Há algum tempo, circulou pela internet uma comparação entre as previsões distópicas desses dois autores, Huxley em Admirável Mundo Novo (de 1932) e Orwell em 1984 (de 1949). A conclusão era de que o universo previsto por Huxley era mais parecido com o mundo como ele é hoje do que o imaginado por Orwell.
No mundo de Huxley, a sedução, a hipnose e o prazer (em suma, a alienação) seriam os elementos nodais da dominação totalitária definitiva. No de Orwell, seriam a vigilância, o controle, o pavor. A diferença de datas de publicação não deixa de carregar uma parte da explicação para tamanha disparidade. Ao escrever, Huxley acompanhava o desmoronamento dos anos loucos anteriores à Grande Depressão, era do Fox Trot e dos americanos em Paris. Já Orwell, ao escrever, acabava de saber da existência de Auschwitz. Atroz seria escrever um livro depois de Auschwitz, a não ser que fosse 1984?
Na comparação que rodou a rede, o consumismo, a indústria cultural e a maior parte da internet eram apresentados como demonstrações do acerto de Huxley. Esse lance de terror, opressão e vigilância tinha ficado para trás, derrotado em Stalingrado e na Normandia.
Aí veio Obama, o homem dos drones e do Prism, o Bush de fala macia. E embaralhou tudo de novo. Minha tentação é dizer: ambos previram bem, mas parcialmente. Fazendo rodopiar incestuosamente a opressão e a sedução, o baile está garantido para o dominador.
E no meio disso tudo, encontro a carta que vai aí abaixo. No lançamento de 1984, Orwell pediu ao editor que mandasse um exemplar do livro para seu outrora professor de francês, Aldous Huxley. E Huxley respondeu. É interessante aprender de onde ele tirou a referência de sua sociedade da sedução, do Soma, do hedonismo Ikea. No mínimo uma curiosidade, enfim.
Wrightwood. Cal. 21 October, 1949
Dear Mr. Orwell,
It was very kind of you to tell your publishers to send me a copy of your book. It arrived as I was in the midst of a piece of work that required much reading and consulting of references; and since poor sight makes it necessary for me to ration my reading, I had to wait a long time before being able to embark on Nineteen Eighty-Four.
Agreeing with all that the critics have written of it, I need not tell you, yet once more, how fine and how profoundly important the book is. May I speak instead of the thing with which the book deals — the ultimate revolution? The first hints of a philosophy of the ultimate revolution — the revolution which lies beyond politics and economics, and which aims at total subversion of the individual’s psychology and physiology — are to be found in the Marquis de Sade, who regarded himself as the continuator, the consummator, of Robespierre and Babeuf. The philosophy of the ruling minority in Nineteen Eighty-Four is a sadism which has been carried to its logical conclusion by going beyond sex and denying it. Whether in actual fact the policy of the boot-on-the-face can go on indefinitely seems doubtful. My own belief is that the ruling oligarchy will find less arduous and wasteful ways of governing and of satisfying its lust for power, and these ways will resemble those which I described in Brave New World. I have had occasion recently to look into the history of animal magnetism and hypnotism, and have been greatly struck by the way in which, for a hundred and fifty years, the world has refused to take serious cognizance of the discoveries of Mesmer, Braid, Esdaile, and the rest.
Partly because of the prevailing materialism and partly because of prevailing respectability, nineteenth-century philosophers and men of science were not willing to investigate the odder facts of psychology for practical men, such as politicians, soldiers and policemen, to apply in the field of government. Thanks to the voluntary ignorance of our fathers, the advent of the ultimate revolution was delayed for five or six generations. Another lucky accident was Freud’s inability to hypnotize successfully and his consequent disparagement of hypnotism. This delayed the general application of hypnotism to psychiatry for at least forty years. But now psycho-analysis is being combined with hypnosis; and hypnosis has been made easy and indefinitely extensible through the use of barbiturates, which induce a hypnoid and suggestible state in even the most recalcitrant subjects.
Within the next generation I believe that the world’s rulers will discover that infant conditioning and narco-hypnosis are more efficient, as instruments of government, than clubs and prisons, and that the lust for power can be just as completely satisfied by suggesting people into loving their servitude as by flogging and kicking them into obedience. In other words, I feel that the nightmare of Nineteen Eighty-Four is destined to modulate into the nightmare of a world having more resemblance to that which I imagined in Brave New World. The change will be brought about as a result of a felt need for increased efficiency. Meanwhile, of course, there may be a large scale biological and atomic war — in which case we shall have nightmares of other and scarcely imaginable kinds.
Como é pobre a celeuma em torno do artigo de Fernando Henrique! Debater se o homem propõe ou não que o partido dele “abandone o povão” e se concentre na classe média, como se fosse algum absurdo haver partidos de classe média… Um texto inteiro poderia ser dedicado à preferência do brasileiro pela polêmica mesquinha, até mesmo na política, onde as discussões deveriam ser mais penetrantes e corajosas diante da aporia inescapável (sim, a política, enquanto arte, é o bailado numa pista de aporias). A algazarra em torno do texto fernandino é um claro exemplo dessa mediocridade escolhida. Valeria bem mais a pena, por ora, destrinchar o artigo, porque ele expõe o impasse em que se enreda, com muito gosto, o partido de que o autor é presidente de honra. Façamo-lo.
Nosso ex-presidente entende seu texto como um raio-x das insuficiências da oposição, especificamente o PSDB, e uma proposta de reorientação. Entre circunlóquios, lugares-comuns e interpretações bem livres da história recente do país, FHC acaba dizendo, um pouco sem querer, algumas coisas bastante verdadeiras. Se fossem ditas por querer, seriam talvez dolorosas demais para os tucanos e seus correligionários, porque revelam em filigrana que as diretrizes peremptórias que FHC delineia para seu partido, ora, são simplesmente o que o partido, tal como se organiza hoje, não poderá nunca realizar. Em outras palavras, Fernando Henrique atirou no que viu e acertou no que não viu. Só que, como estamos falando de política, o “ver” significa “querer ver” – é uma maneira de recortar a realidade de um universo político, tornando-a um discurso coerente, mas coerente segundo determinados pressupostos – e o “não ver” significa “recusar terminantemente, a ponto de não poder ver”. Continuar lendo →
Este fim-de-semana foi pródigo em leituras excelentes na blogosfera. Minha avó dizia que diante da voz da sabedoria, o esperto escuta e o tolo responde. Subscrevo, acrescentando que na era dos links, além de escutar, podemos passar adiante. Pois! Seguem aí os melhores posts que li nesses dias.
(O fato de ter comentado em alguns deles faz de mim um tolo, na acepção da minha avó?)
