não é caso de plágio; mas, por exemplo, se um professor de Física pede aos alunos para descobrir o que dizem as leis de Newton, no dia seguinte a turma inteira volta com as mesmas frases tiradas da Wikipédia.

O outro texto era ainda mais sombrio. Reclamava que o nível cultural da juventude britânica está desesperadoramente baixo. Explicação dada pelos pedagogos que o jornalista consultou: as escolas do país (e do mundo inteiro, porque certamente o Reino Unido é um dos últimos bastiões do ensino generalista) concentram-se demais no ensino da matemática e da gramática, deixando de lado as noções de história, geografia, artes e literatura, que, como sabemos, são as que fornecem ao indivíduo o potencial de reajustar sua própria forma de pensar à medida em que as circunstâncias assim lho exigirem. À parte os dramas educacionais do Brasil, muito semelhantes, guardada a proporção de escala, não é difícil perceber que a necessidade de oferecer uma educação de massa com orçamentos cada vez mais apertados, tudo isso no fito único de formar mão-de-obra, está produzindo uma gigantesca juventude de semi-autômatos de pensamento estreito e lerdo. Basta conversar com alguém de menos de 21 anos para perceber.

Pois bem, ambos os textos exprimem uma crise na educação (aliás, boa hora para reler Hannah Arendt). Um é americano, o outro inglês. Discutem problemas tópicos. Mas ouso dizer que se completam, porque descrevem duas fontes de um mesmo ruído no sistema. Por sistema, quero dizer o campo em que se deslindam as vidas, com seus projetos estruturais, suas convicções morais, políticas e econômicas, suas práticas quotidianas, enfim, a grande engrenagem que mantém o todo em funcionamento. É nisso que há uma grande rachadura. É preciso, pois, identificá-la e fazer face a ela.

Em outras palavras, o impasse que os textos sugerem, um pouco sem querer, vai muito além da educação. A forma como ensinamos e treinamos nossas crianças reflete o que esperamos delas quando se tornarem adultas. Reflete também, portanto, e serve de indicador para o que queremos dos nossos adultos de hoje, como eles devem ser e, de fato, como fazemos com que se tornem, à força de formações, processos de contratação, matérias na imprensa, conversas de bar… Resumindo, tudo no nosso dia-a-dia. É uma estrutura que se forma por conta própria, aos poucos e nunca exaustivamente, de acordo com os problemas de cada época e as necessidades que esses problemas impõem; o caso, porém, é que esses problemas e necessidades se deslocam mais rápido do que nossa capacidade de nos adaptarmos a eles. Eis a origem dos impasses.

Mas como é, afinal, que formamos nossos adultos? Essa informação crucial é que pode ser entrevista nos dois textos que citei acima. Que os estudantes encontrem respostas para as perguntas em pesquisas rápidas na internet demonstra apenas um truísmo: que os professores lhes fazem perguntas cujas soluções podem ser achadas prontas em algum canto. Paralelamente, a concentração exagerada do ensino nos rudimentos matemáticos e gramáticos só corrobora essa visão: o estudante precisa aprender a resolver problemas específicos e concretos, de cálculo puro, que aparecerão à sua frente na vida adulta, em casa e no trabalho, e precisa aprender a expressar corretamente a resposta a perguntas pontuais que lhe serão feitas em reuniões, tribunais, entrevistas de emprego e toda sorte de pequena situação.

Espera-se do adulto de hoje, portanto (e treinam-se os jovens para cumprir essa expectativa), que seja capaz de executar tarefas. Como resquício da sociedade “estritamente” industrial do século passado, formou-se uma estrutura de massa no ensino e no mercado de trabalho, de tal maneira que o profissional, mesmo em campos de atividade, em tese, profundamente intelectuais, como a edição, o jornalismo, as finanças (sim, há algo nelas de muito intelectual, além da técnica pura e simples que se adotou) e a gestão pública, pouco mais é além de um executor de tarefas, um Chaplin de Tempos Modernos mesmo quando se considera um grande administrador e líder.