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Cesar Kiraly, em seu Modos de Fazer Mundos, às vezes posta filosofia, às vezes poesia. Mas tem dias em que ele resolve fazer as duas coisas de uma vez só. Aí não tem quem segure. Uma imagem pontiaguda da visibilidade das revoluções e a singularidade deste nosso zoon politikon.
Se Godard, como diz o texto, cria sentidos sobre as imagens do cinema, sobre um cinema criador de imagens, Rodrigo Cássio se cria em cima de Godard.
A revolução no mundo árabe é um evento profundamente singular. Sem isso, não seria revolução. Eu gostaria de desenvolver um pouco essa ideia, mas isso se tornou desnecessário: quem viu de dentro essa sigularidade, como Mohamed Bamyeh, já deixou isso suficientemente claro.
Hugo Albuquerque explicita que, se viver em São Paulo é infernal, não o é à toa.
Esta carta aberta de Ana Maria Gonçalves a Ziraldo já fez bastante barulho internet afora. Merece um pouco mais. Esses (muitos) parágrafos me deixaram com vergonha do texto que escrevi para o Amálgama sobre O Presidente Negro, achando que estava fazendo uma crítica ao Monteiro Lobato. Há! Pobre de mim.
Este texto é mais velhinho, mas aproveito o ensejo. Carlos Magalhães abre a cortina do nosso cenário escravocrata, em plena urbanidade pós-moderna e assim por diante.
Este aqui, de Fabiano Camilo, é mais velho ainda. Que importe? Tem de ser lido. Sobre a visibilidade do homossexual na televisão brasileira e, por extensão, no Brasil.
O que segue foi escrito aos poucos, nos intervalos de uma semana tempestuosa. Não foi revisado e tenho certeza de que está uma bagunça, “longo demais” para a internet e por aí vai. Mas vai assim mesmo, para sair antes que o povo esqueça os assuntos das últimas semanas, e porque as ideias largadas aqui, de qualquer jeito, são importantes para mim.
Lembrei de Jamelão anunciando, em 1997, que 2004 era o sonho brasileiro: “De braços abertos sou o Rio de Janeiro…”. Pois 2004 passou, como passou Jamelão. De lá para cá, falou-se em 2008, 2012, poderíamos falar de 2040 se fosse necessário. Chegamos a 2016 ouvindo a mesma história de que Cesar Maia queria porque queria as Olimpíadas no Rio, depois do Pan de 2007 que rivalizou com a Eco-92 em maquiagem urbana. Ainda deu tempo de o alcaide maluquinho tirar uma onda com a Marta Suplicy e a velha rivalidade com São Paulo, evocando a frase de Vinícius – a beleza é fundamental, talvez a última coisa fundamental neste mundo. Mas bastou Cesar Maia desgrudar da poltrona para que o COI, provavelmente aliviado, abrir o envelope do sinal verde. Coincidência? Provavelmente. Deixeimos o Maluco Beleza para lá, que ele já não conta mais.
Na verdade, dir-se-ia – e agradeço aos céus pela existência da mesóclise – que o mundo está ficando mais esférico. As Olimpíadas no Rio são um indício disso, ao lado da Copa do Mundo na África do Sul e o Oscar para um quase-Bollywood. Parece que já ficou para trás o eurocentrismo do mundo colonial, a bipolaridade do pós-guerra, o choque unívoco de civilizações que Huntington, com sua mentalidade bipolar, esperava. Seria também o fim do Fim da História, se é que houve um começo. A profecia de um mundo de grandes blocos, de que ouvimos falar desde o início da década de 90, começa a se concretizar e não tem volta: nem mesmo o mais poderoso dos ex-impérios da era moderna pode vencer isoladamente, e é bom (para eles) que os britânicos entendam isso de uma vez por todas.
Aliás, os europeus de maneira geral só se dão conta da urgência de algutinar quando uma crise os aperta, como provam os irlandeses, esses adoráveis pinguços. Quando a coisa começa a melhorar um pouco, todo o continente perde de vista o correr da história e se fecha em nacionalismos anacrônicos e já algo ridículos. Sendo assim, vivam as crises! Ao mesmo tempo, os temíveis chineses se esforçam por espalhar contratos com o mundo inteiro, mas sempre de uma posição de dominância que talvez acabe revelando ser seu calcanhar de Aquiles. Afinal, eles empilham gente num território enorme, mas continuam dependendo de alguns apertos-de-mão para não se ver diante de uma massa bilionária de ex-camponeses esfaimados e revoltados. Já os americanos, que passaram oito anos tentando enfiar cubos quadrados em buracos triangulares, agora correm atrá do tempo perdido, acenam para tudo mundo, sorriem e tudo mais, enquanto, em casa, os mais atrasados continuam atirando dardos na efígie de Obama. Eis aí, em poucas palavras, um instantâneo geopolítico do mundo.
Se tivesse tempo e paciência, eu poderia enveredar a falar da turma que está pondo as manguinhas de fora militarmente: indianos, paquistaneses, iranianos, russos. Mas são iniciativas que não têm grande perspectiva de sucesso, porque é cada vez mais improdutivo negociar pela ameaça, particularmente a atômica. Lembremos que é sempre mais fácil ser atingido que atingir e o primeiro a lançar a bomba será também o primeiro a sumir do mapa – e isso vale tanto para Israel quanto para a Coréia do Norte.
Em vez disso, prefiro me concentrar no Brasil, esse país que todo mundo adora, à exceção dos agentes de imigração europeus e dos zagueiros da seleção argentina. Nosso acesso a esse mundo G-20 que nasce é particularmente auspicioso, como todos sabem. A economia cresce, os juros escorregam, a desigualdade começa a ceder, a diplomacia dá boas tacadas, voltamos a fazer o básico, qual seja, investir em pesquisa, ensino e transporte. No lugar de uma grande massa de funcionários públicos mal pagos e sem função, como outrora, temos ministérios e autarquias ocupados por técnicos qualificados como talvez nunca tenhamos tido.
E assim por diante. No mundo inteiro, jornalistas, analistas e todo tipo de gente que gosta de dar pitaco manifestam simpatia por nós. Um aponta o país como contrapeso aos EUA na América Latina. Outro se admira de nosso potencial energético renovável. Outro ainda louva a firmeza demonstrada perante a quartelada de Honduras. Muitos lembram a iniciativa de valorização do G-20, ponto culminante de uma idéia de não-alinhamento que começou há décadas mas, até hoje, tendia a só patinar. Parece que tudo vai muito bem para Pindorama – e esse apelido talvez esteja a caminho de desaparecer. Quem sabe?