Pode parecer muito estranha uma afirmação tão categórica quando, nos prospectos de recrutamento de trainees de qualquer grande corporação, consta que são procuradas pessoas que tragam novas idéias, pensem diferente, tenham espírito de equipe e assim por diante. Acontece que essas palavras são desprovidas de qualquer significado concreto, quando vêm de grandes e caros manuais (adoro a expressão anglófona, textbook) de administração, que ensinam, como se fosse uma equação ou uma dedução silogística, que são esses os valores fundamentais dentro de uma empresa saudável. Cabe sublinhar que isso não é uma inverdade… é só uma verdade bem abstrata.

Ora, poderíamos e deveríamos perguntar de onde viriam essas novas idéias e esse pensamento diferente se o paradigma da formação nas escolas e nas universidades (sobretudo nas de administração) é uma transmissão massiva e cada vez mais concentrada de instruções para a execução de tarefas especializadas? De onde brotaria a inclinação interior dos indivíduos a reestruturar suas próprias formas de pensar ou, pior ainda, (hélas!) a cultura de uma empresa inteira, se o raciocínio analítico e a potência crítica do pensar estão excluídos da preparação da força de trabalho, repito, mesmo a mais elitizada? E ainda, qual é o recrutador que, formado numa escola de psicologia que mais parece de gestão, será capaz de identificar uma pessoa com essas habilidades no meio da massa, se o próprio do pensamento diferente e da idéia inovadora é justamente de escapar a todos os parâmetros que o manual teve tanto cuidado em elencar? Ao contrário do que pode crer a mitologia de nosso tempo, as capacidades de análise, síntese, julgamento e crítica não são inatas. Muito pelo contrário: de seu natural, o ser humano tem um raciocínio bastante simplório.

Há muito, essa constituição do mundo já não é adequada às exigências que a própria tecnologia criou. Daí o sucesso, por exemplo, de cursos livres das chamadas humanidades, cujo caso de sucesso financeiro mais evidente no Brasil é provavelmente a Casa do Saber. (Mas há outros, muitos outros, entre sérios e charlatães.) Existe uma sensação de que a cultura do industrialismo replicado em todas as áreas está fazendo água. Mesmo o sujeito que se considera “altamente qualificado” não consegue mais dar conta de tanta instabilidade nas variáveis. Talvez até, se for um pouco mais sagaz, já perceba que nunca passou de um executor de tarefas.

Que a formação e as expectativas terão de mudar para fazer frente a um mundo pós-industrial que há muito já se instalou sem que o percebêssemos, isso me parece evidente. É claro que a pergunta passa a ser “como” ou, se preferir, “para onde”. Retorno, então, aos dois artigos citados. Como deve reagir o professor, perguntava-se o repórter, diante de alunos que encontram com facilidade as respostas na internet? Ora, a internet é um dos muitos exemplos de como o ser humano, pouco a pouco, vai transferindo parte das responsabilidades de seu cérebro para suportes exteriores a ele.

E isso não é nenhuma novidade: 350 anos antes de Cristo, Platão já ralhava contra a palavra escrita, acusando-a de substituir a memória das pessoas, que, em vez de conhecer seus argumentos e fomentar suas idéias, liam-nas em pergaminhos e se consideravam sábias. (Veja-se como o mundo mudou pouco). Dizia mais o velho filósofo de Atenas: a palavra escrita é estável, não se adapta à variação dos tempos, sua linguagem não se adapta aos diferentes interlocutores, com suas diferentes preconcepções e seu muito variegado nível intelectual. Pior ainda, a palavra escrita é incapaz de defender-se por conta própria quando alguém a critica ou deturpa. Os discursos, dizia ele, esculhambando com a logografia dos sofistas, devem ser escritos na alma, não no pergaminho.

Nem preciso dizer o quanto o mundo mudou desde então e o quanto o texto escrito se tornou fundamental para o desenvolvimento da civilização. O próprio Platão escreveu mais de 60 diálogos e sabe-se lá quantas cartas, mas nem por isso deveríamos dizer que ele estava enganado em suas críticas. Há diferentes maneiras de abordar o texto escrito, algumas melhores do que outras, e a humanidade, ou uma parte dela, aprendeu ao longo desses vinte e tantos séculos a comentar, criticar, responder, interpretar, decompor textos, até que a escrita se tornou uma ferramenta tão importante no conhecimento quanto a memória e o diálogo.