É tentador dizer que estamos diante de uma oportunidade de desenvolvimento de uma dimensão que jamais conhecemos. Parece mesmo fantasiosa a ideia de um Brasil desenvolvido, rico e justo, não mais o país do futuro, mas um verdadeiro – como é mesmo que se diz? – global player. Mas a verdade é que já vivemos situações mais ou menos parecidas, sim. Oportunidades de subir alguns degraus na escala da História, tivemos algumas. Desde uma hipotética industrialização ainda no século XIX até a reforma agrária nos anos 60 e o controle da inflação em 94, deixamos todas pela metade. É por isso que, quando ouço Lula dizer que o Brasil deixou de ser um país de segunda classe para se tornar um país de primeira, logo penso: “Calma, presidente. Você está tomando por fato consumado o que não passa de potencial”.
Não quero soar pessimista. Não estou insinuando a existência de uma maldição de atraso que paira sobre as nossas cabeças. Mas quero, sim, chamar a atenção para o fato de que desenvolver-se envolve muito mais do que o crescimento econômico, o reconhecimento da mídia internacional e a esperança de “ética já” ou coisa que o valha, como se um salto de patamar trouxesse milagrosamente o fim “dessa roubalheira toda que está aí” e o início de uma vida de moleza, espelhada no que muita gente em nossa classe média pensa que acontece no “primeiro mundo”. Na verdade, passar à categoria de país desenvolvido, daqueles em que a desigualdade é pouca e a segurança muita, implica uma mudança radical na vida de um povo, algo de que o brasileiro terá de se mostrar capaz se quiser cumprir a profecia do presidente.
Nos anos 70, um analista do governo americano de nome Herman Kahn – uma figura estranha e interessantíssima, cheia de ideias heterodoxas sobre guerra nuclear, possivelmente um dos inspiradores do Dr. Fantástico de Kubrick – especulou que existiria uma curiosa lei da economia: a partir de um certo patamar de renda per capita, ou seja, com o enriquecimento de uma dada sociedade, as condições de vida da classe média alta se tornam “menos confortáveis”. Esse discreto desconforto resultaria do desaparecimento, ou pelo menos da restrição, de alguns serviços de luxo: babás, motoristas, contínuos (sim, existe uma palavra em português para office boy) e assim por diante. Todos esses passam a estar reservados apenas aos “muito ricos”, categoria bastante restrita, como se sabe.
A experiência é muito traumática e provoca uma sensação algo esquizofrênica em quem a atravessa: a impressão de ao mesmo tempo enriquecer e empobrecer, se é que algo assim é possível. Grande parte das convulsões sociais de 1800-1970 na Europa, por exemplo, podem ser interpretadas assim: gente de nariz empinado que não aceitava a ideia de que seus criados e lacaios acedessem a uma condição de relevância social, leia-se política. Em muitas ocasiões, ganhou quem queria segurar a marcha do desenvolvimento (1848 na Alemanha, 1871 na França); em outras, ganhou quem queria acelerá-lo (um bom exemplo não é europeu, mas pouco importa: a guerra civil americana).
Se for verdade que estamos em pleno salto para o desenvolvimento (e há controvérsias), terá então chegado a hora e a vez do Brasil (nessas horas chego até a simpatizar com Galvão Bueno: Brasil-sil-sil-sil!). Fico me perguntando se conseguiremos fazer essa auto-transposição para um país em que as famílias não “têm” empregada e quem lava a louça são as crianças. Em que “eu estou pagando” não é argumento para justificar abusos mesquinhos de poder. Em que quem serve as mesas nos restaurantes são jovens não necessariamente “desfavorecidos”, que financiam seus estudos pelo trabalho mas nem por isso acham essa condição humilhante ou degradante, muito pelo contrário. Imagine, o Brasil um país em que usar o transporte público é normal e até preferível, por muito mais prático do que se submeter ao trânsito, às multas, ao estacionamento caro. Imagine, o carro já não mais aquele símbolo de status tão paradigmático…
Tudo isso parece muito longe de acontecer no Brasil, é claro. Mas o problema, porque o choque de mentalidades é sim um problema, já começa a se esboçar. Quando, por exemplo, nossa diplomacia começa a ter um peso em decisões de interesse mundial, é preciso que a opinião pública, em casa, tenha acesso às verdadeiras questões que estão em jogo – função da imprensa – e possa se posicionar de acordo com essas questões; e como, repito, são questões de interesse mundial, é preciso que esse posicionamento tenha em vista essa dimensão maior, e não um mero partidarismo de fundo de quintal. Afinal, como sabemos, o alcance da política de um país desenvolvido ou quase desenvolvido transborda largamente suas próprias fronteiras. Sim, isso pode vir a acontecer: a opinião pública brasileira influindo de verdade. Mas para isso será preciso que ela seja de fato uma opinião, e não só um amálgama de impressões dispersas e predominantemente emotivas. Será preciso que ela se baseie em algo estável, ou seja, um ambiente político em que todas as vozes têm peso – sim, porque num país desses, o conceito de “excluído” é vergonhoso.
O caso das Olimpíadas no Rio é sintomático, portanto o catalisador desta breve reflexão (não tão breve, considerando que está num blog). À parte as avaliações objetivas do evento – se é verdade que traz benefícios de longo prazo, se é mais estorvo que bênção etc. –, podemos dividir em dois campos as reações à notícia. De um lado, a euforia com o “triunfo”, com o reconhecimento de nossos esforços, com a integração da América do Sul à festa do esporte. Do outro, a velha história de que, até hoje, tudo em nosso país foi superfaturado e resultou em serviços frustrantes, a começar pelos jogos panamericanos no próprio Rio há dois anos.
Retomando o argumento das exigências de um país que pretende se desenvolver, posso afirmar sem risco de engano que é preciso superar o pensamento de ambos os campos. Não vou ser frio a ponto de deplorar a alegria de ter realizado em 2009 um “sonho brasileiro” declamado em 1997 pela bateria da Mangueira, nem alienado a ponto de fingir que o desvio de verbas não é uma modalidade em que somos medalha de ouro. Mas acredito que não mereço ser lapidado por lembrar que tanto o bom funcionamento dos jogos quanto o bom uso do dinheiro, mais quaisquer benefícios que o evento possa trazer, dependem de nós e apenas de nós.
Em outras palavras, a primeira vítima de um Brasil desenvolvido (a esse ponto ainda profundamente hipotético, não vamos perder de vista) será esse velho fatalismo que nada mais é, na verdade, do que conservadorismo disfarçado. Uso aqui conservadorismo num sentido talvez errado: não é o ser conservador no sentido de defender antigos valores morais, sociais, políticos, econômicos – alguns dirão “ser de direita” –, mas de agir, talvez inconscientemente, para manter mesmo aquilo que em nossa sociedade é vício e reconhecemos como tal. Isso inclui o ódio rancoroso contra “os países ricos” que, mal disfarçado, está por trás da euforia de muitos, a começar pelo presidente, com o “Rio 2016”.
Mas é mais manifesto nesse tal fatalismo, cujas principais vertentes são, por um lado o “todo político é ladrão” e, por outro, o “todo favelado (ou pobre, se preferir) é ladrão”. A primeira frase é mencionada com uma frequência razoável e não está tão longe da verdade. Mas, embora poucas pessoas não-fanáticas entrem para a vida política sem querer tirar um benefício pessoal, uma declaração tão peremtória acaba não servindo a outro propósito senão justificar a alienação voluntária. Sabendo que “todo político é ladrão”, temos uma boa razão para não nos metermos nisso. Ficamos cuidando da nossa vida e, quando passamos nas Cinelândias da vida, deploramos aqueles grupos de pessoas mal-intencionadas com seus cartazes e buzinas diante da Assembleia. Sim, porque, se estão dialogando com políticos, só podem ser mal-intencionados…
A vertente oposta é menos evidente, já que não pega muito bem dizer que “todo favelado é ladrão”. Mas é o que pensa muita gente na classe média, que não poupa nem a própria empregada doméstica, “lá em casa há 20 anos” mas vigiada bem de perto. Mesmo quem, muito pudico, não afirma que “todo pobre é ladrão” imediatamente presume que o carro de alguém com “cara de favelado” (sic) só pode ser roubado ou comprado com dinheiro de origem duvidosa. Esse sentimento difuso, mas bem real, é consequência de uma configuração social em que “pobre” é um conceito que vai muito além de “pessoa com renda baixa” e implica de fato uma outra categoria humana, outra casta, outra classe de seres humanos. Coisa de antigamente, aliás, o mundo inteiro foi assim pela História quase inteira. Mesmo o uso da língua é diferente entre essas classes; os de dentro zombam do “falar errado” dos de fora, que, por sua vez, tentam caprichar quando se comunicam com seus “superiores” e acabam só produzindo mais motivo para chacota. Quem não reconhece, nisso, o Brasil? Pois bem, somando tudo, temos que “todo político é pilantra, todo pobre é ladrão, fala errado e tem que saber o seu lugar”.
Pois bem, não poderá existir “o lugar do pobre” num Brasil que se pretenderá desenvolvido. Tomando “lugar” no sentido literal, desfavelizar é fundamental mas é pouco e teleféricos não vão apagar esse que é um dos maiores símbolos da nossa fratura social (o termo é um galicismo, mas funciona). Num país desenvolvido, a diferença entre ricos, pobres e classe média é quase inteiramente quantitativa, em vez de qualitativa. É uma diferença enorme, claro, mas bem mais fluida e menos cruel. Paralelamente, não pode haver lugar em nosso imaginário Brasil desenvolvido (ou qualquer outro país, aliás) para o dar de ombros político: exultar com qualquer piada ridícula que ironize o dedo perdido do presidente e lamentar que seja possível uma ação governamental justa e adequada, a não ser as que me beneficiem direta e particularmente. A emergência de novos interesses e opiniões, novos pontos de vista, novas exigências de gente que até então não tinha nem voz, nem perspectiva, nem visibilidade, transforma o jogo político numa roleta com incontáveis casas. Para todos os grupos, o interesse e a participação políticos, seja na forma de reivindicações, seja pela administração, tornam-se imprescindíveis, para não dizer inescapáveis. O espaço público organizado (ou seja, a política) é o meio de interação de sociedades “desenvolvidas”, da mesma forma como o Bope e congêneres são o meio de interação de sociedades atrasadas.
O que tem de especial no “sonho brasileiro” que Jamelão cantou não é a perspectiva de que se torne realidade. Essa, sempre tivemos e sempre frustramos, porque o Bope continua sendo mais fácil do que a política, principalmente para quem comanda as bordoadas em vez de levá-las. A diferença, pelo menos até onde posso senti-la, é um pouco mais de interesse, um pouco mais de exigência, para que o futuro de fato se torne presente, como se tem falado. Organizar jogos olímpicos é um pálido exemplo disso. Pálido, mas com enorme cartaz. Sem uma gestão competente, fruto de uma determinada capacidade de organização coletiva (leia-se política), é certo que o evento não decola. Velhas perdas de tempo, como o fatalismo já mencionado, o bairrismo e o espírito de porco de quem prefere puxar papo pelas reclamações, deixam de ser excentricidade nacional para se revelarem os estorvos que realmente são. Só por isso, a perspectiva do “Rio 2016” já é, pelo menos potencialmente, algo a celebrar.
De maneira geral, o que me deixa razoavelmente otimista não é nem o pré-sal, nem a Copa, nem as Olimpíadas, nem a política externa, nem o PAC, nem o editorial do Clarín, do FT ou do NYT. É, sim, uma percepção difusa de que as gerações mais jovens, no país, têm um interesse maior na administração da coisa pública, no planejamento urbano, em projetos de desenvolvimento de longo prazo. Na esfera federal como em Estados e municípios, começam a ser ouvidos os grupos de estudo e os gestores qualificados, que antes viviam abafados pelo fatalismo político e os lobbies dos aproveitadores de sempre. Quanto tempo isso vai durar, nem imagino, mas é um momento auspicioso, embora longe da panaceia que o Planalto quer fazer crer. Resta ver se não vamos querer sabotar mais uma vez nosso próprio futuro, como já é nosso hábito.
Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.
Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.
Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.
O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.
Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.
Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.
E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.
Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.
A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)
A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.
Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.
Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.
PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.
Quarta-feira, cinco de novembro, oito horas da noite. Entranhas da Gare Saint-Lazare, estação do oitavo arrondissement de Paris. Uma mulher de meia-idade, cabelos brancos e bem curtos, destaca-se da multidão, quase despercebida. Ela escreve com uma caneta pilot negra sobre o fundo branco de um painel publicitário, em movimentos tranqüilos e seguros. Ninguém a incomoda.
Tendo-a avistado à distância, logo penso se tratar de um membro do grupo anarquista que ataca propagandas por toda a cidade, na missão de denunciar o consumismo e a lavagem cerebral. Mas é uma surpresa: eu pensava que os ativistas underground fossem todos muito jovens. Ao menos o são os que, vez em quando, acabam apanhados pela segurança e sofrem processos por dano a propriedade.
A corrente de viajantes vai passando aos encontrões, sem espiar a mulher resoluta em seu discreto vandalismo. Um fluxo penoso, sem ritmo, mil rumos sem direção. Como sangue empurrado por um coração fora de compasso.
Entre pastas, meias de seda e capotes, só uma pessoa interrompe a marcha para ler a mensagem: outra mulher de meia-idade, mas de cabelos anelados, tingidos de vermelho berrante.
Quando a ativista termina seu texto, estou quase perto o bastante para ler. A fulva espectadora sorri de leve. A autora anui de um gesto brusco da cabeça. Um sorriso e ela tampa a caneta. Está claramente satisfeita com o serviço. Pode voltar a seu caminho.