Já passamos por Gutemberg, Hearst, Marconi, Chacrinha, Bill Gates e Google. Cada uma dessas evoluções impôs mudanças na forma de pensar e ensinar. A internet, no caso, torna obsoleta a tarefa de buscar dados na memória ou em compêndios de papel: eles estão facilmente acessíveis a quem souber fazer uma pesquisa no Google com um mínimo de sapiência. (Isso é menos comum do que parece, como pode inferir quem usa programas de estatísticas ou lê o Rafael Galvão.) Cada vez mais, as tarefas que dependiam de executores muito bem treinados podem ser realizadas por programas que, não raro, se encontram online para baixar, e de graça. As primeiras vítimas, décadas atrás, foram as datilógrafas, mas elas certamente não estão sozinhas. Que sirvam de atestado os salários baixos e o desemprego alto.

Não há, portanto, muito mais saída, senão o óbvio: que se deixe aos computadores o dever de executar tarefas como “achar respostas”. Professor, seu problema passa a ser outro: proponha atividades a seus alunos que computadores simplesmente não possam fazer. Coisas como encontrar o que está por trás de um determinado argumento; deduzir conclusões de princípios que maus ou mal-intencionados autores deixaram escondidas; supor o que pode dar errado em tal e tal proposta; compreender por que um problema qualquer da física pode ser resolvido com um cálculo e não com um outro. E assim por diante. De tal maneira que o computador volte a ser a ferramenta indispensável como foi criado, em vez de muleta para a preguiça estudantil.

É claro que isso exigiria uma mudança radical nos princípios que tanto preocupam o jornalista da BBC: cálculos matemáticos e regras gramaticais não bastam mais. Desde pequena, a criança precisa ser ensinada a enxergar as proporções e entidades abstratas em que está fundada a aritmética: somar e subtrair, hoje, são muito pouco para alguém que tem uma calculadora no relógio de pulso. O mesmo vale para a língua. A questão não é o milagre de acertar todos os plurais, mas de conseguir transitar livremente entre conceitos, palavras e coisas. Isso é que é fundamental para que alguém se faça compreender, tanto por escrito quanto oralmente. E garanto que alguém que entende essa ligação fundamental – conceitos, palavras, coisas – bem raramente erra preposições, tempos verbais, pontuação. Tudo isso se torna natural e irrelevante.

Estou ciente de que seria muito custoso massificar um ensino como esse que proponho. Mas não vejo muita alternativa. Investir em alguns poucos centros de excelência me parece uma alternativa péssima, que nos atiraria de volta à aristocracia intelectual dos Eton College, Ivy League e Grandes Écoles da vida, opondo-se (verticalmente) a todo o resto da plebe ignara, que, não demoram os eleitos para diagnosticar, “só serve para atrapalhar”. Porém, mesmo sendo uma opção terrível, é o mais provável de acontecer. Uma estrutura de ensino e formação que produza centenas de milhões de pessoas capazes de raciocínio crítico soa utópico: é caro, muito caro, e dirão os maiores interessados que teria um custo proibitivo. Mas o fator preponderante é provavelmente que gente desse tipo é dura de convencer, cooptar e, claro, controlar. Esse, sim, é um custo muito elevado.

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Das cidades, como do amor

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Certo amigo costuma dizer que nossa relação com as cidades é como as relações amorosas. Ele diz, por exemplo, que Roma é cidade para namorar; Paris, para casar. Não peça explicações para seu julgamento, por favor! Essas coisas, todo mundo sabe, são o que há de mais pessoal. Sendo assim, minha opinião e a dele têm lá suas diferenças, como era de se esperar, mas não posso negar que a analogia tem sentido.

Jamais, para ilustrar, eu me meteria num namoro com Roma. Eis aí, ouso dizer, uma cidade a ser tratada com toda a cafajestagem que faz a má fama dos homens, isto é, a velha trinca: álcool aos litros, elogios absurdos e telefone falso. Já Paris, é difícil dizer; anos atrás, talvez eu também pensasse nela como uma cidade para casamento, filhos e aposentadoria. Sempre, claro, com separação de bens, que seguro morreu de velho e o europeu é tudo, menos confiável.