Já estou bastante próximo para enxergar a mensagem. Sobre o anúncio de sapatos elegantes, lê-se:
“À quand un Obama ici?“
Uma constatação de como a onda azul está espalhada pelo mundo. A onda que venceu, como não venceu a verde, de Gabeira, no Rio. A francesa engajada, figura tão peculiar deste país, queria um Obama para seu país.
Nações diferentes, histórias diferentes, contextos diferentes. Um Obama na França teria de cair realmente do céu, mas pouco importa. A grafiteira do metrô não quer um presidente jovem, inteligente, carismático e negro.
Ela quer o símbolo, a imagem. O Obama dos cartazes, não o do Salão Oval. Ela quer o nome ao qual está associado tudo que se pode esperar de bom e revolucionário neste nosso começo de século, que parecia tão conformista e reacionário.
“Quando teremos um Obama aqui?”, ela quer saber.
Minha senhora, nesse sentido em que a senhora está pensando, já temos.
Das outras vezes em que passei a noite em claro desde que vivo em Paris, foi para ver futebol. Ontem, abdiquei de acordar a tempo de ir ao curso de alemão para viver a História in the making. À distância, mas em tempo real, como só nossa era de conexões pode permitir. Olhos inchados, sobre a escrivaninha uma caneca de chá, trêmulo de frio e expectativa, passei horas no portal da CNN, a clicar sobre os mapas dos Estados americanos, vendo a subida dos números, acompanhando os comentários da torcida democrata em blogs e jornais, que, em poucas horas, passaram da apreensão esperançosa a uma torrente incontida de emoção, alívio e orgulho.
Eram quase seis horas da manhã na Europa quando começou o discurso da vitória de Barack Obama, no Grant Park de Chicago. Ohio e Virginia acabavam de revelar sua definitiva mudança de lado. A Flórida estava a caminho. Enquanto esperava a subida ao palanque do presidente eleito, a cobertura da BBC exibia cenas da celebração no Quênia, terra do pai e de muitos meio-irmãos de Barack. Uma multidão cantava e dançava, em meio a declarações de que aquela era uma vitória deles, também, um pouco. E quem haverá de dizer que não era? Comecei a imaginar a expressão de algum redneck do Mississippi que estivesse assistindo àquela cobertura; não sem uma certa alegria sádica, pensei que ele talvez sofresse um enfarte. Pena que só existisse na minha cabeça.
E começou o discurso. O 44o presidente dos Estados Unidos é um pequeno milagre, para não dizer que é um grande milagre. Seu domínio da oratória é raro. Cada movimento de sua cabeça e de suas mãos, cada pausa no meio das frases, cada piadinha que quebra a gravidade da retórica, cada olhar, tudo é tão bem estudado que parece natural. A facilidade de sua expressão é tamanha que faz crer que improvisa. Certa vez, debati com meu pai um discurso de campanha do então recém-escolhido candidato democrata. Ele dizia que não empolgava, eu discordei. Sem falsa modéstia, eu tinha razão. Obama não pode imprimir a suas palavras um tom inflamado, que o associaria mais a Jesse Jackson e a Malcolm X do que a Martin Luther King Jr., cujo famoso discurso do sonho é evocado por dez entre dez comentaristas desta eleição. De quebra, ainda reduziria a percepção de sua distância do belicismo caipira dos republicanos atuais.
Obama, ao falar, inculca no ouvinte os atributos que quer: sereno, culto, preparado, forte, capaz. Sua fala é tão bem controlada que até nos momentos em que deveria perder o controle, não perde. Foi assim quando se referiu a Michelle Obama, “the love (pausa) of my life“, e a sua avó, que faleceu no final da última semana. À parte os agradecimentos, devo dizer que fiquei muito impressionado com a força e a beleza do discurso. Digno de Lincoln, King, evidentemente, e Churchill, também em versão de texto, porque a pronúncia não é nada fácil (se não tiver paciência, pule direto para o último parágrafo, que é o ápice da beleza oratória). Melhor, creio, do que Kennedy. Em política, saber falar é tão importante quanto saber costurar acordos ou administrar a economia. Também nesse aspecto, Obama começa muito bem.
Nem preciso dizer que sou fascinado pela arte da Oratória. Talvez porque eu mesmo falo muito mal: tendo a embaralhar as palavras e perder a atenção do ouvinte. Que dirá de uma multidão… A vantagem de viver no estrangeiro, aliás, é que, com o sotaque, tudo se perdoa. Admiro, até invejo, quem consegue segurar o público só com a força de sua presença e de sua voz. Mais além, a palavra é um dos fenômenos que mais me fascinam. O poder de falar é determinante. É quase irresistível. Apaixona, como se vê pelos olhares vidrados da multidão que segue a voz clara de Obama, como investidores seguem sem pensar as ondas do mercado. A persuasão das belas palavras leva às lágrimas homens feitos, grisalhos, que em teoria viveram o suficiente para não se deixar emocionar e conduzir tão facilmente. Milhares de pessoas abrem mão de sua individualidade para repetir o mantra irresistível da campanha bem-sucedida: “Yes, we can!“
A oratória é uma arte perigosa, sim. Basta lembrar de Carlos Lacerda, de Joseph Goebbels, e da seqüência magistral de Júlio César, peça de Shakespeare em que Brutus e Marco Antônio discursam sobre o cadáver ainda quente do líder, e basculam as emoções da multidão romana pela simples potência de suas frases fulminantes. O bardo, com sua visão aguda, não deixa dúvidas: o erro estratégico de Brutus foi deixar o adversário falar; e por último, ainda por cima. O texto dá a entender que a história do Império Romano seria outra sem essa falha.
Mas Obama, como eu já disse, é um milagre. No ponto em que está, já realizou grande parte do que tinha de fazer como símbolo. Imagem do homem negro que supera os obstáculos e consegue unir todas as etnias do país. Encarnação do esclarecimento que esmaga o perigo crescente do obscurantismo. Um bofetão no rosto da tradição racista dos Estados do Sul. Só pelo fato de ter sido eleito, Obama já abalou as estruturas nefastas da desigualdade, embora ela não vá deixar de existir, e forte, mesmo que ele seja reeleito e conduza um governo impecável nos próximos oito anos. Obama já chegou mais longe que o doutor King. E já chegou mais longe que Bobby Kennedy, branco como a neve, mas assassinado sem ter a chance de vencer as primárias democratas.
Porém, há que entender-se que o Barack Hussein Obama que conhecemos já é uma página da história. Acabou. Daqui por diante, teremos um outro Barack Hussein Obama. Um presidente não é um candidato. Não há um inimigo claro, uma chapa John McCain e Sarah Palin, que não representa absolutamente nada em termos governamentais e administrativos, mas encarna com perfeição a política do atraso, a manipulação de emoções patrióticas belicistas, a mentira de um misticismo chinfrim que se faz passar por religião, a estupidez agressiva travestida de honestidade simplória, que obteve dos eleitores do país mais rico do mundo a bagatela de cinqüenta e cinco milhões de votos. Eis o número de americanos que saíram de casa para escolher o absoluto vazio.
Isso já ficou para trás. Obama não é mais um antípoda dessa gente, ele agora é seu líder. Escolherá um ministério, enfrentará uma crise, tomará decisões difíceis. Negociará acordos comerciais com outros países, inclusive o Brasil, e será duro nas negociações, como espera seu eleitor. Será criticado por jornalistas e zombado por comediantes, como todos os presidentes de todos os países, salvo, no máximo, as piores ditaduras. Ele deixará de incorporar a esperança. Passará a representar um país. Sua oratória será fundamental nessa nova etapa de recessão e guerra, mas não será tudo. A grande, a verdadeira vitória que o novo presidente americano pode obter é outra:
Quando criança, eu vivia num subúrbio de Washington, D.C., e na minha turma da escola havia um único garotinho negro, de cujo nome já me esqueci (como, aliás, de todos os outros coleguinhas daquele tempo). Em várias aulas, a adorável professorinha, Ms. Flannery (engraçado, do nome dela, não esqueci!), se esforçava por nos fazer entender a importância da igualdade e o absurdo da discriminação racial. Certo dia, recebemos como dever de casa inventar uma história que envolvesse outros alunos da turma. Na que escrevi, todos os meus amigos eram abduzidos por alguma força inexplicável e se transformavam em pessoas más, muito cruéis. Eu seria o único a resistir e teria de salvar todos os demais. Um verdadeiro herói americano, digamos assim. Mas mudei o enredo. Achei, veja só, que estaria agindo como um racista se incluísse o colega negro na lista dos maus. No texto final, então, nós dois lutávamos lado a lado pelo triunfo do Bem. Ninguém jamais soube por que fiz a alteração. Meu colega ficou lisonjeado. Se fosse no Brasil, tenho certeza de que passariam a me olhar torto, com o tradicional “sei não”…
Contei esse episódio para chegar à vitória que Obama ainda precisa conquistar, nos quatro ou oito anos em que ocupará a Casa Branca. Ele terá triunfado se ações ingênuas como a minha se tornarem obsoletas. Se ninguém comentar uma decisão do presidente fazendo menção à sua cor. Se não pegarem mais leve, nem mais pesado, porque ele “é negro”. Se concordâncias e discordâncias passarem por cima do fato, como se fosse um detalhe. Ironicamente, o maior feito de Obama terá sido transformar sua grande diferença em qualquer coisa de corriqueiro.
É claro que não vai acontecer. Quinhentos anos de discriminação racial, escravidão, segregação, preconceito, não vão ser apagados por um ou dois mandatos. Mas já terá sido um ganho enorme se, no mundo inteiro, pessoas que sempre enxergaram a si próprias como inferiores por causa de sua pele puderem ter espaço para se impor como cidadãos plenos. Daqui por diante, todas as crianças, de todas as cores e etnias, do mundo inteiro, vão nascer e crescer com a imagem de um presidente americano que não é branco, não é W.A.S.P (OK, Kennedy era católico). Para essas crianças, a idéia de que o negro possa ser inferior ao branco não fará sentido. Eis a vitória que Obama terá de cavar enquanto estiver trabalhando no Salão Oval.
Estou convicto de que a madrugada fria que passei diante do computador e da televisão é algo que vou contar para meus netos. Valeu a pena.
PS:Sobre as eleições propriamente ditas, em português, recomendo os óbvios Biscoito Fino e Pedro Dória, além do excelente blog de Argemiro Ferreira. Para algumas frases bem escolhidas e traduzidas para nossa última flor do Lácio, recorram ao Animot. Para quem gosta de sarcasmo irrefreado, O Hermenauta.
Na última postagem, esqueci de mencionar uma hipótese “engraçada” (na medida em que a discriminação étnica, racial ou cromato-cutânea pode ser engraçada…) Há males que vêm para o bem, enfim. Meu esquecimento vai servir de gancho para encadear um texto no outro. Não que isso seja indispensável, mas há puristas que não passam sem a elegância do gancho e vão certamente ficar aliviados. Pois bem, à hipótese. Vamos supor que as previsões se confirmem e o carismático Obama, candidato preferido de dez entre dez não-obscurantistas, seja eleito presidente dos EUA na próxima terça-feira. Que será do eufemismo etno-geográfico dos europeus? Seria engraçado e significativo se resolvessem excluir “o império” da idéia de “ocidente”…
Mas isso não vai acontecer. Mais lógico seria esperar declarações, mesmo apologéticas, dando conta de que um “não-ocidental” governa a mais rica nação do Ocidente. Não-ocidental… logo Obama, que fez a vida em Chicago, como Al Capone. Porém, a língua está bem aquém da lógica e o discurso europeu não tem segredo. Eles dirão, maravilhados: “Isso é excelente! Um negro na presidência! A civilização (ocidental) evoluiu muito… É um exemplo para o resto do planeta!” E, como a língua não leu Tarski, nem Gödel, duvido seriamente que algum ocidental considere contraditório o fato de ainda usar a palavra “ocidental” para se referir à gente de pele branca.
Mas chega de Europa! Ao mencionar os Estados Unidos, chegamos a um país cuja “questão racial” é mais próxima da nossa, uma óbvia conseqüência do fenômeno comum da escravidão, a que se soma, embora em escalas bem diferentes, a chegada de imigrantes do mundo inteiro. Lá, como no Brasil, associaram-se, durante gerações e gerações, certos conceitos de valor às peles branca e negra (e “vermelha”, aliás), que determinam profundamente o modo de ser nacional (o ethos, podemos dizer). Obama é um exemplo particularmente curioso da forma como seu país retrata a si mesmo. Se um indivíduo de pai negro e mãe branca entra imediatamente na categoria “negro”, sem maiores considerações sobre a mestiçagem, só posso concluir que o termo “branco” funciona como uma espécie de núcleo lógico para a classificação racial, de forma que tudo o mais é associado ao “outro”. Assim, à exceção do estritamente branco, toda a gama de porcentagem genética de outro grupo é automaticamente encaixada, por inteiro, nessa outra categoria (chamada de “raça” por ranço ideológico, aliás). Não é uma escolha consciente. É a maneira como as populações vêem a si mesmas e às demais. Um resquício lingüístico, mas difícil de identificar e, por extensão, de combater.
Dos EUA, passemos, finalmente, ao Brasil. Como se manifesta esse fenômeno vergonhoso e renitente da discriminação étnica camuflada pela língua? Não é como na Europa, nem como nos EUA, e esse simples fato é suficiente para nutrir a velha falácia de que não existe preconceito (de cor) no Brasil. Porém, se essa idéia falsa subsiste há tanto tempo, ela só pode ser sintoma de alguma outra coisa. E é onde vamos encontrar o pulo do gato, nossa particularidade embaraçosa.