Mas, passados dois anos e meio, vejo que esta é uma cidade com que se pode ter no máximo um relacionamento razoavelmente durável, feito de passeios e conversas deliciosas, ou de exibi-la como prenda para saborear a inveja nos olhares todos que se voltam para sua companheira. É que esses invejosos não têm idéia do que possa ser a vida com a prima donna que compartilha de sua intimidade. As pequenas irritações, manias e exigências. O egoísmo de quem foi criada para só merecer admiração e cuidados. A distância insolente de quem pensa ser sempre precisada e nunca precisar. Essa é Paris, a cocotte.

Desenvolvendo a analogia suscitada por meu amigo, venho pensando nas muitas relações diferentes que mantenho com as cidades que conheci, e mesmo com algumas em que nunca estive, no que poderia ser classificado, para seguir na linha amorosa, como fantasias. É sempre tão irracional, circunstancial, acidental, quanto tudo o mais na nossa vida, menos aquilo que, ainda irracionalmente, acreditamos tratar com a razão. E o curioso é que, ao contrário das relações que um sujeito normal pode ter com mulheres no longo prazo, com as cidades é possível viver dezenas de romances simultâneos, na imaginação como na carne. Afinal, a não ser que seja mitologicamente histérica, a cidade em que está fincado nosso lar jamais terá ciúmes de uma visitinha que façamos a alguma outra nas férias ou no fim-de-semana. Turismo, neste caso, não é adultério.

Minhas relações mais complicadas são, é claro, com as cidades brasileiras. Estive nelas a maior parte da vida, balancei entre umas e outras, em tantas briguei e amei, com tantas rompi e reatei. Por sinal, já falei um pouco disso em outros cantos. Agora é hora de pensar nas estrangeiras, que, além de tudo que uma cidade já normalmente significa, têm ainda o mistério da outra cultura, da diferença, da variação infinita dos povos.

Buenos Aires, a misteriosa cigana sentada a uma mesa no fundo do salão, que dirá coisas absurdas ao ser abordada, rirá em desvario de enunciados que nem terão sido piadas, mas levará o parceiro à loucura em mais de um sentido. Lisboa, sempre à espera, para amolecer os membros e as articulações pela mera força de seu olhar de melancolia e devaneio. Barcelona, fulgor sufocante de um caso de verão regado a música e boa bebida, papos despretensiosos sobre arte que não entendemos, mas amamos, depois uma despedida sem tristeza. Berlim, divina e altiva, sempre sedutora e simpática, mas brilhante demais, muito poderosa e difícil, a ponto de não termos nem coragem de tentar uma aproximação. E assim por diante.

Dentre todas essas, há uma cidade que não consigo descrever nesses termos. Talvez seja aquela que conhecemos na primeira juventude, para um amor que ainda não consegue se reconhecer como grande ou pequeno, e depois perdemos de vista, para depois reencontrar um pouco mais tarde e sentir a mesma coisa, sabendo que é recíproco. E assim, sucessivamente, talvez pelo resto da vida, curtos momentos de pura felicidade, mas que não podem se estender, e que às vezes nem se concretizam, como quando há algum outro relacionamento em curso e não estamos dispostos a interrompê-lo.

É Londres, louca terra dos carros na esquerda, da polidez inquestionável polindo a superfície de uma frieza involuntária, dos preços altos para tudo que não seja cerveja. Capital de um império caído que ainda se vê em todas as caras, nas feições que os povos subjugados transmitiram ao opressor para toda a eternidade. Londres que divide os sonhos entre a glória austera dos tijolos vitorianos e e o brilho vertical de vidro que atesta o triunfo do século americano. Green grass, grey sky, God bless. Venha o que vier, serão sempre deliciosas as tortas e a geléia que acompanham o chá.

Mas não há modo de termos, London, London, nada mais, neste momento, do que isso que tivemos nas duas últimas semanas. As caminhadas no South Bank, o teatro esplêndido do West End, as bolas de neve no Green Park, de nome subitamente tão irônico debaixo da nevasca histórica que interrompeu o transporte através do Reino Unido. Tudo isso será inesquecível, como sempre foi. Mas a vida agora é além-túnel, além Mancha, naquilo que teus habitantes, ainda mais petulantes do que são excêntricos, chamam desdenhosamente de “Europa”. Mas Paris, minha cara, é o contra-exemplo de um diamante que não é eterno. Quem sabe o que traz velado o futuro?

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