Certo está que a divisão estanque entre “branco” e “negro”, que “funciona” tão bem no contexto americano e se escamoteia com tamanha eficiência no desvio terminológico dos europeus, enfrenta uma dificuldade a mais para se sustentar no Brasil. Nossas peles têm muitos matizes, nosso sangue é o ápice da fusão, o sol que amamos muda sem trégua a cara que apresentamos. Mesmo assim, o problema existe. Mas existe de uma maneira muito esquisita, tipicamente nossa. Infinitamente mais do que nas outras terras que usamos como exemplo, é dificílimo distinguir, em cada caso e mesmo no quadro geral, até que ponto um ato (ou uma situação) de discriminação é racial ou social. É por isso que tantas vezes, com a maior boa vontade, o brasileiro se deixa cair na esparrela de que a totalidade da discriminação que existe no país é da natureza social, puramente social, sem um pingo de questão racial envolvida. E, por mais conscientes que estejamos do erro desse tipo de concepção, como nem tudo em nossa mente é consciência, acabamos todos caindo, mais cedo ou mais tarde. Isso acontece porque a confusão se forma de maneira sediciosa e notavelmente eficiente, que envolve nossa própria faculdade cognitiva, a tal ponto que a cor de uma pessoa pode variar enormemente de acordo com sua condição social. É quase como se, no Brasil, o dinheiro tivesse o poder de alterar estruturas genéticas. Seria muito interessante, do ponto de vista fenomenológico, se não fosse terrível, do ponto de vista humano. Mas explico.
Para isso, vou precisar evocar um episódio que se passou comigo. Antes que venham me dizer que é um caso isolado, já aviso que não é. Escolhi esse como exemplo porque foi o primeiro que vivi e, talvez por isso mesmo, considero paradigmático. Foi na casa de um amigo da escola. A certa altura do almoço, por algum motivo, o assunto passou a ser o problema do racismo. Eis um tema em que, naturalmente, a palavra “negro” dificilmente deixa de ser pronunciada. E, justamente, à sua primeira menção, o pai de meu amigo sugeriu, sussurrando, que falássemos todos mais baixo. À guisa de explicação, indicou com a cabeça a cozinha, onde, fora de nosso campo de visão, a doméstica preparava a sobremesa. No mesmo instante, meu amigo, um piadista incorrigível e um tanto imprudente, observou: “mas ela não é negra. Ela é marrom”.
Espero que a piada de mau gosto do garoto (hoje homem feito, claro) não lhe valha uma fatwa tardia. Minha intenção, na verdade, é chamar a atenção para as implicações do que ele disse. Do ponto de vista cromático, afinal de contas, ele até tinha razão; mas o importante é que, sem perceber, meu camarada deu azo a duas constatações fundamentais e sintomáticas. Em primeiro lugar, o tom da pele da moça estava longe de ser negro, como negra era a pele, por exemplo, de Milton Santos. Mas, até aí, nenhuma novidade. Estamos ainda no quadro do princípio que apontamos para o caso de Barack Obama: numa sociedade dominada pela idéia do branco (mesmo idealmente, por suposto), basta ser ligeiramente não-branco para entrar na categoria “negro”.
A verdadeira marca de nossa diferença em relação ao “modelo” americano, uma marca, pensando bem, talvez até mais grave, é a segunda constatação, essa absolutamente involuntária, de meu amigo. Ao final da refeição, percebi, não sem surpresa, que a pele da jovem na cozinha não só não era negra, como não era mais escura do que a de nenhum de meus anfitriões. Nem pai, nem mãe, nem filho engraçadinho. A imagem continua clara na minha lembrança: o momento em que ela veio servir a sobremesa. Postas lado a lado, a humilde contratada tinha a tez mais clara do que a de sua distinta contratante. Mesmo assim, que fenômeno, que horror, que vergonha, nada disso impediu que, na percepção imediata de todos nós, mesmo da própria doméstica, sentados à mesa estavam os “patrões brancos” e, de pé, a “empregada escurinha” (para usar um termo cínico, mas corrente).
Não era defeito em nossos olhos, não era uma incidência esquisita da luz. Ao longo dos anos, fui me dando conta de até que ponto nós somos condicionados a colar a percepção da cor ao estatuto do indivíduo na sociedade. Para justificar a crença atávica e, a princípio, involuntária na superioridade dos brancos, nosso aparelho cognitivo transforma automaticamente em branco quem nos parece superior, seja pela renda, pelo poder ou pelo que tenha produzido. O rico se sente mais claro do que alguém com o mesmo tom de pele, mas menos abonado. O pobre se sente mais escuro. E o mesmo vale para as relações mútuas. O processo tem lugar em nosso inconsciente.
Lembro de quando Fernando Henrique (o sociólogo, não o goleiro) afirmou de si próprio ser “mulatinho” (e ter um pé na cozinha), e da reação sarcástica da imprensa e dos comentários na rua. Contudo, não é mentira. Se fosse pedreiro ou frentista, com o mesmo tom de pele, no Brasil, ninguém o consideraria “branco”. Ele seria um “escurinho”, tanto quanto a doméstica de meu velho amigo. Mas ele não era frentista, nem pedreiro, era presidente do país. Logo, branco. Outro exemplo divertido é o tom de confidência, diria mesmo de transgressão, a cada vez que alguém escreve que Machado de Assis era mulato. Como se todas as fotografias que ainda temos não o deixassem evidente. Mas o fato de ser um de nossos principais autores (senão o principal) desbota as imagens e transforma o bruxo num nórdico, a tal ponto que apontar a mestiçagem, que seu rosto não esconde, passa por exclamar que o rei está nu. São coisas do nosso Brasil.
É claro que há limites. Por exemplo, mais uma vez, o grande Milton Santos, que era negro, lutava pela causa negra e sempre foi visto como negro. Ainda bem, porque, afinal, qualquer coisa diferente disso indicaria que somos todos uns loucos. Este texto, cabe frisar, se refere aos “casos intermediários”, aqueles em que é possível manejar os fatos para que caibam em nossa interpretação do mundo. Foi para isso que serviu a comparação com os EUA e a Europa. Se, para os americanos, o branco é um conceito puro, que rejeita qualquer associação, qualquer mistura, no nosso país o branco assimila o que lhe parece bom nas ocorrências de conceitos concorrentes, deixando para os demais apenas o bagaço. O resultado é uma tendência perniciosa a considerar nosso preconceito menor, quando ele, na realidade, é apenas diferente, mas tão condenável e atrasado quanto qualquer outro.
Acho que ainda encarava com inocência as armadilhas da língua, quando reagi com naturalidade: “Você não vai ter problemas para renovar o visto”, disse o rapaz do guichê, em tom da mais natural constatação, “porque, bom, você é ocidental”. E eu assenti com a cabeça, querendo indicar que entendia o que ele queria dizer, mesmo que não concordasse. Só têm problemas com a polícia e o visto, traduzi mentalmente, as pessoas que vêm de países islâmicos, interpretados logo de cara como terroristas em potência. Aqueles que, por aqui, são chamados de “orientais” (esse termo designa os oriundos do Islã, grosso modo. Nossos “orientais”, aqui, são “asiáticos”.) Brasileiro pode ficar tranqüilo nesse ponto. Povo bacana, pacífico, alegre, fonte inesgotável de sorrisos, mulheres, dribles e gols. E, na minha cabeça, também ocidental, a julgar pelo que eu tinha entendido da afirmação do rapaz do guichê.
Mas, que o quê, eu não tinha entendido era nada. Primeiro, fui entender que o conceito de Ocidente passa longe, muito longe do Brasil. Quando ouvir um europeu se referir ao “Ocidente”, esteja certo de que os países em questão são os da Europa, ora, ocidental, a que se somam os Estados Unidos e o Canadá; em certas circunstâncias, até um australiano pode receber o título, embora seu país esteja cravado no outro hemisfério. Em outras palavras, aquela velha idéia de dividir o mundo em dois hemisférios é conversa fiada. O mundo, para o europeu, é segmentado numa meia-dúzia de compartimentos: Ocidente, Oriente, África, Ásia, russos e quetais. O brasileiro, nesse esquema, tem de se contentar com o carimbo de latino-americano. Mas é importante frisar que esta não é uma identificação cultural ou geográfica. Para o europeu, ela resulta da mais autêntica ontologia.
Agora, se é assim, como se explica o fato de que, para o digníssimo sujeito do outro lado do guichê, eu seja um ocidental, se ele sabia perfeitamente que sou brasileiro, “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes” (TM Belchior)? Tenho certeza de que pelo menos um de vocês dois que estão lendo o texto já tem a resposta na ponta da língua, mas vou enrolar um pouquinho mais.
Um último episódio (último nada, quem dera) veio confirmar minhas suspeitas. Um lauto jantar, bem à francesa, de gastronomia refinada e a nata do vinho nacional (piada velha). À mesa, um cândido rapaz, quase diáfano, contava sua traumática experiência de visitar uma periferia bem ao norte de Paris. Deve ter sido terrível caminhar por ruas desconhecidas e numeradas, em vez de nomeadas. Tantas janelas, tantas crianças, tantos olhares desconfiados. E o mais assustador, ele concluiu: “para qualquer lado que eu olhasse, não encontraria um único ocidental”.
Eis aquela palavra, mais uma vez. E agora entendemos o que ela quer dizer, na boca de um indivíduo civilizado e de mente aberta da Europa. “Ocidental”, afinal de contas, nada mais é do que um sinônimo para “branco”. O que me disse o funcionário público que comigo conversou no guichê, afinal de contas, foi que a polícia francesa não colocaria empecilhos à minha permanência em seu território porque sou branco. Tenho a pele, a cabeleira e o par de olhos ideais do Ocidente.
Ou seja, a língua não é nada inocente. Inocente era eu. A justaposição da classificação geográfica sobre a étnica (ou racial, para dar um tom mais agressivo ao contexto) alivia a carga pesada e negativa de sentir-se um discriminador. O europeu não quer mais ser racista. A lembrança de crimes como a “Solução Final” (que é como os nazistas chamavam o extermínio de judeus), a escravidão e a guerra da Argélia ainda é muito próxima no inconsciente coletivo. É preciso ser civilizado, pois esses são os ditos “valores ocidentais” – e eis que reaparece a fatídica palavra. Não se deve julgar e, na seqüência, rejeitar alguém pela etnia. Um indivíduo democrático, justo e civilizado da Europa não faz esse tipo de coisa. Certo?
Acontece que lutar contra as próprias inclinações impõe algumas dificuldades. Quando os netos de quem outrora oprimiu vêm viver em seu país e pedir para compartilhar de sua nacionalidade; pior, quando já nascem no solo da antiga metrópole, do antigo império, e têm direito imediato a se considerar um cidadão; ou ainda, quando a pronúncia, a música e a indumentária se alteram radicalmente em plena capital do país, haja força de vontade para o ocidental não se sentir acuado, ameaçado e, falemos abertamente, ofendido. Para reerguer a barreira, mas sutilmente, sem recaída fascista, nada mais adequado que a terminologia bem escolhida.
Resultado, consegue-se estabelecer a fronteira entre o “nós”, que se refere aos que, a pele denuncia, descendem dos bárbaros que colonizaram esta terra, e o “eles”, todo mundo mais, com uma preferência acentuada pelos magrebinos e árabes em geral, além dos negros (desculpe, africanos). Só que, como toda estratégia, essa também tem seus furos, por onde esguicha com violência uma água corrosiva. Concebida para afastar os povos menos nobres do banquete da riqueza européia, corre o risco de funcionar bem demais. Seria como se, vamos supor, os serviçais desaparecessem da saturnal levando a comida, os talheres, a louça e a toalha da mesa.
Há coisa de duas semanas, a seleção da Tunísia veio jogar na França. Começou a tocar a Marselhesa e, suprema surpresa, supremo acinte, milhares de adolescentes começaram a assoviar e vaiar. Foi o caos. A imprensa se rasgou nos editoriais. O onipresente Sarkozy ameaçou: da próxima vez, não vai ter jogo. Os intelectuais, sempre atentos, aproveitaram para encher laudas e laudas de perguntas sobre o significado do evento. Nas escolas dos subúrbios, os professores foram instruídos a verificar com a garotada se eles se sentiam franceses. Muitos disseram que não. Preferem se identificar com o país dos pais, mesmo sem jamais terem posto o pé por lá.
Esse é o grande furo da estratégia lingüística de discriminar sem segregar. Há um mundo para além da língua, ao contrário do que pode crer uma parcela bastante significativa das correntes de pensamento do último século. Ao criar, no coração da região que escolheu chamar a si própria de Ocidente, uma legião de cidadãos que não são ocidentais, o ocidental que se considera herdeiro dessa cidadania corre o sério risco de berçar um contingente incontável de ocidentais que nem aspiram a ser cidadãos. E, como nós, brasileiros, sabemos muito bem, quem se vê privado em definitivo da cidadania sente que não tem obrigação nenhuma para com a sociedade.
PS: Eu pretendia continuar com uma comparação com o problema da discriminação social e racial no Brasil, porque, afinal de contas, meu país me interessa muito mais do que os dos outros. Mas ia ficar grande demais, então prefiro continuar em outro artigo, que deve chegar nos próximos dias. Se você tiver um bom coração, me diga que o aguarda com ansiedade. Nem que seja só para me agradar…